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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UERJCULT - Departamento de Teoria Literária e Literatura BrasileiraDisciplina: Prática de interpreta??o de textos I Professoras: Ieda Magri e Juliana Gelmini — Semestre: 2020.1 Sele??o de poemas de Ana Martins MarquesCARTOGRAFIASE ent?o você chegoucomo quem deixa cairsobre um mapaesquecido aberto sobre a mesaum pouco de café uma gota de melcinzas de cigarropreenchendo por descuidoum qualquer lugar até ent?odeserto*você fez quest?o de dobrar o mapade modo que nossas cidadesdistantes uma da outraexatos 1720kmfizessem subitamentefronteira*Rasguei um peda?o do mapade modo que o Grand Canyon continuana minha mesa de trabalhoonde o mapa repousadesde ent?o minha mesa de trabalhotermina subitamente num abismo*N?o sei viajar n?o tenho disposi??o n?o tenho [coragemmas posso esquecer uma laranja sobre o Méxicodesenhar um veleiro sobre a ?ndiapintar as ilhas de Cabo Verde uma a umacomo se fossem unhasduplicar a ?frica com um espelhocriar sobre o Atl?ntico um círculo de águapousando sobre ele meu copo de cervejacircunscrever a Isl?ndia com meu anel de noivadoou ocultar o Sri Lanka depositando sobre ele uma moeda médiavisitar os nomes das cidadeslevar o mundo a passeiopor ruas conhecidasabrir o mapa numa esquina, como se o consultasseapenas para que tome algum sol*Abro o mapa na chuvapara verpouco a poucodiluírem-se as fronteirasas cidades borradasdiminuírem de dist?nciaas cores confundidasnem parecem mais aleatóriasperderam aquele modo abruptocom que as cores mudam nos mapasagora há um grande lagoonde antes havia uma cordilheirao mar n?o é mais molhadodo que o deserto logo ao ladoDeixo depois o mapapara secar ao solsobre a grama do jardimmais rápida do que avi?esas formigas atravessamde um continente ao outrouma lagarta riscadaapossou-se das Coreiasagora unificadasum tapete de folhassobre o mar Egeue o rastro de uma lesma umedeceuo Atacamauma formiga enamorou-se de um vulc?oexatamente do seu tamanhoum dos polosficou à sombrae resfriou-se mais que o outrode longe n?o sei se s?o moscasou os nomes das cidadesPenso que se deixasse o mapa aítempo o bastanteem algum momento surgiriaquem sabeum pequeno inseto novocom esse dom que têm os bichose as pedras e as flores e as folhasde imitarem-seuns aos outrosum pequeno inseto novoeu diziaum novo besouro talvezque trouxesse desenhado nas costaso arquipélago de Cabo Verdeou as finas linhas das fronteirasentre a Argélia e a Tunísia*Quando enfimfechássemos o mapao mundo se dobraria sobre si mesmoe o meio-diarecostado sobre a meia-noiteiluminaria os lugaresmais secretos(MARQUES, 2015, p.36-47) Parangolé Entrea casaé suasua casa-camisasuas vestes-vestíbulossaia-salach?o-chapéuentre a casaé suacorredor para o corpoescadapara o êxtasevestidocom vistapara o mar(MARQUES, 2011, p.54-55) A casaA casa sonha um jardim de roseiras desordenadassonha a madeira a cal a sestasonha o vidro e sonha pequenos animais ariscosadormecendo nos cantossonha a si mesma e aos quartos que n?o temà noiteenquanto nem eu nem você podemos dormir(porque o amor acabou, e o excesso de palavraspor dizertornou nossos corpos pesados,t?o mais pesados do que eramnaquele tempo em que ainda se visitavam,enquanto a sua boca falava dentro da minhasobre lugares que estavam à nossa espera,que envelheciam sem nós)a casa (todo o horror das mobílias,dos objetos que tocamos,dos len?óis sujos da falta do seu corpo,das coisas que testemunharamos dias felizes e os outros)sonha tempos vaziosainda sem nósou depois de nós.(MARQUES, 2009, p. 52) copaa luz do domingo acende o espelho vazioflores baratas bebem da jarranum instante sem malíciaenquanto na fruteira ma??s apodrecem sem gritare me olham das fotografiasos antepassados de alguém.(MARQUES, 2009, p.33)*FRUTEIRAQuem se lembrou de p?r sobre a mesaessas doces evidênciasda morte?(MARQUES, 2011, p.15)*cozinhanostálgicas de um tempo de intermináveis almo?osbanha de porco alho p?o a?úcar sujeiradias que vertiam leite vinhos fortes azeite melrituais sangrentos de morte carne sangue e fogoalvoro?o de primos cozinheiras e restos aos cachorrosas panelas de seu desuso observama mulher sozinha o jornal do dia o café solúvele duas xícaras ir?nicas no aparador.(MARQUES, 2009, p.34)*salana sala decoradapela noitee pelo imenso desejo,nossas xícaras,lascadas.(MARQUES, 2009, p.33)REL?GIODe que nos serviriaum relógio?se lavamos as roupas brancas:é diaas roupas escuras:é noitese partes com a faca uma laranjaem duas:diase abres com os dedos um figomaduro:noitese derramamos água:diase entornamos vinho:noitequando ouvimos o alarme da torradeiraou a chaleira como um pequeno animalque tentasse cantar:diaquando abrimos certos livros lentose os mantemos acesosà custa de álcool, cigarros, silêncio:noitese ado?amos o chá:diase n?o o ado?amos:noitese varremos a casa ou a enceramos:diase nela passamos panos úmidos:noitese temos enxaquecas, eczemas, alergias:diase temos febre, cólicas, inflama??es:noiteaspirinas, raio X, exame de urina:diaataduras, compressas, unguentos:noitese esquento em banho-maria o mel que cristalizouou uso lim?es para limpar os vidros:diase depois de comer ma??sguardo por capricho o papel roxo-escuro:noitese bato claras em neve:diase cozinho beterrabas grandes:noitese escrevemos a lápis em papel pautado:diase dobramos as folhas ou as amassamos:noite(extens?es e cimos:diacamadas e dobras:noite)se esqueces no forno um boloamarelo:diase deixas a água fervendosozinha:noitese pela janela o mar está quietolerdo e engorduradocomo uma po?a de óleo:diase está raivosoespumadocomo um cachorro hidrófobo:noitese um pinguim chega a Ipanemae deitando-se na areia quente sente ferverseu cora??o gelado:diase uma baleia encalha na maré baixae morre pesada, escura,como numa ópera, cantando:noitese desabotoas lentamentetua camisa branca:diase nos despimos com ?nsiacriando em torno de nós um ardente círculo de panos:noitese um besouro verde brilhante bate repetidamentecontra o vidro:diase uma abelha ronda a saladesorientada pelo sexo:noitede que nos serviria um relógio?(MARQUES, 2011, p. 23 - 27)*CORTINAentre o fora e o dentrolêso vento(MARQUES, 2011, p.17)Penélope (I)O que o dia tecea noite esquece.O que o dia tra?aa noite esgar?a.De dia, tramas,de noite, tra?as.De dia, sedas,de noite, perdas.De dia, malhas,de noite, falhas.(2009, p.89) *Penélope (II)A trama do diana urdidura da noiteou a trama da noitena urdidura do diaenquanto te?o:a fidelidade por um fio.(2009, p. 105) *Penélope (III)De dia dedais.Na noite ninguém.(2009, p. 125) *Penélope (IV)E ela n?o dissejá n?o te perten?o há muito entreguei meu cora??o ao sossegoenquanto seu cora??o balan?ava em viagemenquanto eu me consumiaentre os panos da noitevocê percorria dist?ncias insuspeitadascorpos encantados de mulheres com cujas línguasestranhas eu poderia tecer uma mortalhada nossa língua comum.E ela n?o disseno início ainda pensei em vocêprimeiro como quem arde diante de uma fogueiraapenas extintadepois como quem visita em lembran?a a praia da inf?nciae ent?o como quem recorda o amplo ver?oe depois como quem esquece.E ela também n?o dissea solid?o pode ter muitas formas,tantas quantas s?o as terras estrangeiras,e ela é sempre hospitaleira.(2009, p.134) *Penélope (V)A viagem pela esperaé sem retorno.Quantas vezes a noite teceua mortalha do dia,quantas vezes o diadesteceu sua mortalha?Quantas vezes ensaiei o retorno –o rito dos risos,espelho terno, cabelos tran?ados,casa salgada, cora??o veloz?A espera é a flor que eu consigo?gua do mar, vinho tinto – o mesmo copo.(2009, p.140) *Penélope (VI)E ent?o se sentam lado a ladopara que ela lhe narre a odisseia da espera.(2009, p. 142) Self Safári(Carta para Ana C.)Ciganaspasseandocom um rosto escolhidopor paisagens cegas de palavrastraduzidasinconfessasrabiscosao sol.Cotidianasvivendo dias de diáriose mentindo descaradamentenos silêncios das cartas(selos postaisunhas posti?asversos pós-tudo).Fulanasde nomes reversíveispara ir e voltarsem sair do lugar:self safáripor essa paisagem todaque no fundoAna nada tem a ver conosco.(MARQUES, 2009, p.121) N?o sei fazer poemas sobre gatosN?o sei gatografiaAna Cristina CesarN?o sei fazer poemas sobre gatosse tento logo fogemfurtivasas palavrassoltam-se ousaltamn?o capturam do gatonem a caudasobre a mesaquieta e quentea folha recém-impressapágina branca com manchas negras:eis o meu poema sobre gatos(MARQUES, 2015, p. 24)ReferênciasMARQUES, Ana Martins. A vida submarina. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.______. Da arte das armadilhas. S?o Paulo: Companhia das Letras, 2011.______. O livro das semelhan?as. S?o Paulo: Companhia das Letras, 2015. ................
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