“O GRANDE DESAFIO DA PANDEMIA É EMOCIONAL, ÉTICO E SOCIAL”

ENTREVISTA

ALESSANDRA XAVIER

¡°O GRANDE DESAFIO DA

PANDEMIA ? EMOCIONAL,

?TICO E SOCIAL¡±

LUIZ FELIPE STEVANIM

ozinho, o humano n?o d¨¢ conta dos encargos de uma

pandemia como a de covid-19. ? tempo de fortalecer

as redes de afeto, solidariedade e prote??o social, com

apoio das pol¨ªticas p¨²blicas, para que os profissionais de

sa¨²de possam exercer seu trabalho e superar as press?es

emocionais e no campo da sa¨²de mental. Essa ¨¦ a vis?o

da psic¨®loga Alessandra Xavier, professora da Universidade

Estadual do Cear¨¢ (Uece), com pesquisas e atua??o na

¨¢rea de preven??o ao suic¨ªdio e sofrimento ps¨ªquico. O

desafio inclui compreender que n?o basta enxergar os

trabalhadores da sa¨²de como her¨®is: ¨¦ preciso garantir

condi??es dignas de trabalho, al¨¦m de respeito e apoio.

¡°Eles s?o vistos co mo her¨®is, mas ao mesmo tempo temidos. Ter que lidar com um lado seu que cuida e outro

que pode causar dano ¨¦ complicado¡±, pontua. Cuidar da

sa¨²de mental, seja de quem est¨¢ na linha de frente, seja da

popula??o em geral, deve ser uma das prioridades durante

e depois da pandemia. ¡°O grande rebote emocional vai vir

ao longo dos meses e anos. O desafio para todos n¨®s ¨¦

construir um significado, pessoal e coletivo, a partir dessa

pandemia¡±, ressalta.

S

Por que ¨¦ preciso discutir a sa¨²de mental dos trabalhadores da sa¨²de?

Os quadros de sa¨²de mental entre os profissionais de

sa¨²de j¨¢ eram muito s¨¦rios antes da pandemia. Quando

a gente vai avaliar estudos sobre uso abusivo de ¨¢lcool e

suic¨ªdio, a gente observa uma preval¨ºncia muito grande

nessa categoria. Trabalha-se sob elevada tens?o e estresse, muitas vezes sem condi??es adequadas. O profissional

recebe uma forma??o e sabe o que fazer, mas se v¨º em

uma situa??o de impot¨ºncia porque n?o tem os recursos

adequados. Isso acarreta um n¨ªvel de sofrimento muito

grande. Muitos profissionais abrem m?o das atividades

de lazer ou com a fam¨ªlia. Em contextos como o da covid-19, quando aumenta o n¨ªvel de estresse e exig¨ºncia,

tamb¨¦m se amplia a sobrecarga do aparelho ps¨ªquico.

Sem uma contrapartida dos fatores de prote??o, eles

ficam mais vulner¨¢veis.

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RADIS n.213 | JUN 2020

Que tipos de desgastes emocionais s?o acarretados pela

pandemia?

Os profissionais de sa¨²de n?o foram preparados para lidar

com perdas, emo??es e limites. Eles n?o veem isso ao longo

da forma??o, que ¨¦ muitas vezes narcisista, de est¨ªmulo ¨¤s

vaidades e ao sucesso. Essas pessoas entram num modo de

trabalhar quase autom¨¢tico, n?o d¨¢ para parar, mas quando a

ficha cai, s?o pessoas que t¨ºm desabado. Existe ainda o medo

de ser contaminado. Muitos t¨ºm que ficar isolados em casa,

sem contato com os filhos e os pais. E ainda temos relatos de

profissionais que sofreram retalia??o. S?o vistos como her¨®is,

mas ao mesmo tempo temidos, porque podem contaminar.

Ter que lidar com um lado seu que cuida e outro que pode

causar dano ¨¦ complicado.

Por que os profissionais de sa¨²de t¨ºm dificuldade em

aceitar ajuda?

? preciso uma mudan?a de cultura em rela??o ¨¤ sa¨²de mental.

As emo??es parecem levar voc¨º a uma posi??o de fragilidade

e esse ¨¦ um lugar que os profissionais de sa¨²de fogem l¨¦guas.

O que ¨¦ um grande equ¨ªvoco, porque a fragilidade faz parte de

nossa condi??o existencial. N?o somos onipotentes. Muitos

profissionais quando se deparam com a impot¨ºncia, desabam.

S?o confrontados com os limites e n?o sabem lidar. Quando

a coisa fica muito grave ¡ª est¨¢ sem dormir, com muita irritabilidade e choro f¨¢cil ¡ª, ¨¦ importante procurar ajuda com

outro ser humano. E ainda tem outro problema: como eles

t¨ºm acesso ¨¤ medica??o, existe o risco de se automedicarem

ou de uso abusivo de ¨¢lcool e outras drogas. A recusa em

procurar ajuda psicol¨®gica pode fazer com que o problema

se torne cr?nico, em quadros de depress?o.

Existe certa romantiza??o, como se fossem her¨®is e estivessem fazendo um sacrif¨ªcio. Essa fantasia pode gerar

dificuldades em lidar com as dificuldades?

A gente sempre esteve em busca de her¨®is, como se eles

pudessem dar conta de tudo. Os profissionais de sa¨²de s?o

pessoas reais, seres humanos sujeitos a dores, desespero,

d¨²vida, medo e colapso, por mais que tenham um elaborado

ACERVO PESSOAL

refinamento t¨¦cnico. Pode ser um profissional bem preparado

e competente, mas se n?o tiver os insumos adequados, de

nada vai servir. Eles precisam ser bem remunerados, ter as

condi??es adequadas e o apoio das pol¨ªticas p¨²blicas. N?o

pode ser jogado somente para o humano dar conta de todo

o problema. Se n?o tiver apoio do Estado, das pol¨ªticas p¨²blicas e de uma estrutura adequada, ele fica muito limitado.

Quais os impactos da pandemia na sa¨²de mental da

popula??o em geral?

O grande rebote emocional dessa pandemia vai vir ao longo

dos meses e anos. Teremos muito trabalho, na ¨¢rea de sa¨²de

mental, para lidar com as dores e os lutos quando eles forem

descongelados. As experi¨ºncias traum¨¢ticas que a gente est¨¢

vivendo agora s¨® poder?o ser processadas daqui a muito

tempo. Estamos vivenciando uma experi¨ºncia traum¨¢tica

coletiva ¡ª e ela nos impacta de um jeito que precisamos

acionar recursos internos ps¨ªquicos muito potentes para

absorver a situa??o nova. ? uma guerra contra um inimigo

invis¨ªvel, que ¨¦ o v¨ªrus, al¨¦m de outros vis¨ªveis. ? uma peleja

contra o discurso de um governo que oscila e contribui para

tornar a experi¨ºncia ainda mais complicada e dif¨ªcil.

? poss¨ªvel olhar adiante?

O desafio para todos n¨®s ¨¦ construir um significado, pessoal

e coletivo, a partir dessa pandemia. Que significados produzimos em termos de empatia, solidariedade e indigna??o

pelas quest?es sociais que deixam tantos nas periferias em

situa??o de vulnerabilidade? De que forma posso reelaborar

os v¨ªnculos com as pessoas que quero bem? Que aprendizado

posso tirar em rela??o ao meu tempo, ¨¤s minhas escolhas e

aos cuidados comigo mesmo? O grande desafio dessa pandemia ¨¦ emocional, social e ¨¦tico, porque essas dimens?es

est?o sendo reposicionadas. Toda vez diante de um per¨ªodo

hist¨®rico catastr¨®fico, a gente tem mudan?as significativas,

como as que ocorrem no campo dos direitos humanos depois

da Segunda Guerra. E elas v?o exigir mudan?as internas e

na forma das pessoas se relacionarem umas com as outras.

Em rela??o ao distanciamento social, que tipos de desafios surgem quanto ¨¤ rotina de trabalho?

Uma coisa ¨¦ fazer um home office que j¨¢ fazia parte da sua

rotina. Outra coisa ¨¦ isso ser implementado de forma abrupta,

o que deixa as pessoas muito inseguras. ? preciso ter estrutura ¡ª um bom computador e boa internet ¡ª e dominar os

recursos tecnol¨®gicos. Tem gente que manda mensagem de

trabalho domingo, de noite, de madrugada. A pessoa est¨¢ em

casa, mas tem que cuidar das atividades dom¨¦sticas, cuidar

da sua sa¨²de e dos filhos, fazer a higieniza??o dos alimentos.

N?o ¨¦ uma situa??o comum. Aquela m¨¢xima de ¡°dar a camisa

pela empresa¡± e ¡°fa?a o seu m¨¢ximo¡±, dentro da l¨®gica da

efici¨ºncia neoliberal, precisa ser repensada porque as pessoas

est?o adoecendo. N?o tem como manter o mesmo n¨ªvel de

produtividade com a covid-19. At¨¦ porque essa produtividade

j¨¢ foi ela mesma uma das causadoras da pandemia.

O que podemos fazer no nosso dia a dia para melhorar

nossa sa¨²de mental e emocional?

Manter contato com esses elementos simb¨®licos que s?o fundamentais, como a arte, a literatura, o cinema, a m¨²sica. Tentar

manter um cuidado com o corpo e uma boa noite de sono. E

esse cuidado n?o ¨¦ fazer dieta. ? manter uma conex?o da sua

alma com o seu corpo, manter um cuidado consigo, com a sua

higiene pessoal. ? um momento tamb¨¦m importante para as

rela??es familiares: entender que o ambiente dom¨¦stico n?o

¨¦ coisa somente de mulher. Vemos um aumento dos ¨ªndices

de viol¨ºncia dom¨¦stica. A casa ¨¦ responsabilidade de todos. E

esse ¨¦ um momento valios¨ªssimo para os pais ensinarem aos

filhos como lidamos com a dor. Esse ¨¦ um momento excelente

para descobrir recursos para lidar com as dores, por meio da

prote??o dos v¨ªnculos e da solidariedade. As conex?es emocionais e a empatia precisam ser fortalecidas.

JUN 2020 | n.213 RADIS

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