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JOÃO GUIMARÃES ROSA

FICÇÃO COMPLETA

Volume I

VQ~ UME I

INTRODUÇÃO GERAL

PREFACIO

Eduardo F. Coutinho

CRONOLOGIA DA VIDA E DA OBRA DIALOGO COM GUIMARAES ROSA

Günter Lorenz

FORTUNA CRITICA

Antonio Candido /Álvaro Lins /Euryalo Cannabrava

Antonio Candido /Manuel Cavalcanti Proença /Bernardo Gersen

Graciliano Ramos / Tristão deAtaíde /Benedito Nunes

Henriqueta Lisboa /Ángela Vaz Leão/ Braga Montenegro

Paulo Rónai /Rui Mourão /Fernando Py

BIBLIOGRAFIA

Paulo Roberto Dias Pereira

SAGARANA / MANUELZÃO E MIGUILIM O~ R~UBUQU NO PINHÉM

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BIBLIOTECA

LUSO-BRASILEIRA

Série Brasileira

JOÃO GUIMARÃES ROSA

FICÇÃO COMPLETA

em dois volumes

VOLUME I

INTRODUÇÃO GERAL

Prefácio / Cronologia da vida e da obra

Diálogo com Guimarães Rosa/ Fortuna crítica

Bibliografia

SAGARANA / MANUELZÃO E MIGUILIM

NO URUBUQUAQUÃ, NO PINHÉM

NOITES DO SERTÃO

VOLUME II

GRANDE SERTÃO: VEREDAS

PRIMEIRAS ESTORIAS / TUTAMÉIA

ESTAS ESTORIAS / AVE, PALAVRA

Primeira edição, 1994

Reimpressão da primeira edição, 1994

ISBN 85-21O-OO11-1

© 1994, by Vilma Gimarães Rosa, Agnes Guimarães Rosa do Amaral e

Barcelona Participações SIC Ltda.

Direitos de edição da obra em língua portuguesa em edição de luxo

adquiridos pela

EDITORA NOVA AGUILAR S.A.

Rua Bambina, 25 - Botafogo -CEP 22251-O5O

Rio de janeiro, R)

Tel.: 537-877O - Fax: 537-8275

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Rosa, João Guimarães, 19O8-1967

H694f Ficção completa, em dois volumes 1 João Guimarães Rosa. - Rio de Janeiro : Nova Aguilar,1994.

2 v. - (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)

INTRODUÇÃO

GERAL

94-O8O6

Conteúdo: v. 1. Introdução Geral - Sagarana - Manuelzão e Miguilim - No Urubuquaquá, no Pinhém - Noites do sertão - V. 2. Grande sertão: veredas - Primeiras estórias

- Tutaméia - Estas estórias -Ave, palavra.

Inclui bibliografia.

ISBN 85.21o.oou-1

1. Ficção brasileira. 2. Rosa, João Guimarães, 19O8 1967. I. Título. II. Série.

CDD - 869.93 CDU -869.O(81)-3

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PREFÁCIO

GUIMARÃES ROSA:

UM ALQUIMISTA DA PALAVRA

Eduardo F. Coutinho

UM DOS MAIORES ourives da palavra que a literatura brasileira jamais conheceu e ao mesmo tempo um dos mais perspicazes investigadores dos matizes da alma humana

em seus rincões mais profundos, Guimarães Rosa é hoje, entre os escritores brasileiros do século XX, talvez o mais divulgado nos meios acadêmicos nacionais e estrangeiros

e o detentor de uma fortuna crítica não só numericamente significativa, como constituída pelo que de melhor se vem produzindo em termos de crítica no país. No entanto,

apesar da complexidade de sua obra, resultante em grande parte da verdadeira revolução que empreendeu da linguagem ficcional, o sucesso de Guimarães Rosa não se

restringe ao contexto intelectual. Prova-o bem a grande quantidade de edições que se sucedem de seus livros e o número expressivo de traduções que povoam cada vez

mais o mercado internacional. Prova-o também a série de leituras que ela vem recebendo por parte do teatro (Sarapalha, por exemplo), e da mídia cinematográfica e

televisiva (longametragens como A hora e vez de Augusto Matraga, Duelo, Noites do sertão, Cabaré mineiro e A terceira margem do rio, entre outros, e a série televisiva

Diadorim). A presente edição tem o mérito de reunir, pela primeira vez em volumes conjuntos, a obra completa do autor, acompanhada de cronologia, bibliografia ativa

e passiva atualizada, e uma breve seleção de sua fortuna crítica. É uma contribuição extremamente relevante que a Nova Aguilar oferece ao público, revitalizando,

como já o vem fazendo há algum tempo, a tradição iniciada por Afrânio Coutinho e consolidada nos áureos tempos da antiga Aguilar.

Desde a publicação, em 1946, de seu primeiro livro, Guimarães Rosa se tornou alvo de interesse da crítica. Efetuando um verdadeiro corte no discurso tradicional

da ficção brasileira, máxime no que concerne à linguagem e estrutura narrativa, Sagarana causou forte impacto no meio literário da

12 )()Ao GUIMARAES ROSA / FICÇAO COMPLETA

época, dividindo os críticos em duas posições extremas: de um lado aqueles que se encantaram com as inovações presentes na obra e teceram-lhe comentários altamente

estimulantes, e de outro os que, presos a uma visão de mundo mais ortodoxa e baseados no modelo ainda dominante da narrativa dos anos 3O - o chamado "romance do

engajamento social" - acusaram o livro de "excessivo formalismo". Estas posições da crítica, tanto a apologética quanto a restritiva, que apreenderam a obra através

de uma perspectiva monocular, vão sofrer séria revisão mais tarde - principalmente após o surgimento de Grande sertão: veredas - mas o registro de sua reação no

momento da publicação de Sagarana indica o sentido de ruptura que caracteriza a obra com relação à tradição literária brasileira ainda dominante, apesar dos esforços

da primeira geração modernista, e aponta o seu parentesco com outras obras também inovadoras que vinham surgindo ou já haviam surgido no seio de outras literaturas

vinculadas à nossa, como a hispano-americana e a norte-americana, ou, de maneira mais ampla, no próprio corpus da literatura ocidental como um todo.

Deixando de lado o segundo aspecto por implicar um estudo comparativo mais amplo que transcenderia o objetivo deste ensaio, e concentrandonos no primeiro, lembremo-nos

de que, no quadro da literatura brasileira, a obra de Guimarães Rosa é geralmente situada dentro da terceira geração modernista, também designada "geração do instrumentalismo",

por caracterizar-se, entre outras coisas, por acentuada preocupação com a exploração das potencialidades do discurso, com o sentido "estético" do texto, e por expressar,

na maioria dos casos, profunda consciência do caráter de ficcionalidade da obra, de sua própria literariedade. Tais elementos, presentes em quase todos os autores

que a historiografia literária normalmente inclui nessa geração, são levados a um extremo na ficção rosiana, o que explica em parte a reação mencionada da crítica.

Contudo, o que esta crítica não percebeu de imediato é que a ruptura introduzida por Guimarães Rosa, longe de constituir mera obsessão formal, uma espécie de capricho

ou moda, acarretava ao contrário uma proposta estético-política de caráter mais amplo, somente evidenciável quando confrontada com a visão de mundo dominante no

período imediatamente anterior - a da narrativa dos anos 3O - e expressa em premissas, formuladas pelo próprio autor em entrevista ã Günter Lorenz, como a de que

"o escritor deve ser um alquimista" e de que "somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo". I

I Lorenz, Günter. Guimarães Rosa. Diálogo com a América Latina. Panorama de uma literatura do futuro. Trad. Rosemary Costhek Abílio e Fredy de Souza Rodrigues. São

Paulo: EPU, 1973, p. 315-55. Repr. com o título "Diálogo com Guimarães Rosa", em Coutinho, Eduardo F., org. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1983, p. 62-97. Coleção "Fortuna Crítica", n. 6. Todas as citações desta entrevista, concedida por G. Rosa a G. Lorenz, serão feitas por esta última edição.

INTRODUÇAO GERAL / PREFACIO 13

À época em que Guimarães Rosa produziu suas primeiras narrativas - os contos enfeixados no volume Sagarana- o tipo de ficção predominante no meio intelectual brasileiro

era ainda o romance do Nordeste, com seu veio épico acentuado e um tônus marcadamente de protesto, mas calcado em uma linguagem que, por se subordinar muitas vezes

à função de denúncia, tornava-se amiúde descritivista, voltada para o aparente e convencional, não se diferençando muito, a despeito da maior ênfase sobre o coloquial,

da utilizada em finais do século XIX pelos adeptos do Real-Naturalismo. Ciente do paradoxo em que havia incorrido a ficção anterior, que expressava idéias revolucionárias,

mas através de um discurso automatizado, e baseado na convicção de que ` o melhor dos conteúdos de nada vale se a língua não lhe faz justiça", Rosa define como uma

de suas principais metas a tarefa de revitalizar a linguagem com o fim de fazê-la recobrar sua poiesis originária e atingir o leitor, induzindo-o á reflexão. Desse

modo, mergulha de corpo e alma nos meandros da linguagem, violando constantemente a norma, e substituindo o lugar-comum pelo único, ou, melhor, abandonando as formas

cristalizadas e dedicando-se à busca do inexplorado, do metal que, como ele próprio afirma, se esconde "sob montanhas de cinzas".

Os procedimentos empregados por Guimarães Rosa para revitalizar a linguagem narrativa são muitos e variados e se estendem desde o plano da língua stricto sensu ao

do discurso narrativo. No primeiro caso, citem-se, a título de amostragem, a desautomatização de palavras que haviam perdido sua energia primitiva e adquirido sentidos

fixos, associados a um contexto específico (por exemplo, palavras como "sertão" no romance regionalista); de expressões que se haviam tornado vagas e enfraquecidas,

encobertas com significações que escondiam seu viço originário; e da sintaxe como um todo que havia abandonado suas múltiplas possibilidades e se limitara a clichês

e estereótipos. E no segundo caso, mencionem-se, entre um vasto leque de recursos, a ruptura da linearidade tradicional e das relações de causa e efeito na narrativa,

que cedem lugar à simultaneidade e à multiplicidade de planos espaciais; o emprego de técnicas híbridas e a fusão dos gêneros tradicionais; e finalmente, a coexistência,

na grande maioria das narrativas, de uma linguagem-objeto e uma metalinguagem, que sinaliza a todo instante a consciência de ficcionalidade da obra. Contudo, a despeito

das diferenças assinaladas, tais procedimentos têm uma base comum, constituída de dois estágios: a eliminação de toda conotação adquirida com o tempo e desgastada

pelo uso, e a exploração das potencialidades da linguagem, da face oculta do signo, ou, para empregar as palavras do próprio Rosa, do "ileso gume do vocábulo pouco

visto e menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fora se jamais usado"."

Rosa, João Guimarães. Sagarana. 12. ed. Rio de janeiro: José Olympio, 197O, p. 238.

Esta infração à norma, efetuada por Guimarães Rosa ao largo de toda a sua obra, e o conseqüente esmerilhamento das potencialidades do sistema não só lingüístico

em seu sentido estrito como também do discurso narrativo, é talvez a maior expressão da postura comprometida do autor, que vê a participação do leitor como elemento

indispensável em seu próprio processo criador. Para Guimarães Rosa, a linguagem é um poderoso instrumento de ação na medida em que, ao expressar idéias - "a língua

serve para expressar idéias", diz ele, em sua entrevista com Lorenz - pode atuar sobre os indivíduos, levando-os à reflexão. Mas como este poder da linguagem se

enfraquece sempre que suas formas se acham desgastadas e condicionadas a uma visão de mundo específica, é preciso renová-las constantemente, e o ato de renovação

se reveste de um sentido ético que o próprio Rosa explicita ao referir-se, com bela imagem, ao "compromisso do coração" que, conforme acredita, todo escritor deve

ter. A linguagem corrente está desgastada pelo uso e, por conseguinte, "expressa apenas clichês e não idéias"; assim, é missão do escritor explorar a originalidade

da expressão lingüística, de modo a que ela possa recuperar seu poder, tornando-se novamente apta a atuar sobre os indivíduos. É por esta razão que declara a Lorenz

que a poesia "se origina da modificação de realidades lingüísticas% e em seguida conclui que todo verdadeiro escritor é também um revolucionário, porque, ao restaurar

o poder de ação da linguagem, está ao mesmo tempo espalhando sementes de possíveis transformações.

Com a renovação do dictum poético, empreendida por Guimarães Rosa, o leitor é induzido a pensar, a refletir a todo instante, e se transforma de mero consumidor num

participante ativo do processo criador. O autor está ciente do fato, como ele mesmo afirma através das palavras do narrador de Grande sertão: veredas, de que "toda

ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo" assim, fornece ao leitor esta "palavra", por meio das inovações

que introduz, e, ao estimular sua reflexão e conseqüente participação na construção da própria obra, faz dele um grande questionados, um desbravador de caminhos.

O leitor, para Guimarães Rosa, como aliás todo ser humano, é sempre um perseguidor, um indivíduo inteiramente construído sob o signo da busca, e é esta indagação

que deve ser constantemente estimulada pelo escritor. A Rosa não basta, por exemplo, tecer, como haviam feito autores da geração anterior, uma crítica, por mais

veemente que seja, a determinada realidade,zzz se esta crítica não se fizer acompanhar de uma reestruturação da linguagem sobre a qual se erige. A revolução na literatura

deve partir de dentro, da própria forma literária, se se quer atingir o leitor

3 Rosa, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 2. ed. Rio de janeiro: José Olympio, 1958, p. 17O.

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de maneira mais plena, e é este o sentido último da revolução " da a cabo por Guimarães Rosa.

Exemplos de processos de revitalização da linguagem pode

dos de cada linha das narrativas de Guimarães Rosa e já foram exaustivamente listados e examinados em estudos dedicados pela crítica sobretudo aos aspectos lingüísticos

e filológicos de sua obra. Entretanto, uma breve menção a alguns deles, como a afixação e a aglutinação, faz-se, a nosso ver, necessária, se não mais pela freqüência

com que aparecem. A primeira é o que ocorre, por exemplo, com a palavra "sozinhozinho", empregada no Grande sertão: veredas. A palavra "só", basicamente referencial

em português, não contém em si mesma nenhuma conotação emocional. O poeta anônimo, ao sentir certa vez que o vocábulo era insuficiente para expressar sua solidão,

decidiu, então, acrescentar-lhe um sufixo diminutivo -inho, -zinho, bastante usado na língua com o sentido de intensidade (cf. "cedinho", "devagarzinho"). E o resultado

foi a palavra "sozinho", significando "muito só". Não obstante, com o desenvolvimento da língua, "sozinho" veio a perder seu significado poético e passou a ser usado

como um simples sinônimo de "só". Guimarães Rosa, percebendo a inexpressividade do vocábulo, procurou reavivar seu significado originário, servindo-se do mesmo processo

que acreditava tivessse sido utilizado um dia. Assim, repetiu o sufixo diminutivo no final e criou a forma "sozinhozinho".

O segundo procedimento mencionado, a aglutinação, consiste na combinação dos significantes de dois ou mais vocábulos, de tal modo que o neologismo criado contenha

os significados de todos eles. Estes neologismos, chamados palavras portmanteau, são particularmente abundantes na obra rosiana e se prestam, melhor talvez do que

qualquer outro aspecto de sua linguagem, para ilustrar o cunho das inovações estéticas introduzidas pelo autor.

É o caso de palavras como nenhão, fusão do pronome indefinido "nenhum" e do advérbio de negação "não"; fechabrir, conciliação dos opostos "fechar" e "abrir"; prostitutriz,

combinação dos sinônimos "prostituta" e "meretriz"; ou ainda as formas sussurruído e adormorrer, usadas para sugerir respectivamente o cochicho de um grupo de pessoas

num velório e a morte de um indivíduo como uma espécie de sono. Em todos esses casos, bem como nos de afixação, como o citado acima, observa-se a alteração ou criação

de um signifrcante, mas nunca a invenção de "significantes" inteiramente novos, dissociados das formas existentes no idioma. O escritor é um infrator da norma, do

uso cristalizado da língua, e o que faz é explorar as possibilidades latentes dentro do sistema de sua língua, conferindo existência concreta a algo que existia

até então em estado potencial.

Como os exemplos citados se restringem ambos ao nível vocabular, vale registrar também aqui o caso de sintagmas e às vezes sentenças intei-

JOÃO GUIMARÃES ROSA I FICÇÃO COMPLETA

16

ias tornados clichês, que são freqüentemente alterados pelo autor com o objetivo de fazê-los recobrar sua expressividade originária. Assim, construções como "nu

da cintura para cima" ou "não sabiam de coisíssima nenhuma" transformam-se em Grande sertão: veredas em "nu da cintura para os queixos" e "não sabiam de nada coisíssima".

Quando um falante de português escuta a expressão "nu da cintura para cima" ou a sentença "não sabiam de coisíssima nenhuma", não pensa sobre as diversas nuances

de significado que elas contêm. Na verdade, não chega nem a notar o uso peculiar do sufixo superlativo -issimo, próprio de um adjetivo, aplicado ao substantivo "coisa".

Estes sintagmas se acham tão bem integrados em sua língua, e foram de tal modo desgastados pelo uso, que não sugerem para ele nenhuma conotação especial. Todavia,

quando escuta a expressão "riu da cintura para os queixos" ou a sentença "não sabiam de nada coisíssima", a estranheza das construções fere sua percepção e força-o

a refletir sobre o significado delas. E, ao fazê-lo, ele é levado a enxergar além do puro aspecto denotativo da expressão.

Embora seja no campo da sintaxe, ao contrário do que se supõe normalmente, que residem as maiores inovações de Guimarães Rosa com relação à linguagem literária (trata-se

de uma sintaxe com uma lógica bastante peculiar e marcada por uma estrutura compacta, telegráfica), a extensão e complexidade do tópico impede que nos detenhamos

em uma exemplificação mais detalhada. Optamos, então, pela simples menção a alguns dos processos mais freqüentes empregados neste setor`e a enumeração de palavras

pertencentes à mesma classe gramatical e ao mesmo campo semântico, que introduz uma ruptura na estrutura sintagmática do discurso, e contribui para uma espécie de

neutralização da oposição entre prosa e poesia; a inversão da ordem tradicional dos vocábulos e sintagmas na oração, que constitui talvez o traço mais erudito do

estilo do autor e o responsável, em grande parte, pelo rótulo que diversos críticos quiseram emprestar-lhe de neobarroco; e o uso de orações justapostas e construções

elípticas, típicas da linguagem oral, que revelam uma preferência acentuada pela coordenação sobre a subordinação e por um tipo de estilo fluido, linear e direto.

No plano lato sensu do discurso narrativo, foram incontáveis as inovações introduzidas por Guimarães Rosa em sua busca de uma nova expressão. E, em todos os casos,

a atitude foi semelhante: a eliminação dos elementos gastos (excessos descritivos, abundância de pormenores irrelevantes, uso de recursos cristalizados) e a exploração

das potencialidades do discurso. Aqui, porém, devido à amplitude e complexidade do assunto, que transcendem nosso objetivo, faremos apenas uma referência à metalinguagem,

empregada abundantemente ao largo de toda a sua produção. Este recurso, que funciona como um sinalizador do caráter de frccionalidade da obra, inscrevendo Guimarães

Rosa na linhagem autoconsciente da ficção

INTRODUÇAO GERAL / PREFÁCIO 17

brasileira, tão bem representada, entre outros, por Machado de Assis, encontra expressões variadas nos textos rosianos, que se estendem desde a simples interrupção

da narrativa para dar lugar a comentários sobre a própria técnica até a inserção de toda uma reflexão teórica sobre o processo de criação artística. Neste último

caso, o corte efetuado na linearidade do discurso chega a atingir uma tal dimensão, que a reflexão introduzida adquire o sentido de verdadeira ais poetisa, como

nos episódios do desafio inserto, por um processo de mire en abyme, no conto "São Marcos" de Sagarana, nas estórias da Joana e do Grivo, nas novelas "Manuelzão"

e "Cara-de-Bronze", de Corpo de baile, e finalmente nos prefácios de Tutaméia, que, embora dotados de certa independência, formam junto com os contos um todo coerente

e harmônico.

Mas apesar do papel que a busca de uma nova expressão literária desempenha na obra de Guimarães Rosa e da importância de sua revolução da linguagem no panorama da

literatura brasileira contemporânea, não é este o único aspecto de sua narrativa que domina o interesse dos críticos. Escritor regionalista no sentido de que utiliza

como cenário de suas estórias o sertão dos Gerais, e como personagens os habitantes dessa região, o autor transcende os parâmetros do Regionalismo tradicional ao

substituir a ênfase até então atribuída à paisagem pela importância dada ao homem - pivô de seu universo frccional. Enquanto em uma narrativa regionalista tradicional,

seja ela de tipo exótico ou de natureza crítica, a paisagem ocupa o centro da obra e o homem é relegado a plano secundário como mero representante da região em foco

(ele é o gaúcho ou o sertanejo, por exemplo), na ficção rosiana ele constitui o eixo motriz e a paisagem é vista através dele. O homem não é mais retratado apenas

em seus aspectos típicos ou específicos, mas antes apresentado como um ser múltiplo e contraditório e em tantas de suas facetas quanto possível. Do mesmo modo, o

sertão, a paisagem que dá forma a suas narrativas, é não apenas a recriação literária de uma área geográfica específica, tanto em seus aspectos fisicos quanto socioculturais,

mas também, e principalmente, a representação de uma região humana, existencial, viva e presente na mente de seus personagens - uma região que só pode ser definida

como uma espécie de microcosmo.

Os personagens que integram o universo frccional de Guimarães Rosa, desde os contos de Sagarana até as narrativas densas e condensadas de Tu taméia, são figuras

extraídas do sertão mineiro, onde o autor nascera e se criara, e que constitui o cenário de suas estórias. Mas, em momento algum, eles se instituem como meros tipos

representativos dessa região. As marcas regionais estão presentes em sua configuração e se refletem o tempo todo na maneira como se relacionam com o mundo, em seu

próprio jeito de ser, mas nunca a ponto de determinar a dimensão de seu viver. A perspectiva determinista, responsável pelo cunho de unilateralidade com que se cons-

JOAO GUIMARAES ROSA / FICÇAO COMPLETA

truíram protagonistas de romances naturalistas e que ainda encontrou terreno fértil em muitas obras da geração de 193O, não tem mais lugar na narrativa rosiana.

Aqui, homem e natureza, longe de constituir duas entidades distintas, freqüentemente postas em conflito, são antes os dois lados de um todo integral que se complementam

um ao outro. Os heróis de Guimarães Rosa continuam a ser tipos no sentido de que expressam seu caráter coletivo - sua região ou sociedade e a função que desempenham

neste contexto - em cada um de seus atos, mas eles transcendem sua tipicidade pela ampla dimensão humana de que são dotados.

O protagonista rosiano, que abarca ambas as condições de tipo e de indivíduo, e cuja tipicidade se revela através de sua própria individualização no universo narrativo,

fica bastante evidente se contrastamos, por exemplo, o jagunço Riobaldo, do Grande sertão: veredas, com o "tipo jagunço", tão comum na ficção regionalista brasileira

de fases anteriores. Enquanto este último é um mero tipo perfeitamente definível por meio de uma série de rótulos e construído a partir de uma óptica maniqueísta,

ora como herói, ora como vítima social, Riobaldo, além da encarnação de um tipo representativo de sua região, é um personagem múltiplo e complexo, que extrapola

qualquer limitação. Os conflitos de Riobaldo no universo do romance sem dúvida refletem todos os problemas característicos do "tipo jagunço" presente na intelligentzia

literária brasileira - o que se evidencia facilmente por intermédio de um paralelo entre ele e os demais jagunços da obra -; porém constituem, ao mesmo tempo, conflitos

individuais, pertinentes, acima de tudo, a sua própria condição existencial. Assim, uma das maiores preocupações que afligem o protagonista ao largo de toda a narrativa

é a questão do bem e do mal, que, embora bastante viva no mundo dos jagunços, é antes de mais nada uma preocupação humana, existencial. Além disso, apesar de jagunço,

Riobaldo está sempre questionando a sua condição enquanto tal, e a condição mesma de se ser um jagunço (a própria idéia de jagunçagem), fato que, ao conferir distanciamento

crítico entre ele como personagem e o tipo que encarna, reforça sua capacidade de transcender o modelo, e assinala sua projeção em âmbito mais universal.

Do mesmo modo que o homem, também a paisagem que enforma o universo rosiano não é apenas a descrição acurada de uma realidade física - o sertão mineiro - mas antes

a recriação, o mais completa possível, de uma realidade sem fronteiras. Não há dúvida de que se trata de uma área específica do interior do Brasil, como se pode

observar pela abundância de referências geográficas precisas que povoam toda a obra, mas sua dimensão não se restringe a este aspecto. Ela é também, ou até,principalmente,

o espaço existencial dos personagens, e a reconstituição, pela narração, de uma região humana e universal. Enquanto na ficção regionalista anterior a região era

geralmente abordada por uma perspectiva unilateral, ora como

refúgio pitoresco, ora como terra inóspita que traga e destrói o homem, e era sempre retratada por uma série de didiês, na narrativa rosiana ela se configura como

realidade viva e dinãomica, profunda e contraditória, dada a conhecer ao leitor através da visão e experiência existencial de seus habitantes. Ela é, assim, além

de uma região localizada geograficamente, um sertão-mundo, e um sertão conscientemente construído na linguagem, ou seja, um universo que ultrapassa a pura referencialidade

e se institui como espaço eminente da criação.

Esta visão do sertão como uma região ambígua e multifacetada, que foge a qualquer delimitação rígida, fica bastante evidenciada, mais uma vez, no Grande sertão:

veredas-esta espécie de síntese do cosmos rosiano - através da tentativa que o protagonista-narrador faz o tempo todo de definir o conceito e da sua incapacidade

de chegar a uma formulação lingüística satisfatória. Ao longo de todo o romance, há um sem-número de definições para o sertão, ou, melhor, de tentativas de definição,

e nenhuma sequer se sustenta por si só. Ao contrário, elas se complementam, e até mesmo contradizem umas às outras, só fazendo sentido quando vistas por uma óptica

global: "O sertão é e não é", afirma Riobaldo repetidas vezes no livro, "o sertão está em toda a parte". Nesta obra, o sertão, além de construído de maneira não

maniqueísta, oscilando entre eixos semânticos distintos, que o revelam ora como região inóspita ora quase como uma espécie de paraíso terrestre, como atestam os

episódios das duas travessias do Liso do Sussuarão, ele se revela dentro de uma dinãomica tríplice: é o espaço geográfico onde se realiza a travessia de Riobaldo

como jagunço, o espaço existencial onde se efetua sua busca do sentido da vida, e finalmente o espaço da construção lingüística em que se verifica a demanda da expressão

poética. Estes três aspectos se complementam no bojo do romance, fazendo do sertão de Rosa uma região total, no sentido como foram definidas as estepes de Tchekov,

a Mancha de Cervantes ou ainda a Dublin de Joyce. E não é outro o sentido de afirmações como as seguintes, feitas constantemente pelo narrador: "O sertão é do tamanho

do mundo", "Sertão: é dentro da gente", "O sertão é sem lugar", ou ainda do leitmotiv que perpassa todo o livro, expresso pelas construções paralelas: "Viver é muito

perigoso" e "Contar é muito, muito dificultoso".

Esta perspectiva regionalista mais ampla, baseada no caráter não-exdudente de termos aparentemente opostos, não é, porém, um fenómeno isolado na obra rosiana. Ao

contrário, faz parte de uma concepção geral da realidade como algo múltiplo e em constante transformação, que se deve representar na arte de maneira também fluida

e globalizante, isto é, por meio de uma forma que procure apreendê-la em sua dinãomica e em tantas de suas facetas quanto possível. O universo ficcional rosiano

não

é jamais estático, nem nunca construído em um único nível. Omito e a fantasia,

2O

JOAO GUIMARAES ROSA / PICÇAO COMPLETA

INTROOUÇAO GERAL / PREFACIO

21

por exemplo, o integram tanto quanto a lógica racionalista, e todos esses elementos são tratados em pé de igualdade pelo autor. Homem do sertão brasileiro, região

marcada profundamente pelo mistério e o desconhecido, mas ao mesmo tempo dotado de enorme erudição, proveniente de sua formação e vivência no seio da tradição ocidental,

Guimarães Rosa rompe com a hierarquia freqüentemente estabelecida entre o logos e o mythos, e apresenta ambos os elementos, produtos que são do discurso, em constante

tensão em suas narrativas.

O mito e a fantasia, bem como os demais níveis de realidade que transcendem a lógica racionalista, acham-se presentes na obra rosiana, dos relatos de Sagarana às

estorietas de Tutaméia, de formas as mais variadas: superstições e premonições, crença em aparições, devoção a curandeiros e videntes, misticismo e temor religioso,

como o temor ao diabo, e certa admiração pelo mistério e o desconhecido. Tais elementos constituem parte integrante do complexo mental do homem do sertão, e não

podem, segundo o autor, estar ausentes de suas narrativas, pois, como ele próprio afirma em sua entrevista a Lorenz, "para entender a `brasilidade" é importante

antes de tudo aprender a reconhecer que a sabedoria é algo distinto da lógica". No entanto, em momento algum a perspectiva racionalista é abandonada. Guimarães Rosa

está consciente de que o sertanejo é um ser dividido entre dois universos distintos, de ordem mítico-sacral e lógico-racional, e o que faz é pôr em xeque a tirania

do racionalismo, condenar sua supremacia sobre os demais níveis de realidade. Rosa não rejeita o racionalismo como uma entre outras possibilidades de apreensão da

realidade, mas procede a uma avaliação e relativização de sua autoridade, do cunho hegemônico e dogmático que este adquiriu na tradição ocidental. Neste sentido

questiona a todo instante o realismo tradicional em suas obras e insinua freqüentemente a viabilidade do mito, mas tampouco se encerra na perspectiva deste último.

Ao contrário, todas as vezes que afirma algo passível de sugerir a adoção de uma visão quer mítica quer racionalista dos fatos, segue-se imediatamente uma contrapartida,

e ambas as categorias se inserem no reino das possibilidades.

Embora a coexistência em tensão do mythos e do logos seja uma constante em toda a obra rosiana, não se pode deixar de mencionar neste sentido o Grande sertão: veredas,

que se inicia com a pergunta levantada pelo protagonista-narrador sobre a existência do diabo e termina com palavras que projetam personagem e leitor no mesmo território

duvidoso. Neste romance, em que o protagonista chega a contrair um pacto com o diabo, em episódio antológico que remonta, de forma transculturadora, a toda uma tradição

faustiana, a figura mítica não aparece como entidade concreta, mas sua presença é insinuada a cada instante, e a ambigüidade é a pedra de toque que norteia toda

a obra. Opacto, nodal em termos da estrutura narrati

va, é relatado por um lado através de uma óptica ingênua, que sugere a viabilidade do mito, mas, por outro, não contém qualquer dado que exclua a possibilidade de

explicações racionalistas. E se é possível interpretá-lo do ponto de vista predominantemente psicológico como uma tomada de consciência do protagonista sobre o mal

existente nele mesmo, não se pode abandonar tampouco a insinuação de uma interpretação mágica, confirmada pelo próprio receio que o atormentará pelo resto da vida

e pela transformação que os demais personagens registram nele. No episódio do pacto, assim como em toda a narrativa, o narrador questiona o domínio do racionalismo,

chamando atenção para o mito, mas, ao questionar também a existência deste, ele não abandona completamente a possibilidade de uma perspectiva racionàlista, e revela

uma visão de mundo que estabelece, em sua multiplicidade, um isomorfismo com o amálgama cultural caracterizador da realidade de onde provém.

O questionamento da lógica racionalista é sem dúvida um dos traços mais significativos da obra rosiana e se expressa, além dos aspectos citados, pela simpatia que

o autor devota a todos aqueles seres que, não encarando a vida por uma óptica predominantemente racionalista, inscrevem-se como marginalizados na esfera do "senso

comum". É o caso de loucos, cegos, doentes em geral, criminosos, feiticeiros, artistas populares, e sobretudo crianças e velhos, que, por não compartilharem a visão

imediatista do adulto comum, impregnam a ficção do autor com a sua sensibilidade e percepção aguçadas. Esta galeria de personagens intuitivos, a que se acrescentam

também outros dominados por estados de "desrazão" passageiros, como a embriaguez ou a paixão, figuram ora como secundários ora como protagonistas das estórias de

Rosa, mas em ambos os casos são eles que conferem com freqüência o tom de todo o texto. Não só o foco narrativo recai diversas vezes sobre eles, construindo-se o

relato a partir de sua perspectiva, como é deles que emana a poiesis a iluminar as veredas narrativas. Lúcidos em sua loucura, ou sensatos em sua aparente insensatez,

os tipos marginalizados que povoam o sertão rosiano põem por terra as dicotomias do racionalismo, afirmando-se nas suas diferenças. E, ao erigir este universo, em

que a fala dos desfavorecidos se faz também ouvir, Rosa efetua verdadeira desconstrução do discurso hegemônico da lógica ocidental, e se lança na busca de terceiras

possibilidades, tão bem representadas pela imagem, síntese talvez de toda a sua obra, que dá título ao conto "A terceira margem do rio".

Neste conto em que um homem, "cumpridor, ordeiro, positivo"," e aparentemente bem integrado ao cotidiano de um pacato vilarejo do inte

4 Rosa, João Guimarães. Primeiras estórias. 11. ed. Rio de janeiro: José Olympio, 1978, p. 27.

22 JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COMPLETA

INTRODUÇÃO GERAL/ PREFACIO

rior, abandona subitamente tudo e confina-se a uma canoa, passando a viver, para sempre, em movimento de ir e vir, no leito de um rio, a racionalidade cartesiana

encontra talvez sua crítica mais contundente na narrativa rosiana. Aqui as duas margens do rio, expressão do binômio racionalista calcado na lógica do "ou", cedem

lugar a uma indagação, e as certezas ainda presentes na ficção brasileira anterior sucumbem à busca de novas possibilidades. A situação retratada no conto em questão

é um golpe na racionalidade, que não consegue explicá-la, mas a infração cometida não extrapola as barreiras do cosmos: no texto, os elementos essenciais para a

sobrevivência do indivíduo - alimentação e agasalho - lhe são supridos pelos familiares ao longo de toda a sua vida. À diferença do que ocorre no fantástico ou no

realismo maravilhoso, categorias, aliás, pouco presentes na obra de Guimarães Rosa, fato que o distingue muitas vezes de outros grandes autores latino-americanos

do mesmo período, sobretudo os de língua espanhola, o elemento de sobrenaturalidade não contém a dimensão de ruptura que se verifica naqueles casos. O sobrenatural

em Rosa é tratado como parte do complexo mental do homem do sertão, do aspecto mítico-sacral de sua Weltanschauung, e, como tal, passível também de questionamento.

O mito é, do mesmo modo que a lógica racionalista, uma entre outras possibilidades de apreensão do real, e o que o autor assinala a toda hora é o caráter não-excludente

dessas categorias.

A contestação da lógica dicotômica, alternativa, da tradição cartesiana, em favor da busca de uma pluralidade de caminhos é uma das tônicas de toda a ficção rosiana,

que se expressa, entre outras coisas, pelo leitmotiv "Tudo é e não é", repetido com freqüência ao largo do Grande sertão: veredas. Este livro, aliás, espécie de

síntese de toda a obra do autor, é um mosaico de indagações, resultantes da convivência em constante tensão de elementos contraditórios e aparentemente incompatíveis.

Em suas páginas, pares antagônicos como bem e mal, passado e presente, carne e espírito se tencionam e retensionam a cada instante, e chegam a encontrar expressão

direta na figura de Diadorim, que encarna em sua androginia não só as faces lícita e ilícita do amor, como também todas as situações de indefinição com que o ser

humano se defronta em sua travessia existencial. Diadorim é, na verdade, uma espécie de encarnação do princípio de contradição que rege o cosmos rosiano. Ela é a

força motriz que induz o homem à ação e lhe revela a beleza presente nas coisas simples, mas ao mesmo tempo é o braço que o faz perceber o mal e o projeta diante

do abismo da própria existência. Diadorim forma, junto com Otacília e Nhorinhá, a tríade feminina do romance, mas além de instituir-se como uma síntese das duas

outras, reúne em sua própria condição os princípios feminino e masculino da tradição literária. Ela é, como seu próprio nome sugere, Deus e diabo, luz e trevas,

carne e espírito, dor e prazer, homem e

mulher, e constitui pela sua contradição a imagem do questionamento presente em toda a obra rosiana.

Esta visão plural, híbrida, indagadora, que caracteriza o universo rosiano, acha-se presente em cada elemento das narrativas do autor, desde os personagens e o espaço

até a linguagem utilizada, que pode ser vista, aliás, como bastante representativa de toda a sua obra. A linguagem de Guimarães Rosa é uma criação estética, consciente

de sua condição de discurso, e composta da fusão de elementos oriundos da experiência e da observação com outros inteiramente inventados no momento mesmo da expressão.

Ela tem um componente regionalista, próprio da área do sertão que forma o cenário de suas estórias, mas não constitui obviamente a reprodução fiel de nenhum dialeto

específico falado no Brasil. Assim como seus personagens, que trazem a marca regional, mas a transcendem pela dimensão existencial de que são dotados, e o espaço

ficcional, que ultrapassa as fronteiras do sertão geográfico, a dicção rosiana é antes o amálgama de vários dialetos existentes no país, a que se somam contribuições

quer provenientes de línguas estrangeiras (inclusive o latim e o grego clássico), quer resultantes da própria capacidade do autor de inventar neologismos e construções

totalmente novas. Seu léxico, por exemplo, para nos atermos a apenas um dos aspectos, é um compósito de termos oriundos de fontes não só as mais diversas, como inclusive

contraditórias, como arcaísmos e neologismos, regionalismos e estrangeirismos, coloquialismos e eruditismos.

Todos esses elementos, juntos, formam este discurso rico, denso e complexo, que ocasionou, em primeira instância, tanta perplexidade na crítica e no leitor comum,

mas que se revestiu, passado o espanto, de um fascínio irresistível, atraindo incontestavelmente tanto a uma quanto ao outro.

A obra de Guimarães Rosa é uma obra plural, marcada pela ambigüidade e pelo signo da busca, que se ergue como uma constelação de elementos muitas-vezes opostos e

contraditórios. Regional e universal, mimética e consciente de seu próprio caráter de ficcionalidade, "realista" e "anti-realista", ela é, por excelência, um produto

do século XX, uma arte de síntese e relatividade, e ao mesmo tempo a perfeita expressão do contexto de onde emerge, uma terra que só pode ser compreendida quando

vista como um grande amálgama de culturas. Nessa espécie de "suma crítica" - crítica, como diria Carlos Fuentes, no sentido de "elaboração antidogmática de problemas

humanos",5 não há valores absolutos ou afirmações categóricas, mas antes caminhos a serem trilhados, um amplo espectro de possibilidades, e é por esses rumos variados

e sinuosos, de riqueza inesgotável, que se têm embrenhado críticos e leitores no Brasil e no exterior. A fortuna crítica

s Fuentes, Carlos. La nueva novela hispanoamericana. México: Cuadernos de Joaquín Mortiz, 1969.

24

JOAO GUIMARAES ROSA 1 FICÇAO COMPLETA

de Guimarães Rosa cresce a todo momento, como aumenta e se diversifica seu público ledor, e cada travessia realizada pelas páginas de seus livros é, como afirmou

o próprio autor a respeito do idioma, uma "porta para o infinito". É com isto em mente, e na certeza de estar contribuindo com dádiva inestimável a quem quer que

atenda ao chamado, que convido o leitor à aventura, lembrando mais uma vez o nosso Rosa, que diz, com o encanto que lhe é peculiar: "As aventuras não têm tempo,

não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim, são minha maior aventura".

Rio de janeiro, julho de 1994.

CRONOLOGIA DA VIDA E DA OBRA

19O8 Nasce João Guimarães Rosa, no dia 27 de junho, em Cordisburgo, Minas Gerais, filho de Florduardo Pinto Rosa e Francisca Guimarães Rosa.

1918 Transfere-se para Belo Horizonte com o avô e padrinho, Luís Guimarães.

1925 Matricula-se na Faculdade de Medicina de Minas Gerais. Envia contos para a revista O Cruzeiro e ganha quatro prêmios.

1929 Trabalha no Departamento de Estatística de Minas Gerais.

193O Em 27 de junho casa-se com Lygia Cabral Pena, com quem teve duas filhas: Agnes e Vilma. Em dezembro, forma-se em medicina.

1931 Inicia a carreira de médico em Itaguara, município de Itaúna, Minas Gerais.

1933 Entra para a Força Pública, como oficial-médico do-9o Batalhão de Infantaria, sediado em Barbacena, Minas Gerais.

1934 Presta concurso para o Itamarati, sendo aprovado em segundo lugar.

1936 Ganha o prêmio da Academia Brasileira de Letras com o volume de poesias Magma, até hoje inédito.

1937 Escreve os contos de Sagarana e obtém segundo lugar no prêmio Humberto de Campos, da Livraria José Olympio.

1938 É nomeado cônsul-adjunto em Hamburgo.

1942 Com a ruptura de relações entre Brasil e Alemanha, é internado em Baden-Baden e, em junho, é enviado para Bogotá como secret~rio da Embaixada.

1946 Publica Sagarana, com o qual recebe o prêmio da Sociedade Felipe WOliveira. Nesse mesmo ano é nomeado chefe do gabinete do ministro João Neves da Fontoura,

e enviado a Paris como membro da delegação enviada à Conferência de Paz.

FIM DO "PREFACIO"

z6

27

1948

Vai a Bogotá como secretário-geral da delegação brasileira à IX Conferência Panamericana. Nesse mesmo ano volta a Paris como primeiro secretário e conselheiro de

embaixada.

1951 1956

De volta ao Brasil é outra vez nomeado chefe do gabinete do ministro João Neves.

Publica Corpo de baile em janeiro e Grande sertão: veredas em maio. Com este último conquista três prêmios: Machado de Assis, do Instituto Nacional do Livro; Carmen

bolores Barbosa, de São Paulo; e Paula Brito, da Municipalidade do Rio de Janeiro.

1961 Recebe o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras por conjunto de obra. Sagarana é editado em Portugal e surge, na França, a primeira tradução

de Corpo de baile.

1962 Publica Primeiras estórias. Assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras do Itamarati.

1963 Eleito por unanimidade para a vaga de João Neves da Fontoura na Academia Brasileira de Letras.

1967 Publica Tutaméia. Falece a 19 de novembro, vítima de um enfarte, três dias depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras.

1969 São publicados pela Editora José Olympio dois livros póstumos: Estas estórias e Ave, palavra.

FIM DA "CRONOLOGIA DA VIDA E DA OBRA"

DIÁLOGO COM GUIMARÃES ROSA

Günter Lorenz

GÜNTER LORENZ: Ontem, quando escritores participantes deste Congressot debatiam sobre a política em geral e o compromisso político do escritor, você, João Guimarães

Rosa, político, diplomata e escritor brasileiro, abandonou a sala. Embora sua saída não tenha sido demonstrativa, pela expressão de seu rosto e pelas observações

que fez, podia-se deduzir que o tema em questão não era de seu agrado.

Jorro GUIMARÃES ROSA: É verdade; agi daquela forma porque o tema não me agradava. E para que nos entendamos bem, digo-lhe que não abandonei a sala em sinal de protesto

contra o fato de estarem discutindo política. Não foi absolutamente um ato de protesto. Saí simplesmente porque achei monótono. Se alguém interpreta isto com um

protesto, nada posso fazer. Embora eu veja o escritor como u homem que assume uma grande responsabilidade, creio entretant que não deveria se ocupar de política;

não desta forma de política. Su missão é muito mais importante: é o próprio homem. Por isso a pol tica nos toma um tempo valioso. Quando os escritores levam a sério

seu compromisso, a política se torna supérflua. Além disso, eu so e ritor, e se você quiser, também diplomata; político nunca fui.

GL: É u a bela opinião sobre a importância do papel do escritor: m não será demasiado idealista? Foram discutidos muitos aspectos d cotidiano político; e além disso

acho que um escritor não teria mur tas probabilidades de êxito se, como você quer, tratasse apenas d

homem em geral, deixando de lado a vida diária desse mesmo ho mem.

JGR: Posso compreender. isso e também sei que aqui provavelmente todo pensam de modo diferente do meu. Entretanto, me propus a dizê-1 claramente: tenho a impressão

de que todos eles discutem demas

~ Trata-se do "Congresso de Escritores Latino-Americanos", realizado em Gênova, e janeiro de 1965; na oportunidade, teve lugar este diálogo. Como resultado do Congre

so ficou constituída, com uma tônica fortemente política, a primeira "Sociedade Escritores Latino-Americanos", da qual Guimarães Rosa e Asturias foram eleitos vi

presidentes. Compare o diálogo com Asturias.



I:JTRODUÇAO GERAL / DIÁLOGO COM GUIMARAES ROSA 29

do, e por isso não conseguirão realizar tudo o que desejam. Perdem muito tempo, que empregariam melhor escrevendo. Mesmo supondo-se que tudo aquilo que dizem estivesse

certo, então seria ainda mais acertado que cada um escrevesse sua opinião, em vez de expressá-la perante um auditório tão limitado. A palavra impressa tem maior

eficácia e além disso estas discussões secas me entediam, pois são muito aborrecidas. Desconfio que só são feitas para alguns deles poderem se confirmar a si próprios

sua importância e poderem assim se desligar de sua responsabilidade sem peso de consciência. Naturalmente isto não vale para todos, pois quando homens como Asturias

falam pro domo, terão também suas razões. Mas você já observou que os que mais falam de política são sempre aqueles que têm menos livros publicados? Quando os têm,

não são livros onde expressem idéias seínelhantes às expostas aqui. Noto a falta de coerência entre suas obras e suas opiniões.

GL: Você quer dizer então que aprova que um escritor discuta sobre política, apenas quando também às suas obras der um acento político, e não quando se mostrar politicamente

neutro em suas obras?

JGR: Sim, é verdade que, embora eu ache que um escritor de maneira geral deveria se abster de política, peço-lhe que interprete isto mais no sentido da não participação

nas ninharias do dia-a-dia político. As grandes responsabilidades que um escritor assume são, sem dúvida, outra coisa...

GL: Bem, João Guimarãés Rosa, creio que neste círculo você é o único a pensar desta forma, já que Borges não está presente para nos dar seu testemunho de apolítico.

JGR: Acho que você me entendeu mal. Aparentemente está se referindo ao

que aconteceu em Berlim.2 Acerca disto queria dizer que estou do

lado de Asturias e não de Borges. Embora não aprove tudo o que Asturias disse no calor do debate, não aprovo nada do que disse Borges. As palavras de Borges revelaram

uma totál falta de consciência da responsabilidade, e eu estou sempre do lado daqueles que arcam com a responsabilidade e não dos que a negam.

GL: Eu não queria que dedicássemos a tais assuntos as poucas horas que temos para conversar durante este caótico congresso; não obstante, creio que eles nos conduzem

ao nosso tema.

z Durante o Colóquio de escritores latinoamericanos y alemanes, realizado em 1964 em Berlim Ocidental, travou-se veemente polêmica entre Asturias e Borges, quando

este atacou os escritores comprometidos e negou existirem condições dignas para uma literatura de compromisso na América Latina. Guimarães Rosa está se referindo

à afir

mação de Borges de que o compromisso é uma traição à arte, por ser apenas documentação e não literatura.

JGR: Certo, já estamos nele. Só quis dizer há pouco que a maioria dos que aqui expressam suas opiniões não examinam o verdadeiro sentido de suas palavras antes de

pronunciá-las, e por isso não prestam aos demais, que já citei, nenhum bom serviço.

GL: Penso que, para encaminharmos nosso diálogo a uma certa direção, seria melhor estabelecermos uma espécie de itinerário. Você está de acordo?

JGR: Estou. Deixo que você determine a direção.

GL: Pois bem, estes assuntos políticos que abordamos há pouco não estavam em meu itinerário. Cheguei a eles porque as circunstâncias os trouxeram. Há outros temas

que me interessam muito mais, uma vez que tenho a extraordinária ocasião, a sensacional oportunidade, por assim dizer, de haver conseguido uma entrevista com o inimigo

de toda a espécie de entrevistas e terror dos repórteres: Guimarães Rosa...

)GR: Devo fazer duas objeções. Primeiro, e já disse isso, agrada-me conversar com você, pois escreveu a meu respeito coisas tão encantadoras e interessantes que

gostaria de tratar delas novamente, ainda que fosse unicamente por razões de egoísmo. Em segundo lugar, peço-lhe que não use essa horrível expressão "entrevista".

Eu certamente não teria aceito seu convite se esperasse uma entrevista. As entrevistas são trocas de palavras em que um formula ao outro perguntas cujas respostas

já conhece de antemão. Vim, como combinamos, porque desejávamos conversar. Nossa conversa, e isto é o importante, .desejamos fazê-la em conjunto.

GL: Considero isto uma honra, e esteja certo de que sinto uma grande alegria por podermos estar aqui juntos e conversar. Isto não é nada coanum e, no que se refere

a você...

]GR: hega. Só me oponho a matar o tempo com insignificâncias e com

nte que não sabe nada de nada. Pelo jeito desfruto de uma estranha reputação e, entretanto, sou brasileiro.

GL: Certo, goza dessa fama e provavelmente não sem razão. No Brasil também. Mas vamos nos dar por satisfeitos. Os motivos de nosso encontro ficam assim esclarecidos,

e voltemos ao nosso "itinerário". Gostaria de falar com você sobre o escritor Guimarães Rosa,. o romancista, o mágico do idioma, baseando-nos em seus livros que

fazem parte, penso eu, do tema "o homem do sertão".

IGR: Sim, acho que se quiséssemos dizer sobre estes três ou quatro pontos tudo o que temos de dizer, daqui a um ano ainda estaríamos conversando. E nem você nem

eu temos tanto tempo. Suponho que esta enumeração das coisas que lhe interessam a meu respeito não tem uma seqüência estrita...

a!9

INTRODUÇAO GERAL ~ DIALOGO COM GUIMARÃES ROSA

3t

GL: Apenas uma seqüência improvisada, intercambiável.

JGR: Precisamente, e por isso gostaria que começássemos pelo que você mencionou como tema final. Chamou-me "o homem do sertão". Nada tenho em contrário, pois sou

um sertanejo e acho maravilhoso que você deduzisse isso lendo meus livros, porque significa que você os entendeu. Se você me chama de "o homem do sertão" (e eu realmente

me considero como tal), e queremos conversar sobre este homem, já estão tocados no fundo os outros pontos. É que eu sou antes de mais nada este "homem do sertão";

e isto não é apenas uma afirmação biográfica, mas também, e nisto pelo menos eu acredito tão firmemente como você, que ele, esse "homem do sertão", está presente

como ponto de partida mais do que qualquer outra coisa.

GL: Fixemos este ponto de partida; e para encaminhar nossa conversa, queria propor-lhe um início convencional: o biográfico, embora ele já não seja tão convencional,

se minhas conclusões sobre o que disse há pouco estiverem certas. Nasceu no sertão, aquela estepe quase mística do interior de seu país, encarnada como um mito de

consciência brasileira...

JGR: Sim, mas para sermos exatos,. devo dizer-lhe que nasci em Cordisburgo, uma cidadezinha não muito interessante, mas para mim sim, de muita importância. Além

disso, em Minas Gerais; sou mineiro. E isto sim é o importante, pois quando escrevo, sempre me sinto transportado para esse mundo. Cordisburgo. Não acha que soa

como algo muito distante? Sabe também que uma parte de minha família é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, as na realidade é um sobrenome suevo que na época das

migr ões era Guimaranes,3 nome que também designava a capital de um estado suevo na Lusitânia? Portanto, pela minha origem, estou voltado para o remoto, o estranho.

Você certamente conhece a história dos suevos. Foi um povo que, como os celtãs, emigrou para todos os lugares sem poder lançar raízes em nenhum. Este destino, que

foi tão intensamente transmitido a Portugal, talvez tenha sido o culpado por meus antepassados se apegarem com tanto desespero àquele pedaço de terra que se chama

o sertão. E eu também estou apegado a ele...

GL: Você está se referindo ao seu "caráter literário" que o inclui no importante grupo de literatos brasileiros denominados regionalistas?

s Esta cidade do norte de Portugal atualmente se chama Guimarães. Situa-se na província do Minho, perto de Braga, antiga cidade real e de peregrinação.

JGR: Sim e não. É necessário salientar pelo menos que entre nós o "regionalismo" tem um significado diferente do europeu, e por isso a referência que você fez a

esse respeito em sua resenha de Grande sertão é muito importante. Naturalmente não gostaria que na Alemanha me considerassem um Heimatschriftsteller.4 Seria horrível,

uma vez que é para você o que corresponderia ao conceito de "regionalista". Ah, a dualidade das palavras! Naturalmente não se deve supor que quase toda a literatura

brasileira esteja orientada para o "regionalismo", ou seja, para o sertão ou para a Bahia. Portanto, èstou plenamente de acordo, quando você me situa como representante

da literatura regionalista; e aqui começa o que eu já havia dito antes: é impossível separar minha biografia de minha obra. Veja, sou regionalista porque o pequeno

mundo do sertão...

GL: Pequeno talvez para o Brasil, não para os europeus...

JGR: Para a Europa, é sem dúvida um mundo muito grande, para nós, apenas um mundo pequeno, medido segundo nossos conceitos geográficos. E este pequeno mundo do sertão,

este mundo original e cheio de contrastes, é para mim o símbolo, diria mesmo o modelo de meu universo. Assim, o Cordisburgo germânico, fundado por alemães, é o coração

do meu império suevo-latino. Creio que esta genealogia haverá de lhe agradar.

GL: O que importa é que além disso ela é exata. Mas voltemos à sua biografia...

JGR: Creio que minha biografia não é muito rica em acontecimentos. Uma vida completamente normal.

GL: Acho que não é bem assim. Em sua vida você passou por uma série de etapas muito interessantes, até mesmo instrutivas. Estudou medicina e foi médico, participou

de uma guerra civil, chegou a ser oficial, depois diplomata. Deve haver ainda outros fatos, pois estou apenas citando de memória.

JGR: Chegamos novamente ao ponto que indica o momento em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram

etapas importantes de minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência;

como soldado, o valor da proximidade da morte...

GL: Deve-se considerar isto como uma escala de valores?

JGR: Exato, é uma escala de valores.

GL: E estes conhecimentos não constituíram, no fundo, a espinha dorsal de seu romance Grande sertão?

a Citado em alemão por Guimarães Rosa.

INTRODUÇÃO GERAL ~ DIALOGO COM GUIMARAES ROSA

33

JGR: E são; mas devemos acrescentar alguns outros sobre os quais ainda temos de falar. Mas estas três experiências formáram até agora meu mundo interior; e, para

que isto não pareça demasiadamente simples, queria acrescentar que também configuram meu mundo a diplomacia, o trato com cavalos, vacas, religiões e idiomas.

GL: Parece uma sucessão e uma combinação um tanto curiosa de motivos.

JGR: Bem, tudo isto é curioso, mas o que não é curioso na vida? Não devemos examinar a vida do mesmo modo que um colecionador de insetos contempla os seus escaravelhos.

GL: Gostaria de concluir que todos esses assuntos enumerados tiveram grande importância em sua vida: a diplomacia, os cavalos, as religiões, os idiomas. Você goza

também de uma fama legendária: dizem que você domina muitos idiomas, e que aprendeu alguns deles apenas para poder ler um determinado autor em sua versão original.

Sabe-se também que como diplomata e exercendo as funções de cônsul geral do Brasil em Hamburgo, você provocou Hitler fora das normas da diplomacia, e salvou a vida

de muitos judéus...

JGR: Tudo isso é verdade, mas não se esqueça de meus cavalos e de minhas vacas. As vacas e os cavalos são seres maravilhosos. Minha casa é um museu de quadros de

vacas e cavalos. Quem lida com eles aprende muito para sua vida e a vida dos outros. Isto pode surpreendê-lo, mas sou meio vaqueiro, e como você também é algo parecido

com isto, compreenderá certamente o que quero dizer. Quando alguém narra algum acontecimento trágico, digo-lhe apenas isto: "Se olhares nos olhos de um cavalo, verás

muito da tristeza do mundo!" Eu queria que o mundo fosse habitado apenas por vaqueiros. Então tudo andaria melhor.

GL: Desculpe, mas relacionado com sua biografia isto não parece um tanto paradoxal?

JGR: E não apenas isto, mas tudo: a vida, a morte, tudo é, no fundo, paradoxo. Os paradoxos existem para que ainda se possa exprimir algo para o qual não existem

palavras. Por isso acho que um paradoxo bem formulado é mais importante que toda a matemática, pois ela própria é um paradoxo, porque cada fórmula que o homem pode

empregar é um paradoxo.

GL: Sinto-me tentado a chamá-lo o Unamuno da estepe, o Unamuno do sertão...

JGR: E teria razão; Unamuno, sim! Unamuno poderia ter sido meu avô. Dele herdei minha fortuna: meu descontentamento. Unamuno era um filósofo; sempre se equivocam,

referindo-se a ele nesse sentido. Unamuno foi um poeta da alma; criou da linguagem a sua própria

metafísica pessoal. É uma importante diferença com relação aos chamados filósofos. Além disso, Unamuno inventou também a nivolas e o nadaísmo; e são invenções próprias

de um sertanejo.

GL: Você tem alguma coisa contra os filósofos?

JGR: Tenho. A filosofia é a maldição do idioma. Mata a poesia, desde que

não venha de Kierkegaard ou Unamuno, mas então é metafísica.

GL: Mas adiante vamos ter que considerar com mais calma os seus conceitos filosóficos, isso que você chama de metafísica em seus romances e contos, pois me parece

que está muito ligàda ao "homem do sertão", e com uma parte, pelo menos, do que há de inédito em suas obras. Mas ainda queria lhe perguntar alguma coisa de sua biografia.

Portanto, vamos ficar um pouco mais com ela, com sua pessoa, já que tudo isto é muito importante para a compreensão de seus livros. Depois de haver sido médico,

você participou de uma rebelião, e, depois de se tornar novamente legalista, participou da repressão a essa mesma rebelião; em seguida foi soldado, diplomata e finalmente

chefe da seção para problemas de fronteira do Ministério das Relações Exteriores, algo parecido com um secretário de Estado. Depois destes antecedentes nada literários,

começou a escrever relativamente tarde. O que o levou a se tornar escritor? Em resumo, como chegou a escrever, já não muito jovem, Sagarana, seu primeiro livro de

contos e que se tornou imediatamente um sucesso sensacional? Conte-me alguma coisa sobre este processo de sua vida.

JGR: Bem, antes devo dizer que sua suposição não é totalmente certa. Comecei a escrever quando ainda era bastante jovem; mas publiquei muito mais tarde. Veja você,

Lorenz, nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar estórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos,

estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que ãs vezes pode se assemelhar a

uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narra estórias que correm por nossas veias e penetra em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de

seus homens. Assim, não é de estranhar que a gente comece desde muito jovem. Deus meu! No sertão, o que pode uma pessoa fazer do seu tempo livre a não ser contar

estórias? A única diferença é simplesmente que eu, em vez de contá-las, escrevia. Com isso pude impressionar, mas ainda sem perseguir ambições literárias. Já naquela

época, eu queria ser diferente dos demais, e eles não souberam deixar escritas suas estórias. Isto, é

s Argumentando que o conceito usual de "novela" (romance em português) não era sufi

ciente, Unamuno "inventou" o conceito anagramático "nivola", escrevendo Niebla.

34

INTRODUÇÃO GERAL ~ DIALOGO COM GUIMARÀES ROSA

35

claro, impressiona e dá reputação. É lógico que, sendo criança, a gente se sente então muito orgulhoso disso. Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo

o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda. Instintivamente, fiz então

o que era justo, o mesmo que mais tarde eu faria deliberada e conscientemente: disse a mim mesmo que sobre o sertão não se podia fazer "literatura" do tipo corrente,

mas apenas escrever, lendas, contos, confissões. Não é necessário se aproximar da literatura incondicionalmente pelo lado intelectual. Isto vem por si só, com o

tempo, quando o homem chega à sua maturidade, quando tudo nele se ámalgama em uma personalidade própria. Quem cresce em um mundo que é literatura pura, bela, verdadeira,

real, deve algum dia começar a escrever, se tiver uma centelha de talento para as letras. É uma lei natural, e não é necessário que atrás disto haja ambições literárias.

Tive certa vez um professor que fazia tudo menos literatura; entretanto, escrevia contos magníficos. Assim são as coisas. e assim comecei eu também. Quando mais

tarde chegou o tempo em que eu não quis continuar escrevendo, instintivamente, eu que quis ser "poeta", comecei a fazê-lo conscientemente. A princí

- pio foram poemas...

GL: Isto quer dizer que começou sua carreira como lírico?

JGR: Não, tão mal não foi. Entretanto, escrevi um livro não muito pequeno de poemas,b que até foi elogiado. Mas logo, e eu quase diria que por sorte, minha carreira

profissional começou a ocupar meu tempo. Viajei pelo mundo, conheci muita coisa, aprendi idiomas, recebi tudo isso em mim; mas de escrever simplesmente não me ocupava

mais. Assim se passaram quase dez anos, até eu poder me dedicar novamente à literatura. E revisando meus exercícios líricos, não os achei totalmente maus, mas tampouco

muito convincentes. Principalmente, descobri que a poesia profissional, tal como se deve manejá-la na elaboração de poemas, pode ser a morte da poesia verdadeira.

Por isso, retornei à "saga", à lenda, ao conto simples, pois quem escreve estes assuntos é a vida e não a lei das regras chamadas poéticas. Então comecei a- escrever

Sagarana. Nesse meio tempo haviam transcorrido dez anos, como já lhe disse; e desde então não me interesso pelas minhas poesias, e raramente pelas dos outros. Naturalmente

digo isso, porque é um dado biográfico, pois não aconteceu que, um belo dia, eu simplesmente decidisse me tornar escritor; isto

F Magma, premiado em 1936 pela Academia Brasileira de Letras. Os jurados consideraram este livro tão importante, que desistiram de atribuir um segundo prêmio, alegando

que não era possível uma comparação, nem mesmo aproximada, com Magma.

só fazem certos políticos. Não, veio por si mesmo; cresceu em mim o

sentimento, a necessidade de escrever e, tempos depois, convenci

me de que era possuidor de uma receita para fazer verdadeira poesia.

- GL: No meu entender, o que é extraordinário é a interrupção. É velho e

conhecido o fato de que o caminho da lírica conduz ao romance. Mas

você sugeriu que esses dez anos de intervalo foram seus anos de pere

grinação e aprendizagem, que o Wilhelm Meister~ do sertão reunia

nessa época as ferramentas que mais tarde o capacitáram, lingüística e

tematicamente, a converter-se no maior romancista do Brasil.

JGR: Não, não sou romancista; sou um contista de contos críticos. Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a ficção poética e

a realidade. Sei que daí pode facilmente nascer um filho ilegítimo, mas justamente o autor deve ter um aparelho de controle: sua cabeça. Escrevo, e creio que este

é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como o usamos no Brasil; entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, eu traduzo, extraio de muitos outros

idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros.

A gramática e a chamada filologia, ciência lingüística, foram inventadas pelos inimigos da poesia.

Quem escreve livros como os seus deve permitir que lhe perguntem como se consegue isso. Qual é a origem de seus livros? Existe em princípio uma gag temática que

depois você elabora, prepara, ou tem, e isto em seu caso é muito importante, uma idéia lingüística à qual depois é acrescentada uma ação? Ou simplesmente você inventa

uma estória que depois vai pouco a pouco vestindo com sua própria roupagem lingüística?

JGR: Acho que não há nada disso. Não preciso inventar contos, eles vêm a mim, me obrigam a escrevê-los. Acontece-me algo assim como vocês dizem em alemão: Mich reitet

auf einmal der Teufels que neste caso se chama precisamente inspiração. Isto me acontece de forma tão conseqüente e inevitável, que às vezes quase acredito que eu

mesmo, João, sou um conto contado por mim mesmo. É tão imperativo... Você quer dizer que há uma força interior que o impulsiona para o trabalho. Você tem fama de

ser um autor terrivelmente trabalhador, cuja aplicação é superada apenas por seu tradutor alemão...

JGR: (rindo) Meyer-Clason, se estivesse aqui para nos escutar! Pretende

sempre que tudo seja feito com muita exatidão. Para ele a literatura é

GL:

GL:

Wilhelm Meitser, título de um romance didático de Goethe.

" "De repente o diabo me cavalga". Citado em alemão por Guimarães Rosa.

36 JOÃO GUIMARÃES ROSA I F[CÇÃO COMPLETA

37

uma religião. Verdade mesmo, ele é um diabo de homem, um gênio da tradução, o melhor tradutor que eu conheço.

GL: Meyer-Clason certamente se alegrará muitíssimo quando conhecer sua opinião sobre ele. Mas não nos desviemos do tema. Sobre tradutores e traduções e a possibilidade

de traduzir, sobre esse tema em geral teremos de falar mais detalhadamente. E saiba que nunca um autor conseguiu me deixar tão nervoso durante uma conversa. Você

é mesmo um fabulista; mal seu interlocutor se descuida, você se afasta do tema se este não lhe agrada. Mas eu ainda não o vou libertar de sua biografia e de suas

obras, embora pelo jeito você não goste de falar nisso. Por favor, continue a nos explicar o seu processo de trabalho, pois é interessantíssimo.

JGR: Você, Günter, parece um professorzinho de escola, invejoso do meu prazerem falar sobre o que eu queria. Continuemos, pois, falando do que não me parece importante!

Se depois me considerarem um charlatão, você será o responsável.

GL: Não vejo nenhum perigo disso, mas assumo plena responsabilidade.

JGR: Veja, nós, ós escritores, somos uma raça realmente estranha, e eu sou certamente o mais estranho deles todos. Tem razão; não estou me elogiando, quando digo

que trabalho duro e aplicadamente. Mas lamento que, apesar de todo meu empenho, trabalhe muito lentamente. Sem dúvida, comecei a escrever no tempo certo, mas demasiado

tarde. Apesar de ser verdade, isto também é um paradoxo. Não me posso permitir uma morte prematura, pois ainda trago,dentro de mim muitas, muitíssimas estórias.

Mas nasci em Cordisburgo, e lá às vezes as pessoas chegam a ficar muito velhas. O mineiro é secado por seu país e seu sol, fica resistente como carne-seca. Conheci

pessoas de oitenta e até noventa anos. Portanto, simplesmente tenho de ficar velho, pois esse tempo talvez me baste para eu contar tudo o que que ia contar. Você

afirmará certamente que sou um seltsamer VogeL9 Est expressão também aprendi na Alemanha.

GL: Agora, falando como leitor de seus livros, digo-lhe que não acho suas observações assim tão estranhas. Tenho certeza de que você poderá contar ainda muitas estórias,

mas também espero que continue nos falando de sua vida, embora isto não lhe seja tão agradável. Talvez .não fosse de pouca importância dizer-nos algumas datas.

JGR: Que nasci no ano de 19O8, você já sabe. Você não deveria me pedir mais dados numéricos. Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser

crucificada em anos. As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para

9 "Ave rara". Citado em alemão por Guimarães Rosa.

mim, são minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já

ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa. Quando escrevo, repito o que vivi antes. E para estas duas vidas um lia apenas

não me é suficiente. Em outras palavras: gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem ao mundo como um magister da metafísica, pois

para ele cada rio é um oceano, um mar da sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são

profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda

mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade. A estas alturas, você já deve estar me considerando

um charlatão ou um louco.

GL: De modo algum. Penso que esta é a autocaracterização mais original que já escutei. Suas palavras soavam quase como um credo. Serão elas o credo de um sertanejo

de Cordisburgo?

JGR: Estou adivinhando seu pensamento! Agora, além de tudo, quer me exigir um credo. Mas eu lhe digo uma coisa: apenas alguém para quem o momento nada significa,

para quem, como eu, se sente no infinito como se estivesse em casa, o crocodilo com as duas vidas até agora, somente alguém assim pode encontrar a felicidade e,

o que é ainda mais importante, conservar para si a felicidade. Au fond, je sufis un solitaire,1O eu também digo; mas como não sou Mallarmé, isto significa para mim

a felicidade. Apenas na solidão pode-se descobrir que o dia- ~ bo não existe. E isto significa o infinito da felicidade. Esta é a minha mística.

GL: Dizendo a verdade: em seus livros você não menciona o diabo, o que sempre faz das suas, justamente para demonstrar que ele não existe, ou melhor, que pode ser

eliminado, vencido, destroçado?

JGR: Isto poderia ser absolutamente certo. Provavelmente, eu seja como meu irmão Riobaldo. Pois o diabo pode ser vencido simplesmente porque existe o homem, a travessia

para a solidão, que equivale ao infinito. Mas você, Lorenz, é muito astuto; você me faz falar e falar, e me leva pela mão exatamente onde me deseja fazer chegar.

Já sei qual será a sua próxima pergunta.

GL: Pois agora estou curioso.

"O "No fundo eu sou um homem solitário". Frase de Mallarmé, citada em francês por Guimarães Rosa.

JGR: Eu também. Você quer me comprometer com a palavra creio e por isso evocou o diabo, cuja presença, útil em meus livros, não posso negar. Você quer me seduzir

para que eu lhe faça confissões.

GL: Adivinhou. Pois então, por favor, confesse!

JGR: Absolutamente não consigo entender por que me deixo extorquir assim por você. Só agora me ocorre o seguinte: aqui estão discutindo dois vaqueiros. Você é um,

já disse por escritoll e torno a repetir agora. E quando dois vaqueiros discutem, ou há cabeças quebradas ou confissões. Os vaqueiros são assim.

GL: Felizmente sei que os vaqueiros gozam de sua simpatia e por isso estou disposto a ser vaqueiro. Mas, por favor, diga-me de uma vez, a rigor, o credo pelo qual

você escreve.

JGR: Sim, veja, penso desta forma: cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é concedido. Sua tarefa nunca é maior que sua capacidade para poder cumpri-la.

Ela consiste em preencher seu lugar, em servir à verdade e aos homens. Conheço meu lugar e minha tarefa; muitos homens não conhecem, ou chegam a fazê-lo quando é

demasiado tarde. Por isso, tudo é muito simples para mim, e só espero fazer justiça a esse lugar e a essa tarefa. Veja como o meu credo é simples. Mas quero ainda

ressaltar que credo e poética são uma mesma coisa. Não deve haver nenhuma diferença entre homens e escritores; esta é apenas uma maldita invenção dos cientistas,

que querem fazer deles duas pessoas totalmente distintas. Acho isso ridículo. A vida deve fazer justiça à obra, e a obra à vida. Um escritor que não se atém a esta

regra não vale nada, nem como homem nem como escritor. Ele está face a face com o infinito e é responsável perante o homem e perante a si mesmo. Para ele não existe

uma instância superior. Para que você não tenha de me interrogar a esse respeito, gostaria de explicar meu compromisso, meu compromisso do coração, e que considero

o maior compromisso possível, o mais importante, o mais humano e acima de tudo o único sincero. Outras regras que não sejam este credo, es poética e este compromisso

não existem para mim, não as reconheço. Estas são as leis de minha vida, de meu trabalho, de minha responsabilidade. A elas me sinto obrigado, por elas me guio,

para elas vivo. Mesmo com a melhor boa vontade não posso fazer mais confissões, porque tudo que possa me acontecer na vida está contido aí, ou não vale a pena ser

chamado de confissão.

GL: Depois do que você disse no início, eu francamente já não esperava essa confissão. Agradeço-lhe que a tenha feito, e creio sinceramente que esta poderia ser

uma regra básica da literatura, se o homem não se

~" Na dedicatória de seu Grande sertão: veredas.

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opusesse a ela. Mas, o que pensa de seus colegas? Atualmente fala-se tanto em compromisso, afirma-se que não existe autor sem compromisso. Mas tenho a impressão

de que principalmente na América Latina - na Europa, Sartre pôs um pouco de ordem neste assunto - muitos autores, naturalmente não todos, freqüentemente confundem

o compromisso para com o homem com o compromisso para com um partido, uma ideologia. Entre os grandes autores do continente isto é sempre compensado pela sua potência

literária, e entre os de segunda e terceira categoria você sabe como é quase sempre.

JGR: Não preciso ser diplomata de carreira para me negar redondamente a fazer declarações respondendo sua pergunta. Você me induziu a fazer confissões e agora pretende

levar-me para um terreno perigoso. Tenho de conviver com meus colegas e não me agrada guerrear por assuntos aos quais não atribuo a mínima importância. Portanto,

não espere que eu qualifique meus colegas. Ademais, e se quiser pode tranqüilamente considerar isso como um delírio de grandeza, eu me contento com o que é meu.

Não me agrada julgar meus colegas. Sim, portanto, não insista; é melhor falarmos de Dostoievski, Goethe, Tolstoi ou de Schweijik, de Flaubert e Balzac, mas não de

meus compatriotas escritores. Um autor jamais deveria falar de outros autores, mesmo que não o aprecie. Disto não resulta nada de razoável; penetra-se em mundos

estranhos, e isto não conduz a nada.

GL: Bem, esta é uma opinião que deve ser respeitada. Mas qual é, no fundo, sua opinião acerca da crítica literária em relação às suposições que você mencionou há

pouco? Deve o crítico constantemente, para conservar a sua própria terminologia, "entrar em mundos estranhos"?

JGR: A tarefa do crítico é diferente da do autor. Além disso, não tenho uma opinião muito favorável sobre a crítica, pelo menos sob esse aspecto. Esta não é uma

declaração de princípios; refere-se mais ao conceito que muitos críticos têm, ou não, de seu trabalho. No começo de minha carreira vários deles me atacaram sem absolutamente

me compreenderem, pois me lançavam ao rosto que meu estilo era exaltado, que eu permanecia no irreal, e assim toda espécie de retórica. Não é possível dialogar com

pessoas que manifestam por escrito a sua incompetência, pois lhes falta a condição básica para o diálogo: o respeito mútuo. Por isto o que essa gente escreve não

me perturba; simplesmente não leio mais jornais. E por favor, não me interprete mal: um crítico que me trate duramente mas baseado na compreensão, que apresenta

razões, pode continuar sendo meu interlocutor e amigo, por maiores que sejam as diferenças de opinião que nos separem. Mas aquele que escreve tolices é maçante.

Eu odeio a tolice.

4O

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GL: Após este protesto em que transparece a raiva, seria lógico e conseqüente pedir-lhe sua opinião sobre como deveria ser o "crítico ideal".

JGR: Bem, um crítico que não tem o desejo nem a capacidade de completar junto com o autor um determinado livro, que não quer ser intérprete ou intermediário, que

não pode ser, porque lhe faltam condições, deveria se abster da crítica. Infelizmente a maior parte deles não faz isso, e por isso acontece que tão poucos deles,

geralmente, têm algo a ver com a literatura. O que tal crítico pretende, em resumo, é vingar-se da literatura, ou sabe Deus que motivos o impulsionam. Talvez como

passatempo. $ um palhaço, ou um assassino. A crítica literária, que deveria ser uma parte da literatura, só tem razão de ser quando aspira a complementar, a preencher,

em suma a permitir o acesso à obra. Só muito raramente é assim, e eu lamento, pois uma crítica bem entendida é muito importante para o escritor; ela o auxilia a

enfrentar sua solidão. Mas raramente é assim, quase sempre a crítica não tem valor nem interesse, é apenas uma perda de tempo. Uma crítica tal como eu a desejo deixaria

de ser crítica no sentido próprio, tanto faz se julga o autor positiva ou negativamente. Deve ser um diálogo entre o intérprete e o autor, uma conversa entre iguais

que apenas se servem de meios diferentes. Ela exerce uma função literária indispensável. Em essência, deve ser produtiva e co-produtiva, mesmo no ataque e até no

aniquilamento se fosse necessário.

GL: Após seu credo do escritor, você quis formular seu credo do crítico. E sem dúvida tem razão. Há exemplos suficientes de crítica negligen

~~~~~ te, inadmissível. Só não sei se realmente a maioria dos críticos é tão

i Ir~"~" tola como você pensa.

JGR: Tola não é a palavra exata. Quero explicar melhor: o escritor, o bom escritor, é um arquiteto da alma. O mau crítico, irresponsável ou estúpido, neste caso

é a mesma coisa, é um demolidor de escombros, dedicado a embrutecer, a falsificar as palavras e a obsc~cer a verdade, pois acha que deve servir a uma verdade só

conhecida por ele, ou então ao que se poderia chamar seus interesses. O escritor, naturalmente só o bom escritor, é um descobridor; o mau crítico é seu inimigo,

pois é inimigo dos descobridores, dos que procuram mundos desconhecidos. Colombo deve ter sido sempre ilógico, ou então não teria descoberto a América. O escritor

deve ser um Colombo. Mas o crítico malévolo e insuficientemente instruído pertence áquela camarilha que queria impedir a partida por ser contrária à sua sacrossanta

lógica. O bom crítico, ao contrário, sobe a bordo da nave como timoneiro. É assim que penso.

GL: Você exige muito. Mas o que exige de si mesmo como autor, como romancista? Falou de sua obrigação para com os homens e isto é um

pouco vago, deveria ser formulado com maior exatidão, você também não acha?

JGR: Como romancista tento o impossível. Gostaria de ser objetivo, e ao mesmo tempo me olhar a mim mesmo com olhos de estranhos. Não sei se isso é possível, mas

odeio a intimidade.

GL: Novamente um paradoxo magnífico: "eu tento o impossível". Entretanto deveríamos ser ainda mais concretos. Temos essa questão do compromisso, que talvez pudéssemos

utilizar nesse sentido. Como você definiria, por exemplo, sua concepção do dever de um autor, diferenciando-a de Asturias ou, naturalmente, de Jorge Amado?

JGR: Gosto de Asturias, porque se parece tão pouco comigo. Este homem é um vulcão genial, uma exceção, segue suas próprias leis. Nós nos entendemos e nos admiramos,

porque somos muito diferentes um do outro. Mas ele vive de um modo que gera perigo: ele pensa ideologicamente.

GL: E Jorge Amado? Você não acha que este grandioso fabulista e amigo dos homens também pensa ideologicamente?

JGR: Sem dúvida, ele também é um ideólogo; mas sua ideologia me é mais simpática que a de Asturias. Asturias tem algo do distanciamento incorruptível de um sumo-sacerdote;

sempre enuncia novos dez mandamentos. Isto é admirável, mas não encanta. As palavras de Asturias são palavras de um pai, de um patriarca que emite sentenças no sentido

do Antigo Testamento. Amado é um sonhador, e sem dúvida alguma um ideólogo, mas adota a ideologia do contó de fadas com suas normas de justiça e expiação. Amado

é um menino que ainda crê no Bem, na vitória do Bem; defende a ideologia menos ideológica e mais amável que já conheci. Asturias é a poderosa voz do juízo final.

Amado vai dando pinceladas a mais não poder, e certamente quer mandar ao diabo muitas coisas, mas o faz de forma tão encantadora,que nos convence com maior razão.

Asturias se expressa com palavras de ferro.

GL: Esta diferença não é resultado, digamos assim, de unidades de experiência de diferentes graus? Atrás dessa definição também se oculta muito de política.

JGR: É exatamente isso! A política é desumana porque dá ao homem o

mesmo valor que uma vírgula em uma conta. Eu não sou um ho

mem político, justamente porque amo o homem. Deveríamos abolir

a política.

Foi isto que em Hamburgo levou você a se arriscar perigosamente,

arrebatando judeus das mãos da Gestapo?

JGR: Foi alguma coisa assim, mas havia também algo diferente: um diplomata é um sonhador e por isso pude exercer bem essa profissão.

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O diplomata acredita que pode remediar o que os políticos arruinaram. Por isso agi daquela forma e não de outra. E também por isso mesmo gosto muito de ser diplomata.

E agora o que houve em Hamburgo é preciso acrescentar mais alguma coisa. Eu, o homem do sertão, não posso presenciar- injustiças. No sertão, num caso desses imediatamente

a gente saca o revólver, e lá isso não era possível. Precisamente por isso idealizei um estratagema diplomático, e não foi assim tão perigoso. E agora me ocupo de

problemas de limites de fronteiras e por isso vivo muito mais limitado.

GL: Não estou muito convencido de que seus colegas, neste caso seus co

legas diplomatas, aprovarão incondicionalmente esta definição.

JGR: A maioria deles, que não são verdadeiros diplomatas mas apenas políticos frustrados, vai me considerar louco. Espero que você também não me considere assim.

Mas eu jamais poderia ser político com toda essa constante charlatanice da realidade. O curioso no caso é que os políticos estão sempre falando de lógica, razão,

realidade e outras coisas no gênero e ao mesmo tempo vão praticando os atos mais irracionais que se possam imaginar. Talvez eu seja um político, mas desses que só

jogam xadrez, quando podem fazê-lo a favor do homem. Ao contrário dos "legítimos" políticos, acredito no homem e lhe desejo um futuro. Sou escritor e penso em eternidades.

O político pensa apenas em minutos. Eu penso na ressurreição do homem.

GL: Parece que estamos novamente nos afastando do nosso tema. E por outro lado creio que nos aproximamos bastante do ponto central, pois o que você disse há pouco

foi também como sertanejo, embora no fundo se referisse a qualidades de caráter. Permito-me supor que um psicólogo poderia tirar muitas conclusões disto. Em que

reconhece, ou segundo quais regras você julga uma qualidade de caráter do homem como base de seu comportamento político?

JGR: Pode-se conhecer facilmente o caráter de um homem pela relação que ele mantém com o idioma.

GL: Penso que Kari Kraus disse algo parecido.

JGR: E também Flaubert e Stendhal. São muitos os que pensaram desta forma.

GL: "O homem é seu estilo"?

JGR: Sim, mais ou menos. O caráter do homem é seu estilo, sua linguagem. Isto certamente vai parecer doutrinário; entretanto é uma simples verdade da vida. Também

não quero me referir à elegância ou seleção do estilo. Elegância demasiada é suspeita, porque encobre um vazio. Não, não, considero o idioma como uma metáfora da

sinceridade. Sinceridade e capacidade de sentir como o homem são os fundamentos de minha fé no futuro de meu país. O brasileiro, até mesmo no sentido

filosófico, fala com sinceridade. Ele ainda deve criar sua própria linguagem. Isso também o obriga a pensar com sinceridade.

GL: A sinceridade, no que se refere ao escritor, tem ainda outra face. Muitos autores que se consideram comprometidos, alguns deles comunistas, sentem-se confortáveis,

pensando que seus livros fazem crescer constantemente suas contas bancárias. Acho que esta contradição também pertence ao capítulo escritor e político, ou melhor,

ao que você colocou como escritor e deslealdade.

JGR: É verdade. Casos assim existem. Até mesmo autores famosos participam deste jogo, e vão tão longe que chegam a diminuir o êxito de seus livros para não dar a

impressão de terem ganho dinheiro com eles, como se isto fosse motivo de vergonha. Quanto a mim, ao contrário da maioria dos meus colegas, não me envergonho em admitir

que Grande sertão me rendeu um montão de dinheiro. Não me interessa o dinheiro: venho de um mundo onde ele não adianta muito; lá se necessita de pão, armas, cavalos,

e ainda se pratica o comércio de troca. Naturalmente, não fico infeliz quando tenho dinheiro suficiente para viver como quero. Mas não nego esse fato. A esse respeito,

quero dizer uma coisa: enquanto eu escrevia Grande sertão, minha mulher sofreu muito porque nessa época eu estava casado com o livro. Por isso dediquei-o a ela,

para lhe agradecer sua compreensão e paciência. Você deve saber que tenho uma mulher maravilhosa. Como sou um fanático da sinceridade lingüística, isto significou

para mim que lhe dei o livro de presente, e portanto todo o dinheiro ganho com esse romance pertence a ela, somente a ela, e pode fazer o que quiser com ele. Não

necessito dele, tenho meus vencimentos; uma verdadeira mulher sempre sabe encontrar utilidade para o dinheiro, tanto no sertão como no Rio. Pode-se achar precipitada

esta atitude, principalmente, quando depois o livro obtém grande êxito. Mas uma .dedicatória é uma promessa, e devemos cumprir nossas promessas.

GL: Sem dúvida, sua senhora será invejada por muitas esposas de escritores. Nesta ação deve ter influído também o seu caráter de sertanejo, que é generoso, liberal.

Até mesmo nós, estrangeiros, podemos notar isso em sua hospitalidade. Mas o sertanejo também é um homem sonhador. Tem muito tempo para pensar e matuta muito; freqüentemente

é a única coisa que pode fazer. Você é um pensador, um místico?

JGR: São duas perguntas. Sou místico, pelo menos acho que sou. Que seja também um pensador, noto-o constantemente durante meu trabalho, e não sei se devo lamentar

ou me alegrar com o fato. Posso permanecer imóvel durante longo tempo, pensando em algum problema e esperar. Nós sertanejos somos muito diferentes da gente temperamental

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do Rio ou Bahia, que não pode ficar quieta nem um minuto. Somos tipos especulativos, a quem o simples fato de meditar causa prazer. Gostaríamos de tornar a explicar

diariamente todos os segredos do mundo. Chocamos tudo o que falamos ou fazemos antes de falar ou fazer. É por isso que normalmente não costumo conversar se antes

não posso pensar tranqüilamente e até o final. Você conseguiu, pela primeira vez, me induzir a fazer o contrário. E também choco meus livros. Uma palavra, uma única

palavra ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias. Para isso, não preciso forçosamente de um escritório. Gosto de pensar cavalgando, na fazenda, no

sertão; e quando algo não me fica claro, não vou conversar com algum douto professor, e sim com algum dos velhos vaqueiros de Minas Gerais, que são todos homens

atilados. Quando volto para junto deles, sinto-me vaqueiro novamente, se é que alguém pode deixar de sê-lo. Temos de aprender outra vez a dedicar muito tempo a um

pensamento; daí seriam escritos livros melhores. Os livros nascem, quando a pessoa pensa; o ato de escrever já é a técnica e a alegria do jogo com as palavras.

GL: E assim chegamos ao capítulo que deve ser, queira ou não, o capítulo central de um diálogo com você: sua relação com a língua. Lembrome de haver lido em algum

lugar que sua linguagem apenas longinquamente tem algo a ver com as línguas vivas ou mortas. Há em seu país um professor que afirmou ter sua linguagem chegado a

tal ponto, que a futura história da literatura terá de citá-la como literatura de um único homem. Fizeram-se numerosas brincadeiras sobre isso. Uma delas: um tradutor,

para se recomendar a um editor, declara dominar certa quantidade de línguas vivas e mortas, inclusive a de Guimarães Rosa. Evidentemente, o gosto pelos paradoxos

deve haver contribuído para que se formulassem estas afirmações, mas deve haver alguma verdade nelas. Sua linguagem, sem dúvida, é algo único, algo onde se pode

cair e quebrar os dentes; mas, principalmente por causa dela, depois de ler seus livros, a gente acredita ter descoberto um mundo completamente novo. Conte-me alguma

coisa sobre sua relação com a língua, sua linguagem própria.

JGR: Esta relação não é de modo algum difícil de explicar. Olhe, não entendo por que se faz tanto barulho pelo que deram de chamar "a língua Guimarães Rosa", e que

é uma coisa completamente simples. Muitos dos que escreveram tratados geniais sobre este assunto, sustentando que abordaram tudo sempre muito "logicamente", muito

racionalmente, comportaram-se, falando de meus livros, de modo decididamente irracional. Meyer-Clason, você e alguns outros deram, com poucas palavras, muito mais

que esses doutos senhores que se desabafaram sentimentalmente. Meyer-Clason nos textos em que me

apresentava e você, com suas resenhas críticas, entenderam particularmente de que se trata, por haverem pensado comigo, pensando até o fim, puderam explicá-lo. No

fundo é muito simples. Deve-se apenas partir do princípio de que há dois componentes de igual importância em minha relação com a língua. Primeiro: considero a língua

como meu elemento metafísico, o que sem dúvida tem suas conseqüências. Depois, existem as ilimitadas singularidades filológicas, digamos, de nossas variantes latino-americanas

do português e do espanhol, nas quais também existem fundamentalmente muitos processos de origem metafísica, muitas coisas irracionais, muito que não se pode compreender

com a razão pura. (~ elemento metafísico...

GL: Não seria mais fácil e mais correto se agora conversássemos um pouco sobre o aspecto puramente filosófico, sobre as diferenças entre o português europeu e o

brasileiro, sobre as conclusões que você tirou disso? Acho que assim seria mais fácil de entender isso que você chama de aspecto metafísico.

JGR: Bem, sim, você tem razão. Temos de partir do fato de que nosso português-brasileiro é uma língua mais rica, inclusive metafisicamente, que o português falado

na Europa. E além de tudo, tem a vantagem de que seu desenvolvimento ainda não se deteve; ainda não está satura

do. Ainda é uma língua jenseits Von Gut und B~sel,lz e apesar disso, já

é incalculável o enriquecimento do português no Brasil, por razões etnológicas e antropológicas.

GL: Pelo processo de mistura com elementos indígenas e negróides com os quais se fundiu o Brasil...

JGR: Exato, este foi um enriquecimento imenso e já pode ser notado no exterior pela quantidade de diferentes dicionários europeus e americanos do mesmo idioma. Naturalmente,

tudo isto está à nossa disposição, mas não à disposição dos portugueses. Eu, como brasileiro, tenho uma escala de expressões mais vasta que os portugueses, obrigados

a pensar utilizando uma língua já saturada.

GL: Vacê, porém, não se contentou com essa escala maior de expressão - que aliás também indica um fenômeno sociológico imenso -, pois sua linguagem também difere

muito da de seus compatriotas, por exemplo, da linguagem de Jorge Amado.

JGR: Nunca me contento com alguma coisa. Como já lhe revelei, estou buscando o impossível, o infinito. E, além disso, quero escrever livros que depois de amanhã

não deixem de ser legíveis. Por isso acrescentei à síntese existente a minha própria síntese, isto é, incluí em minha lin-

~ Z Além do bem e do mal, título de um livro fundamental de Nietzsche. Citado em alemão por Guimarães Rosa.

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JOÃO GUIMARÃES ROSA ~ FICÇAO COMPLETA

IN"fROUUÇÃO GERAL ~ DIALOGO COM GUIMARÃES ROSA

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guagem muitos outros elementos, para ter ainda mais possibilidade de expressão.

GL: Poderá citar alguns desses elementos adicionais?

JGR: Naturalmente são muitos. Primeiro, há meu método que implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas

da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original. Por isso, e este é o segundo elemento, eu incluo em minha dicção certas particularidades dialéticas de

minha região, que são linguagem literária e ainda têm sua marca original, não estão desgastadas e quase sempre são de uma grande sabedoria lingüística. Além disso,

como autor do século XX, devo me ocupar do idioma formado sob a influência das ciências modernas e que representa uma espécie de dialeto. E também está à minha disposição

esse magnífico idioma já quase esquecido: o antigo português dos sábios e poetas daquela época dos escolásticos da Idade Média, tal como se falava, por exemplo,

em Coimbra. E ainda poderia citar muitos outros, mas isso nos levaria muito longe. Seja como for, tenho de compor tudo isto, eu diria "compensar", e assim nasce

então meu idioma que, quero deixar bem claro, está fundido com elementos que não são de minha propriedade particular, que são acessíveis igualmente para todos os

outros.

GL: Você falou anteriormente do escritor como descobridor, e no seu caso isto vale também com relação à língua. Quanto à sua última frase, acho que é como todos

os descobrimentos: estão no ar, mas apenas um os encontra. Não esqueçamos o aspecto da genialidade...

JGR: Genialidade, sei... Eu diria: trabalho, trabalho e trabalho!

GL: Sim, trabalho. Mas estamos esquecendo dois importantes elementos de sua linguagem: sua genial intuição no trato com o idioma, seu gênio criativo e recreativo,

que indiscutivelmente existe e que é do mesmo modo muito importante, e também seu conhecimento de línguas estrangeiras. Quantas línguas você domina?

JGR: Dominar é muito. Sei lê-las; para isso as aprendi. Falar; só com grande dificuldade.

GL: Quantas?

JGR: Acho que oito, talvez algumas mais.13

GL: Portanto, esta condição de poliglota é também muito importante para sua própria linguagem. Você certa vez já mencionou o fato da "retradução intelectual", não

é verdade? Freqüentemente você faz ex

13 Por um artigo publicado no Brasil em 1967, após a morte de Guimarães Rosa, eu soube que ele falava português, espanhol, francês, inglês, alemão e italiano. Além

disso, possuía conhecimentos suficientes para ler livros em latim, grego clássico, grego moderno,

sueco, dinamarquês, servo-croata, russo, húngaro, persa, chinês, japonês, hindu, árabe e malaio.

periências com palavras tomadas de idiomas estrangeiros. Posso notar isso nesta nossa conversa. Você está sempre citando expressões, provérbios e particularidades

intraduzíveis de idiomas estrangeiros. Estou pensando na magnífica palavra supping,14 que você extraiu do dialeto hamburguês e para a qual não existe tradução em

seus dicionários, mas no seu livro tem tradução e lugar.

JGR: Eu a converti em uma metáfora, e assim pude descrever um estado

de alma para o qual conheço outra expressão alemã, Allerseelenstim

mung,15 creio que provém da Áustria, não é? Mas súpping16 é mais

neutro, me agrada mais, não é tão íntimo.

GL: Com todas essas condições de que dispõe, você se adianta um bocado aos demais autores.

JGR: Pode ser, mas não creio que isso seja decisivo. Repito minha opinião: o trabalho é importantíssimo! Mas ainda mais importante para mim é o outro aspecto, o

aspecto metafísico da língua, que faz com que minha linguagem antes de tudo seja minha. Também aqui pode-se determinar meu ponto de partida, que é muito simples.

Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem

também deve evoluir constantemente. Isto significa que, como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela

ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas. Daí resulta que tenha de limpá-lo, e como é a

expressão da vida, sou eu o responsável por ele, pelo que devo constantemente umsorgen." Soa a Heidegger, não? Ele construiu toda uma filosofia muito estranha, baseado

em sua sensibilidade para com a língua, mas teria feito melhor contentando-se com a lingua. Sim, com isto eu já disse todo o fundamental sobre minha relação com

a língua. É um relacionamento familiar, amoroso. A língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente, mas a quem até hoje foi negada a bênção

eclesiástica e científica. Entretanto, como sou sertanejo, a falta de tais formalidádes não me preocupa. Minha amante é mais importante para mim.

GL: Uma vez você me disse que quando escreve quer se aproximar de

Deus, às vezes demasiadamente. Certamente, isto também se rela

ciona com a língua. Como se deve entender isso?

"~ De Suppe = sopa. Guimarães Rosa utiliza a palavra para se referir ao tempo.

~" "Estado de ânimo do dia de Finados". Na Europa Central, tempo cinzento e chuvoso. 16 Citado em alemão por Guimarães Rosa.

~" "Cuidar dele". Citado em alemão por Guimarães Rosa.

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JGR: Isto provém do que eu denomino a metafísica de minha linguagem, pois esta deve ser a língua da metafísica. No fundo é um conceito blasfemo, já que assim se

coloca o homem no papel de amo da criação. Ohomem ao dizer: eu quero, eu posso, eu devo, ao se impor isso a si mesmo, domina a realidade da criação. Eu procedo

assim, como um cientista que também não avança simplesmente com a fé e com pensamentos agradáveis a Deus. Nós, o cientista e eu, devemos encarar a Deus e o infinito,

pedir-lhes contas, e, quando necessário, corrigi-los também, se quisermos ajudar o homem. Seu método é meu método. O bem-estar do homem depende do descobrimento

do soro contra a varíola e as picadas de cobras, mas também depende de que ele devolva à palavra seu sentido original. Meditando sobre a palavra, ele se descobre

a si mesmo. Com isto repete o processo da criação. Disseram-me que isto era blasfemo, mas eu sustento o contrário. Sim! a língua dá ao escritor a possibilidade de

servir a Deus corrigindo-o, de servir ao homem e de vencer o diabo, inimigo de Deus e do homem. A impiedade e a desumanidade podem ser reconhecidas na língua. Quem

se sente responsável pela palavra ajuda o homem a vencer o mal.

GL: Então, novamente, também na língua o compromisso humanista, o "compromisso do coração", do qual você falou.

JGR: Sim, é isso. Você, meu caro Lorenz, em sua crítica ao meu livro escreveu uma frase que me causou mais alegria que tudo quanto já se disse a meu respeito. Conforme

o sentido, dizia que em Grande sertão eu havia liberado a vida, o homem, von der Last der Zeitlichkeit brefreit.ls É exatamente isso que eu queria conseguir. Queria

libertar o homem desse peso, devolver-lhe a vida em sua forma original. Legítimaliteratura deve ser vida. Não há nada mais terrível que uma literatura de papel,

pois acredito que a literatura só pode nascer da vida, que ela tem de ser a voz daquilo que eu chamo "compromisso do coração". A literatura tem de ser vida! O escritor

deve ser o que ele escreve.

GL: Na verdade você está de acordo, depois de tudo o que disse, em ser chamado de revolucionário da língua? A expressão "revolucionário" está tão desgastada, que

mal pode fazer justiça ao que você define como língua e relação para com a língua e dever desta.

JGR: Você diz justamente o certo! Não sou um revolucionário da língua. Quem afirma isto não tem qualquer sentido da língua, pois julga se

"s "Liberto do peso da temporalidade". Citado em alemão por Guimarães Rosa e extraído da resenha da edição alemã de Grande sertão (Coldnia, 1964), publicada em 17

de setembro de 1964 em Welt der Literatur ("Mundo da Literatura"), Hamburgo.

gundo as aparências. Se tem de haver uma frase feita, eu preferia que

me chamassem de reacionário da língua, pois quero voltar cada dia à

origem da língua, lá onde a palavra ainda está nas entranhas da alma,

para poder lhe dar luz segundo a minha imagem. Veja como se tor

nam insénsatas as frases feitas, tais como "revolucionário" ou "rea

cionário", quando as examinamos em função de sua utilidade, quan

do a gente as toma beim Wort nimmt,19 como dizem os alemães.

GL: Você não é nenhum revolucionário, embora ponha a língua toda de

cabeça para baixo e trabalhe para o futuro: Você recusou noções como

genialidade e intuição. Como explica seu processo de criação, aquilo

que denominou "chocar" seus livros?

JGR: Escrever é um processo químico; o escritor deve ser um alquimista.

Naturalmente, pode explodir no ar. A alquimia do escrever precisa

de sangue do coração. Não estão certos, quando me comparam com

Joyce. Ele era um homem cerebral, não um alquimista. Para poder

ser feiticeiro da palavra, para estudar a alquimia do sangue do coração humano, é preciso provir do sertão.

GL: Esta invocação do sertão me lembra muito aquele famoso pedido de Ortega y Gasset de um Goethe dentro de si...

JGR: Sim, sim, concordo imediatamente. Pedindo um sertão dentro de si.2O Levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão. Estes são os paradoxos

incompreensíveis, dos quais o segredo da vida irrompe como um rio descendo das montanhas. Mas esta comparação com a citação de Ortega y Gasset não foi tomada de

tão longe como à primeira vista poderia parecer. Expondo-me ao perigo de que meus leitores alemães me apedrejem, ou, o que seria pior, não leiam meus livros por

eu estar atentando contra o que eles têm de mais sagrado, eu lhe digo: Goethe nasceu no sertão, assim como Dostoievski, Tolstoi, Flaubert, Balzac; ele era, como

os outros que eu admiro, um moralista, um homem que vivia com a língua e pensava no infinito. Acho que Goethe foi, em resumo, o único grande poeta da literatura

mundial que não escrevia para o dia, mas para o infinito. Era um sertanejo. Zola, para tomar arbitrariamente um exemplo contrário, provinha apenas de São Paulo.

De cada cem escritores, um está aparentado com Goethe e noventa e nove com Zola. A tragédia de Zola consistiu em que sua linguagem não podia caminhar no ritmo de

sua consciência. Hoje em dia acontece algo semelhante. A consciência está desperta, mas falta o vigor da língua. A maldição dos costumes é

19 " almente", citado em alemão por Guimarães Rosa.

2O "Pidiendo un Sertón desde dentro", citado em espanhol por Guimarães Rosa, como variação de um ensaio de Ortega y Gasset.

5O

JOÀO GUIMARÃES ROSA ~ FICÇÃO COMPLETA

IN"fRODUÇÃO GERAI. ~ DIÃLOGO COM GUIMARÃES ROSA

S1

notada e os autores aceitam sem crítica a chamada linguagem corrente, porque querem causar sensação, e isso não pode ser.

GL: Temo, Guimarães Rosa, que os leitores interpretarão mal estes últimos conceitos seus. Vão acusá-lo de nacionalismo e talvez até de patriotismo local, por algo

que sem dúvida alguma você desejaria que fosse interpretado de maneira completamente distinta. Para possibilitar uma compreensão totalmente clara, deveríamos formular

tudo isto com maior exatidão. Devemos eliminar toda espécie de dúvidas. Seria triste se suas impressionantes idéias fossem levadas ad absurdum por interpretações

banais, e se entendessem justamente o contrário do que você postulou. Sim, sem dúvida alguma a afirmação que você acaba de fazer é um postulado.

JGR: Bem, todo escritor deve se resignar a ser interpretado de forma equivocada e malévola. Pude comprová-lo muitas e muitas vezes, tantas que isso já não consegue

mais me afetar. Quem interpreta como um nacionalismo mesquinho o fato de eu partilhar a maneira de pensar e de viver do sertão é um tolo; prova apenas que não entende

meus livros e que nem mesmo é capaz de compreender corretamente o que nós dois, com grande cuidado, tratamos de destacar aqui! Se apesar de tudo continuarem me interpretando

ao contrário, lamento muito, mas nada mais posso fazer. Não se pode argumentar com alunos deficientes, nem ter qualquer espécie de consideração para com eles. Como

escritor, não posso seguir a receita de Hollywood, segundo a qual é preciso sempre orientar-se pelo limite mais baixo do entendimento. Portanto, torno a repetir:

não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade, da

solidão, onde Inneres und Ausseres sind nicht mehr zu trennen,21 segundo o West6stlicher Divan.22 No sertão, o homem é o eu que ainda não encontrou o tu: por isso

ali os anjos ou o diabo ainda manuseiam a língua. O sertanejo, você mesmo escreveu isso, "perdeu a inocência no dia da criação e não conheceu ainda a força que produz

o pecado original". Ele está ainda além do céu e do inferno. Er ist der, Mensch, der Gott verloren und den Teufel gefunden hat,23 assim você o definiu e está certo.

Estou constantemente citando o seu próprio ensaio que me impressionou muito, e realmente não posso entender

21 "O interior e o exterior já não podem ser separados". Citado em alemão por Guimarães Rosa.

zz O divã oriental-ocidental, uma das principais obras de Goethe. Citado em alemão por Guimarães Rosa.

23 "E o homem que perdeu Deus e encontrou o diabo"; da crítica ã edição alemã de Grande sertão. Citado em alemão por Guimarães Rosa.

como você pôde se aproximar tanto de minha metafísica, se naquela

época ainda não me conhecia.

GL: Isto apenas confirma sua tese de que autor e obra são uma coisa só.

Se não parecesse tão banal, eu diria que o indivíduo Guimarães Rosa

não é nenhuma surpresa, quando se conhece sua obra. De minha

parte não posso compreender bem cómo pôde penetrar de tal forma

na metafísica de outras línguas, as de Goethe, Dostoievski, Flaubert,

Balzac. Até agora sempre acreditei, baseado em minha própria expe

riência, que só se pode "pensar em uma língua" quando se vive no

país da referida língua, deixando-se influenciar pela palavra falada e

pelo "ambiente" em que vive uma língua.

JGR: Mas você também não vive permanentemente nos ambientes de outras línguas, e entretanto vive com outras línguas, está casado com elas, até mesmo fez disso sua

profissão. É também a minha. Este aparente enigma tem uma solução muito simples: amo a língua, realmente a amo como se ama uma pessoa. Isto é importante; pois sem

esse amor pessoal, por assim dizer, não funciona. Aprendi algumas línguas estrangeiras apenas para enriquecer a minha própria e porque há demasiadas coisas intraduzíveis,

pensadas em sonhos, intuitivas, cujo verdadeiro significado só pode ser encontrado no som original. Quem quiser entender corretamente Kierkegaard tem de aprender

dinamarquês; do contrário, nem a melhor tradução o ajudaria. Quem quiser entender Dostoievski tem de fazê-lo em russo, e assim em toda parte onde uma realidade idiomática

está velada diante de outra, de tal maneira que não se pode penetrar esse véu. Tive de levar isso em consideração, quando quis conhecer Unamuno, Confúcio, As mil

e uma noites, Flaubert e todos os demais. Não é esnobismo. Antes, quando O

mundo ainda era menor, parecia natural que toda pessoa instruída

dominasse dois ou três idiomas. Hoje em dia, quando de repente o

mundo é muito mais amplo, não pode ser suficiente um só idioma,

que nem sequer é dominado com exatidão. Não tem sentido. E esta é a

razão pela qual aprendi línguas. Cada língua guarda em si uma verda

de que não pode ser traduzida. Sem que eu conheça a Alemanha, a

língua alemã me mostra o que poderiam ter sido os alemães, se não

tivessem esquecido a intimidade de Goethe com a metafísica da lín

gua. Mas, quando se conhecem os alemães, o despertar é triste. Entre

tanto, esta experiência pessoal não diz nada contra a sabedoria de

Goethe, mas sim contra os alemães modernos. Com Dostoievski e a

Rússia me ocorre exatamente o mesmo. Amo a língua russa, a língua

da alma, e tampouco Dostoievski é responsável pelo atual estado da

alma r ssa. Mas minha língua brasileira é a língua do homem de ama

nhã, epois de sua purificação. Por isso devo purificar minha língua.

lOAO GUIMARÃES ROSA ~ FICÇÃO COMPLETA

53

Minha língua, espero que por este sermão você tenha notado, é a arma com a qual defendo a dignidade do homem.

GL: Esta sim é que foi uma verdadeira explosão, não habitual em você. Mas suponho que foi uma explosão salutar. Agora permita-me uma pergunta imediata para fazer

a conexão. Que relação existe entre você e a literatura alemã em geral?

JGR: Conheço bastante bem a literatura alemã. Por exemplo, o Simplizissimus24 é para mim muito importante. Amo Goethe, admiro e venero Thomas Mann, Robert Musil,

Franz Kaflca, a musicalidade de pensamento de Rilke, a importância monstruosa, espantosa de Freud. Todos estes autores me impressionaram e me influenciaram muito

intensamente, sem dúvida. Entretanto, não sei o que fazer com autores mais jovens como Brecht. Todos eles perderam o sentido da metafísica da língua, todos eles

se tornaram pregoeiros e deixaram de lado a alma, considerando-a fora de moda, em desacordo com a época e acreditando que o homem seria apenas um Wolfsburg-Mensch.zs

A língua é o espelho da existência, mas também da alma. WolfsburgMensch, o conteúdo desta expressão é por si só um símbólo horrível. Eu não duvido: certamente também

na Alemanha os autores jovens querem melhorar o mundo; certamente suas intenções são honestas e boas. Mas não o conseguirão, pois todos eles juntos não terão a importância

que uma única frase de Goethe tem para o destino do homem, para seu futuro. Somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo. Devemos conservar o sentido

da vida, devolver-lhe esse sentido, vivendo com a língua. Deus era a palavra e a palavra estava com Deus. Este é um problema demasiado sério para ser largado nas

mãos de uns poucos ignorantes com vontade de fazer experiências. O que chamamos hoje linguagem corrente é um monstro morto. A língua serve para expressar idéias,

mas a linguagem corrente expressa apenas clichês e não idéias; por isso está morta, e o que está morto não pode engendrar idéias. Não se pode fazer desta linguagem

corrente uma língua literária, como pretendem os jovens do mundo inteiro sem pensar muito.

GL: Suponho que estas manifestações não serão do agrado de muitos e

provavelmente lhe darão fama de reacionário.

JGR: Esta reputação não me desagradaria; e mesmo, já disse antes, gostaria

de ser. considerado um reacionário da línguá. Sou precisamente um

za Primeiro romance em língua alemã, de Grimmelshausen, publicado em 1663.

zs "Homem de Wolfsburg". Wolfsburg é a cidade alemã que cresceu a partir da fundação

da fábrica Wolkswagen. Símbolo da civilização técnica, como Detroit. A expressão de

Guimarães Rosa é muito significativa: "Wolfsburg-Mensch", traduzido literalmente,

quer dizer "homem do castelo do lobo".

escritor que cultiva a idéia antiga, porém sempre moderna, de que o som e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro. Vão juntos. A música da língua deve expressar

o que a lógica da língua obriga a crer. Nesta Babel espiritual de valores em que hoje vivemos, cada autor deve criar seu próprio léxico, e não lhe sobra nenhuma

alternativa; do contrário, simplesmente não pode cumprir sua missão. Estes jovens tolos que declaram abertamente que não se trata mais da língua, que apenas o conteúdo

tem valor, são pobres coitados dignos de pena. O melhor dos conteúdos de nada vale, se a língua não lhe faz justiça. O caso de Zola prova isso. E o conteúdo mais

perigoso chega a ter uma função humana, se estiver expresso em uma linguagem poética, isto é, humana; Asturias é a prova. Esta língua, assim como o provam Asturias,

Thomas Mann e Musil, esta língua atualmente deve ser pessoal, produto do próprio autor; porque o material lingüístico existente e comum ainda basta para folhetos

de propaganda e discursos políticos, mas não para a poesia, nem para pronunciar verdades humanas. Hoje, um dicionário é ao mesmo tempo a melhor antologia lírica.

Cada palavra ë, segundo sua essência, um poema. Pense só em sua gênese. No dia em que completar cem anos, publicarei um livro, meu romance mais importante: um dicionário.

Talvez um pouco antes. E este fará as vezes de minha autobiografia.

GL: Estou pensando em como classificar esta declaração sobre o dicionário. Pertence ao capítulo de seu gosto pelos paradoxos, ou deve ser interpretada literalmente?

Poderia ser entendida de forma absolutamente literal, pois um dicionário é o mais impessoal de todos os livros, e você, como já me havia dito, é inimigo das intimidades

literárias.

JGR: Um dicionário não é tão completamente impessoal como você pensa; por isso falei dele relacionado à minha autobiografia. Pode entender literalmente o que acabo

de lhe dizer e acrescentá-lo à minha poética. A personalidade do escritor, ao escrever, é sempre seu maior obstáculo, já que deve trabalhar como um cientista e segundo

as leis da ciência; ela o faz perder seu equilíbrio, torna-o subjetivo quando deveria buscar a objetividade. A personalidade, é preciso encarcerá-la no momento de

escrever.

GL: Surpreende-me enormemente ouvir esta opinião justamente de você. O autor de uma literatura tão pessoal ataca a personalidade do escritor. Isto é incrível.

JGR: Mas eu falei muito a sério. Desta vez não foi um paradoxo. A intimidade na obra de um escritor simplesmente me parece muito real. O escritor deve se sentir

à vontade no incompreensível, deve se ocupar do infinito, e pode fazê-lo não apenas aproveitando as possibilidades

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que lhe oferece a ciência moderna, mas também agindo ele mesmo como um cientista moderno. Não se pode tratar o infinito com intimidade, nem com subjetivismo. É preciso

ser objetivo, pois o incompreensível pode, pelo menos, ser contemplado objetivamente. Não, não, o autor não pode se permitir intimidades em sua obra. A poesia é

também uma irmã tão incompreensível da magia...

GL: Estou me esforçando para segui-lo. De todos os paradoxos que você disse, este me parece o mais paradoxal: que sua interpretação da poesia desemboque agora no

"realismo mágico", não tanto o de Asturias, mas o de Carpentier. Permita-me dizer-lhe que já não estou conseguindo acompanhá-lo bem.

JGR: Você está enganado! Você mesmo disse tudo isso em seu artigo, portanto, já deve ter me entendido bem uma vez. Extraia do que eu disse o paradoxo lingüístico,

e ficará exatamente sua própria definição de meu universo poético. Talvez com a restrição de que eu não qualificaria meu conceito mágico de "realismo mágico"; eu

o chamaria antes "álgebra mágica", porque é mais indeterminada e, portanto, mais exata. Mas em essência nos entendemos perfeitamente, só que você não percebeu isso.

GL: Entretanto, às vezes tenho a impressão de que você está brincando comigo.

JGR: Mas nada disso! Raramente mantenho uma conversa tão interessante. Deve ser porque você é um interlocutor bastante brutal e tem espírito de contradição. Seria

lamentável se perdêssemos esta conversa por causa de um mal-entendido. Digamos antes que tudo isto, que quase o enfureceu, não pode nem deve ser explicado logicamente;

deve ser compreendido intuitivamente, deve ser pensado até o fim.

GL: Está bem. Entretanto, creio que não chegaremos muito longe, se gastarmos muitos paradoxos. Agora uma coisa muito concreta, sobre a qual ainda não falamos e que

é muito importante para toda a literatura brasileira e, portanto, também para a sua obra. Estou me referindo à chamada "brasilidade". Desde que me ocupo de literatura

brasileira, já tentei várias vezes esclarecer este conceito. Não tenho outra saída. Gente muito séria já me disse que esta "brasilidade" é só baboseira, e até agora

não pude ouvir uma definição que me agradasse, embora vocês, os escritores brasileiros, sempre se refiram a este conceito. Talvez de você eu possa obter uma explicação.

JGR: Sim, veja, Lorenz, quem quer que lhe tenha dito que a "brasilidade" é apenas uma baboseira deve ser um professor, um desses "lógicos" que não compreendem nada,

que só compreendem com o cérebro; e, como se sabe, o cérebro humano é uma organização muito defeituosa e debilitada. Por isso o homem possui, além do cérebro, o

sen

INTRODUÇÃO GERAL / DIALOGO COM GUIMARÃES ROSA SS

timento, o coração, como queira. Não se deixe desconcertar pelo que dizem os sabichões! Você mencionou a "brasilidade" até que com bastante correção. Também não

posso dar uma definição para algo incompreensível, mas posso tentar uma interpretação. Apenas tentar.

GL: Você nos faria um grande favor, a mim e a alguns outros que nos debatemos para esclarecer este conceito.

JGR: Sim, é certamente um assunto dificil e complicado. É lógico que existe a "brasilidade". Existe como a pedra básica de nossòs almas, de nossos pensamentos, de

nossa dignidade, de nossos livros e de toda nossa forma de viver. Mas o que é ela? Muita gente já quebrou a cabeça por causa do assunto. Nos últimos tempos também

fora do Brasil se tem meditado sobre ela, e, infelizmente, apenas porque muitas vezes não nos podem compreender. Se estou bem lembrado, foi Goethe quem disse: Poesie

ist die Sprache des Unaussprechlichen.26 Esta é a afirmação de uma sabedoria máxima, e poderia ser aplicada também à "brasilidade"; entretanto, não altera o problema

que você me propôs. Já sabe que também não se pode explicar a palavra "saudade" em seu sentido lusitano, sem remontar à mentalidade lingüística portuguesa; e esta

palavra tem um caráter fundamental semelhante àquela. Um português não precisa explicá-la; já nasce com ela, leva-a dentro de si. Conhece-a com o coração, não com

a cabeça. Assim acontece com a "brasilidade"; nós dois sabemos a importância que tem e o que quer dizèr; e também só o sabemos com o coração. Freyre27 esboçou uma

definição muito boa, mas insuficiente. Se para sua explicação-não usarmos novamente o mesmo conceito, "brasilidade", não poderemos explicá-lo fora de nossa área

lingüística e sentimental. Eu pelo menos não posso fazê-lo, embora sinta esta "brasilidade" muito intensa, constantemente dentro de mim e apesar de ser o último

a capitular ante um problema lingüístico. Se isto pode consolá-lo, digo-lhe que também fui um daqueles que quebraram a cabeça pensando sobre esta questão. Existem

elementos da língua que não são captados pela razão; para eles são necessárias outras antenas. Mas, apesar de tudo, digamos também que a "brasilidade" é a língua

de algo indizível. Duvido que outras pessoas pudessem tirar disto uma conclusão mas, aqui entre nós dois, isto não é tão importante. Ou digamos, para salientar a

importância irracional, inconcebível, intimamente poética, que a palavra em si contém uma definição que tem valor para nós, para nosso

z6 "Poesiá é a linguagem do indizível". Citado em alemão por Guimarães Rosa.

z~ Gilberto Freyre, sociólogo, em sua Interpretação do Brasil (Lisboa) e em Casa-grande ér senzala (Rio de Janeiro, 1933).

JOAO GUIMARÃES ROSA 1 FICÇÃO COMPLETA

56 JOAO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COMPLETA

INTAODUÇAO GERAL ~ DIALOGO COM GUIMARÃES ROSA S]

caráter, nossa maneira de pensar, de viver e de sentir: "brasilidade" é

talvez um sentir-pensar. Sim, creio que se pode dizer isto.

GL: Com isto não progredimos muito, pois agora poderíamos perguntar,

tanto eu como os outros: "Que diabos é um sentir-pensar?"

JGR: (rindo) Não fique nervoso. É um prazer quando outras pessoas que

não me interessam se irritam com alguma coisa que sabem que eles

mesmos não poderiam fazer melhor. Mas simplesmente não se po

de explicar a "brasilidade". Pode-se apenas concretizá-la em alguns

exemplos, ou pelo menos tentar.

GL: Tentemos; pelo menos já seria alguma coisa. Por favor, dê-me alguns

exemplos que você ache que podem reduzir a "brasilidade" a metáfo

ras. Quando você mencionou a "saudade", veio-me à lembrança o

"duende" de Lorca, aquele demônio também tão inconcebível, mas

que o próprio Lorca tornou plausível com alguns exemplos.

JGR: Um exemplo magnífico; o daimon de Lorca e também o daimon de Goethe são exemplos exatos para tais coisas indizíveis. Duvida-se da existência da "brasilidade",

mas ninguém mais põe em dúvida que exista um "duende" ou a "hispanidade" de Unamuno, pois foram exemplificados pela vida. Falemos da "brasilidade": nós os brasileiros

estamos firmemente persuadidos, no fundo de nossos corações, que sobreviveremos ao fim do mundo que acontecerá um dia. Fundaremos então um reino de justiça, pois

somos o único povo da terra que pratica diariamente a lógica do ilógico, como prova nossa política. Esta maneira de pensar é conseqüência da "brasilidade". Outro

exemplo, desta vez referente a mim mesmo, para que você possa acreditar tranqüilamente - estou certo de que você fará esta pergunta durante nossa conversa, por isso

antecipo a resposta. Eu não sei o que. sou. Posso bem ser cristão de confissão sertanista, mas também pode ser que eu seja taoísta à maneira de Cordisburgo, ou um

pagão crente à la Tolstoi. No fundo, tudo isto não é importante. Como homem inteligente, às vezes pode-se sentir necessidade de se tornar um beato ou um fundador

de religiões. A religião é um assunto poético e a poesia se origina da modificação de realidades lingüísticas. Desta forma, pode acontecer que uma pessoa forme palavras

e na realidade esteja criando religiões. Cristo é um bom exemplo disso. Também isto é "brasilidade". Um terceiro exemplo: segundo nossa interpretação brasileira,

não muito cristã, mas muito crédula, o diabo é uma realidade no mundo. Está oculto na essência das coisas, e faz ali suas brincadeiras. A ciência existe para expulsar

o diabo. O homem sofre sempre o desespero metafísico, pois conhece a existência do diabo e pode assim liquidá-lo, superando-o até conseguir uma humanidade sem falsidades.

Também isto é "brasilidade". Po

deria ficar várias horas dando exemplos como esses, mas não teria sentido. Para compreender a "brasilidade" é importante antes de tudo aprender a reconhecer que

a sabedoria é algo distinto da lógica. A sabedoria é saber e prudência que nascem do coração. Minhas personagens, que são sempre um pouco de mim mesmo, um pouco

muito, não devem ser, não podem ser intelectuais, pois isso diminuiria sua humanidade.

GL: Isto precisa ser explicado. Você, intelectual cultíssimo que lê tanto,

poliglota, será por ácaso um inimigo dos escritores intelectuais?

JGR: Não, de modo algum. Mas não suporto essas figuras intelectuais, dos quais se espera que a qualquer momento lhes brotem da boca bolas de papel.ZS Inteligência,

prudência, tal como eu as interpreto, cultura elevada, tudo isso está bem, pois o escritor atual deve possuir todas estas qualidades. Mas não deve se transformar

em um computador. Não deve abandonar as zonas do irracional, ou então deixa de produzir literatura e só produz papel. Flaubert, Dostoievski eram sacerdotes da palavra;

Zola, ao contrário, foi apenas um charlatão e por isso, hoje nada significa para nós, pois a necessidade que suas palavras expressam não existe mais. Assim acontece

com todos os que ligam à necessidade do dia-a-dia o seu chamado compromisso e além disso não possuem as faculdades lingüísticas necessárias para poder fazer literatura.

GL: Você está contra a lógica e defende o irracional. Entretanto, seu próprio processo de trabalho é uma coisa totalmente intelectual e lógica. Como você se explica

esta contradição, e como a explica para mim?

JGR: Não há nenhuma contradição. Um gênio é um homem que não sabe pensar com lógica, mas apenas com a prudência. A lógica é a prudência convertida em ciência; por

isso não serve para nada. Deixa de lado componentes importantes, pois, quer se queira quer não, o homem não é composto apenas de cérebro. Eu diria mesmo que, para

a maioria das pessoas, e não me excetuo, o cérebro tem pouca importância no decorrer da vida. O contrário seria terrível: a vida ficaria limitada a uma única operação

matemática, que não necessitaria da aventura do desconhecido e inconsciente, nem do irracional. Mas cada conta, segundo as regras da matemática, tem seu resultado.

Estas regras não valem para o homem, a não ser que não se creia na sua ressurreição e no infinito. Eu creio firmemente. Por isso também espero uma literatura tão

ilógica como a minha, que transforme o cosmo num sertão no qual a única realidade seja o inacreditável. A lógica, prezado ami

ze Guimarães Rosa refere-se ã apresentação estereotipada dos heróis das histórias em quadrinhos.

1

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I

go, é a força com a qual o homem, algum dia, haverá de se matar. Apenas superando a lógica é que se pode pensar com justiça. Pense nisto: o amor é sempre ilógico,

mas cada crime é cometido segundo as leis da lógica.

GL: Em seus livros acontecem muitas coisas que se pode chamar de crimes, assassinatos, homicídios, ultrajes. São estes, então, modos lógicos de conduta dos seus

heróis, por exemplo de seu Riobaldo?

JGR: Não, não se pode dizer isto. O que ali acontece não são crimes. A gente do sertão, os homens de meus livros, você mesmo escreveu isso, vivem sem consciência

do pecado original; portanto, não sabem o que é o bem e o que é o mal. Em sua inocência, cometem tudo o que nós chamamos "crimes", mas que para eles não o são. Alguma

coisa deste modo de pensar se conservou até mesmo na justiça de muitos países civilizados. Pense na distinção entre assassinato premeditado e homicídio irrefletido,

ou no que os franceses chamam "crime passional", o assassinato por ciúmes etc. Isto marca limites. No sertão, cada homem pode se encontrar ou se perder. As duas

coisas são possíveis. Como critério, ele tem apenas sua inteligência e sua capacidade de adivinhar. Nada mais. E assim se explica também aquele provérbio sertanejo

que à primeira vista parece outro paradoxo, mas que expressa uma verdade muito simples: o diabo não existe, por isso ele é tão forte. Às vezes não se encontram as

palavras que se está sentindo dentro de si mesmo.

GL: João Guimarães Rosa, você é uma pessoa delicada: olha o relógiõ muito dissimuladamente. Realmente já é tarde, e estamos aqui juntos há horas.

JGR: Desculpe, não quis demonstrar cansaço, mas realmente esta é a conversa mais longa que já tive.

GL: E eu lhe sou muito grato. Tratemos então de chegar pouco a pouco ao final, pois nós dois ainda temos alguma coisa pela frente. Depois de havermos abordado tantos

assuntos gerais, gostaria de saber algo muito específico, algo referente a seu magnífico livro Grande sertão, que neste caso deve ser tomado como representante de

suas demais obras; também de seu Sagarana, de seus contos e de seu ciclo Corpo de baile. O romance Grande sertão teve um sucesso mundial, não imerecido, sem dúvida,

mas que de certo modo me parece inexplicável. Que significado tem este livro para você?

JGR: Eu diria que Grande sertão foi para mim o término de um desenvolvimento e, ao mesmo tempo, algo que um dia, espero, levar-me-á à meta final.

GL: É um romance autobiográfico?

JGR: É, desde que você não considere uma autobiografia como algo excessivamente lógico. É uma "autobiografia irracional", ou melhor, mi

nha auto-reflexão irracional. Naturalmente que me identifico com este livro.

GL: A figura principal deste romance tem as melhores possibilidades de ser considerada um dos maiores heróis da literatura mundial. Tentou-se muito decifrá-lo, também

na Alemanha, e formulou-se toda espécie de definições, mas todas elas revelam um certo desamparo. Talvez a culpa disso caiba à mistura de elementos realistas e daqueles

que você costuma chamar "metafísica" ou "irracionalidade".

JGR: Estou firmemente convencido disso. As dificuldades resultariam, sobretudo na Europa, do fato de se conhecer muito pouco de nosso mundo, especialmente de meu

mundo do sertão.

GL: Atrevo-me a apostar que a maioria dos seus leitores alemães, antes de ler seu livro, nem sequer sabiam que o sertão existe. Provavelmente ainda o consideram

uma invenção sua.

JGR: Também acho. Recentemente, durante minha viagem à Alemanha, me convenci disso. Um crítico que me foi apresentado como um homem famoso - prefiro não dizer seu

nome - felicitou-me por eu haver eive literarische Landschaft erfunden,29 tão "magnífico", assim entre aspas. Coisas semelhantes me aconteceram na Itália, na França

e até na Espanha. Mas é preciso aceitar essas coisas, não se pode evitálas. Quando escrevo, não posso estar constantemente acrescentando notas de rodapé para assinalar

que se trata de realidades.

GL: Naturalmente, desempenha nisto um papel muito importante o modesto nível de conhecimento que têm os europeus sobre a América Latina e o Brasil. Você mesmo já

disse isso. Livros como seu romance contribuirão sem dúvida para complementar essa imagem cheia de lacunas. Terão de se conformar, assim espero, com a idéia de que

o Brasil é um cosmo próprio.

1GR: Sem dúvida o Brasil é um cosmo, um universo em si. Portanto,

Riobaldo e todos os seus irmãos são habitantes de meu universo, e

com isso voltamos ao ponto de partida.

Este Riobaldo - conforme li em várias ocasiões - seria considera

do um Fausto, um místico, um homem do barroco, e designações

dessa espécie já lhe foram atribuídas. Como você delineia o seu

Riobaldo?

JGR: Não, Riobaldo não é Fausto, e menos ainda um místico barroco. Riobaldo é o sertão feito homem e é meu irmão. Muitos de meus intérpretes se equivocaram, exceto

você novamente. Riobaldo é mundano demais para ser místico, é místico demais para ser Fausto; o que chamam barroco é apenas a vida que toma forma na linguagem.

29 "Inventado uma nova paisagem literária". Citado em alemão por Guimarães Rosa.

GL:

GL: Sim, essa linguagem... Soube que entre você e seu tradutor alemão, Curt Meyer-Clason, houve longas discussões acerca de algumas passagens sobre cujo sentido

vocês não podiam entrar em acordo.

JGR: Não, não, não foi assim. Não é exato. Estimo muito Meyer-Clason; admiro-o como homem da língua, admiro suas qualidades. É o melhor de todos os meus tradutores,

provavelmente um dos melhores que há no mundo. Um homem que se estima tanto não pode ser considerado como um simples transportador de palavras. Com ele se discute

sabendo-se que vale a pena, que não é tempo perdido. Confesso com muito prazer que Meyer-Clason me convenceu de que uma passagem de meu romance - na realidade se

tratava de uma metáfora - era mais convincente na tradução alemã que em meu original. É claro que aceito isso, e em uma nova edição brasileira pretendo adaptar esta

passagem à versão que Meyer-Clason encontrou em alemão. A isto eu chamo cooperação, co-pensamento.

GL: E o seu Riobaldo? Acho que você ainda não acabou de caracterizá-lo.

JGR: Eu sei. Gostaria de acrescentar que Riobaldo é algo assim como Raskolnikov, mas um Raskolnikov sem culpa, e que entretanto deve expiá-la. Mas creio que Riobaldo

também não é isso; melhor: é apenas o Brasil.

GL: Ainda tenho uma última pergunta, a cuja resposta dou muita importância. Não ria, não vou lhe perguntar em que está trabalhando agora. Sei que isso não levaria

a nada. Mas gostaria que me dissesse o que pensa do futuro da América Latina.

JGR: Realmente, pensei que você estava querendo me comprometer agora, e depois me perguntar todo ano quando ficaria pronto o livro anunciado. Prefiro que não tenha

sido assim. Sou um homem que viu muitas coisas no mundo, que entende muito de literatura mundial. Não quero pecar por presunção, mas comparando quantitativa e qualitativamente

o que se escreve, por exemplo, na Europa, com o que se escreve entre nós, sinto-me um tanto orgulhoso. É claro que também entre nós se imprime muita coisa medíocre

que nada tem a ver com a literatura. Mas isso existe sempre e em toda parte. Entre nós, não só no Brasil e não só entre os escritores velhos e os de minha geração,

há muitos que justificam as maiores esperanças, e permitem que encaremos tranqüilamente o futuro. A América Latina tornou-se, no terreno literário e artístico, digamos

em alemão, Weltfáhig.3O O mundo terá de contar. Olhe, Lorenz, não seria tão errado reduzir todas as ciências a uma lei básica, como fizeram os escolásticos e cientistas

medievais. Não, eu não quis evocar a teologia. Mas quero pintar um panorama

3O "Apta para o mundo". Citado em alemão por Guimarães Rosa.

que, no fundo, delineia todos os problemas intelectuais da atualidade. Olhe o futuro da Europa e de toda a humanidade: é como uma equação com várias incógnitas.

A Europa é pequena, mas seus habitantes são ativos e, além disso, têm a seu favor uma grande tradição. E entretanto os europeus não têm qualquer influência sobre

essas incógnitas que determinam o futuro de seu continente. O "x" e o "y" desta questão decidirão o amanhã, tanto é assim que quase já se pode dizer hoje. A América

Latina talvez não seja a incógnita principal, o "x", mas provavelmente será o "y", uma incógnita secundária muito importante. Pela matemática, sabe-se que uma equação

não se resolve se uma segunda incógnita não for eliminada. Suponhamos agora que a América Latina seja a tal incógnita "y". Com isso a Europa está em um ponto culminante

para o seu futuro. E não estou falando apenas das necessidades e do potencial econômico de meu continente. Você sabe que nós, os latino-americanos, nos sentimos

muito ligados à Europa. Para mim, Cordisburgo foi sempre uma Europa em miniatura. Amamos a Europa como, por exemplo, se ama uma avó. Por isso espero que a Europa

reconheça a equação e leve em conta o "y". Isso não lhe traria nenhum prejuízo. Por nós e conosco talvez a Europa tenha um futuro não só no campo econômico, não

só no campo político, mas também como fator de poder espiritual. No final das contas, somos parentes espirituais: avó e netos. A Europa é um pedaço de nós; somos

sua neta adulta e pensamos com preocupação no destino, na enfermidade de nossa avó. Se a Europa morresse, com ela morreria um pedaço de nós. Seria triste, se em

vez de vivermos juntos, tivéssemos de dizer uma oração fúnebre pela Europa. Estou firmemente convencido, e por isso estou aqui falando com você, de que no ano 2OOO

a literatura mundial estará orientada para a América Latina; o papel que um dia desempenharam Berlim, Paris, Madrid ou Roma, também Petersburgo ou Viena, será desempenhado

pelo Rio, Bahia, Buenos Aires e México. O século do colonialismo terminou definitivamente. A América Latina inicia agora o seu futuro. Acredito que será um futuro

muito interessante, e espero que seja um futuro humano.

Gênova, janeiro de 1965. FIM DE "DIALOGO COM GUIMARÃES ROSA"

63

FORTUNA CRÍTICA

SAGARANA

Antonio Condido

S. PAULO, JuLxo - O grande êxito de Sagarana, do dr. J. Guimarães Rosa, não deixa de se prender às relações do público ledor com o problema do regionalismo e do

nacionalismo literário. Há cerca de trinta anos, quando a literatura regionalista veio para a ribalta, gloriosa, avassaladora, passávamos um momento de extremo federalismo.

Na intelligentzia, portanto, o patriotismo se afirmou como reação de unidade nacional. A Pátria, com pê sempre maiúsculo, latejou descompassadamente, e os escritores

regionais eram procurados como afirmação nativista. Foi o tempo em que todo jovem promotor ou delegado, despachado para as cidadezinhas do interior, voltava com

um volume de contos ou uma novela sertaneja, quase sempre lembrança de cenas, fatos e pessoas cujo pitoresco lhes assanhava a sensibilidade litorânea de nascimento

ou educação.

A reviravolta econômica nos grandes Estados, subseqüente à crise de 1929, alterou os termos de equação política, e a descentralização federalista, depois de alguns

protestos nem sempre platônicos, foi cedendo passo à nova fase centralizadora, exigida quase pelo desenvolvimento da indústria. Processo cuja aberração foi o Estado

Novo, assim como a constituição castilhista tinha sido a aberração do processo anterior.

Para compensar - como às vezes acontece -, a intelligentzia se virou para o bairrismo. Antes, quando a palavra de ordem política e o sentimento geral eram provincianos,

foi chique ser nacionalista, e o porta-voz mais característico da tendência foi Olavo Bilac. Agora, que as forças unitárias predominam e já se vai generalizando

um certo sentimento de todo - deste todo de repente vivo e existente por meio do rádio e do aeroplano -,agora

"Todos os textos da Fortuna Crítica foram retirados do v. 6 da Coleção Fortuna Crítica da Civilização Brasileira / Pró-Memória / INL, 1963, com exceção de "Um livro

inédito", de Graciliano Ramos, retirado de Linhas tonas, Martins Editora, 1962.

a moda é ser bairrista, e o porta-voz mais autorizado da tendência é o sr. Gilberto Freyre, pai da voga atual da palavra "província". Todos falam na sua província,

nas suas tradições etc etc, embora a maioria prefira fazer como seu Rui da canção, isto é, ela lá e eu aqui. Quando chega ao Rio, o jovem intelectual não mais se

esforça por mudar a pronúncia e parecer familiarizado com a cidade; capricha o sotaque e escreve imediatamente sobre a negra velha que (diz ele) o criou, falando

dos avós da pequena terra em que nasceu etc. O maior elogio do dia é "sabor da terra", traduzindo do francês, já se vê, e a maior ofensa dizer a um escritor que

ele "não tem raízes".

Natural, em meio semelhante, o alvoroço causado pelo sr. Guimarães Rosa, cujo livro vem cheio de "terra", fazendo arregalar os olhos aos intelectuais que não tiveram

a sorte de morar ou nascer no interior (digo, na "província") ou aos que, tendo nela nascido, nunca souberam do nome da árvore grande do largo da igreja, coisa bem

brasileira. Seguro do seu feito, o sr. Guimarães Rosa despeja nomes de tudo - plantas, bichos, passarinhos, lugares, modas - enrolados em locuções e construções

de humilhar os citadinos. "Irra, que é talento demais", como o deputado português, mal comparando.

Mas Sagarana não vale apenas na medida em que nos traz um certo sabor regional, mas na medida em que constrói um certo sabor regional, isto é, em que transcende

a região. A província do sr. Guimarães Rosa - no caso, Minas - é menos uma região do Brasil do que uma região da arte, com detalhes e locuções e vocabulário e geografia

cosidos de maneira por vezes irreal, tamanha é a concentração com que trabalha o autor: Assim, veremos, numa conversa, os interlocutores gastarem meia dúzia de provérbios

e outras tantas parábolas como se alguém falasse no mundo deste jeito. Ou, de outra vez, paisagens tão cheias de plantas, flores e passarinhos cujo nome o autor

colecionou, que somos mesmo capazes de pensar que na região do sr. Guimarães Rosa o sistema fito-zoológico obedece ao critério da Arca de Noé. Por isso, sustento,

e sustentarei mesmo que provem o meu erro, que Sagarana não é um livro regional como os outros, porque não existe região alguma igual à sua, criada livremente pelo

autor com elementos caçados analiticamente e, depois, sintetizados na ecologia belíssima das suas histórias.

Transcendendo o critério regional por meio de uma condensação do material observado (condensação mais forte do que qualquer outra em nossa literatura da "terra"),

o sr. Guimarães Rosa como que iluminou, de repente, todo o caminho feito pelos antecessores. Sagarana significa, entre outras coisas, a volta triunfal do regionalismo

do Centro. Volta o coroamento. De Bernardo Guimarães a ele, passando por Afonso Arinos, Valdomiro Silveira, Monteiro Lobato, Amadeu de Queirós, Hugo de Carvalho

Ramos, assistimos a um longo movimento de tomada de consciência, através da exploração do meio humano e geográfico. É a fase do pitoresco e do narrativo, do regionalismo

"entre aspas", se dão licença de citar uma expressão minha em artigo recente. Fase ultrapassada, cujos produtos envelheceram rapidamente, talvez à força de copiados

e dessorados pelos minores. Fase, precisamente, em que os escritores trouxeram a região até o leitor, conservando, eles próprios, atitude de sujeito e objeto. O

sr. Guimarães Rosa construiu um regionalismo muito mais autêntico e duradouro, porque criou uma experiência total em que o pitoresco e ò exótico são animados pela

graça de um movimento interior em que se desfazem as relações de sujeito e objeto pára ficar a obra de arte como integração total de experiência.

Sagarana nasceu universal pelo alcance e pela coesão da fatura. A língua parece finalmente ter atingido o ideal da expressão literária regionalista. Densa, vigorosa,

foi talhada no veio da linguagem popular e disciplinada dentro das tradições clássicas. Mário de Andrade, se fosse vivo, leria comovido este resultado esplêndido

da libertação lingüística, para que ele contribuiu com a libertinagem heróica da sua.

Além das convenções literárias, Sagarana se caracteriza por um soberano desdém das convenções. O sr. Guimarães Rosa - cuja vocação de virtuose é inegável - parece

ter querido mostrar a possibilidade de chegar à vitória partindo de uma série de condições que conduzem, geralmente, ao fracasso. Ou melhor: todos os fracassos dos

seus predecessores se transformaram, em suas mãos, noutros fatores de vitória.

Para começar, a própria temática, batida e aparentemente esgotada. Em matéria de regionalismo, só aceitamos, de uns vinte anos para cá, o nordestino, transformado,

por sua vez e por força do uso, em arrabalde pacífico e já sem surpresas da nossa sensibilidade literária. Em seguida, o exotismo do léxico, recurso geralmente fácil,

abusado pelos escritores gaúchos. Depois, a tendência descritiva, quase de composição escolar, familiar a quem vive em contato com os pequenos jornais do interior

e, em literatura, relegada a segundo plano pelas exigências tanto de ação quanto de introspecção do romance moderno. Finalmente, o capricho meio oratório do estilo,

que há muito consideramos privativo da subliteratura.

Pois o sr. Guimarães Rosa partiu de todas estas condições, algumas das quais bastaram para fazer naufragar escritores de maior talento, como Monteiro Lobato, ou

reduzir às devidas proporções outros indevidamente valorizados, como o velho Afonso Arinos; não rejeitou nenhuma delas e chegou a verdadeiras obras-primas, como

são alguns dos contos de Sagarana.

Passando a setor de ordem mais pessoal, talvez possamos dizer que a qualidade básica do autor escapa à crítica, porque só pode ser sugerida por

66

IN1"RODUÇAO GERAL ~ FORTUNA CRÍTICA

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meio de imprecisões como "capacidade de contar", "vigor narrativo" e outras coisas que, tudo exprimindo, nada dizem de positivo. O meu mestre e amigo Giuseppe Ungaretti

usaria expressão mais direta, invocando razões de ordem hormonal em calão pitoresco, que eu não me atrevo a trazer para este bem comportado rodapé e que, segundo

ele, são as únicas a exprimir a força criadora dos artistas poderosos como é o sr. Guimarães Rosa.

Sagarana se caracteriza pela paixão de contar. O autor chega a condescendência excessiva para com ela, a ponto de quebrar a espinha das suas histórias a fim de dar

relevo a narrativas secundárias, terciárias, cujo conjunto resulta mais importante do que a narrativa central. Deixa-se ir ao sabor dos casos, não perdendo vasa

para contá-los, acumulando detalhes, minuciando com pachorra, como quem dá a entender que, em arte, o fim não tem a mínima importância, porque o que importa são

os meios. Todos os meios e até a ampliação retórica são bons, desde que nos arrebatem da vida, transportando-nos para a vida mais intensa da arte.

Já se vê por aí que o sr. Guimarães Rosa retorna, em grande estilo, à concepção do contista-contador, para o qual a verdade está na narração e na descrição, para

o qual as facadas, os casos de amor, os estouros de boiada e os crepúsculos têm valor eterno, acima de quaisquer outros. Por outro lado, como ficou sugerido, a região,

deixando de ser, para ele, simples localização da história, com funções de pitoresco e anedótico, passa a verdadeira personagem (se assim me posso exprimir), tanta

é a persistência e a profundidade com que vêm invocados a sua flora, a sua fauna, o seu relevo. Há, mesmo, certos contos, como "São Marcos", em que só ela redime

o anedótico e garante o toque literário autêntico. Em "A hora e vez de Augusto Matraga" há uma certa entrada de primavera - verdadeiro Sacre du Printemps- em que

a natureza nos comunica sentimento quase inefável, germinal e religioso.

Como padrão de arte objetiva e elaborada, perfeito na suficiência admirável dos meios, gostaria de indicar o conto "Duelo", das maiores peças de atmosfera da nossa

atual novelística. Uma tensão envolvente, quase alucinante, alimentada sorrateiramente pelo autor com um ominoso vaivém cheio de detalhes geográficos e pequenos

casos laterais.

Não é aí, todavia, que devemos procurar a obra-prima do livro mas no citado "Augusto Matraga", onde o autor, deixando de certo modo a objetividade da arte-pela-arte,

entra em região quase épica de humanidade e cria um dos grandes tipos da nossa literatura, dentro do conto que será, daqui por diante, contado entre os dez ou doze

mais perfeitos da língua.

Não penso que Sagarana seja um bloco unido, nem que o sr. Guimarães Rosa tenha sabido, sempre, escapar a certo pendor verboso, a certa difusão de escrita e composição.

Sei, porém, que, construindo em termos brasileiros certas experiências de uma altura encontrada geralmente apenas nas

grandes literaturas estrangeiras, criando uma vivência poderosamente nossa e ao mesmo tempo universal, que valoriza e eleva a nossa arte, escrevendo contos como

"Duelo", "Lalino Salãthiel", "O burrinho pedrês" e, sobre todos (muito sobre todos), "Augusto Matraga" - sei que por tudo isso o sr. Guimarães Rosa vai reto para

a linha dos nossos grandes escritores.

UMA GRANDE ESTRÉIA

Álvaro Lins

PARA AQUELE que tem a obrigação profissional da crítica literária, sentindo muitas vezes esse gosto morno da rotina que vem do contato com figuras já muito conhecidas

ou com obras de estréia sem qualquer novidade, nenhuma outra sensação - porque ela vale como um despertar, como um estímulo, como motivo para que se mantenha a fé

nas faculdades criadoras de sua época intelectual - poderá ser comparada a esta de comunicar ao público a presença de um livro inconfundível na literatura e de um

autor de autêntica personalidade na vida literária. E isto sem qualquer dúvida ou temor de errar, antes com a certeza de que nos achamos completamente fora do terreno

oscilante da mediania e dos mais ou menos, colocados em face de um excepcional acontecimento. Tudo se processa, aliás, bem rapidamente. Não se conhece até certo

dia um determinado autor, pois que ele nada então publicou de sua obra; não se espera o seu livro, pois o destino de um livro de estréia, como de resto o de qualquer

livro, nunca pode ser esperado ou previsto. De repente chega-nos o volume, e é uma grande obra que amplia o território cultural de uma literatura, que lhe acrescenta

alguma coisa de novo e insubstituível, ao mesmo tempo que um nome de escritor, até ontem ignorado do público, penetra ruidosamente na vida literária para ocupar

desde logo um dos seus primeiros lugares. O livro é Sagarana e o escritor é o sr. J. Guimarães Rosal

O escritor apresenta uma autêntica personalidade de artista e o seu livro tem a verdadeira estrutura da criação ficcionista. Nada existe aqui a expor vacilações,

deficiências, incertezas ou puerilidades de estreante. Nem o autor é um inquieto adolescente, nem a sua obra é uma improvisação ou o resultado de algum entusiasmo

momentâneo. Estamos diante de uma vocação de escritor que se experimentou em meditação e aprendizado técnico, de uma obra intensamente sentida e longamente trabalhada.

Pelos assuntos e pelo material da construção ficcionista, pela abundância documental, pelo estilo de artista, pela riqueza e pela ciência do vocabulá

~ I. Rosa,Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Editora Universal, 1946.

68

h"fRODUÇAO GERAL ~ FORTUNA CRÍTICA

rio, pela capacidade descritiva e pela densidade das situações dramáticas, seria impossível classificar Sagarana como obra de principiante, e do seu autor, com efeito,

ela transmite a impressão de alguém que já se encontra no completo domínio dos recursos literários e com uma requintada experiência pessoal da arte de ficção.

Não quis o sr. Guimarães Rosa classificar Sagarana como um grupo de novelas ou de contos. Antes, um conjunto de histórias - formalmente novelas - com uma tal unidade,

com tal ligação subterrânea e substancial entre elas, que logo compreendemos por que preferiu apresentá-las como um livro apenas dividido em nove capítulos. Cada

um deles constitui sem dúvida uma novela independente, com um enredo particular, mas se articulam em bloco como se simbolizassem o panorama de uma região. E Sagarana

vem a ser precisamente isto: o retrato físico, psicológico e sociológico de uma região do interior de Minas Gerais, através de histórias, personagens, costumes e

paisagens, vistos ou recriados sob a forma da arte da ficção. Aliás, não será fundamental saber-se com rigor o que nestas páginas é realidade objetiva e o que é

realidade imaginada. A parte documental encontra-se nas descrições, no registro dos costumes, na fidelidade à linguagem popular fixada através dos diálogos; a imaginação,

na capacidade poética de animar artisticamente o real, no poder de criar personagens e crises dramáticas no desenvolvimento do enredo, dando uma configuração estética

ao que era antes tosco e bárbaro. As nove histórias de Sagarana são como faces distintas, ajuntadas rigorosamente para a composição de uma fisionomia coletiva, que

é a de uma região de Minas Gerais, mas também representativa, em grande parte de todo o Brasil do interior, tão diferente do litoral e tão desconhecido como se fosse

um país estrangeiro. Sabe-se que o sr. Guimarães Rosa nasceu e viveu durante muitos anos nessa região, inclusive como médico da roça, e pelo seu livro verificamos

com que intensidade de sentimento e imaginação ele se fundiu com o espírito da sua terra, com que sensível poder de comunicação ele trouxe para dentro de si mesmo

o mundo de gentes, de bichos, de natureza física, ao qual se ligou profundamente na juventude. Mas o valor dessa obra provém principalmente da circunstância de não

ter o seu autor ficado prisioneiro do regionalismo, o que o teria conduzido ao convencional regionalismo literário, a estreita literatura das reproduções fotográficas,

ao elementar caipirismo do pitoresco exterior e do simplesmente descritivo. Ele apresenta o mundo regional com um espírito universal de autor que tem a experiência

da cultura altamente requintada e intelectualizada, transfigurando o material da memória com as potências criadoras e artísticas da imaginação, trabalhando com um

ágil, seguro, elegante e nobre instrumento de estilo. Em Sagarana temos assim um regionalismo com o processo da estilização, que se coloca portanto na linha do que,

a meu ver, deveria ser o ideal da literatura brasi

leira na feição regionalista: a temática nacional numa expressão universal, o mundo ainda bárbaro e informe do interior valorizado por uma técnica aristocrática

de representação estética.

Não tendo, por outro lado, qualquer preocupação política ou ideológica, o sr. Guimarães Rosa permaneceu a igual distância do otimismo e do pessimismo, observando

as situações humanas com natural disponibilidade, com uma espécie de virgindade de espírito, que lhe amplia a visão em profundidade. Visão que não está deformada

por nenhum preconceito ou partipris, nem mesmo por qualquer sentimento apaixonado. A sua participação sentimental na arte da criação literária só se opera através

de uma generalizada simpatia, de uma indulgente e às vezes irônica compreensão, formada na base do ceticismo e da experiência humana. E estes movimentos sentimentais

do sr. Guimarães Rosa aproveitam ainda mais aos bichos do que aos homens. São bichos os personagens mais comoventes, mais simpáticos e mais bem tratados de Sagarana.

Há duas novelas especialmente de bichos, "O burrinho pedrês" e "Conversa de bois", mas também em todas as outras, misturados com as pessoas e às vezes influindo

no destino delas, aparecem bois, cavalos, burros, cachorros e aves. E nesse dom de tratar os bichos como personagens, de dar-lhes vitalidade e verossimilhança na

representação literária, está uma das faculdades mais originais e poderosas da arte do sr. Guimarães Rosa. Não vamos dizer que ele transmite humanidade aos bichos,

pois isso seria descaracterizá-los pelo artifício, seria torná-los seres híbridos e absurdos. Os animais dessas admiráveis histórias de Sagarana, os bois como o

burrinho pedrês, agem, pensam e falam, não como os homens na maneira das fábulas e histórias da carochinha, mas como podemos imaginar, com o recurso da intuição,

que eles o fariam se realmente pensassem e agissem racionalmente. Era como se o autor se transportasse para dentro dos bichos, não para lhes transmitir a sua própria

personalidade, mas para interpretar e exprimir a imaginada vida interior deles.

História de um bicho, aliás, é a novela da minha preferência neste livro, "O burrinho pedrês", que me parece uma autêntica obra-prima, não sendo embora a única obra-prima,

no sentido de obra completa e perfeita em si mesma, que se encontra em Sagarana, onde indicaria, com a mesma categoria, peças como "Duelo", "Conversa de bois", e

"A hora e vez de Augusto Matraga". E o que valoriza "O burrinho pedrês", é menos o enredo do que a construção literária, a estrutura da concepção e a amplitude da

realização. Verifica-se nestas páginas, como em tantas outras, que o feitio de autor do sr. Guimarães Rosa é ainda máis o do romancista do que o do contista ou mesmo

do novelista. Nesta novela, com que se abre Sagarana, ele está operando evidentemente com a técnica do romance, ampliando os quadros e inserindo várias pequenas

histórias no desenvolvimento da his-

INl"RODUÇAO GERAL / FORTUNA CRÍTICA

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tória geral. Há aqui páginas de um surpreendente relevo, que se podem destacar para uma leitura independente, como a marcha da boiada, o episódio do touro que mata

inesperadamente o seu dono, a patética narração da tristeza do negrinho e dos bois transportados do seu solo, além da descrição das paisagens, dos elementos da natureza,

plantas e águas que parecem ao alcance dos nossos olhos tal o vigor, o colorido, o intenso realismo com que são apresentados. Com a mão segura e hábil, o sr. Guimarães

Rosa propositadamente retarda o desfecho, opera uma espécie de cruzamento ou desdobramento de linhas, com alguns episódios isolados a levarem o leitor a ângulos

diferentes, e tudo com o fim de colocá-los de repente em face da grande cena final, a do afogamento dos vaqueiros no rio, quando a novela encontra o seu desfecho

"porque a história de um burrinho, como a história de um homem, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida". Em "Conversa de bois" - igualmente perfeito como

concepção ficcionista e como arte literária - cruzam-se os bois e os homens como num contraste que se prolonga até o fim, apresentando o autor alternadamente os

diálogos dos homens e os diálogos dos bois. Revela-se aqui uma espécie de filosofia dos bois, uma síntese do que pensam da vida e dos homens. Eles não se movimentam

nestas páginas como elementos acessórios ou completivos, mas como verdadeiros personagens, aos quais o seu criador amplamente concedeu vibração vital e direção autônoma.

"A hora e vez de Augusto Matraga" destaca-se principalmente pela arte da ficção. Como novela em si mesma, como elaboração e construção novelística, representa sem

dúvida a peça melhor realizada do livro, a que tem uma vida mais completa e independente em si mesma. Dela, sob este aspecto, só se aproxima "Duelo", em que a um

enredo sugestivo e apaixonante se junta a revelação do caráter de uma região, com a indicação de costumes e diálogos realmente definidores. E isto acontece apenas

no juízo dos que têm o gosto da análise e da discriminação, pois será difícil e até arbitrário estabelecer qualquer hierarquia diante da unidade de condições com

que se apresentam as quatro principais histórias de Sagarana, precisamente aquelas que foram acima citadas.

Há outras novelas, porém, que não são da mesma significação, nem estão na mesma altura. Embora menos afirmativas como ficção por uma certa fragilidade na ação novelística

- "Sarapalha", "Minha gente", "São Marcos" e "Corpo fechado" - ficam valorizadas, no entanto, através de algumas páginas descritivas, ou caracterizadoras como fixação

de costumes e episódios isolados, ou, em cada uma delas, através de algum aspecto marcante da vida regional. Em "Sarapalha", por exemplo, é a doença da maleita,

com a espantosa miséria física e psicológica em que ela transforma os seres humanos; em "Corpo fechado" é a crônica dos valentões do interior, a superioridade bárbara

dos que dominam pelo terror, com absoluta

indiferença às autoridades e às leis; em "São Marcos" é o fenômeno primitivo da feitiçaria, com uma descrição da natureza, tão monumental nas proporções e tão orquestral

no jogo dos vocábulos, que logo faz lembrar, involuntariamente, a maneira euclidiana. O capítulo mais frágil do livro é "Minha gente", com um caso de amor colocado

em termos de precário e pouco convincente sentimentalismo. Bastante diferente das outras, com um espírito particular, é a novela "A volta do marido pródigo", construída

num tom mais leve, exprimindo o espírito de malandragem do curioso personagem Lalino Salãthiel, com a oportunidade para o àutor de empregar alguns dos seus dons

de ironia e malícia, que são tipicamente mineiros.

Contos, novelas, histórias, estes capítulos de Sagarana? Antes de tudo, são rapsódias, cantos em grande forma que trazem no seu seio a representação poética do espírito

e da realidade de uma região. Os homens e os seus dramas, os bichos e os seus movimentos, a natureza e as suas cores - é um pequeno mundo que se levanta diante de

nós, em todo o seu esplendor de vida e circulação, depois de recriado pelas forças da memória e da imaginação de um artista não só generosamente dotado pela inspiração

involuntária, mas igualmente consciente do seu papel. Por isso, ao lado das realizações propriamente poéticas de criação, Sagarana apresenta um vasto material documentário,

folclórico e sociológico, já agora imprescindível para o conhecimento, mesmo científico, do interior de Minas Gerais. E isto acontece porque a faculdade de escritor

mais aguda e mais desenvolvida no sr. Guimarães Rosa é a visualidade. Do que viu, ele soube conservar pela memória e conseguiu transfigurar pela imaginação, não

só os aspectos de maior relevo, mas também os detalhes, as nuanças, os segredos, as pequenas coisas, às vezes mais definidoras e caracterizadoras do que as grandes,

aquelas que escapam em geral aos que não têm o dom da visão sensível e penetrante, especialmente destinada a um fim estético. E a arte da ficção se completa em Sagarana

com a arte estilística do escritor. O estilo tenso do sr. Guimarães Rosa, e em certas ocasiões até de sabor arcaico ou pouco brasileiro na sintaxe, tem, em geral,

flexibilidade, elegância e bom gosto, tanto na parte direta do autor quanto na parte indireta dos diálogos de personagens.

Sinto que, depois de me exprimir dessa maneira tão entusiasta e por mim bem pouco utilizada, deveria citar alguns trechos como documentação, mas não desejo, por

outro lado, deixar o leitor sem o gosto de percorrer as páginas de Sagarana, da primeira à última, com uma sensação de surpresa e descobrimento, prazer de leitura

que não se compara com qualquer outro. É possível que mais tarde, com as impressões já revistas e ordenadas, volte a me ocupar desta obra com mais espírito crítico,

isto é: com maiores recursos de análise e interpretação. Agora, a propósito da estréia do sr. Guimarães Rosa, o que desejo principalmente é anunciar ao público a

presença, na literatura brasileira, de um novo grande livro, e saudar, no

72

73

autor de Sagarana, o companheiro que entra na vida literária com o valor de um mestre na arte de ficção.

GUIMARÃES ROSA E A LINGUAGEM LITERÁRIA

Euryalo Cannabrava

t

O nuTOx de Corpo de baile parece sofrer, como James Joyce, a doença do gigantismo verbal. Ele foi buscar o dialeto brabo no interior do sertão mineiro, desarticulou-o

em suas partes componentes, submetendo-o a extensas manipulações lingüísticas. A frase sai pura, solta, como se viesse do fundo de sua infância livre, desembestada

pelos campos gerais.

O ritmo da prosa é curto e sincopado, com paradas bruscas e espraiamentos longos como a água rolando pelo leito dos rios. O estilo é desconvencional por excelência,

não admite modelos, nem imita ninguém, abeberando-se nas fontes puras da inspiração. Freqüentemente, lendo Corpo de baile, tem-se a impressão de que o autor reproduz

lendas do nosso folclore, sem deformá-las em sua essência primitiva, tais como brotaram na mente popular.

Trata-se de autêntica redescoberta do sentido original das palavras, no momento em que elas foram forjadas pelo povo. Não há artifício algum nessa linguagem primeva,

cujas raízes se metem pela terra dura dos campos gerais. Tudo sai como se fosse criado aqui e agora, surpreendido ao vivo, no instante preciso em que as forças irrompem

do inconsciente coletivo, plasmando a expressão.

O dialeto brabo, pouco a pouco, transforma-se em saga nórdica, com tonalidade e amplificações conotativas de canto homérico. O autor associa a universalidade do

regionalismo no plano estético, retirando efeitos rigorosamente inéditos da mistura do estilo poético e da prosa literária. O leitor, muitas vezes, pergunta-se a

si mesmo se o autor está escrevendo prosa ou poesia, de tal maneira se entrelaçam o sentido narrativo e o lírico no desenvolvimento dos temas.

Na verdade, todas essas questões provavelmente jamais perturbaram o espírito de Guimarães Rosa, cuja técnica se concentra em explorar todos os recursos do dialeto

brabo, guindado ao status de linguagem literária. O seu prodigioso tipo visual entrega-se, por outro lado, a miúdas anotações do ambiente e dos personagens que não

se conduzem como bonecos, mas como gente de carne e osso. A identificação entre o autor e Miguilim, o heró da primeira novela, chega até o ponto daquele se confundir

com o seu personagem,falando no tom de quem conta a história em primeira pessoa.

A razão dessa vida em comum entre o herói e o escritor provém de que ambos foram feitos do mesmo barro, experimentam as mesmas vivências e reagem sob os mesmos excitantes.

Nada mais difícil do que estabelecer critérios que permitam distinguir o-autor de sua obra, pois se trata da própria substância de Guimarães Rosa impregnando as

páginas do Corpo de baile. Ele está presente em cada frase, expressão ou palavra, imprimindo o cunho de sua personalidade nas formas, situações ou coisas que figuram

nesse livro abundante de imagens e de vida.

O protocolo de observações do escritor está cheio de nótulas sobre pormenores miúdos da vida e do mundo de seus personagens, breves comentários que põem a descoberto

a engrenagem interna dessas figuras que nada têm de fictícias, por si mesmas. Ele registra com fidelidade "umas moças cheirosas, limpas, os claros risos bonitos",

para, depois, anotar aspectos do ambiente, homens e animais, que se inspiram naquele realismo mágico, principal fonte das observações acumuladas pelo autor.

O realismo mágico, tônica fundamental dessa obra de aspectos multiformes, faz com que o escritor transfigure os temas da vida cotidiana em símbolos que participam

da fantasia e do mito. A combinação da realidade crua com a rapsódia sertaneja empresta a Corpo de baile uma força singular dificilmente analisável. Mas o gosto

pelo descritivo refreia o ímpeto da imaginação alcandorada, obrigando-a a participar dos pequenos acontecimentos e a disciplinar-se através de incursões constantes

no domínio da filosofia sensorial.

Reparem como o escritor cJescreve a ave esbelta: "O tesoureiro era um pássaro imponente de bonito, pedrês cor-de-cinza, bem as duas penas compridas da cauda, pássaro

com mais rompante do que os outros." E mais adiante: "O tatu correndo sopressado dos cachorros, fazia aquele barulhinho com o casculho dele, as chapas arrepiadas,

pobrezinho - quase um assovio."

Observem esse poema em miniaturas: "Pobre dos passarinhos do campo, desassisados. O gaturamo, tão podido miúdo, azulzinho no sol, tirintintim, com brilhamentos,

mel de melhor-maquinazinha de ser de bemcantar..." Vejam essa transfiguração do negro: "Mãitina era preta de um preto estúrdio, encalcado, transmanchada de mais

grosso preto, um preto de boi."

A força maior do escritor, porém, está nos diálogos, não se notando mesmo a transição do narrativo para a fala entre as pessoas: "Ara, qual, qual, seo Nhô Berno

Cássio, eu estou pobre como agüinha em fundo de canoa..." A solércia de Guimarães Rosa, caboclo ladino, faz com que ele evite os tropeços e percalços de nossa literatura

sertanista. Não há, por isso mesmo, diferença alguma entre a linguagem do autor e a fala de seus per

sonagens.

INTRODUÇÃO GERAL ~ FORTUNA CRÍTICA

Daí a impressão constante de que são esses mesmos os narradores do que acontece, sem que se sinta a presença do urdidor manipulando a trama. Os nossos sertanistas

em geral, como Afonso Arinos, e o próprio Monteiro Lobato, estão impregnados da literatura dos clássicos portugueses: o resultado é que eles escrevem certo, mas

os seus personagens falam errado. O preconceito de que o homem do interior fala errado retirou dos diálogos, que figuram nesses livros admiráveis sob outros aspectos,

aquele feitio corrente de coisa vivida.

Guimarães Rosa, ladiníssimo, evitou essa conjuntura, exprimindo-se na língua do caboclo e explorando todos os matizes e cambiantes do dialeto brabo. Para o escritor,

o sertanejo usa as palavras de acordo com as suas reações afetivas (não estarão eles certos e nós errados?), revelando, freqüentemente, senso do pitoresco e gosto

apurado pelo malabarismo do jogo verbal. E, em virtude de tudo isso, no Corpo de baile há movimento e a vida pulula por todos os cantos.

O segredo do poder desse escritor talvez resida, como ficou sugerido, anteriormente, na sutil combinação do realismo mágico e da fisiologia sensorial como ingredientes

básicos de sua obra literária. As figuras de Miguilim, do Dito, do Pai, do tio Terêz, de Mãitina, do Deográcias povoam a narrativa com a sua forte presença, as suas

idiossincrasias e o seu feitio particular. Mas há qualquer coisa de mítico, a atmosfera carregada de paixões que cerca os personagens, emprestando-lhes o tom de

símbolos lendários, de criaturas saídas diretamente do nosso folclore.

A invenção do autor sofre constantemente a repressão de seus sentidos alertados pelos estímulos do mundo exterior. A sua fantasia poética, por outro lado, associa-se

ao dom da prosa escorreita, decalcada no real. Existe um teste infalível para se distinguir a prosa da poesia em relação a qualquer texto literário. Basta que os

leitores formulem, para si mesmos, a seguinte pergunta: disse o autor menos do que queria dizer ou mais do que queria dizer?

No caso do escritor exprimir menos do que desejaria, conclui-se, por certo, que o que ele escreve é prosa chilra, sem conotações irresponsáveis por acréscimo. Na

hipótese, porém, de que vai além do mentalmente prefigurado, não resta dúvida de que se deixou dominar pelo sortilégio lírico. Tenho a impressão de que Guimarães

Rosa, no Corpo de baile, diz freqüentemente muito mais do que pretendia dizer.

II

Em Corpo de baile observa-se nitidamente a identificação entre a técnica literária e a técnica de manipulação lingüística. Construir literariamente, para Guimarães

Rosa, significa submeter as palavras e sentenças do dia

Teto brabo a uma espécie de dissecação anatômica das suas formas e de análise fisiológica das suas funções. O escritor cria artisticamente mediante o manuseio de

formas e funções idiomáticas. A narrativa do reconto decorre, por assim dizer, diretamente de experiências com o material lingüístico. É por isso que Corpo de baile

revela, antes de tudo, a atitude do experimentador perante o instrumento de comunicação. As expressões são esquadrinhadas por esse incomparável analista que transforma

a nossa língua em laboratório, utilizando-se das palavras e locuções como se fossem provetas ou tubos de ensaio.

Guimarães Rosa redige os seus recontos como o químico executa reações, o anatomista disseca o órgão e o fisiologista expõe o mecanismo da circulação. Existe entre

ele e os nossos escritores diferença fundamental sob o ponto de vista do artesanato literário. Enquanto os outros escrevem para narrar alguma coisa, Guimarães Rosa

narra alguma coisa como pretexto exclusivo para aplicar a sua técnica de manuseio lingüístico.

Os novelistas brasileiros tecem a trama de sua intriga no plano estético, servindo-se da linguagem como veículo descritivo, como instrumento para exprimir o que

se passa em determinado ambiente com certas figuras e personagens. O escritor mineiro, pelo contrário, põe meio, pessoas e objetos em função da linguagem. É impossível

dissociar nesses recontos o artesanato literário dos seus recursos de expressão.

Observa-se, assim, em "A estória de Lélio e Lina" e em "O recado do morro", como nas outras novelas, a impossibilidade de separar a narrativa (fundo) das palavras

e sentenças que a traduzem (forma). Essa idissociabilidade do fundo e da forma constitui, por assim dizer, a característica marcante da obra de Guimarães Rosa. Em

"A estória de Lélio e Lina", o escritor anota que o Seo Senclér "Gostava do em-ser do vaqueirinho, do rumo de suas respostas". É evidente, para ele, que a fala de

Lélio reflete a sua alma como espelho fiel.

À adequação entre fundo e forma corresponde a analogia íntima entre a linguagem e a psicologia dos personagens. O em-ser do autor, por sua vez, transfere-se de armas

e bagagens para a própria estrutura do idioma de que se utiliza, coincidindo plenamente com o vinco e o feitio particular do dialeto brabo. É inegável que Guimarães

Rosa, usando a fala dos sertanejos no curso de toda a narrativa, instala-se no centro dos recontos e passa a figurar como seu principal personagem.

O resultado dessa transferência é a impressão de autenticidade que permeia a obra, valorizando-a em seus mínimos pormenores, e impregnandoa daquela seiva fecunda

que faz crescer a árvore e brotar a relva nas campinas. "A estória de Lélio e Lina" é a descoberta da mulher que, exaltando a sua virilidade, faz o homem revelar-se

a si mesmo. O vaqueiro oscila entre

o amor da mulher-ideal encarnada na mocinha de Paracatu, cujos "olhos rebrilhavam, reproduzindo folha de faca nova", e a fêmea libidinosa Jini, "tão desconhecida,

inventada, estranha cor de violeta, os olhos aviando verdes, o corpo enxuto, o avanço dos seios, os finos tornozelos, as pernas de bom cavalo".

Mas, entre as duas se interpõe o vulto de Rosalina, que representa o agasalho, a ternura e a proteção maternal. Surpreendida de costas, quando Lélio passava perto

de sua casa, pareceu-lhe uma mocinha. Verificou, depois, que era "velhinha", "os cabelos alvos". Mas era "velhinha como uma flor", contravinda em gentil e singular

- com um calor de dentro, a voz que pegava, o aceso rideiro dos olhos, o apanho do corpo, a vontade medida de movimentos - que a gente a queria imaginar quando moça,

seu vivido.

O encanto de dona Rosalina emanava da voz macia, dos olhos mansos, de suas "estórias que eram tão verdadeiras que fugiam do retrato do viver comum". A sua fuga com

Lélio no fim do reconto não lembra a aventura de dois namorados, mas sim o reencontro sentimental de mãe e filho, o apaziguamento de paixões bravias no remanso de

um lar que o vaqueiro desejava com todas as forças, sem saber como construí-lo.

O que Lélio buscava na mocinha de Paracatu jamais poderia encontrar, a não ser transfigurado em ternura humana, repouso e aconchego maternal. Mas a estória de Lélio

e Lina encerra uma lição duradoura: a amizade amorosa entre o vaqueiro e a velhinha permanece incontaminada, como sentimento puro em gente humilde. A viagem de ambos

para os campos gerais parece libertá-los da supiscácia e maldade dos homens, incapazes de compreender a delicadeza da afeição que os ligava.

O caso de vida e morte do enxadeiro Pedro Orósio, em "O recado do morro", transcende o plano da narrativa comum, e vai num crescendo até alcançar o máximo de intensidade

e dramatização no episódio final. Nada há de comum entre Lélio, o vaqueirinho simples que se integrava de corpo e alma na vida chã do meio rural, com aspirações

limitadas como as de seus companheiros, e Pedrão Chãbergo, temperamento ardente e aventureiro, sedutor profissional de mocinhas inexperientes. Servindo de guiador,

PéBoi, uma espécie de Hércules bronzeado pelo sol do sertão bruto, a pé e descalço, mantinha-se sempre distante de seus companheiros. Pedro Orósio amava a terra,

"longa e jugosa, de montes pós montes: morros e corovocas". Ele queria "pelo menos pisar o chapadão chato, de vista descoberta, e cheirar outra vez o resseco ar

forte daqueles campos, que a alma da gente não esquece nunca direito e o coração de geralista está sempre pedindo baixinho".

A galeria de tipos em "O recado do morro" lembra, pela força do grotesco e do demasiadamente humano, figuras arrancadas dos quadros de

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Goya. Vejam o Gorgulho, por exemplo, "um velhote grimo, esquisito, que morava dentro de uma lapa". Vivia sob o sortilégio do Morro da Garça, ouvindo seus regougos

soturnos na solidão dos gerais.

E mais adiante surge o Catraz, "saco bem mal-cheio às costas e roupinha brim amarelo de paletó e calça, um camarada muito comprido, magrelo, com cara de sandeu".

O apelido dele era Qualha-coco, "pobre triste diabo risónhõ". E mais além, o Guegue, o bobo da fazenda, "retaco, grosso, mais para idoso, e papudo - um papo em três

bolas meando emendas, um tanto de lado".

E logo em seguida o Nomidomem, tonitruando vozes desarrazoadas, mas de forte sabor bíblico. Gorgulho, Catraz e Nomidomem transmitiam o recado do morro em suas parlandas

desconexas e numerosas. Enquanto isso, o guiador de seo Alguiste, naturalista estrangeiro, palmilhando o sertão duro, curioso de tudo e de todos, "fosse uma a pedrinha,

até uma moita de carrapicho e o ninhol de vespos", entrega-se pouco a pouco ao monólogo interior, afastado e diferente dos outros.

Convidado para a festa de confraternização, promovida pelos seus rivais frustrados, Pedro Orósio, catrumano dos Gerais, dispõe-se a reconciliar-se com todos. De

repente, porém, começa a cantar a estória do Rei, vítima dos sete traidores. A palavra "traição" destaca-se como um aviso subitâneo, recado do Morro da Garça em

plena festa, no rebuliço das danças e bebidas. E Pé-Boi, o Hércules bronzeado pelo sol sertanejo, arremete contra os sete traidores, como o touro selvagem no ímpeto

da investida. Marretou sem dó nem piedade os amigos falsos, desbaratando-os como ovelhas tresmalhadas pelo acuo do lobo perseguidor. Abriu, depois, as pernas de

gigante, fugindo sob a calada da noite na direção dos campos gerais.

Eis a estória de Lélio, Lina e Pedro Orósio, escrita naquele estilo ácido do prosador mineiro, cáustico até a ardência, bebida forte demais para os tímidos e os

excessivamente delicados. O escritor atinge nesses dois recontos talvez o ponto mais alto de sua criação literária: a variedade dos tipos, das situações, dos conflitos

psicológicos reflete-se no ritmo ondulante da prosa rica de seiva e viço, cheia de vigor e frescura, colhida ao vivo nas suas fontes mais puras.

A marca autêntica da linguagem de Guimarães Rosa, porém, decorre mais da expressividade e sentido estético do que da certeza de suas origens autóctones. É por isso

mesmo que parece ociosa a preocupação de distinguir a contribuição pessoal do autor das suas colheitas como garimpeiro da linguagem brasileira. O melhor é degustar,

sem maiores preocupações, esse prosa robusta pelo que ela traz em si mesma, na força de seu ritmo e na sugestão numerosa do seu poder comunicativo.

O HOMEM DOS AVESSOS

Antonio Candido

Queria entender do medo e da coragem,

e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos,

dar corpo ao suceder.

RIOBALDO

NA ExTRa,oRDIrrnutA obra-prima Grande sertão: veredas há de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-la

a seu gosto, conforme o seu ofício; mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do autor, a absoluta confiança na liberdade de inventar.

Numa literatura de imaginação vasqueira, onde a maioria costeia o documento bruto, é deslumbrante essa navegação no mar alto, esse jorro de imaginação criadora na

linguagem, na composição, no enredo, na psicologia. Pode-se adotar como roteiro crítico o ponto de vista de Cavalcanti Proença, no admirável estudo sobre o estilo

de Guimarães Rosa que publicou na Revista do Livro, onde menciona a "ampla utilização de virtualidades da nossa língua".1 Para o artista, o mundo e o homem são abismos

de virtualidades, e ele será tanto mais original quanto mais fundo baixar na pesquisa, trazendo como resultado um mundo e um homem diferentes, compostos de elementos

que deformou a partir dos modelos reais, consciente ou inconscientemente propostos. Se o puder fazer, estará criando o seu mundo, o seu homem, mais elucidativos

que os da observáção comum, porque feitos com as sementes que permitem chegar a uma realidade em potência, mais ampla e mais significativa. Cavalcanti Proença mostrou

como Guimarães Rosa penetra no miolo do idioma, alcançando uma espécie de posição-chave, a partir da qual pôde refazer a seu modo Ocaminho da expressão, inventando

uma linguagem capaz de conduzir a alta tensão emocional da obra.

Registrando o aparecimento desta numa resenha breve, sugeri, sem especificar, esse caráter de invenção baseada num ponto de partida em que tudo estivesse no primórdio

absoluto, na esfera do puro potencial. Parecia que, de fato, o autor quis e conseguiu elaborar um universo autônomo, composto de realidades expressionais e humanas

que se articulam em relações originais e harmoniosas, superando por milagre o poderoso lastro de realidade tenazmente observada, que é a sua plataforma. Na resenha,

utili

M. Cavalcanti Proença, "Alguns aspectos formais de Grande sertão: veredas". Revista do Livro, n~ S, março de 1957.

INTRODUÇAO GERAL / FORTUNA CRITICA

zei o exemplo da música e lembrei a posição de Bela Bartók, forjando um estilo erudito, refinadíssimo, a partir do material folclórico, recolhido em abundância e,

depois, elaborado de maneira a dar impressão que o compositor se havia posto no nascedouro da inspiração do povo, para abrir um caminho que permite chegar à expressão

universal.

A experiência documentária de Guimarães Rosa, a observação da vida sertaneja, a paixão pela coisa e pelo nome da coisa, a capacidade de entrar na psicologia do rústico

- tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro à matriz regional para fazê-lo exprimir os grandes lugares-comuns, sem os quais

a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte - para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que na verdade o sertão

é o Mundo.

Há em Grande sertão: veredas, como n"Os sertões, três elementos estruturais que apóiam a composição: a terra, o homem, a luta. Uma obsessiva presença física no meio;

uma sociedade cuja pauta e destino dependem dele; como resultado, o conflito entre os homens. Mas a analogia pára aí; não só porque a atitude euclidiana é constatar

para explicar, e a de Guimarães Rosa inventar para sugerir, como porque a marcha de Euclides é lógica e sucessiva, enquanto a dele é uma trança constante dos três

elementos, refugindo a qualquer naturalismo e levando, não à solução, mas à suspensão que marca a verdadeira obra de arte, e permite a sua ressonãoncia na imaginação

e na sensibilidade. Em todo o caso, aqueles elementos são fundamentais na sua trama, embora de modo diverso; convém, pois, abordá-los (englobando o terceiro dos

dois anteriores), justamente para ressaltar a diferença e mostrar as leis próprias do universo de Guimarães Rosa, cuja compreensão depende de aceitarmos certos ângulos

que escapam aos hábitos realistas, dominantes em nossa ficção.

A terra

O meio físico tem para ele uma realidade envolvente e bizarra, servindo de quadro à concepção do mundo e de suporte ao universo inventado. Nele, a paisagem, rude

e bela, é de um encanto extraordinário.

"Assim pois foi, como conforme, que avançamos rompidas marchas, duramente no varo das chapadas, calcando o sapé brabão ou areias de cor em cimento formadas, e cruzando

somente com gado transeunte ou com algum boi sozinho caminhados. E como cada vereda, quando beirávamos por seu resfriado, acenava para a gente um fino sossego sem

notícia - todo buritizal e florestal: ramagem e amar em água."

Rios, ribeiros, morros, caminhos, palmeiras e flores; barro, areia na chuva ou no vento, de noite ou de dia, ao calor e ao frio, silenciosos e ruidosos - pois é

a toda a sua vida que assistimos. Perto do Rio das Velhas decorrem

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mapas registram, deve haver uma dura caatinga. No livro, porém, o que interessa é o seu mistério; ele varia conforme circunstâncias que nada têm a ver com a geografia

e que se explicam por outros motivos, a exemplo do que vem expresso na frase: "Essa vez não podia ser" (difícil). A travessia se deu porque o chefe mudara, conforme

veremos. A variação da paisagem, inóspita e repelente num caso, sofrível no outro, foi devida ao princípio de adesão do mundo físico ao estado moral do homem, que

é uma das partes da visão elaborada neste livro: "( ...) sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte que o poder do lugar." "Sertão não é malino nem

caridoso, mano oh mano!: -... ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo."

O homem

A outra parte é simetricamente inversa, porque os homens, por sua vez, são produzidos pelo meio físico. O sertão os encaminha, e desencaminha, propiciando um comportamento

adequado à sua rudeza. "Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde

criminoso vive o seu cristo-Jesus, arredado do arrocho de autoridade."

Essas condições fazem da vida uma cartada permanente ("Viver é muito perigoso...") e obrigam as pessoas a criar uma lei que colide com a da cidade e exprime essa

existência em fio-de-navalha. Zé Bebelo, o pitoresco José Rebelo Adro Antunes (que aliás se inspirava no modo-de-ser do grande Joãozinho Bem-Bem, "de redondeante

fama"), deseja civilizá-lo e promove uma espécie de cruzada, equipando cerca de mil homens com beneplácito e apoio do Governo, "dizendo que, depois, estável que

abolisse o jaguncismo, e deputado fosse, então reluzia perfeito o Norte botando pontes, baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando

mil escolas"; e bradava: "Sei seja de se anuir que sempre haja vergonheira de jagunços, a sobre-corja? Deixa, que, daqui a uns meses, neste nosso Norte não se vai

ver mais um qualquer chefe encomendar para as eleições as turmas de sacripantas, desentrando da justiça, só para tudo destruírem, do civilizado e legal!"

Derrotado pelos jagunços, julgado numa cena onde o livro alcança o nível da mais alta literatura, a principal acusação que recebe é a de querer mudar a lei que rege

aqueles homens: "O senhor veio querendo desnortear, desencaminhar os sertanejos de seu costume velho de lei (...) O senhor não é do sertão. Não é da terra..."

Na pena de um estilista sutil como Guimarães Rosa, e considerando os seus processos de expressão, pode-se imaginar que o "desnortear" mencionado signifique também

"das-Nortear", ou seja, tirar a qualidade própria

do Norte, que leva os seus habitantes à necessidade de fazer a lei, recorrendo necessariamente à guerra dos bandos. De tal modo que o próprio Zé Bebelo ("cidadão

e candidato") acaba por tornar-se jagunço, procurando, como os demais, afeiçoar o Mundo à pauta dos fortes.

"Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo."

Por isso o indivíduo avulta e determina; manda ou é mandado, mata ou é morto. O sertão transforma em jagunços os homens livres, que repudiam a canga e se redimem

porque pagam com a vida, jogada a cada instante. Raros são apenas bandidos, e cada um chega pelos caminhos mais diversos.

"Montante, o mais supro, mais sério - foi Medeiro Vaz. Que um homem antigo... seu Joãozinho Bem-Bem, o mais bravo de todos, ninguém nunca pôde decifrar como ele

por dentro consistia. Joca Ramiro - grande homem príncipe! - era político. Zé Bebelo quis ser político, mas teve e não teve sorte: raposa que demorou. Só Candelário

se endiabrou, por pensar que estava com doença má. Titão Passos era o pelo preço de amigos: só por via deles, de suas mesmas amizades, foi que tão alto se ajagunçou.

Antônio Dó - severo bandido. Mas por metade; grande maior metade que seja. Andalécio, no fundo, um bom homem-de-bem, estouvado raivoso em sua toda justiça. Ricardão,

mesmo, queria ser rico em paz: para isso guerreava. Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim."

Nesta classificação perpassa a gama dos motivos que formam o valentão sertanejo. Caso mais puro, no sentido em que estamos falando, foi o de Medeiro Vaz, "o rei

dos Gerais": concluindo que no sertão a justiça depende de cada um, pôs fogo à fazenda dos avós e saiu a chefiar bandos. Marcelino Pampa, este "era ouro", e "não

se vê outro assim, com tão legítimo valor, capaz de ser e valer, sem querer parecer (...) de certo dava para grande homem-de-bem, caso se tivesse nascido em grande

cidade."

Assim, o sertão faz o homem.

Mas o jagunço de Guimarães Rosa não é salteador; é um tipo híbrido entre capanga e homem-de-gueixa. O verbo que os personagens empregam para descrever a sua atividade

é "guerrear", qualificando-se a si mesmos de "guerreiros" e opondo-se, na força do arrojo, às artes, sedativas da paz, como vêm encarnadas, por exemplo, no curioso

personagem do fazendeiro Seô Habão, contra cuja esperteza e diligência amolece a inteireza do jagunço. ("O que me dava a qual inquietação, que era de ver: conheci

que fazendeiro-mor é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório."). No código deste, roubar é crime, mas cabe a coleta

de tributos - extorsões em dinheiro e requisições de gado, para manter o bando.

Se houve no Norte de Minas bandos permanentes tão vultosos quanto os que aqui aparecem, a sua ética e a sua organização não teriam talvez o

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caráter elaborado que o romancista lhes dá. De fato, percebemos que assim como acontece em relação ao meio, há um homem fantástico a recobrir ou entremear o sertanejo

real; há duas humanidades que se comunicam livremente, pois os jagunços são e não são reais. Sobre o fato concreto e verificável da jagunçagem, elabora-se um romance

de cavalaria, e a unidade profunda do livro se realiza quando a ação lendária se articula com o espaço mágico.

Nos dias em que foi lançado Grande sertão: veredas, José Geraldo Vieira, com a habitual acuidade, me chamou a atenção para essa genealogia medieval; de fato ela

ajuda a esclarecer a lógica do livro e leva a investigar os elementos utilizados para transcender a realidade do banditismo político, que aparece então como avatar

sertanejo da cavalaria. 2

Há mais de uma afinidade entre as duas esferas, pois também o paladino foi a única possibilidade de "consertar" um mundo sem lei. Daí possuírem ambos uma ética peculiar,

corporativa, que obriga em relação ao grupo, mas liberta em relação à sociedade geral. Os jagunços deste livro se regem por um código bastante estrito, um verdadeiro

bushidô, que regula a admissão e a saída, os casos de punição, os limites da violência, as relações com a população, a hierarquia, a seleção do chefe. E da jagunçagem

remontam à lenda.

Isso posto, explicam-se as batalhas e os duelos, os ritos e práticas, a dama inspiradora, Otacília, no seu retiro, e até o travestimento de Maria Deodorina de Fé

Bettancourt Marins no guerreiro Reinaldo (nome cavaleiresco entre todos), filha que era de um paladino sem filhos, como a do romance incluído por Garrett no Romanceiro:

Dai-me armas e cavalo E eu serei filho varão

Do mesmo modo por que, no Orlando furioso, a guerreira Bradamante pena de ciúme por Rogério e abate o feroz Rodomonte, Deodorina (que para Riobaldo tem um nome ambíguo,

Diadorim) sofre com o bem-querer do narrador por Otacília e vence o traidor Hermógenes. Mas, semelhante nisso à Clorinda, da Jerusalém libertada, morre em combate

e a sua identidade é descoberta.

O comportamento dos jagunços não segue o padrão ideal dos poemas e romances de cavalaria, mas obedece à sua norma fundamental, a lealdade; e não há dúvida que também

para eles a carreira das armas tem significado algo transcendente, de obediência a uma espécie de dever. No melhor dos casos, o senso de serviço, que é o próprio

fundamento da cavalaria.

z Cavalcanti Proença estudou este aspecto com minúcia e brilho no citado Trilhas do Grande sertão, cap. II: "Dom Riobaldo do Urucuia, cavaleiro dos campos gerais".

Em compensação, a conduta real os aproxima bastante do cavaleiro como realmente existiu, e que foi, afinal de contas, um jagunço ao seu modo, desempenhando função

parecida numa sociedade sem poder central forte, baseada, como a do sertão, na competição dos grupos rurais. Os castelões praticavam normalmente a extorsão e o saque,

tendo também como critério não a qualidade do ato, mas a distinção entre amigo e inimigo. Cavaleiros salteadores não faltaram, chegando em certos casos, como o dos

Raubritter alemães, a constituir problema social dos mais graves. Nem é de espantar que um velho jagunço aposentado, no livro, lembre com saudosa volúpia a esfola

dos soldados presos, com faca cega, depois de castrados. Uma das "flores da cavalaria", Ricardo Coração de Leão mandou certa vez a Felipe Augusto, com quem estava

em luta, quinze cavaleiros franceses prisioneiros, amarrados em fila, de olhos vasados, e o guia apenas caolho. O rei de França respondeu mandando quatorze cavaleiros

ingleses nas mesmas condições, mas conduzidos por uma mulher- o que foi reputado "boa traça", golpe de finura e superioridade.

Sinal interessante de contaminação dos padrões medievais é a carreira do narrador Riobaldo, de nascimento ilegítimo como tantos grandes paladinos, a começar por

Roldão e Tristão. A princípio é uma espécie de escudeiro, adido a Hermógenes, a quem serve no combate; em seguida, após as provas de fogo, é armado cavaleiro, no

gesto simbólico em que Joca Ramiro lhe dá o rifle; mais tarde alcança a chefia, após um ritual de iniciação e em conseqüência do sacrifício de outros chefes, como

se verá daqui a pouco. Aliás, com este último traço nos encontramos em presença não apenas de elementos medievais, mas de certas constantes mais profundas, que estão

por baixo das lendas e práticas da cavalaria e vão tocar no lençol do mito e do rito.

Embora apontado como sucessor pelo moribundo Medeiro Vaz, Rio~ baldo não aceita; mas vai, aos poucos, amadurecendo para o comando, à medida que cultiva o alvo supremo

de Diadorim (matar Hermógenes para vingar o o assassínio de Joca Ramiro) e adquire a força íntima que permite as grandes decisões. Neste ponto, sente, como todo

chefe legítimo, que tais decisões não cabem nem estão ao alcance dos que não possuem as mesmas virtudes de mando. O modo pelo qual adquire, todavia, certeza da própria

capacidade vem simbolizado no pacto com o diabo. Conforme a ordem de idéias que estamos discutindo, este ato (provido de outros sentidos, como veremos) parece corresponder

a um rito iniciatório equivalente ao de certos romances de cavalaria, e até certo ponto da própria regra da cavalaria militante.

Como a prece, a vigília d"armas, as provações, o pacto significa, neste livro, caminho para adquirir poderes interiores necessários à realização da tarefa. No entanto,

à primeira vista seria a negação da cavalaria, que era

voltada para valores cristãos, para a apropriação carismática de virtudes emanadas da própria divindade, como é notório, por exemplo, no ciclo da Távola Redonda.

Consideremos, todavia, que estamos no sertão, fantástico e real, onde a brutalidade impõe técnicas brutais de viver, onde os fenômenos de possessão religiosa, gerando

beatos e fanáticos, diferem pouco, na sua natureza e conseqüência, dos que poderíamos atribuir à possessão demoníaca.

Para vencer Hermógenes, que encarna o aspecto tenebroso da cavalaria sertaneja - cavaleiro felão, traidor do preito e da devoção tributadas ao suzerano -, é necessário

ao paladino penetrar e dominar o reino das forças turvas. O diabo surge então, na consciência de Riobaldo, como dispensados de poderes que se devem obter; e como

encarnação das forças terríveis que cultiva e represa na alma, a fim de couraçá-la na dureza que permitirá realizar a tarefa em que malograram os outros chefes.

Aceito este modo de ver, a cena do pacto, na encruzilhada das VeredasMortas, representa um tipo especial de provação iniciatória, um ritual de sentido mágico-religioso,

parecido com a prova da Capela Perigosa, nas lendas do Graal? Como se trata para Riobaldo, nessa iniciação às avessas, de assimilar as potências demoníacas que abrem

caminho a todas as ousadias, a situação é necessariamente marcada por uma certa atmosfera de opressivo terror, parte, aliás, de muitos ritos de passagem. E o ambiente

noturno das Veredas-Mortas equivale ao da Capela Perigosa, como vem, por exemplo, sintetizado na parte final de The Waste Land, de Eliot:

In this decayed hole among the mountains

In the faint moonlight, the grass in singing Oves the tumbled graves, about the chapei

There is the empty chapei, only the wind"s honre. It has no windows, and the door swings, Dry bones can harm no one. Only a cock stood on the rooftree Co co rico

co co rico

In a flash of lightning.

Cumprido o rito, o narrador aparece marcado pelo sinal básico da teoria iniciatória: a mudança do ser. O iniciado, pela virtude das provas a que se submeteu, renasce

praticamente, havendo um grande número de sociedades que fazem a iniciação consistir na simulação da morte seguida de ressurreição. Em Grande sertão: veredas, Riobaldo

sai transformado - en

s Sobre a Capela Perigosa e o seu provável caráter iniciatório, ver: Jessie L. Weston, From Ritual to Romance, Doubleday, New York, 1957, cap. XIII: " The Perilous

Chapei".

durecido, arbitrário, roçando a crueldade, na prepotência das funções de mando que logo assume, em contraste com a situação anterior, em que as tinha rejeitado.

Mesmo o seu sentimento por Diadorim, que apesar da revelação na Guararavacã do Guaicuí, tinha permanecido nos limites da dúvida, ou pelo menos da severa repressão,

desponta com certa agressividade, como se os impulsos estranhos (dada a ignorância do verdadeiro sexo do amigo) tendessem agora a manifestar-se, com a sanção do

pacto. É Diadorim, aliás, quem nota imediatamente a mudança, chegando a perguntar "se alguém te botou malefício".

Esta transformação, este ingresso numa certa ordem de ferocidade adequada à vitória, que pretende e obtém sobre o mal (Hermógenes), através do mal (o pacto), é completada

por outros sinais de caráter mágico, como a adoção do nome de guerra que Zé Bebelo lhe pusera vagamente, e quase por pilhéria, mas que agora é assumido no significado

pleno: Urutu Branco. Como sabemos, os ritos de passagem comportam muitas vezes a atribuição ou acréscimo de um nome, ou revelação do nome verdadeiro, conservado

secreto. Em nossos costumes, é o que se pode verificar no batismo e na crisma. Por último, num traço típico dos livros de cavalaria, ele adquire o animal de exceção,

o Cavalo Siruiz, fogoso, belo, inteligente, infatigável, lembrando a família mágica dos corcéis encantados, que com as armas encantadas completam o equipamento do

cavaleiro e permitem operar prodígios.

Além destes, há outros aspectos de caráter mágico ou ritual que ponteiam a sua carreira. Num plano profundo, a sucessão de chefes que morrem ou se afastam, mas em

todo caso cedem lugar, poderia ser comparada a uma série de imolações, mediante as quais a energia vai se conservando no grupo até concentrar-se no Riobaldo, herdeiro

que encarna significativamente um pouco de cada predecessor.

No bando que ocupava o vértice da narrativa, a sucessão de Joca Ramiro cabe a Medeiro Vaz; morto este, passa brevemente a Marcelino Pampa, e logo a Zé Bebelo, do

qual é arrebatado pelo narrador. Ao ritual da Capela Perigosa, junta-se esse vislumbre de simbolismo sacrificial para compor o plano profundo do livro, acentuando

o revestimento mágico do jagunço paladino. Com efeito, a maneira da imolação do rei para garantir a força vital, e em última análise, a fertilidade da terra - que

constitui a mola duma quantidade de práticas e mitos, de ficções e rituais, e aparece estudada exaustivamente na grande obra de Frazer;4 à maneira daquela imolação,

pois, a sucessão dos chefes garante a perpetuação da energia guerreira, que

" Sobre o sacrificio dos reis, seu significado e sua função, ver: Sir James George Franzes,

The Golden Bough, A Study in Magic and Religion, Third Edition, 13 v., Maemillan, New York, 1951, 3a parte (v. III), "The Dying God".

JOAO GUIMARAES ROSA / Fu:ÇAO COMPLETA

INTROUUÇAO GERAL / FORTUNA CRITICA

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se encarna finalmente em Riobaldo, cognominado primeiro Tatarana, depois Urutu Branco. Produto do sertão, a força do jagunço paladino depende da força da terra;

por sua vez ele é a lei desta terra, e para o ser com eficácia necessita viver uma seqüência de atos e padecimentos cuja raiz, de tão funda, escapa à nossa atenção,

mergulhando nas relações primordiais do homem com a terra, que deve ser propiciada para viver e dar vida, como nos ritos agrários.

Estas considerações sobre o poder recíproco da terra e do homem nos levam à idéia de que há em Grande sertão: veredas uma espécie de grande princípio geral de reversibilidade,

dando-lhe um caráter fluido e uma misteriosa eficácia. A ela se prendem as diversas ambigüidades que revistamos, e as que revistaremos daqui por diante. Ambigüidade

da geografia, que desliza para o espaço lendário; ambigüidade dos tipos sociais, que participam da cavalaria e do banditismo; ambigüidade afetiva, que faz o narrador

oscilar, não apenas entre o amor sagrado de Otacília e o amor profano da encantadora "militriz" Nhorinhá, mas entre a face permitida e a face interdita do amor,

simbolizada na suprema ambigüidade da mulher-homem que é Diadorim; ambigüidade metafísica, que balança Riobaldo entre Deus e o Diabo, entre a realidade e a dúvida

do pacto, dando-lhe o caráter de iniciado no mal para chegar ao bem. Estes diversos planos da ambigüidade compõem um deslizamento entre os pólos, uma fusão de contrários,

uma dialética extremamente viva - que nos suspende entre o ser e o não ser para sugerir formas mais ricas de integração do ser. E todos se exprimem na ambigüidade

inicial e final do estilo, a grande matriz, que é popular e erudito, arcaico e moderno, claro e obscuro, artificial e espontâneo.

Assim, vemos misturarem-se em todos os níveis o real e o irreal, o aparente e o oculto, o dado e o suposto. A soberania do romancista, colocado na sua posição-chave,

a partir da qual são possíveis todos os desenvolvimentos virtuais, nos faz passar livremente duma esfera à outra. A coerência do livro vem da reunião de ambas, fundindo

o homem e a terra e manifestando o caráter uno, total, do Sertão-enquanto-Mundo.

O problema

É claro que essas interpretações são arbitrárias; além disso iluminam apenas um dos muitos lados da obra, visando a contribuir para que o leitor esqueça ao menos

provisoriamente os pendores naturalistas a fim de penetrar nessa atmosfera reversível, onde se cortam o mágico e o lógico, o lendário e o real. Só assim poderá sondar

o seu fundo e entrever o intuito fundamental, isto é, o angustiado debate sobre a conduta e os valores que a escoltam.

Dir-se-á que todo livro de vulto acaba neste problema; mas em literatura o que interessa é a maneira escolhida para abordá-lo. Aqui, além do que ficou indicado,

o tonus é devido à crispação incessante do narrador em face dos atos e sentimentos vividos, traduzidos pela recorrência dos torneios de expressão, elaborados e reelaborados

a cada página em torno das obsessões fundamentais. Deve-se ainda ao símbolo escolhido para dinamizar a recorrência (o pacto com o demônio), e que representa as caudalosas

águas turvas da personalidade. Esse é o princípio, a idéia que enforma Grande sertão: veredas, e em relação a ele o demônio adquire significado algo diferente do

que vimos. Quando se tratava da inserção de Riobaldo na sua tarefa (ou missão), importou ressaltar o aspecto de instrumento iniciatório; mas se encararmos a individualidade

de Riobaldo, a sua condição singular de homem, o demônio volta a simbolizar, como para Fausto ou Peter Schlemilh, a tentação e o mal.

O grande problema, para o narrador, é a existência dele: existe ou não? Em princípio, sente que é um nome atribuído à parte torva da alma: "Explico ao senhor: o

diabo vige dentro do homem, os crespos do homem - ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! - é

o que digo." Mas uma dúvida sempre fica: "Eu, pessoalmente, quase que já perdi nele a crença, mercês a Deus; é o que ao senhor lhe digo, à puridade."

Invocou-o nas Veredas-Mortas e ele não apareceu fisicamente; isto lhe serve para tentar se convencer de que realmente não houve pacto. Por outro lado, não pode fugir

à evidência da própria mudança, após a noite em que desejou vê-lo; depois dela é que foi capaz de realizar coisas prodigiosas, inclusive a referida travessia do

Suçuarão, fechado ao comum dos homens e docilmente aberto ao seu mando. Daí a palavra que o autor inventou, no texto citado mais alto, para sugerir, conforme os

seus processos lexicogênicos, a operação de um sortilégio sobrenatural: "Sobrelégio?" E como tem consciência de que a manifestação concreta não é necessária para

demonstrar a existência do Cujo - mais princípio do que ente -, permanece, no fundo, amarrado a ele, que se torna de certo modo o grande personagem, tanto mais obsedante

quanto menos palpável. No Spleen de Paris, disse Baudelaire que "a mais bela artimanha do diabo é persuadir que não existe"; em Riobaldo ela produziu pleno efeito

("Quem muito se evita se convive").

Mas por que o demônio em tudo isso? Porque nada encarnaria melhor as tensões da alma, nesse mundo fantástico, nem explicaria mais logicamente certo mistério inexplicável

do sertão. A amizade ambígua por Diadorim aparece como primeiro e decisivo elemento que desloca o narrador do seu centro de gravidade. Levado a ele (ou a ela) por

um instinto poderoso que reluta em confessar a si próprio, e ao mesmo tempo tolhido pela

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Jorro GUIMARAEs ROSA / FICÇAO COMPLETA

INTRODUçAO GERAL / FORTUNA CRÍTICA

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aparência masculina -Riobaldo tergiversa e admite na personalidade um fator de desnorteio, que facilita a eclosão de sentimentos e comportamentos estranhos, cuja

possibilidade se insinua pela narrativa e o vão lentamente preparando para as ações excepcionais, ao obliterar as fronteiras entre lícito e ilícito.

"... Diadorim é a minha neblina..."

"Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele, ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até que ponto esses olhos,

sempre havendo, aquela beleza verde, me adoecido, tão impossível."

"... eu dele era louco amigo, e concebia por ele a vexável afeição que me estragava, feito um mau amor oculto..."

"Ele fosse uma mulher, e à-alta e desprezadora que sendo, eu me encorajava: no dizer paixão e no fazer-pegava, diminuía: ela no meio de meus braços! Mas, dois guerreiros,

como é, como iam poder se gostar, mesmo em singela conversação, por detrás de tantos brios e armas? Mais em antes se matar, em luta, um o outro. E tudo impossível.

Três-tantos impossível, que eu descuidei, e falei Meu bem, estivesse dia claro, e eu pudesse espiar a cor de seus olhos... , o disse, vagável num esquecimento,

assim como estivesse pensando somente, modo se diz um verso."

O demônio surge, então, como acicate permanente, estímulo para viver além do bem e do mal; e bem pesadas as coisas, o homem no sertão, o homem no mundo, não pode

existir doutro modo a partir duma certa altura dos problemas. "Viver é muito perigoso" - repete Riobaldo a cada passo; não só pelos acidentes da vida, mas pelas

dificuldades em saber como vivê-la.

"O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos... Viver - não é? - é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver

é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca..."

"Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa."

"Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no

rabo da palavra."

Daí o esforço para abrir caminho, arriscando perder a alma, por vezes, mas conservando a integridade do ser como de algo que se sente existir no próprio lanço da

cartada. A ação serve para confirmar o pensamento, para dar certeza da liberdade.

"Ao que, naquele tempo, eu não sabia pensar com poder. Aprendendo eu estava? Não sabia pensar com poder - por isso matava."

"Mas liberdade - aposto - ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se

carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer."

A vida perigosa força a viver perigosamente, tendendo às posições extremas a que podem levar a coragem, a ambição, o dever. Pelo menos duas vezes ocorre na fala

do narrador um conceito que exprime este movimento, fundamental na ética do livro e na estrutura dos seus acontecimentos, e que encontramos, quase com as mesmas

palavras, nas "Considerações sobre o pecado, a dor, a esperança e o verdadeiro caminho", de Kafka, onde vem formulado assim: "A partir de um certo ponto não há mais

retorno. Esse é o ponto que se precisa atingir." Riobaldo caminha para ele e o alcança através do pacto, que é ao mesmo tempo ascese (sob o aspecto iniciatório)

e compromisso (sob o aspecto moral), confirmando a sua qualidade de jagunço.

O jagunço, sendo o homem adequado à terra ("O Sertão é o jagunço"), não poderia deixar de ser como é; mas ao manipular o mal, como condição para atingir o bem possível

no sertão, transcende o estado de bandido. Bandido e não-bandido, portanto, é um ser ambivalente, que necessita revestirse de certos poderes para definir a si mesmo.

O pacto desempenha esta função na vida do narrador, cujo Eu, a partir desse momento, é de certo modo alienado em beneficio do Nós, do grupo a que o indivíduo adere

para ser livre no sertão, e que ele consegue levar ao cumprimento da tarefa de aniquilar os traidores, "os Judas". Graças a isto é vencida, pelo menos na duração

do ato, a ambigüidade do jagunço, que se fez integralmente paladino. Tanto que Riobaldo não prossegue nas armas e se retira, acompanhado por grande parte dos seus

fiéis. Os seus feitos tenderam, mesmo, a aniquilar a condição de jagunço-bandido, e ele se justifica aos próprios olhos nessa negação do ser de exceção, em beneficio

da existência comum, na fazenda que

herdou ddih (i) ld d Ol

o parnoe pa, aoaoetacíia, prêmio das andanças. "... o

que mormente me fortaleceu, foi o repetido saber que eles pelo sincero me prezavam, como talentoso homem-de-bem, e louvaram meus feitos: eu tivesse vindo, corajoso,

para derrubar o Hermógenes e limpar estes Gerais da jagunçagem."

Renunciando aos altos poderes que o elevaram por um instante acima

da pói h

rpra estatura, oomem do sertão se retira na memória e tenta labori

osamente construir a sabedoria sobre a experiência vivida, porfiando, num esforço comovedor, em descobrir a lógica das coisas e dos sentimentos. "E me inventei nesse

gosto, de especular idéias." Desliza, então, entre o real e o

fantáii

stco, msturados na prodigiosa invenção de Guimarães Rosa como lei

da narrativa. E nós podemos ver que o real é ininteligível sem o fantástico e que ao mesmo tempo este é o caminho para o real. Nesta grande obra com

binami l d

-se o mto e oogos, o traindoa fabulação lendária e o da interpreta

ção racional, que disputam a mente de Riobaldo, nutrem a sua introspecção tacteante e extravasam sobre o sertão.

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JOAO GUIMARAES ROSA I FICÇAO COMPLETA

Se o leitor aceitou as premissas deste ensaio, verá no livro um movimento que afinal reconduz do mito ao fato, faz da lenda símbolo da vida e mostra que, na literatura,

a fantasia nos devolve sempre enriquecidos à realidade do quotidiano, onde se tecem os fios da nossa treva e da nossa luz, no destino que nos cabe. "A gente tem

de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro..." Entremos nessa realidade fluida para compreender o sertão, que nos devolverá mais claros

a nós mesmos e aos outros. O Sertão é o Mundo.

DOM RIOBALDO DO URUCUIA,

CAVALEIRO DOS CAMPOS GERAIS

Manuel Cavalcanti Proença

... Este havia dar cima as maravilhosas aventuras do regno de Logres."

DEMANDA DO SANTO GEAAL 11, 18

SE HÁ NECESSIDADE de classificação literária para Grande sertão: veredas, não há dúvida que se trata de uma epopéia. Preferimos não gastar palavras com argumentação

que nos levaria longe, embora com margem dadivosa para demonstrações comparativistas. Algumas anotações de natureza didática, somente para não afirmar sob palavra,

podem justificar desde logo a classificação. Deixando de lado as qualidades orgânicas de unidade de ação e de interesse, comuns a qualquer obra literária, Riobaldo

é um verdadeiro protagonista, até no sentido etimológico do termo, sempre o primeiro nos combates, como homem que atira bem. "Senhor atira bem, porque atira com

espírito. Sempre o espírito é que acerta..." - como dizia Alemão Vupes.

A intercalação de episódios convergentes com a ação principal, mas de função adjuntiva, podendo adquirir independência formal, aparece freqüentemente; desde logo,

podem ser enumerados o do Aleixo, com os três filhos cegos, o do José Cazuzo, com visões sobrenaturais em pleno combate, o de Andalécio e Antônio Dó atacando o porto

de São Francisco.

Aliás, por esta característica, os próprios contos e novelas de Guimarães Rosa, entremeados de episódios, são épicos em grande número. O do touro Calundu, o do negrinho

cujo canto fez estourar a boiada, em "O burrinho pedrês"; o do sapo e do cágado na "Volta do marido pródigo"; do Bento Porfirio, em "Minha gente"; o do "Quem-Será",

em "São Marcos", todos em Sagarana e ficando apenas numa parte do livro. O episódio de Maria Mutema, este no Grande sertão: veredas, é um verdadeiro conto in

crustado no corpo do romance, como processo de reter o desenvolvimento da ação, prolongando o interesse da narrativa.

Voltemos ao fio da classificação. O ponto nodal é o julgamento de Zé Bebelo, quando, conseguido o equilíbrio das forças adversárias (jagunços contra governo), deveria

findar totalmente o interesse do enredo. Entretanto, a morte de Joca Ramiro, herói secundário, desata novamente a ação que, daí por diante, se desencadeia, em plano

diferente, até a morte de Diadorim, com a justificação do sentido etimológico do nome do herói: Riobaldo: Rio-Baldo.

Pelas características que tentaremos pôr em evidência, o tema é, evidentemente, material de filiação popular. Jean Suberville, falando da epopéia erudita, diz que

ela "nasce completa do cérebro de um poeta, como Minerva, armada, do cérebro de Júpiter". À parte o pedantismo da ímã~ gem e o risco de pensarem que ameaço fazer

de Guimarães Rosa um novo Tonante, quero aproveitar o símile, como ajutório do que vou expor:

O cangaceiro, como herói de poesia narrativa sertaneja, é assunto pacífico entre folcloristas, e o paralelismo com as epopéias medievais e seu sucedâneo - o romance

de cavalaria -, já tem sido apontado, inclusive, pelo autor deste ensaio.

Pois bem, esse Riobaldo é uma estilização da imagem convencional que o povo estabeleceu para seus heróis.

Que não houve, apenas, paráfrase de uma lenda, é evidente. Mas o tipo cavalheiresco de Riobaldo despertou, associativamente, no acervo de impressões de leitura do

autor, ressonãoncias que acabaram por sintonizar até os componentes do romance, onde se pode rastrear uma propensão arcaizante de efabulação, com reflexos no próprio

vocabulário.

Riobaldo começa menino sem pai, tímido, mas com vários embriões de virtudes heróicas, que se irão acentuando, até elevá-lo, meio inconscientemente, a chefe indiscutido,

embora não pressentido pelos que o cercam (exceto por Diadorim, que logo adivinha).

Cangaceiro cortês, se não se repelem os vocábulos, Riobaldo não comete barbaridades, não consegue cometê-las, apesar da tentação de fazê-lo, com o pobre sertanejo

da égua e da cachorrinha, ou com o leproso trepado na árvore (tal e qual aquela moura, filha de leproso do "romance-velho" da Enfeitiçada- "homem que a mim se chegasse,

malato se tornaria"). Riobaldo não tolera a deslealdade e os desleais lhe são inimigos de morte, os "judas". Muito folcloricamente, procura o equilíbrio social e

tem rasgos de bandido romântico, favorecendo com esmola grande a mulher que dá à luz no casebre miserável.

Como nos "romances-velhos", Diadorim propõe, e ele jura cumprir, voto de castidade, porque "Severgonhice e airado avejo servem só para tirar da gente o poder da

coragem..." Era a "regra de ferro de Joãozinho

INTRODUÇAO GERAL 1 FORTUNA CRíTICA

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JOAO GUIMARARS ROSA / FICÇAO COMPLETA

IN "1 RODUÇAO GERAL / FORTUNA CRÏTICA

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Bem-Bem", o jagunço, mas o fora, antes, de Nun" Alvares Pereira, que já imitava nesse ponto o patrono Dom Galaaz.

Os chefes sertanejos guardam traços medievais:

"Medeiro Vaz, retratai, barbaça, com grande chapéu rebuçado, aquela pessoa sisuda, circunspecto com todas as velhices, sem nem velho ser", era "homem sobre o sisudo,

nos usos formado, não gastava as palavras. Nunca relatava antes o projeto que tivesse, que marchas se ia amanhecer para dar. Também, tudo nele decidia a confiança

de obediência. Ossoso, com a nuca enorme, cabeçona meia baixa, ele era dono do dia e da noite - que quase não dormia mais: sempre se levantava no meio das estrelas,

percorria o arredor, vagaroso, em passos, calçado com suas boas botas de caititu, tão antigas. Se ele em honrado juizo achasse que estava certo, Medeiro Vaz era

solene de guardar o rosário na algibeira, se traçar o sinal-da-cruz e dar firme ordem para se matar uma a uma as mil pessoas." "Medeiro Vaz era duma raça de homem

que o senhor mais não vê. (...) Ele tinha conspeito tão forte, que perto dele até o doutor, o padre e o rico, se compunham. Podia abençoar ou amaldiçoar, e homem

mais moço, por valente que fosse, de beijar a mão dele não se vexava. Tenente nos gerais - ele era." Não é Carlos Magno em gibão de couro?

Talvez a figura de Rolando se ajuste em Joca Ramiro, montado em cavalo branco feito um São Jorge. Vale a pena transcrever o trecho em que Riobaldo o apresenta: "E

Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo branco - cavalo que me olha de todos os altos. Numa sela bordada, de Jequié, em lavores de preto-e-branco. As rédeas

bonitas, grossas, não sei de que trançado. E ele era um homem de largos ombros, a cara grande, corada muito, aqueles olhos. Como é que vou dizer ao senhor? Os cabelos

pretos, anelados? O chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito. Nem tinha mais outra coisa em que se reparar. (...) A gente tinha até medo de que, com tanta aspereza

da vida, do sertão, machucasse aquele homem maior, ferisse, cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais, na gente, como agrado em lembrança, era a voz. Uma voz

sem pingo de dúvida, nem tristeza. Uma voz que continuava." E, em outro passo, evocando o chefe morto: "Joca Ramiro, tão diverso e reinante que, mesmo em quando

ainda parava vivo, era como se já estivesse constando de falecido."

Zé Bebelo, prisioneiro, submetido a julgamento, arenga como guerreiro medieval: "... Altas artes que agradeço, senhor chefe loca Ramiro, este sincero julgamento,

esta bizarria... Agradeço sem tremor de medo nenhum, nem agências de adulação! Eu. José, Zé Bebelo, é meu nome: José Rebelo Adro Antunes! Tataravô meu Francisco

Vizeu Antunes - foi capitão-decavalos... Demarco idade de quarenta-e-um anos, sou filho legitimado de José Ribamar Pacheco Antunes e Maria Deolinda Rebelo; e nasci

na bondosa vila mateira do Carmo da Confusão..." (...) "Agradeço os que por mim

bem falaram e puniram... Vou depor. Vim para o Norte, pois vim, com guerra e gastos, à frente de meus homens, minha guerra... Sou crescido valente, contra homens

valentes quis dar o combate. Não está certo? Meu exemplo, em nomes, foram estes: Joca Ramiro, Joãozinho Bem-Bem, Só Candelário!... e tantos outros afamados chefes,

uns aqui presentes, outros que não estão..." E mais para o fim, usa o termo próprio a expressão medieval: "Mas, homem sou de altas cortesias."

Todo o episódio do julgamento é um recorte de romance de cavalaria transposto para o sertão. A grandiloqüência das palavras realça a nobreza da ação; é de barões

o diálogo entre Joca Ramiro e Zé Bebelo.

- "O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me honra. Sou amigo dos meus amigos políticos, mas não sou criado deles, nem cacundeiro.

A sentença vale. A decisão. O senhor reconhece?"

"... Agora, com sua licença, a pergunta faço: pelo quanto tempo eu tenho de estipular, sem voltar neste Estado, nem na Bahia?"

- "Até enquanto eu vivo for, ou não der contra-ordem..."

E o vencido, cumprindo a palavra dada, vai rumo de Goiás, escoltado honrosamente pelo cabra Friol, distância de três léguas, "por o uso de resguardado território";

Joca Ramiro deixa o acampamento para região ignorada: "Lá ia ele, deveras, em seu cavalão branco, ginete - ladeado por Só Candelário e o Ricardão - igual iguais

galopavam."

O sentimento de honra - o orgulho da luta sem outro galardão além da glória - inflama os jagunços do grande sertão. No julgamento de Zé Bebelo, Riobaldo fala da

história que há de guardar o nome dos valentes, a fama de suas façanhas: "Nela todo o mundo vai falar pelo Norte dos No rtes, em Minas e na Bahia toda, constantes

anos, até em outras partes... Vão fazer cantigas relatando as tantas façanhas..." E Só Candelário, que era bom e que buscava a morte nos combates para sufocar o

medo de ficar leproso, repete as mesmas idéias, quase com as mesmas palavras: "... Seja a fama de glória... Todo mundo vai falar nisso, por muitos anos, louvando

a honra da gente, por muitas partes e lugares."

Mais tarde, na chefia do bando, Riobaldo reconhece, melancolicamente, que não deu batalhas suficientes, e embora tivesse varado mundo em comando, não se prezava

bastante o seu nome. Urutu-Branco era um desconhecido: "Mas, então, tudo naquela parte dos Gerais era ilusão de haver e não se saber." E quando o companheiro, recém-chegado

de longas andanças, o chama de Tatarana, disfarça a decepção: "O seja que tivesse vivido esses tempos tangendo urubu, adformas que vinha agora na ignorância de que

eu é que era o Chefe. Amargura-o a falta de ressonãoncia do sertão Imenso: "Às vezes, não sei porque, eu pensava em Zé Bebelo, perguntava Por ele em outros tempos;

e ninguém conhecia aquele homem lá, ali. O de que alguns tivessem notícia erã da fama antiga de Medeiro Vaz."

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JOAO GUIMARAES ROSA / FICÇAO COMPLETA

INTRODuçAO GERAL / FORTUNA CRÍTICA

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Quando Joca Ramiro é morto à traição, como os heróis de legenda - Hermógenes e Ricardão, os assassinos, se degradam, como aquele Dom Galvan, cavaleiro de má andança,

réu de covardia e deslealdade.

Riobaldo vai anunciar aos companheiros de outro bando a morte de Joca Ramiro. Cena e palavras medievais. O grupo está reunido quando ele chega e brada, ainda a cavalo:

"Trago notícia de grande morte! - (... ) Eles todos tiraram os chapéus, para me escutar. Então, eu gritei: -"Viva a fama de glória do nosso Chefe Joca Ramiro!"(...)

E pela tristeza que estabeleceu minha voz, muito me entenderam."

A travessia do Liso do Suçuarão, que Medeiro Vaz - Percival ou Lancelote -, apesar de todos os preparativos, não conseguiu realizar, Riobaldo - Dom Galaaz - realiza,

protegido pelo acaso, sem mesmo se haver preocupado com provisões.

Como os cavaleiros corteses, Riobaldo muda de apelido guerreiro, primeiro) agunço Tatarana, depois chefe Urutu-Branco.

Na casa da fazenda abandonada, quando se levanta um pano branco por cima das moitas, em pleno combate, Zé Bebelo é formal: "A regra que e regra! (...) A solenidade

de embaixador sempre se tem de consentir; ate para herege, até para bugre..."

A idade de ouro, de Ovídio, celebrizada nos romances de cavalaria, comparece: "Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente pode permanecer

deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as foices, para colherem por si, e o carro indo por, sua lei buscar a colheita, e tudo,

o que não é o homem, é sua, dele, obediência? Isso, não pensei - mas meu coração pensava."

Como nos romances de cavalaria, enumera, em vésperas de batalha, os guerreiros, cada qual com sua característica. Apenas uma transcrição, entre muitas que poderíamos

fazer.

"Para que relembrar, divulgar dum e dum, dar resenhas? Do Dimas Doido - que xingava nomes até a galho de árvore que em cara dele espanejasse, ou até algum mosquitinho

chupador. Do Diodolfo - mexendo os beiços num bis-bis: que era que sem preguiça nenhuma rezava baixo, ou repetia coisas de mal, da vida alheia, conversando com si-mesmo.

Da Suzarte - tomando olhos de tudo, chão, árvores, poeiras e estilos de vento, para guardar em sua memória aqueles lugares em léu. Do Salústio João, em ancas de

seu burro; e do Araruta - de toda confiança: esse homem já tinha para mais de umas cem mortes. Do Jiribibe, que a recorrer, da guia à culatra, por necessidade de

cada coisa ouvir, recontar e sã ber. Ou do Feliciano - que abria muito o olho são, para melhor entender o que a gente dizia? Tuscaninho Caramé, que cantava, bonita

voz, algúa cantiga sentimental. João Condiz, dobrando um assovio comprido se fim, como esses que são dos tropeiros dos campos goianos? Ou o José d

Ponto com o jacaré - tocando os cargueiros, com sua tralha de cozi

nhar..."

Confrontemos com a enumeração que Francisco de Morais fez dos cavaleiros cristãos, antes da batalha contra os turcos:

"O príncipe Beraldo e Onistaldo, seu irmão, tiraram armas de ouro manchadas de negro, nos escudos em campo negro, fojos do mesmo ouro; os elmos da mesma sorte. Polinard

e Francião saíram de verde e roxo, cortadas as cores em tiras, metidas uma por outras, em campo verde, mares de prata. Blandidon e Frisol tiraram as suas de amarelo

e negro, à maneira de cunhas, e nos escudos em campo amarelo grifos negros cravados com rosas de ouro. Pompides e Platu traziam armas de verde compostas de esperança;

nos escudos em campo verde, touros brancos que desta devisa se pagava muito Pompides. O príncipe Graciano e Goarim, seu irmão, vieram de branco e verde, as cores

extremadas com cordões de ouro, nos escudos em campo branco mares de verde compostos de boninas de muitas cores. Rosamonte e Belizarte vieram de vermelho sem nenhuma

outra mistura, nos escudos em campo sanguíneo e esperança morta, como quem já não a havia mister." (Cap. CLXV - Palmeirim de Inglaterra)

O encontro com o povo dos catrumanos, na região inóspita, é episódio de freqüente correspondência em romances de cavalaria; lembremos a Ilha Encantada onde esteve

Clarimundo; a aventura do homem que sia na cadeira, de Percival e Lancelote.

Finalmente, o clímax. Alta noite, Riobaldo vai procurar o Demo, e o capeta não aparece. Dali em diante, começa uma demanda medieval, a luta de Deus contra o Diabo,

representado pelos "judas". Não veio o demônio, porque Deus estava com o guerreiro. Tanto que ele pronuncia as palavras sagradas que afugentam Satanás e nada acontece.

Mas os cavalos passam a adivinhar que Riobaldo, agora, é homem sobrenatural, conserva o cheiro de quem o Diabo farejou: aquele gateado, formoso, de imponência e

brio, que se abaixa diante dele, depois de quase bolear o dono, era do diabo e, por isso, gateado. Empina violentamente, mas Riobaldo lhe diz o nome: Barzabu. E

porque havia adquirido ascendência sobre o diabo, porque deixara de temê-lo, altas horas na encruzilhada, o cavalo se submete, aceita que o dono lhe mude o nome

para Siruiz, manso, doce nome do poeta da neblina.

Assumindo a chefia do bando, é necessário resolver aonde ir, que fazer. Deixa os companheiros, galga um itambé de pedra, muito lisa, e ali pensa. Meio Amadis de

Gaula, meio Moisés. "O que eu carecia era de uns instantes sempre meus, para estribar meu uso. (...) Fiquei lá, um tempo. Quando desci, umas coisas eu resolvia."

Ao dono das terras ele dá como gage de aliança, não "correntias moedas de tesouro do rei mas costumeiras prendas de louvor aos santos". E o seu Habão lhe toma a

bênção, servo reconhecendo o senhor. Então num rom-

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1~ GUIMARAES ROSA / FICÇAO COMPLETA

INTRODUÇAO GERAL / FORTUNA CaíTICA

99

paute, para honrar seu Habão "por alguma alvíssara de mercê". Riobaldo determina que ele tome a pedra de valor e sele um bom cavalo, chegue na fazenda Santa Catarina

dos Buritis Altos e a entregue à sua "sempre noiva" que Otacília se chamava.

A convocação dos catrumanos para seguirem com os jagunços tem um sentido de grandeza legendária. E realiza aquele devaneio, também tocado de nobreza antiga, em que

se embalara ao sair do Sucruiu, querendo levar para longe da desgraça, para um mundo melhor, Otacília, Diadorim, os companheiros, os conhecidos.

Na comitiva, o cego e o menino, inúteis e, por isso mesmo, dão a nota de grandeza e majestade, viajando a par com ele; Diadorim é o cavaleiro gentil, "montado à

baiana, gineta, com estribos curtos e rédea muito ponderada, bridando bem em seu argel travado, às upas".

Antes, porém, de empreender a demanda dos judas, é preciso voltar aos campos do Urucuia, receber os eflúvios da terra, encher os olhos da contemplação dos buritis,

os ouvidos, com o berro dos bois. Quem vai vencer ou morrer deve dar adeus às coisas queridas, à terra-mãe.

Em sonhos corteses, pensa em Otacília: "E crendo que um enfrentava os duros riscos, ela Otacília pudesse praticar o estouvamento gentil de se fugir de casa e vir

aventurada em minha cata, por todos os pousos deste sertão... Ah, ela vinha, montada num bom cavalo corcel" (por pouco se lê palafrém) "aparecia de repente, por

meu nome perguntando. E eu declarava a grandeza real dela, definida bem do meu lado, na frente do grande bando de meus homens..."

A demanda dos Judas está clara na consciência de Riobaldo: "Eu ia numa caçada, com o grande gosto, ah. Pois não era? Mais tempo se gastou, esbarrados em casas-de-fazenda

ou em povoados. Melhor - por lá, também, havia de aprender a referir meu nome. De em desde, bem que já cumpriam de me recompensar e me favorecer, pela vantagem:

porque eu ia livrar o mundo do Hermógenes."

O combate a cavalo, no Tamanduá-tão, é uma verdadeira batalha campal, com o Fafafa "indo em frente, mais os dele, gritando alardes!". Ali, ele próprio se benze.

Era o enviado de Deus, não era pactário.

Terminada a luta, volta às Veredas-Mortas, ponto inicial da demanda, da vigília em que se sagrara chefe. Também as Veredas-Mortas se haviam acabado, pois esse nome

só existira no seu pensamento. No real era Veredas-Altas, pois Riobaldo não se transformara em pedra como Adamastor, embora ali quisesse se "abraçar com uma serrania".

O resto é prolongamento para poder conservá-lo em vida a fim de contar a história do autor do romance. Servidão da técnica.

Vez por outra, conscientemente ou não, o romancista deixa entrever em certas expressões as raízes antigas de sua efabulação: Joca Ramiro e

"um imperador em três alturas", um chefe valente é par-de-França, Riobaldo lê o Senclér das Ilhas e se compara a Guy de Bourgnogne.

De Diadorim, digamos logo que é também figura de romance-velho, a filha de D. Martinho - "tens olhos de mulher: / eu olharei para o chão; / tens peito de mulher;

/ mando fazer um peitilho / que me aperte o coração". Por isso "o capitão dos soldados / um grande amor lhe tomou"." Também Diadorim cortou os cabelos com tesoura

de prata, "cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura..." É claro que, no fim, a moça casa com o capitão, enredo que o autor não poderia adotar,

obrigado pelo convencionalismo que prescreve, hoje, o happy-end de romance para mocinhas.

Aliás, a paixão do jagunço Riobaldo pelo moço Diadorim não se parece, no seu primitivismo, com o refinamento de romancistas europeus lavrando no fusco-fusco do homossexualismo.

Antes nos recorda processo muito ao gosto do povo - de dar aparência de imoralidade a fatos comuns - explorado, principalmente, nas adivinhas como a da agulha, do

macarrão, dos olhos, ou de João e Maria.

Espalharam-se por todo o livro as deixas para que se descubra o sexo de Diadorim; colhemos apenas as mais características, pois coleta mais copiosa destoaria da

importância do pormenor em relação ao romance.

Os traços físicos delineiam-se em pinceladas dispersas pelo livro, num puzzle cujas peças se vão ordenando na memória do leitor e atenuam, até certo ponto, o choque

da revelação final. São as mãos que seguram as rédeas "tão brancamente", os braços bem feitos que mostrava ao lavar a roupa, a cintura fina, o passo curto, as "pestanas

compridas, os moços olhos", "a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho". Numa vereda, ele se vira para Riobaldo "com um ar quase de meninozinho, em suas miúdas

feições"; e quando ambos conhecem Otacília, Riobaldo se admira de que ela não se tenha encantado por Diadorim, "sendo tão galante moço, as feições finas caprichadas".

Diadorim guarda tesoura de prata e navalha em "capanga (...) com lavores (...) bordada e historienta". Corta os cabelos de Riobaldo e emprestalhe a navalha para

que se barbeie; ele próprio, apenas apara os cabelos diante do espelhinho dependurado num galho de árvore.

E há o segredo que ele fazia do próprio corpo que "era um escondido". Segredo entremostrado em vários trechos do livro: o banho de madrugada - sozinho no escuro

das matas - que Riobaldo atribui a superstição do

O "romance-velho" em uma de suas variantes é do conhecimento do autor que lhe transcreve uma quadra em "Uma estória de amor", no primeiro volume de Corpo de baile:

"Os olhos de Dom Varão / é de mulher, de homem não."

1OO

caborjudo; a fuga de Reinaldo, ferido; os desaparecimentos inexplicáveis que tanto intrigavam o companheiro; o jaleco que ele não tirava nunca, escondendo as formas,

como a filha de D. Martinho.

O pudor feminil já está naquela ordem do Menino, na beira do rio: - "Longe de mim, isso faz!" - Moços, manda Riobaldo tomar banho e o deixa sozinho na beira do rio.

E quando desmaia, ao saber da morte de Joca Ramiro, e os companheiros tentam desapertar-lhe o colete, a vigilância ao subconsciente o faz tornar em si, "em mais

vermelho o rosto, numa fúria, de pancada".

Era o guerreiro mais valente, sua coragem "nunca piscava". Entretanto, tem reações muito femininas ao longo de todo o livro. Na chegada de Joca Ramiro, "de alegria

tanta, (...) parecia uma criança pequena"; e os olhos brilhavam: "tinha lágrimas vindo por acaso". No entusiasmo da vitória, andava "às quase danças". E, na excitação

do julgamento de Zé Bebelo, abraça-se com Riobaldo, impulsivamente. Quando o pai morre, desmaia, soluça, tem um quase uivo de dor, foge para chorar escondido, deitado

na relva. Na Guararavacã, agrada as crianças: "... pegava um por cada mão, até carregava os menorzinhos, levava para mostrar a eles os pássaros das ilhas do rio".

Era Diadorim quem lavava a roupa de ambos, porque "praticava com mais jeito, mão melhor"; quando Riobaldo é ferido, Diadorim lhe amarra o braço com delicadeza e

habilidade.

Diante da pedra do Araçuaí, o amor tão feminino pelo luxo desperta no guerreiro: "... e sem querer parou aberto com os lábios da boca, enquanto que os olhos e olhos

remiravam a pedra-de-safira no covo de suas mãos". No meio dos jagunços desajeitados é o que melhor dança, "pé de salão". E quando sozinho, gostava de cantarolar,

o que não fazia diante dos outros para que a voz não lhe traísse o segredo. Isentando-se das contingências mais bárbaras do cangaço, Diadorim não participa da macabra

refeição de carne humana.

Em certas frases e episódios, o véu do mistério quase se esgarça inteiramente, em leves transparências: a aversão instintiva por Otacília é ciúme, revelado na cena

em que ameaça apunhalar Riobaldo. Ao recusar a jóia, marca prazo para aceitá-lo, o que seria depois da vitória contra Hermógenes; mais tarde, no Liso do Suçuarão,

tentando prender o amor que Otacília lhe roubava, quase diz tudo: - "Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto... Daí, quando tudo estiver repago e refeito,

um segredo, uma coisa, vou contar a você." E quando, enciumado, se refere ao casamento do amigo, a nostalgia da própria feminilidade acaba levando-o a falar, com

um enternecimento de saudade, na outra mulher, nas roupas, nos adornos, no carinho de uma esposa.

E o maior mistério, a reação de Diadorim diante do amor de Riobaldo é, afinal, a chave do segredo. Nem aceitação degradante, nem repulsa ofen

INTRODUÇAO GERAL 1 FORTUNA CRÍTICA

dida: ele "era aquela estreita pessoa - não dava de transparecer o que cismava profundo, nem o que presumia".

Mas há as deixas que o proponente da adivinhação oferece. Indiretas: "Noite essa, astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris." De

volta do Liso do Suçuarão chegam aos campos de um córrego. Ali estava o capitão-da-sala, flor tão brasileira, de colorido vermelho e amarelo. Diadorim se entusiasma.

" `É o cavaleiro-da-sala". Mas o Alaripe, perto de nós, sacudiu a cabeça. `Em minha terra, o nome dessa [ele disse] é dona-Joana...""

Ao narrar o encontro de Diadorim e Otacília, de recíproca hostilidade instintiva, o autor revela tudo, para seu próprio divertimento; quem até agora não descobriu

, não o fará mais, até que a morte conte o grande segredo. Como Riobaldo que, ao relembrar, não compreende a própria cegueira.

"Diadorim era mais do ódio do que do amor? Me lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia, tão remarcado. Como foi que não tive um pressentimento? O senhor mesmo,

o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os

olhos dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim...

E tantos anos já se passaram."

VEREDAS NO GRANDE SERTÃO

Bernardo Gersen

1

A LEITURA das seiscentas páginas de Grande sertão: veredas, o terceiro livro do sr. João Guimarães Rosa, levou-me nada menos de três meses., Com efeito, esse romance

apresenta antes de mais nada o mérito dos vastos empreendimentos literários: obriga a avançar devagar, não somente devido aos achados verbais semeados ao longo do

caminho, e cuja riqueza de certo modo o atravanca, como também pelo choque que nos inflige de saída, pelo estado de perplexidade em que nos deixa, pelas cautelas

que requer. Numa palavra, esse romance nos força a repor em questão todos os nossos conceitos de literatura e arte, a tomar constantemente distância sobre ele a

fim de encará-lo de uma perspectiva universal, a buscar sua localização na geografia literária. Assim, pois, sem se aperceber disso, o leitor vai mobili

Rosa, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.

JOAO GUIMARAES ROSA / FICÇAO COMPLETA

IN TRODUÇAO GERAL / FORTUNA CRITICA

Loa

zando, à medida que avança, todos os seus recursos intelectuais, sua sensibilidade estética e seu estoque de conhecimentos, suscetíveis de apoiá-lo na sua marcha

e de diminuir sua sensação de exílio e de insegurança.

Se aceitarmos como legítima a aproximação feita por tanta gente entre o sr. Guimarães Rosa e James Joyce, poder-se-ia dizer que Sagarana corresponde a Dubliners,

Corpo de baile ao Retrato do artista quando jovem e Grande sertão: veredas ao Ulisses. Isso no que se relaciona com o grau de hermetismo e de subversão dos padrões

estilísticos correntes. Mas as semelhanças não param aí. Como Joyce, transplantando os motivos épicos de Homero para a cidade moderna e prosaica, reencontrando a

solidão e o sentimento de exílio de Ulisses no dia cinzento de um judeu mediano, identificando mitos seculares e evocando as aventuras maravilhosas do herói grego

nos pubs e bordéis de Dublin, Guimarães Rosa utiliza-se das sugestões de um mito universal, de um dos altos temas de nossa civilização intelectual - Fausto - para

um assunto regional, para enriquecer com seus ecos criaturas aparentemente simples, agrestes e que existem sobretudo no nível dos instintos vitais. Quer dizer: visando

imprimir linhas de aventura a um itinerário exteriormente pobre, a perspectiva de Joyce só podia ser subjetiva: tudo se desenrola no reino tenebroso dos fantasmas

e das projeções, no limbo do subconsciente. As dificuldades de Guimarães Rosa estavam ao contrário em insuflar alcance psicológico e filosófico a verdadeiras histórias

de aventura, em aproximar-se do reino das sombras por fora, em reencontrar na realidade concreta e rude elementos simbólicos.

E isso vai determinar em última análise a forma e a técnica de Grande sertão: veredas. Com efeito, ao contrário do que acontece em relação a Joyce e seus personagens,

o sr. Guimarães Rosa nada tem aparentemente em comum com os seus heróis jagunços, não pertence ao mesmo mundo que eles, e não estaria, por conseguinte, qualificado

para falar em nome deles. Assim, pois o approach do romancista só pode ser indireto (é o jagunço Riobaldo que conta sua história), ele não tendo o direito de intervir

e de analisar por si, à maneira onisciente do clínico e do criador - como no Ulisses. Numa palavra, o sr. Guimarães Rosa aproveita-se das vantagens do ponto de vista

objetivo, realista, decorrente da distância entre o romancista e o leitor cultos de um lado; e das vantagens da visão subjetiva, lírica, resultante da interposição

de uma consciência marcadamente individual entre o leitor e a realidade.

Esta consciência, por sua vez, pode ser decomposta em três níveis de refração - e de significação: a) a linguagem oral, em todo mundo mais viva, espontânea e emocional

do que a escrita; b) a condição de iletrado do narrador, que passou a vida no sertão, e cujo vocabulário guardou o pitoresco e o frescor de quem o adquiriu nas fontes;

c) e, finalmente, a menta

]idade específica de um semiprimitivo que, não acostumado à introspecção, à análise sistemática de seus sentimentos e de suas impulsões, tende a deixar-se conduzir

por eles na rememoração do passado, resiste menos aos mecanismos subconscientes e sublinha, projetando-se, exagerando-os, os complexos na base de sua personalidade.

Realmente, a conjunção desses três fatores predominantemente emocionais e supra-racionais, bem como sua interação, seriam responsáveis por esse ar hirsuto da narrativa

que de saída desconcerta, por essa superposição de planos deformantes, numa palavra: pelo caráter exasperadamente expressionista dessa "autobiografia".

O terceiro item condiciona sobretudo a técnica de rédea solta, desordenada na aparência, mas do ponto de vista psicológico fortemente coesa e organizada num todo

estruturalmente indivisível - isso justificando as seiscentas páginas da narrativa maciça, sem intervalo, mas entremeadas de divagações, de historietas marginais,

de incidentes episódicos. O que caracteriza essa narrativa é a ordem espontânea, o plano inclinado da associação livre, a ausência de deliberação e a lógica interna

da própria memória. Isso favorece sobretudo a atualização de conteúdos mentais implícitos, atrai e aglutina os fragmentos da personalidade dispersos no subconsciente

e não aproveitados na conduta prática. Eis porque Riobaldo dirá aí interlocutor, a certa altura: "Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal

quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba." Pessoalmente interpreto isto como indicação de um método próximo do socrático - a maiêutica

- ou da livre narrativa psicanalítica. Ou seja, fazer sair as verdades ignoradas que trazemos e nós, atualizar experiências virtuais.

Quanto aos dois primeiros planos de deformação, omente a fala oral de um lado, pelo seu cunho mais afetivo, e a condição de iletrado daquele que conta, orientado

numa medida maior pela intuição e a lógica dos sentidos, justificam as liberdades tomadas pelo romancista com a língua. Com efeito, uma pessoa que narra durante

certo tempo em voz alta desgoverna-se mais facilmente do que aquela que escreve, está mais sujeita a oscilações subjetivas, perde com freqüência os fios condutores

da trama, deixando-se levar pelo fluxo verbal. Em primeiro lugar, a palavra para ela tem mais significado existencial do que o vocábulo escrito: pois é receptáculo

de emoção atual e é idéia, ou seja, lembrança de antiga experiência. Em outros termos, a experiência passada que o narrador evoca ele tem de revivê-la quase como

ator, sob a pressão da circunstância, e de assumi-la mais uma vez-perante o interlocutor que o observa, que certamente reage com expressões fisionômicas ou réplicas

judicativas - como atitude e conduta atuais.

Veja-se, a propósito, este trecho típico de linguagem oral, em que uma emoção reflete outra - com gestos nas entrelinhas, hiatos, elipses, interjeições, pontuação

desarticulada: "Ah-oh-ah, o destempo de estar sendo

roo

1N 1 ROOUÇAO GERAL / FORTUNA CRITICA

tos

debochado se irou em mim. Esbarrei, também. Me fiz mouco. Mas ele veio para mim, então, saudou, com um modo sensato de simpatia. Adiado eu disse: - `Sou o moço professor..."

A alegria dele, me ouvindo, foi estupefacta. Me ferrou do braço, com porção de falas e agrados, subiu a escada comigo, me levou para um quarto, lá dentro, ligeiro,

parecia até que querendo me esconder de todos. Uma doidice, de quê? Ah, mas, ah - esse quem era - o homem? Zé Bebelo."

Por outro lado, sob o efeito da dupla emoção - a revivida, por sua vez reforçada pela atual - nessa ânsia quase dolorosa que se apodera de Riobaldo de comunicar

uma experiência particular, de obter participação e solidariedade, não dispondo de tempo nem de instrução para escolher o termo apropriado, ele aceita-o mais segundo

a lógica dos sentidos, a experiência bruta. Esse atropelo, essa emergência, essa necessidade premente de improvisar, mobilizam as reservas mais fundas da psique,

solicitam as percepções e imagens depositadas nos escaninhos do subconsciente. E nessas ocasiões ele tenderá não somente a trocar as funções gramaticais das palavras

no contexto; a usar substantivos como verbos: "miasmava braba maleita", "garoou", "erisipelava e armava" - ou verbos como substantivos: "um rôo de remorso"; a justapor

dois adjetivos ou dois substantivos a substantivar um qualificativo: "Diadorim firme triste", "pombas bando", "aquilo tudo dando confuso"; como também a embaralhar

significados, a superpor e a assimilar vocábulos homófonos, criando palavras de sentido mais complexo, dinãomico e imagístico. Colho dois exemplos quase ao acaso:

estudando, Zé Bebelo "vorava" (associação de devorar, de voragem, de voraz); "arrastando-se o homem serpente" (sugestão, ser que de repente se metamorfoseia em serpente).

Ainda que empregados a frio pelo romancista numa certa medida, esses processos têm muito do diabo automático dos surrealistas, do lapso verbal visto pela psicanálise

e da transcrição gráfica do stream of consciousness, da "corrente de consciência". Mentalidade semiprimitiva do narrador menos modelada pelos padrões do pensamento

coletivo; caráter repentino e improvisado da fala oral, menos sujeita ao controle da razão; calor crescente daquele que conta, cada vez mais possuído pelo seu tema

- tudo contribui para desencadear as faculdades imaginativas, abalar as alianças habituais de palavras, captar a ordem e o frescor da experiência subconsciente.

Achados deliciosos e renovação das velhas expressões explicam-se assim: "me fazia à queima-cara um punhado de perguntas"; "no mais, nem mortalma"; "entramos num

arraial, com progresso de bordel"... Do mesmo modo esse estado de semi-hipnotismo de um narrador transformado em médium de uma super-realidade tende a levá-lo, através

de distorções do sentido das palavras, e da visão mais sensível dos fenômenos evocados, à raiz dos vocábulos, à imagem ou ao ato literal jacentes sob o conceito,

ao sentido etimo

lógico: "... deputado fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil

escolas".

II

A essa recriação do vocabulário, a esse rejuvenescimento das expressões correntes, cabe acrescentar a desintegração da sintaxe tradicional (inversões ousadas, pontuação

que rompe a estrutura da frase etc.), tornando às vezes o sentido da frase equívoco. (Um ex.: "É preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente

com a sua dele nenhuma existência"). Só então se terá idéia da subversão radical operada na linguagem pelo sr. Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas. Indiquemos

sucintamente alguns dos efeitos psicológicos sobre o leitor dessa subversão, sua ação - inevitável - sobre o "conteúdo": sobre trama, fenômenos, personagens. De

saída lembremos que num prosador a linguagem em geral não passa de intermediária, simples veículo das coisas descritas, sua virtude maior estando na transparência,

no seu poder em dissolver-se na consciência do leitor em benefício da idéia ou da imagem que contém. Ora, no sr. G.R. - especialmente neste romance - a linguagem

constitui um nível autônomo de significação, com valor próprio mesmo fora do contexto. Pois além do sentido primário que nele encerram palavras e expressões - ou

seja, o convencional, que a gente adivinha apesar e através das manipulações originais - elas evocam idéias subsidiárias, reflexos de outras palavras e expressões,

experiência informulada. Pois bem, ao contrário do que sucede em poetas que violentam a linguagem de maneira radical, como, digamos, os im istas ingleses ou os surrealistas

franceses, ou mesmo no stream of cons tousness do Ulisses, nos quais vocábulos de sentido complexo ou novo, ali Aças audaciosas, fluxo aparentemente desgovernado

e sem pontuação constituem simultaneamente veículo e conteúdo, conceito e imagem, idéia e registro de percepção ou sua equivalente; no sr. G.R. a linguagem tem necessariamente,

além desse valor autônomo, uma função intermediária: a de evocar ambientes, descrever ações, delinear uma intriga, fazer viver heróis. Resultado: o primeiro nível

de significação verbal se interpõe freqüentemente entre a consciência do leitor e os elementos puramente romanescos, refrangendoos, deformando-os. Quer dizer: além

de frear os vôos imaginativos do leitor através de um dispêndio de energia mental e emocional sobre essa profusão de detalhe rico, em detrimento às vezes dos elementos

romanescos, essa linguagem faz com que estes últimos surjam como através de uma vidraça semitransparente, coberta de mosaicos, de motivos caprichosos, de fantasias

pictóricas entre abstratas e figurativas. Em conseqüência, as imagens e amplos movimentos humanos"do romance tendem a distanciar-se, a esba-

1O6

JOAO GUIMARAES ROSA / FICÇAO COMPLETA

IN"I"RODUÇAO GERAI. / FORTUNA CRÍTICA 1O]

ter-se, a assumir contornos descontínuos e fragmentados. Daí talvez esse ar insólito, espantadiço, fantaslhagórico que a paisagem e as figuras do Grande sertão transmitem

e cuja atmosfera me faz pensar vagamente nos quadros de um Soutine, com um ligeiro toque de Pascin.

Não é tudo: a desarticulação da linguagem corrente operada pelo sr. G. R. em Grande sertão deforma a própria imagem do universo. Com efeito, nossa visão mental dos

objetos está ligada aos nossos hábitos e associações verbais. A expressão convencional e a ordem das palavras na nossa frase refletem por sua vez a disposição dos

objetos e a ordem do mundo circundante, que foram deterltlinadas numa larga medida pela nossa experiência prática no espaço e no tempo. Se a gente desconjunta a

organização habitual das palavras e dá um outro desenho à frase, inevitavelmente vai transformar com isso o inundo que nós perceberemos através delas: o contorno

dos objetos e suas relações, atitudes e gestos das pessoas que proferem as palavras, associadas por nós mentalmente a determinada maneira de falar - serão outros,

diferentes, fora dos moldes universais. Ainda nesse caso, a aventura da arte vai ajudar-nos; o adjetivo substantivado e vice-versa, a aliança bizarra, o jogo de

palavras, o advérbio usado como substantivo ou o substantivo dinamizado em verbo, a frase que termina abrupta por um pronome relativo ou uma conjunção adversativa

seguida de ponto, vocábulos fora do contexto normal, assimilação e fusão entre palavras homônimas... produzem na consciência dQ leitor o mesmo efeito que as deformações

expressionistas ou as elaboraçòes cubistas na pintura: o nariz fora do lugar, semblante visto simultaneamente de perfil e de frente, formas materiais transparentes

e superpostas, objetos tratados geometricamente. Numa palavra, visionadas através das sugestões barrocas de tais objetos, ambientes e falas, através dessa proliferação

do detalhe singular, da linha brusca e rompida, as personalidades de Grande sertão: veredas me lembravam des grotesques (e Zé Bebelo de maneira impressionante),

digamos essas figuras feitas de borracha e mola de um quadro célebre como Soldado, do pintor inglês Edward Burra.

Resumindo: vimos que a recriação da linguagem produz uma visão nova, não-habitual do mundo, através da qual objetos, paisagens e criaturas assumem outros contornos

surgem libertas das formas tradicionais decorrentes de nossas padronizadas representações subjetivas. Pois bem: a essa recriação do mundo físico corresponde, por

sua vez, como não podia deixar de ser, uma concepção de vida pré-social, natural, não despojada de seu mistério primeiro, desentulhada dos conceitos e pré-concepções

que se interpõem entre o universo e nossa experiência pessoal, falsificando, desnaturando essa última. Com efeito, nós habitantes da cidade, ao chegarmos, ao mundo

encontramo-lo organizado na aparência e perfeitamente explicado nas suas linhas gerais. A nossa existência cotidiana, desde a primeira;

infância, é orientada e motivada por essa explicação filosófica do universo e da vida inscrita na ordem de coisas e implícita na nossa conduta: nos deveres morais,

cívicos e religiosos sobre os quais repousa o contrato social. Criado no sertão, numa larga medida entregue aos seus recursos pessoais desde o começo, mais livre

nas relações humanas e no meio natural, a estrutura social não mascarando para ele o enigma último que espia sob cada ato humano e em cada milagre da natureza, Riobaldo

será obrigado a encontrar por si, com auxílio apenas de sua própria experiência, de suas faculdades e intuições, uma explicação coerente do mundo que diminua a sua

sensação de exílio e de perplexidade. No ex-jagunço Riobaldo vamos encontrar assim, em estado de relativa pureza, o traço que fundamentalmente distingue o homem

dos outros animais: a inquietação metafsica, a interrogação constante ao cosmos, o desejo de ir às fontes. Nas suas reflexões canhestras, nos seus espantos e nas

suas apóstrofes identificamos não raro os acentos patéticos dos grandes pensadores e moralistas, o eco dos amplos temas existenciais: de Montaigne, de Rabelais,

de Pascal, de Goethe...

A certa altura da narrativa, procurando motivar psicologicamente sua conduta, Riobaldo deixa cair esta observação casual: "se eu fosse filho de mais ação, e menos

idéia...", que lembra famosa réplica do Fausto, de Goethe, a um versículo das Escrituras. Como o Fausto, Riobaldo é assim uma imagem do homem moderno para quem o

maior enigma, antes de tudo, é... o próprio homem. Assim como o herói de Goethe, vemo-lo dilacerado entre os ímpetos de um individualismo combativo - chefe de bandidos,

ele é selvagemente livre de fazer o que queira nesse seu vasto mundo sertão - e uma consciência atormentada pelo problema do Diabo; dividido entre a ânsia de viver,

de realizar em todas as direções suas virtualidades profundas, e o terror constante de um além que imporia Finites a essa manifestação feroz de liberdade; solicitado

alternada ou si ltaneamente pela ação e pela interrogação que leva ao conhecimento, pe o gesto e pela idéia que o prefigura e mais tarde amplia, pelo concreto e

pe o universal.

Como em Pascal, sentimos nele um misto de horror e de fascinação perante o mistério da existência, o sentimento inicial de seu absurdo e a vontade obstinada de encontrar

uma ordem secreta que a justifique. Leia-se este trecho de uma longa página 61 de inconfundível timbre pascaliano: "Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo

dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-e-vém, e a vida é burra. É o aberto perigo das

grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar - é todos contra os acasos." E se termina por: "Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento."

Quanto a Montaigne, muitos dos aforismos camuflados entre as moitas da linguagem oral de Grande sertão evocam a sabedoria madura do grande cético francês. Por exemplo,

esta definição da amizade, que se termina por:

InrRODUÇAO GERAL / FORTUNA CRITICA

1O9

"Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com que a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo." - não é muito

diferente da idéia resumida por Montaigne a propósito de sua afeição por Lã Boétie, dizendo que o apreciava "porque ele era ele, e eu era eu". Ou este outro aforismo

montaigniano, em que a tolerância encontra sua justificativa num princípio pragmático: "Porque, quando se curte raiva de alguém é a mesma coisa que se autorizar

que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o sentir da gente". Ou esta outra máxima sobre a educação, em que a primazia é dada aos dotes

naturais: "Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende." Ou ainda essa preocupação em conciliar liberdade e sabedoria, individualismo e felicidade:

"... existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver - e essa pauta cada um tem - mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar..."

"E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa."

Mas tanto pela filosofia quanto pelo temperamento de artista, é sobretudo em Rabelais que faz pensar o Guimarães Rosa de Grande sertão: veredas. E a inscrição do

frontispício da abadia de Theleme poderia servir de epígrafe a esse romance brasileiro: Fais ce que voudras. Com efeito, a idéia última que me ficou de sua leitura

é a da sabedoria suprema da natureza, é o papel de providência superior por ela representado. Esse romance de halo fusco e misterioso, que nos transmite uma impressão

tal de espessura dramática nos fenômenos e atos humanos, em cuja atmosfera paira não sei que indistinta interrogação cósmica - conclui explicitamente pela não existência

do diabo, implica no seu significado numa recusa do mistério e da metafísica, numa concepção solar do mundo e transparente da natureza humana. "Faze o que quiseres"

- pois a natureza se encarrega de guiar nossos passos, ela somente quer o necessário e o nosso bem. A atração de Riobaldo por Diadorim, desde o primeiro encontro,

era legítima: Diadorim revela-se moça. A antipatia e a repulsão de Riobaldo por Hermógenes, desde o primeiro encontro, justifica-se: ele se revelaria o vilão, um

demônio. Quanto ao mais, esse jagunço sem instrução nem educação livre espontâneo como um fauno, que aparentemente vive apenas pelos sentidos e pelo instinto, que

encontra seu equilíbrio no contato imediato com a natureza, os animais, os elementos e as mulheres colhidas à beira da estrada, em quem a sociedade não formou, ou

pouco contribuiu para formar, uma consciência moral, age como um sábio e um humano, tem o sentimento invencível do bem e do mal, instintivamente se orienta ao longo

de sua carreira de bandido segundo uma norma filosófica coerente.

A esse otimismo fundamental, a esse naturalismo rabelaisiano, acrescentem-se as afinidades de temperamento artístico. Como em Rabelais, no sr. Guimarães Rosa um

gênero aparentemente anódino - história de

aventuras - não passa de invólucro e disfarce para um romance de idéias, para meditação grave sobre o destino humano, para uma concepção pessoal do mundo e do homem.

Como o Rabelais, renascentista, o sr. G.R. é médico (se não me engano, embora não pratique a profissão), diplomata viajado, poliglota, homem de curiosidade universal

e de ciência prodigiosa - que no entanto não perdeu o gout du terroir, conservou a saúde e a vigorosa sensibilidade (sentido largo), preservou a nostalgia de uma

existência livre e dionisíaca, elaborando estes últimos elementos naturais através da experiência intelectual obtida com aqueles, fazendo entrar sua erudição na

sua sensibilidade, ampliando o alcance do regional e do local graças à sua universal cultura. Como Rabelais, o sr. G. R. tem algo de copioso, de exuberante, de excessivo

mesmo, apreciando as imagens grotescas, às vezes truculentas, expressionistas quase sempre. Como Rabelais, o escritor brasileiro tem um fraco pelo neologismo, pelo

vocábulo sonoro ou pitoresco, deixando-se levar pela fantasia verbal, pelas piruetas e fanfarras da linguagem, escorregando para o nível meramente lúdico do verbo,

manejando-o por volúpia, como um player senhor do campo que se compraz em "dar um baile" no seu adversário. Mas como em Rabelais, sob esses caprichos e fantasias

verbais, os sentidos estão alertas, persiste um senso do concreto, um realismo seivoso - comes-e-bebes, presença singular de bichos, ventos e plantas, cheiro de

terra depois das chuvas - ao lado de um realismo visionário muitas vezes implícito, o sertão mineiro não raro fazendo pensar na floresta mágica do Sonho de uma noite

de verão, ao longo de cujas veredas se espreguiçassem os acordes da flauta de Pari.

E para terminar volto a Joyce: o que acima de tudo apaixona em Grande sertão: veredas, como no Ulisses, é o caráter audacioso de experiência, o imenso material manipulado

- e dominado - a coragem manifesta nesse desprezo absoluto da facilidade e nesse desafio lançado à convenção - a sabedoria humana e a inteligência nele prodigalizadas,

com não sei que juvenil esprit de jeu.

UM LIVRO INÉDITO /

Graciliano Ramos

No CONCURSO Humberto de Campos, instituído pela livraria José Olympio, dois escritores chegaram juntos até o último escrutínio: o sr. Luís Jardim, já obtentor de

vários prêmios, e Viator, pseudônimo dum desconhecido que se apresentou com um livro de quase quinhentas páginas datilografadas. Houve discussão, o júri excitou-se,

afinal Viator perdeu por um voto. Perdeu, mas teve a preferência de Prudente de Morais, o que sempre vale alguma coisa. E quase chove pancada, argumento de peso

nesta capital

1NTRODUÇAO GERAL / FORTUNA CRÍTICA 111

do futebol e do carnaval, onde os literatos se esquentam desesperadamente e a crítica às vêzes deixa o jornal, entra nos becos, ataca famílias respeitáveis e acaba

em murros.

Votei contra esse livro de Viator. Votei porque dois dos seus contos me pareceram bastante ordinários: a história dum médico morto na roça, reduzido à condição de

trabalhador de eito, e o namoro mais ou menos idiota dum engenheiro com uma professora de grupo escolar. Esses dois contos e algumas páginas campanudas, entre elas

uma que cheira a propaganda de soro antiofídico, me deram arrepios e me afastaram do vasto calhamaço de quinhentas páginas.

Jardim embolsou o prêmio, figurou nas vitrinas, recebeu da crítica umas amabilidades. E Viator não se manifestou, até hoje permanece em rigoroso incógnito: ignoramos

se é moço ou velho, em que se ocupa, a que raça pertence. Apenas imaginamos que é médico e reside no interior, em Minas ou perto de Minas.

Ora esse silêncio não é razoável. Em virtude da decisão do júri, muita gente supõe que o concorrente vencido seja um escritor de pequena valia. Injustiça: apesar

dos contos ruins e de várias passagens de mau gosto, esse desconhecido é alguém de muita força e não tem o direito de esconder-se. Prudente de Morais acha que ele

fez alguns dos melhores contos que existem em língua portuguesa. Nestes tempos de elogio barato opiniões semelhantes fervilham nos jornais e não têm a mínima importância,

mas Prudente desdenha os salamaleques e julga devagar. Hesitou entre os dois livros, afinal optou pelo que, tendo graves defeitos, encerra trabalhos como Conversa

de bois, uma verdadeira maravilha.

Três membros da comissão escolheram um livro que não sobe demais nem desce muito. Um deles, na véspera do julgamento, aconselhou José Olympio a editar as duas obras,

qualquer que fosse a premiada. Realmente a escolha era bem difícil.

Mas Viator não apareceu, o que devemos lastimar. Orgulho ou modéstia? Parece que esse homem não se contenta com segundo lugar. Aqui, porém, não se trata de subalternidade:

dos seus contos uns são melhores, outros são piores que os do escritor pernambucano. Viator é terrivelmente desigual: ou o namoro idiota da professorinha ou a morte

do compadre Joãozinho Bembem, página admirável.

Vivem por aí a falar demais em literatura do Nordeste, literatura do Centro, literatura do Sul, num jogo de empurra cheio de picuinhas tolas. As histórias a que

me refiro são do Brasil inteiro: por isso não podemos saber onde vive o autor, um sujeito que sabe o que diz e observou tudo muito direito.

É preciso que o livro de Viator seja publicado. O meu desejo é que figurem no volume todos os contos, os bons e os maus. A publicação dos se-

gundos justificava a opinião de três membros do júri que funcionou no concurso Humberto de Campos.

O TRANSREALISMO DE G.R.

Tristão de Ataíde

O HOMERO de votos obtido por Guimarães Rosa, em sua entrada para a Academia, que corresponde praticamente à unanimidade (34-2), é a consagração da maior revelação

literária brasileira da fase dos modernistas. Foi Álvaro Lins, com alto faro crítico, que em 1946 abriu as portas da grande literatura a esse desconhecido. Não chegava

às letras de mansinho, como Machado de Assis. Nem as agredia violentamente, como Mário de Andrade. Entrava, como Euclides da Cunha, sem mansidão nem violência, mas

de corpo inteiro, com uma obra feita, à qual nada faltava para lhe garantir um lugar à parte na galeria dos nossos grandes criadores.

Pois é, por excelência, um criador, isto é, um iniciador de recursos novos, um desbravador de caminhos. Vinha unir dois pólos aparentemente contraditórios, que são

afinal duas vertentes da mesma cordilheira - o espírito telúrico e o espírito oceânico. São duas faces de todo o continentalismo literário americano, de que participam

igualmente nossas letras, uma voltada para a terra e a outra voltada para o mundo. Os nossos maiorais das letras sempre as conjugaram. Em uns, com predomínio do

espírito universalista, como em Machado de Assis. Em outros, do espírito localista, como em Euclides da Cunha.

À primeira vista Guimarães Rosa pertence mais à família euclidiana que à família machadiana. Na realidade, o que nele se encontra é mesmo uma integração dos dois

espíritos, embora com aparente predomínio da vertente alencarina ou telúrica. Isso porque a pais em e a palavra desempenham um papel muito importante em sua expressão

estética e tanto uma como outra em estreita ligação com a realidade sertaneja. Mas nada é mais estranho à sua literatura do que o regionalismo. Será sertanista mas

não regionalista. É todo o interior do Brasil, e não apenas os "sertões do Urucuia", por suas paisagens, suas criaturas humanas, seus costumes e sua linguagem, que

vive em seus romances e sua novelas. Nunca limitado a uma região, sendo embora mineiro de nascimento e até de espírito, não é como tal que criou talvez um gênero

em nossas letras e forjou seguramente uma linguagem. Um e outra tão seus e tão revolucionários que muita gente hesita em face da floresta espessa de seus livros,

como hesitamos ante uma floresta virgem, tão cheia de lianas, mistérios e espantos. Uma vez lá dentro, porém, é difícil sair. Somos insensivelmente enredados naquela

atmosfera singular, que nos arrasta para fora da realidade sensível, por mais aparentemente

112

1X"rROllUÇAO GERAL / FORTUNA CRITICA

113

vulgares que sejam os tipos e os casos de que se ocupa. E por isso mesmo que estão indissoluvelmente unidos, no seu estilo inconfundível. O Brasil e o Mundo. Daí

a grande surpresa e o grande teste: a tradução de suas obras em línguas estrangeiras, francês, inglês, alemão. Por ora... A primeira vista não há quem não diga -

G.R. é intraduzível; só mesmo no Brasil e no português brasileiro em que escreve é que pode ser lido. Quem disse? Os estrangeiros, que tiveram contato com essa obra

diferente, viram logo o outro aspecto que o seu brasileirismo aparentemente esconde: o seu universalismo. Não é à toa que G.R. é profundamente religioso. Dizem até

místico. Isso se traduz em toda a atmosfera dos seus livros e no temperamento das suas personagens. Há sempre um mistério que cerca a paisagem, as figuras, os atos

e as palavras do narrador. É uma aura transrealista, que refoge a qualquer limitação pelos sentidos. E essa transrealidade é que permite aos temas mais locais, às

personagens mais tipicamente sertanejas, à linguagem mais aparentemente recolhida "da boca do bárbaro", como dizia Antônio Vieira, assumirem um sentido, nitidamente

universal. Foi ela quem animou os tradutores a vencerem as tremendas dificuldades desse tropicalismo transcendental e universalista, que nos deu mais uma saída transoceânica

para o nosso isolacionismo intelectual.

O AMOR NA OBRA DE GUIMARÃES ROSA

Benedito Nunes

O TEMA DO AMOR ocupa, na obra essencialmente poética de Guimarães Rosa, uma posição privilegiada." Em Grande sertão: veredas, onde aparece entrelaçado com o problema

da existência do Demônio e da natureza do Mal, atinge extrema complexidade e envolve diversos aspectos que compõem toda uma idéia erótica da vida.

O jagunço Riobaldo, de Grande sertão: veredas, conhece três espécies diferentes de amor: o enlevo por Otacília, moça encontrada na Fazenda Santa Catarina, a flamejante

e dúbia paixão pelo amigo Diadorim, e a recordação voluptuosa de Nhorinhá, prostituta, filha daquela Ana Duzuza, e versada em artes mágicas. São três amores, três

paixões qualitativamente diversas, que chegam por vezes a interpenetrar-se.

Otacília, "forte como a paz", é apenas uma lembrança, imagem ideal colhida, de passagem, num pedaço de sertão, e que sobre a alma do jagun

Nossa análise abrange os livros abaixo relacionados, com as respectivas cifras de citação: Grande sertão: veredas-G.S. (Rio de Janeiro, José Olympio, 1956). Corpo

de baileC.B. (Rio de janeiro, José Olympio, 196O). Primeiras estórias - P.E. (Rio de Janeiro, José Olympio, 1962).

ço exerce um efeito purificador, levando-o a sonhar com uma vida outra, fora das andanças de guerrear e pelejar. Diadorim infunde-lhe uma paixão equívoca, vizinha

do estado de confusão e encantamento atribuído ao Maligno ou ao poder do Destino: "Aquela mandante amizade [fala Riobaldo, referindo-se ao Reinaldo, Diadorim]. Eu

não pensava em adiação nenhuma, de pior propósito. Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa-feita." Feitiço,

artes e partes do Demo, astúcias do Maligno, que provêm menos de uma potência estranha, exterior ao homem, do que dos excessos, das "demasias do coração". O encantamento

por Diadorim, que perdura durante o périplo da busca do traidor Hermógenes, assassino de Joca Ramires e encarnação do Diabo, só desaparece quando, no final do romance,

ao ser liquidado o autor da felonia, o amigo de tão finas feições, morto em combate, revela-se tal qual era, mulher-moça, que vivera travestida de homem, e cuja

sedução emanava de seu ambíguo modo de ser: "Ela era - confessa Riobaldo em sobressalto. - Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão

para me benzer - mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores." Muito diferente desse estado de encantamento, de sedução diabólica, é o amor

por Nhorinhá, simples e natural, que nasceu de um abraço voluptuoso e foi crescendo na memória de Riobaldo, em torno da recordação do prazer sensível que ela lhe

proporcionara, até converter-se numa forte paixão, secretamente cultivada e estranhamente parecida com o sentimento mais puro, quase desencarnado e beatífico que

a imagem etérea de Otacília nele produzia.

A relação entre essas três espécies de amor, diferentes formas ou estágios de um mesmo impulso erótico, que é primitivo e caótico em Diadorim, sensual em Nhorinhá

e espiritual em Otacília, traduz um escalo amento semelhante ao da dialética ascensional, transmitida por Diotima a ócrates em O banquete, de Platão: eros, geração

na beleza, desejo de imo tálidade, eleva-se, gradualmente, do sensível ao inteligível, do corpo à alma, da carne ao espírito, num perene esforço de sublimação, que

parte do mais baixo para atingir o mais alto, e que, em sua escalada, não elimina os estágios inferiores de que se serviu, porque só por intermédio deles pode atingir

o alvo superior para onde se dirige."

Procuraremos mostrar, neste estudo, que a tematização do amor, na obra de Guimarães Rosa, repousa principalmente nessa idéia mestra do platonismo, colocada, porém,

numa perspectiva mística heterodoxa, que

Platão, O banquete (trad. de Lóon Robin, ed. Pléiade). Antes da revelação de Ditioma, Aristófanes, em seu discurso, refere-se à fase primitiva da indistinção católica

de Eros: o terceiro gênero da espécie humana, o andrógino, que incluía as duas naturezas, masculina e feminina. V. 189 e a 19O6.

114

se harmoniza com a tradição hermética e alquímica, fonte de toda uma rica simbologia amorosa, que exprime, em linguagem mítico-poética, situada no extremo limite

do profano com o sagrado, a conversão do amor humano em amor divino, do erótico em místico. Tal seria a síntese da visão erótica da vida entranhada na criação literária

de Guimarães Rosa.

1

Do contato carnal com Nhorinhá, Riobaldo guarda, a princípio, uma imagem toda sensual e voluptuosa. "Recebeu meu carinho no cetim do pêlo - alegria que foi, feito

casamento, esponsal." A Otacília, o valente Tatarana, depois Urutu Branco, dedica pensamentos enlevados, como se, através da rememoração, às belezas do corpo dela

se acrescentasse, imediatamente, um encanto supra-sensível, oriundo de uma outra beleza, mais elevada e mais pura. "Minha Otacília, fina de recato, em seu realce

de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença." Para conquistar essa outra beleza, para alçar-se até aquela imagem de paz, que se assemelha aos remansos do Urucuia,

e que dorme em sua alma como secreta reminiscência, de quando em quando despertada, Riobaldo deverá pagar tributo à sensualidade de Nhorinhá - sensualidade que não

o detém, e que lhe serve de escala, de via de acesso em direção a Otacília.3

Mas - repare-se - nos desfios das recordações do jagunço, as duas imagens, embora sem perder os atributos que lhes pertencem, vão, pouco a pouco, se interpenetrando,

uma produzindo a lembrança da outra, e, nesse intercâmbio, enriquecem-se mutuamente. Uma mesma flor branca, que parecia um lírio - a "Casa-comigo" dos namorados

- evoca essas figuras femininas tão díspares. "Indaguei o nome da flor. - "Casa-comigo..." - Otacília baixinho me atendeu.(...)" Consoante outras, as mulheres livres,

dadas, respondem- `Dorme-comigo..."Assim era que devia de haver de ter de me dizer aquela linda moça Nhorinhá, filha de Ana Duzuza, nos Gerais confins; e que também

gostou de mim e eu dela gostei."

Dama inspiradora de Riobaldo, consoladora e mediadora em seu espírito de uma outra vida - vita nuova - cheia de calma e paz, apenas vislum brada, Otacília, misto

de princesa e castelã, dona de territórios imaginários

s A "firme presença" de Otacília, na memória de Riobaldo, é um equivalente da inspira ção e da fortaleza que os cavaleiros andantes encontraram cultuando as suas

senhoras damas, às quais dedicavam a valia de seus feitos. Pois não é o geralista Riobaldo o Ama dis de Gaula dos sertões, e Otacília uma transposição de Oriana

para a ardência do Gerais? O paralelo entre o personagem central de Grande sertão: veredas e os heróis d romances de cavalaria já foi estabelecido por mais de um

ensaísta. Ver M. Cavalcan Proença ("Trilhas do Grande Sertão", in Augusto dos Anjos e outros ensaios, Rio de Ia neiro, José Olympio, 1959), e Antonio Cândido ("O

Sertão e o mundo", in Diálogo, n, 8)

11, 1 RODUÇAO GERAI. l FORTUNA CRÍTICA 115

perdura na alma como objeto ideal, fonte de permanente e constante aspiração, como símbolo do termo onde finda a busca amorosa e o destino se completa. Na menina

pálida e distante do Paracatu com quem sonhava o vaqueiro Lélio, de "A estória de Lélio e Lina", repete-se o mesmo símbolo do amor que, sem o saber, busca a sua

forma completa, a sua realização integral, através de amores passageiros. É o que Mãe-Lina, a sábia velhinha, compreende, ao dizer a Lélio, em tom de conselho: "O

amor tenteia de vereda em vereda, de serra em serra... Sabe que: o amor, mesmo, é a espécie rara de se achar..."

Tenteando de vereda em vereda, de serra em serra, eros em sua perene atividade, impulsiva e sôfrega, mal se detém numa forma, logo abre as asas e prepara-se para

voar na direção de outra. Não elimina porém os objetos em que pousa, não suprime as escalas de sua trajetória. O amor carnal conserva-se no espiritual. Essas duas

manifestações, embora qualitativamente distintas, e de diferente altura na escalada do impulso erótico, interpenetramse, harmonizam-se como as imagens antagônicas

de Otacília e Nhorinhá, alcançando o difícil equilíbrio que resulta da superação de uma pela outra. O espírito não suprime a carne, abolindo-a, isto sim, no sentido

dialético, em que abolir, sinônimo de superar, é abolir o inferior conservando-o no superior, completar o incompleto, passar de um estado de carência a um estado

de plenitude. A harmonia final das tensões opostas, dos contrários aparentemente inconciliáveis que se repudiam, mas que geram, pela sua oposição recíproca, uma

forma superior e mais completa, é a dominante da erótica de Guimarães Rosa. Nela o amor espiritual é o esplendor, a refulgência do amor físico, aquilo em que a sensualidade

se transforma, quando se deixa conduzir pela força impessoal e universal do eros.

Tendo-se em mente essa idéia, que sumariza as relações entre as diferentes espécies de amor, vê-se que certos detalhes da fabulação na novelística de Guimarães Rosa,

que poderiam ser levados à conta de notações itorescas, de pormenores, configuram valores indissociáveis da concep o erótica do romancista. Assim, vale assinalar

que, tanto em Grande se tão: veredas como em Corpo de baile, sobressai o caráter não pecaminoso das relações sexuais, por um lado e, por outro, a ausência de degradação

e de malícia nas prostitutas, que nem sempre são figuras secundárias, circunstanciais."

A união dos sexos é boda, "casamento esponsal", momento de celebração, descoberta, iniciação. O prazer sexual, que nada tem de obscuro ou de pecaminoso, marca um

começo, o início de uma trajetória. Nesse sentido,

Ver, a esse respeito, duas sugestivas observações de Luís Costa Lima Filho, em "A expressão orgânica de um escritor moderno", estudo sobre G.R.: "O sexo e seu impulso

aparece como uma prazenteira necessidade, um imperativo que se fez ao homem... As prostitutas são criaturas normais, quanto eu ou você", in Diálogo, no 8, p. 81.

116

a erótica de Guimarães Rosa toca-se com a de David Herbert Lawrence. Para ambos o amor é trânsito, passagem, e as energias primárias do sexo, que lhe dão origem

e que o mantêm, ainda subsistem em seus estágios mais elevados.

O romancista de A serpente emplumada escreveu num de seus ensaios: "Love is not a goal; it is only a travelling." S O grande sertão de Guimarães Rosa, espaço mítico

onde se desencadeia a luta entre o Bem e o Mal, inseparável das marchas e contramarchas do amor, recebe um nome definitivo: travessia. Lawrence vê no sexo uma espécie

de fogo, que aquece, atrai e refulge, como flama, na beleza dos corpos." Nas mulheres que amam e se fazem amar, esse fogo se conserva sem jamais apagar-se de todo.

Quando ele falta, desaparece não só a beleza física: o coração esfria e cessa a força do espírito. Rosalina, personagem de Guimarães Rosa, velha que não deixara

de ser jovem, sabe disso e segreda a Lélio: "Escuta: mulher que não é fêmea nos fogos do corpo, essa é que não floresce de alma nos olhos e é seca no coração..."

Paradoxalmente, o amor carnal é e não é tudo. É tudo, se for o começo de uma transformação, o início de uma aprendizagem, o termo inicial de um processo que, de

intersubjetivo, entre seres que se amam solitariamente, confinados à dialogação do corpo e da alma, em sua primeira fase, acaba se tornando cósmico, interessando

ao universo inteiro. Nesse processo, a prostituta, que ganha um relevo excepcional na fabulação de Guimarães Rosa, tem papel saliente. Ela é sempre a fêmea que tem

fogos no corpo, pronta a transmitir, generosamente, o impulso vital que fervilha em seu ser. As amáveis, acolhedoras, alegres, festivas e dadivosas prostitutas de

"A estória de Lélio e Lina% Tomásia e Conceição, "as tias", que moram na fazenda de seu Senclér, desempenham a sua função com a dignidade de um rito agrário extinto

e servem os fregueses, vaqueiros e empregados da fazenda, com a mestria de quem exerce uma arte, com o entusiasmo de quem pratica um ato vital, inesgotável, refratário

ao enfado e à rotina. "As `tias", a Conceição e a Tomázia, se consentiam à farta, por prazer de artes." Nada há de pecaminoso nelas, como nada de sombrio perpassa

no ato sexual, que o romancista valoriza: assim, a noite de amores de Soropita, ao chegar de viagem, com Doralda, sua mulher, ex-meretriz em Montes Cla

Esse pensamento de Lawrence completa-se assim: "Likewise death is not a goal; it is a travelling as under finto elemental chaos. And from the elemental chaos all

is cast forth again finto creation". "Love", p. 24-3O de Selected Essays. Londres, Penguin Books, 1954.

a "For it always communicate a sense of warmth, of glow. And when the glow becomes a pure shine, then we feel the sense of beauty." - "A good looking woman becomes

lovely when the tire of sex rouses pure and fine in her and flickers through her face and touches the tire in me." - "Sex versus Loveliness", de Selected Essays,

citado.

IN TRODUÇAO GERAL / FORTUNA CRITICA 11]

ros, e que oferece ao marido, na alcova familiar, os encantos estudados da cortesã, de profissional do amor.

No entanto, o amor carnal nada é se perde as suas ligações com o todo, com o processo cósmico do qual faz parte, se não é a primeira etapa de uma trajetória ascensional

e expansiva, que integra o prazer físico ao dinamismo da alma e converte o desejo sexual, sem extingui-lo, em anelo de identificação com o objeto amado. Em Doralda

se opera uma metamorfose. Do amor anônimo-que a todos distribuía, indistintamente, como deusa telúrica, Mãe Terra, Eva carnal, ela ascendeu ao amor-paixão individualizado,

romântico, no qual o anelo amoroso se singulariza, concentrando-se numa só pessoa, na beleza de um único corpo, súmula de todos os corpos belos.

Quando porém a metamorfose não ocorre, o ato sexual repetido, acrescentando prazer a prazer e insatisfação a insatisfação, detém o movimento ascensional do amor.

É o caso de Jini, a ardente mulatinha, que consegue aprisionar os ardores juvenis de Lélio na estreiteza de uma volúpia opaca, sem horizontes, sem possibilidade

de ultrapassar os limites de monotonia imposta pelo prazer recorrente. "Não via [Lélio] o mingo amor, não sentia que ele mesmo fosse para ela [Jini] uma pessoa,

mas só uma coisa apreciada no momento, um pé de pau de que ela carecesse."

Na sua função cósmica, a copulatio constitui um símbolo de novação, o prenúncio da aurora, da primavera. É o surto da vida, a eterna boda das coisas e dos seres,

apagando a velhice e vencendo a morte. Em "Luas-demel", de Primeiras estórias, o fogo do sexo que inflama o jovem casal fugido transmite-se ao velho fazendeiro que

lhes dá acolhida, nele reacendendo o antigo amor arrefecido pela sua companheira de muitos anos, Sa-MariaAndreza. O Noivo e a Noiva dessa estória, bem novos, juntam-se

ao marido e à mulher, os donos da fazenda, bem velhos, como a Aurora depois da Noite. "O Noivo se retirou, com a Noiva; e mais uns, que com mais sono, já estando

soprando nas palhas (...) Eu, feliz, [reflete o fazendeiro] olhei minha Sa-Maria-Andreia; fogo de amor, verbigrácia. Mão na mão, eu lhe dizendo - na outra o rifle

empunhado - : - `Vamos dormir abraçados..." As coisas que estão para a aurora, são antes à noite confiadas."

Entre as duas luas-de-mel que se comunicam, uma nascendo da outra, uma geração a outra, eros cumpre o seu ciclo cósmico, unindo o principio e o fim, o primeiro e

o último termo de uma trajetória, o amor carnal ao espiritual, as bodas dos corpos às núpcias da alma.

Essa trajetória erótica, que pode ser interpretada no sentido ascendente, conforme vimos, ajusta-se, também, ao simbolismo da transubstanciação alquímica. O platonismo

de Guimarães Rosa é inseparável da tradição her

mético-alquímica.

JOAO GUIMARAES ROSA / FICÇAO COMVLFTA

II

O conspecto da alquimia, na sua dimensão mística, tão representativa da idéia do amor, que se impôs com o neoplatonismo, conquistou, nos fins da Idade Média, e manteve,

até o século XVI, uma posição em meio às

correntes místicas.?

Esse aspecto místico está patente no caráter ascético de que se revestiam

as operações de mistura ou de combinações praticadas pelos alquimistas. Duas nomenclaturas se entrelaçam na alquimia: uma real, que nomeia os corpos segundo suas

propriedades conhecidas e as reações que se produzem entre eles, por mistura ou combinação; outra figurada, mediante a qual as substâncias adquirem valor simbólico

e, juntamente com as operações de que participam, representam diferentes estados, paixões ou transformações da alma." Paralelamente ao processo químico ou, seria

melhor dizer, préquímico, instaura-se um processo simbólico, de ascese dos sentidos, do desejo, sobretudo carnal, de purificação do corpo e da alma, indo até o despojamento

místico, à auto-renúncia e à expectativa de salvação.

Atente-se para o fato de que o simbolismo alquímico interpreta a parte mística não como aditamento alegórico, sugerido pela analogia dos movimentos anímicos com

as reações substanciais, como o sentido oculto e verdadeiro dessas reações. Ele pressupõe um parentesco entre a alma e a matéria, uma afinidade do homem com o universo."

Herdeira da tradição neoplatônica e hermético-mística, a alquimia, que é também gnose, não se contenta em expressar essa afinidade, mas procura traduzir operativamente

as correspondências do interno com o externo, do superior com o inferior, do macrocosmo com o microcosmo - correspondências que famoso documento alquímico, a Tábua

Smaradigna, estabelece de modo sibilino, ao dizer, lembrando o conteúdo de um fragmento de Heraclito, que tudo que está em cima também está embaixo. 1O

"Substancialmente- informa Cirlot- era um processo simbólico destinado a obter o

ouro, como símbolo da iluminação e da salvação." Diccionario de símbolos, 78. Barcelona, 1958.

a Esses estados, conforme as fases decorrentes das operações, eram a calcinação, a putre

fação, a solução, a destilação, a conjunção e a sublimação. Cirlot, idem.

9 "A alquimia simbólica - registra Sherwood Taylor - com efeito, pressupõe que mudanças na matéria por ela simbolizadas são análogas às mudanças nos seres vivos

essencialmente no homem. Isso decorre da compreensão da natureza em termos d vida." Los Alquimistas, Sherwood Taylor, México, Fondo de Cultura, 1957. 11 Tábua Smaradigna:

documento básico da tradição hermético-alquimista, atribuído autoria de Hermes Trimegisto e que por ele teria sido gravado numa esmeralda. A ver são integral do

preceito citado é: "É verdade, sem mentira, certo e muito verdadeiro O que está embaixo é como o que está em cima, o que está em cima é como o que es

embaixo, para cumprir os milagres de uma coisa única". Compare-se com Heraclito frag. n° 6O: "Um só e mesmo caminho para cima e para baixo".

IN"VRODUÇAO GERAL / FORTUNA CRITICA 119

Ora, é precisamente através desse princípio que podemos perceber a orientação predominante do misticismo alquímico. O superior - as regiões celestes ou o domínio

do espírito - está contido, de modo latente, no inferior e material - a terra, os metais, os corpos. Entre essas esferas que se correspondem, há uma correlação necessária,

formulada em termos que não se ajustam inteiramente ao esquematismo platônico da participação, segundo o qual o mundo sensível, inferior, que está embaixo, existe

na medida em que reflete as formas arquetípicas, as essências do mundo inteligível superior - uper ouranos topos - que estão no alto. Nas relações recíprocas do

inferior com o superior, este não somente é participado, como também antecipado por aquele. Como poderiam as essências, idênticas, intemporais e unitárias, refletir-se

nas coisas, se já não preexistissem nelas? Os dois mundos separados de Platão, circunscrições topológicas opostas, direções diferentes de um mesmo universo ou macrocosmo

indiviso, residem no homem, ser microcósmico, que na sua parte física e anímica abrange o inferior e que está em comunicação com o superior, através de sua parte

poética ou espiritual.

Espelha-se na alquimia, em meio a uma pletora de símbolos, a súmula do pensamento antigo sobre a condição dúplice da alma, contraposta à unidade do ser. A alma,

dizia Aristóteles, é de certa maneira tudo. Mas já Plotino a considera como hipótese mediadora, que se eleva aos páramos da Inteligência e desde à multiplicidade

da matéria sensível, contendo um reflexo, ainda que esmaecido, daquela Unidade primeira, onde tudo teve origem e para onde o homem anseia retornar, captando-a nesta

vida, por meio da contemplação extática. Una também em sua essência, transcendente e impessoal, ligada ao corpo pela mesma necessidade interna que forçou a Unidade

a irradiar-se em emanações escalonadas que constituem o Todo universal -, ela busca inçessantemente restaurar a sua integridade, recuperar a sua perfeição originária.

Essa vontade de restituição manifesta-se no élan amoroso e na ascese mística, duas vias de retorno que se equivalem, pois o homem tenta vencer, por meio delas, a

alteridade, identificando-se com outrem no amor ou com a divindade, na culminãoncia do êxtase.

A alquimia exprime simbolicamente a recuperação da alma, como um processo de espiritualização, que passa por etapas sucessivas e depende dé, determinadas operações,

as quais têm por fim reunir o que foi separado, fundir as partes dispersas da unidade primordial que se fracionou, ultrapassar a diviso elementorum. Possuindo um

sentido erótico e místico, o que a particulariza é que ela visa formar o espiritual por uma ativação da matéria, e alcançar o superior por meio de uma explicitação

das potencialidades contidas no inferior, sem quebra do princípio da unidade subjacente de

todas as coisas.

1NTRODUÇAO GERAL / FORTUNA CRÍTICA

121

Desse modo, a liberação da alma, como volta a si mesma, não resulta jamais de um rompimento com o sensível, do desprezo votado ao corpo e às ligações da carne, mas

de um trabalho lento e progressivo de transubstanciação do material, do físico, do carnal, que se vai fazendo graças ao dinamismo de um mesmo impulso gerador, de

um mesmo élan atuante no homem e na Natureza, que reside nos elementos baixos, obscuros e humildes do micro e do macrocosmo. Podemos identificar esse impulso, que

se purifica e se eleva à espiritualidade, mediante a combinação dos princípios contrários - o masculino e o feminino - com o élan amoroso, eros, em sua existência

universal e cósmica, objeto ancestral de meditação e do culto órfcos.11 A pedra filosofal, obra máxima dos alquimistas, que deveria ser obtida pela síntese dos contrários,

representada como boda de sentido físico e espiritual, simboliza o momento em que a alma recupera a sua identidade e se transfigura a si mesma, espiritualizando-se

juntamente com a Natureza. 12

É nesse contexto da visão alquímica que se integram a transubstanciação do carnal no espiritual e a relevância do sexo como energia primária que se transforma em

espírito, aspectos inerentes à concepção erótica da vida de Guimarães Rosa, delineada no capítulo anterior. Nela cabe a imagem do eros completo, em sua função cósmica,

que passa pelo cadinho do sexo, nutre-se dos arroubos do prazer sensível, alastra-se pela Natureza inteira, até consumi-la no fogo ardente do espírito que purifica

todas as coisas. 13 A tessitura simbólica da alquimia torna-se patente nos elementos metafóricos que expressam as intenções místicas de uma narrativa como "Substância",

e que imprimem ao ritmo e à estrutura de sua prosa um caráter essencialmente poético.

"Não se estranhará que a idéia de união mística tenha desempenhado um papel tão importante na alquimia se se considera que a expressão tão freqüentemente empregada

para designá-la, conjuctio, refere-se ao que chamamos hoje combinação química e quei aquilo que une os corpos toma atualmente o nome de afinidade. Mas antigamente

utilizavam-se diversas denominações, todas expressando relações humanas e particu

larmente eróticas, como nuptiae, matrimoniam, e comungium, amicitti, atractio e adu

fatio. Correspondentemente, caracterizavam-se os corpos que deviam unir-se como

agens e patiens, como vir ou musculus e como feminina, mulier..." C.G. Jung, La Psicologia de Ia Transferencia- Esclarecida por medio de una série de imagens de

Ia alquimia. Buenos Aires, Paidós.

"Z Também chamada rebis, Japis, hermaphroditus, representa o ser para cujo engendramento se realiza a obra alquímica. Segundo Jung, o simbolismo da pedra filosofal

traduz a ansiada união de anima com animas, que são o feminino e o masculino.

j Eros, assim concebido, élan que reside na alma e nas coisas - "a força produtora d toda força", a que se refere a Tábua Smaradigna, invocando o Uno. "Seu poder

não te limites sobre a terra." - "Ele sobe da Terra ao Céu, e em seguida volta a descer à Terra e recolhe a força das coisas superiores e inferiores."

Em "Substância" o fazendeiro Sionésio deslumbra-se com a beleza de Maria Exita, que para ele trabalhava, quebrando o polvilho nas lajes de uma pedreira. Nasce daí

o amor, e vai crescendo, silenciosamente, numa linguagem muda e contemplativa, que os une intimamente quase que por efeito da dupla visão de um pelo outro. No momento

em que Sionésio aceita Maria Exita, após se dissolverem suas hesitações, a mútua compreensão de ambos funde-os tão completamente que o amor apalavrado, mais do que

um compromisso, é um ato nupcial que os transfigura e que através deles se transmite às coisas circundantes. A Natureza se transforma em paisagem, envolvendo os

amantes e sendo envolvida por eles. O encontro do amor, a sua descoberta e consumação, partilhados pelo mundo, fazem translúcidos os corpos dos que se amam e a realidade

física. A enxertia simbólica das imagens empregadas, para descrever esse instante, em harmonia com os elementos naturais do cenário, que é uma pedreira, de onde

se extrai o polvilho; provém da pedra filosofal, como arquétipo da transfiguração da alma e do cosmo, redimidos de suas impurezas e imperfeições. O alvor, o brilho

solar da ambivalência, o polvilho, a brancura das pedras como que se desmaterializam, recebendo um significado mítico-poético. "Ele veio para junto. Estendeu também

as mãos para o polvilho - solar e estranho: o ato de quebrá-lo era gostoso, parecia um brinquedo de menino." O polvilho, "coisa sem fim", tem a refulgência esplêndida

em que se transubstancia o brilho físico elementar subsistente. É a alvura com a qual os alquimistas simbolizam o estado de purificação:14 "Sionésio e Maria Exita

- a meios olhos, perante o refulgir, o todo branco. Acontecia o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. Só-oum-e-outra, um em-si-juntos, o viver em ponto

sem parar, coraçãomente: pensamento, pensamor. Alvor. Avançavam, parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os Pássaros."IS

Como dissemos no capítulo anterior, o verdadeiro amor começa debaixo. É o que nos ensina a reflexão de Riobaldo acerca de Nhorinhá: "Ah, a mangaba boa só se colhe

já caída no chão, de baixo..." O amor não voa onde quer; para voar é preciso que untes rasteje, e se ponha em contato com as variadas solicitações do mundo sensível,

onde o impulso sexual recebe das coisas e sobretudo dos corpos belos a força de que necessita para

elevar-se.

14 "O alvo (albedo dealbatio) é comparável com o rotas solis (saída do sol). É a luz que surge depois das trevas, a iluminação depois do escurecimento." Vê-se aí

a plurivalên

cia simbólica da pedra filosofal, que se relaciona também com o mito solar. A transformação alquímica era também denominada nuptiae solis et luva. Vide Jung, La

Psicolo

Sía de la Transferencia, 142.

Idem, 156.

INTRODUÇAO GERAL / FORTUNA CRÏTICA

123

Há, sem dúvida, afinidades entre a idéia do amor que predomina na elaboração literária de Guimarães Rosa e o conceito respectivo que se exprime da Divina comédia

e no Banquete, de Dante, súmulas do ideal cristão, sistematizado pela teologia escolástica já vitoriosa no século XIII. Esse parentesco decorre da fonte comum de

origem platônica. Tanto em Guimarães Rosa como em Dante, o amor, desejo que se faz anelo, possui uma dimensão cósmica universal. Força atrativa, irradia-se do objeto

amado, o qual imanta os seres, seduz as almas e cativa-as em sua substância.

O homem reúne todos os amores, afirma Dante em II Convitto.1 O sertanejo viajor, Riobaldo, expressa, a seu modo, a mesma verdade, ao mencionar o fundo idêntico de

seus amores diversos: "Ah, a flor do amor tem muitos nomes... Confusa é a vida da gente; como esse rio meu Urucuia vai se levar no mar." Por outro lado, em fortalecimento

das afinidades entre o poeta da Divina comédia e o criador de Grande sertão: veredas, lembremos a figura de Otacília, semelhante a uma Beatriz consoladora, cuja

lembrança sossegada guia Riobaldo nas passagens sombrias de sua grande aventura e nele faz nascer a expectativa de um fim plenificador de seus desejos, estado de

felicidade quieta, como fecho venturoso de uma seqüência de erros e enganos, de casuais descaminhos, que finalmente se retificam, e deixam entrever o caminho que

se insinua através deles. Ex traviando-se em "selva escura", o florentino, sem o saber, está buscando Beatriz, e é Beatriz quem o conduzirá, pelas mãos de Virgílio,

ao Paraíso da vida espiritual. 17

Paralelamente, invoquemos o vaqueiro da estória "Seqüência", que saindo à procura de uma vaca extraviada, descobre, de repente, ao entrar no pátio da fazenda, para

onde se encaminhara a fugitiva, qual era o verdadeiro objeto da sua busca: o amor da moça que se debruçava no alpendre da casa. O animal - "rês fujã" -, que abandona

os pastos, atravessa u rio, e percorre os atalhos, tem a sua razão oculta. Apenas um elo mediador, a vaca é signo de objeto amado. "Ela se desescondia dele. Inesperavam-se

O moço compreendeu-se. Aquilo mudava o acontecido. Da vaca, ele a el diria: `É sua". Suas duas almas se transformavam? E tudo à razão do ser. N mundo nem há parvoíces:

o mel do maravilhoso, vindo a tais horas de es tórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se. E a vaca - vitória, em seu ondes, por seus passos."

Não obstante tais afinidades entre Dante e Guimarães Rosa, há, na ma neira de conceber a natureza do amor, uma diferença fundamental que o separa. É quanto à perspectiva

religiosa. Na Divina comédia, o eros platônt co alça-se, por intermédio da Graça, ao plano da redenção e da vida sobre

16 El convívio (Il Convitto), 87. Buenos Aires, Espasa, 1948.

17 Ver Divina comédia, Inferno, Canto II; Purgatório, Canto XXX e seguintes.

natural, transformando-se em ágape.18 A alma amorosa desprende-se dos liames terrenos, rompe com o sensível e, custodiada pela Providência, que Beatriz representa,

como encarnação poética de Maria, eleva-se aos céus. O amor espiritual nasce somente depois que morre o amor carnal, sem que um se conserve no outro. Em Guimarães

Rosa, o amor carnal gera o espiritual e nele se transforma. Por isso, o seu misticismo, platônico quanto à essência, segue uma linha erótica, que ladeia a teologia

cristã, tem o encanto secreto e a sedução da heresia contida na idéia do amor como princípio em atividade no mundo e no homem, como força ascendente e descendente,

sexo e espírito, que se desenvolve segundo uma dialética imanente.

Essa idéia vetusta, presente nos cultos órficos, na prostituição sagrada e nas práticas purificatórias dos maniqueus, absorvida pela tradição hermenêutico-mística

e pela alquimia, inspirou o erotismo místico dos trovadores 19 e se consubstanciou nas figuras exemplares de Tristão e Isolda - amantes perfeitos, que uniram, num

só amor, a serenidade e a ternura romântica, a volúpia e a espiritualidade.`

III

Ao lado de admiráveis figuras de mulher, como Otacília, Doralda e Nhorinhá, avulta, na tipologia literária de Guimarães Rosa, uma curiosa estirpe de personagens,

preludiada por Miguilim e Dito, de "Campo geral", e à qual pertencem infantes de extrema perspicácia e aguda sensibilidade, muitas vezes dotados de poderes extraordinários,

quando não possuem origem oculta ou vaga identidade.

"Amor cristão a Deus e ao próximo, oposto a Eros, desejo sem fm. Vide Dénis de Rougemont, L Amour et I"Occident (1939), p. 43-52. "Eros c"est 1"aspiration lumineuse,

I"élan religieux porte à sa plus haute puissance, à 1"extrême exigente de pureté qui est

"extreine exigente d"Unité." Ágape introduz um novo símbolo do amor, não mais a paixão infinita, porém o casamento de Cristo corte a Igreja. Dénis de Rougemont,

no ensaio antes citado, afirmou que, após o triunfo do Cristia

111smo, eras renasceu na cortesia, na idealização do amor praticada pelos trovadores. Admite a influência dos cátaros, herdeiros dos maniqueus, sobre o ideário da

poesia trovadoresca. V. op. cit., p. 59 em diante.

Na lenda de Tristão e Isolda, narrada por Béroul e Thomas, os amantes que percorrem os estágios da escala erótica, "Connaissent tour à tour Ia sensualité Ia plus

âpre, Ia plus exigente (à laquelle ils reviennent toujours), Ia tendresse inquiete et vigilante, Funion idéale des ames que ni le temes, ni Ia distante, ne peuvent

amoindrir. La passion s"épure, 1"impérieux désir charnel se transforma ainsi en une affection idéale qui, deve

nue finalment le sentiment dominant de 1"être, n"envahit pas seulement 1"âme entière, mais soumet aussi le cores à sa volonté. Le dualisme de Ia chair et de 1"âme

disparait au Profit de cette dernière." Suhey lã Bayrav, Symbolisme medieval (Béroul, Marie, Chrétien), 51, Paris, PUF, 1957.

124

INTRODUÇAO GERAL / FORTUNA CRITICA

125

Na primeira das Primeiras estórias, "As margens da alegria", aparece um menino, que Menino se chama, dotado de uma sabedoria infusa, que se vai manifestando, passo

a passo, por degraus de iniciação, estágios de uma aprendizagem (o menino viaja), a começar de cima para baixo, da quietude dos ares durante uma viagem de avião,

onde nada altera a proximidade da alma, satisfeita consigo mesma, às primeiras desilusões da vida terrena no lugar onde se erguerá a grande Cidade. No alto, "as

coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes"; lá embaixo, espaço para a cidade em construção, a discórdia,

a desarmonia irrompem. A beleza do peru, avistado pelo menino, no centro do terreiro, é só um instante de deslumbramento. Tanta imponência - "ríspida grandeza tonitruante",

"colorida empáfia" - não dura senão um átimo. O belo e imperial peru cai sob a faca da cozinha, sacrificado à trivial ocorrência do dia-de-anos do doutor. Então

o menino descobre que "entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia". Descobre também algo hostil, que escapa à sua compreensão,

e que lhe traz a presença do mal e da crueldade. Pois outro peru, de nenhuma beleza, bicava a cabeça da vítima imponente da véspera. "O Menino não entendia. A mata,

as mais negras árvores, eram um montão demais; o mundo." Ao menino aturde, por um momento, a negrura em que o mundo parece mergulhar. Mas já do outro lado da tristeza

e da ferocidade, no reverso da mesma vida que enegrecera, esplende a luzinha verde do primeiro vagalume - devolução da claridade, da alegria triunfante, recuperação

da beleza superando a fealdade, mas a ela unida, como a luz às trevas e o contentamento ao pesar.

Em Grande sertão: veredas, Riobaldo, o jagunço, reclama uma justa separação entre o bem e o mal: que esses opostos se excluíssem e que um deles" nada permanecesse

no outro. "Ao que - concluía ele vendo que pedia o impossível - este mundo é muito misturado". No menino os opostos se conciliam, e deles, por uma espécie de transubstanciação

alquímica da alma, ao cabo da qual a vida se renova, ganhando inéditos esplendores, nasce a harmonia superlativa de que falava Heráclito. O Menino é uma criança

qualquer a brincar com o seu macaquinho e é uma espécie de criança mítica, através de quem tudo se ordena, tudo sei corresponde, tudo se completa.

Em "Os cimos", última estória do volume, a iniciação se completa. É segunda viagem. Mais sábio, passando por uma provação (afastaram-ri da mãe enferma que ficara

na outra cidade), o Menino assume o que há d passageiro, de efêmero, de contrastante, na existência. Plana acima d mundo, acima do tempo, vendo-os fluírem juntos,

qual rio em crescimen to, onde vogam, de companhia, coisas boas e coisas más, coisas que ain não se completaram, e outras que "a gente sabia que elas já estavam

cama nhando, para se acabar, roídas pelas horas, desmanchadas...". A unidad

de tudo, a bondade natural das coisas, no sentido que lhes deu Plotino, revela-se no trabalho matinal de um pássaro - o tucano - que visita a árvore fronteira à

casa, em horário certo, conseguindo afugentar a mágoa que ele sentia pela mãe enferma, distante. O sol, o dia, a luz, se unificam no pássaro. É impossível separar,

tão grande é o poder poético da linguagem ajustada à visão mística do mundo, o vôo do tucano ao despontar do dia, e a aurora se funde com a emoção do menino, com

as saudades do lar materno e com a renovação que nele se opera ao saber que a mãe estava curada. O final dessa narrativa-poema é uma glorificação das coisas e dos

seres, um acesso repentino à plenitude do mundo, um êxtase, um rapto da alma. "E era o inesquecível de repente, de que podia trespassar-se a calma, inclusa. Durou

um nem-nada, como a palha se desfaz, e no comum, na gente não cabe: paisagem, e tudo, fora das molduras. Como se ele estivesse com a Mãe, sã, salva, sorridente,

e todos, e o Macaquinho com uma bonita gravata verde - no alpendre do terreirinho das altas árvores... e no jeep aos bons solavancos... e em toda-a-parte... nomesmo

instante só... o primeiro ponto do dia... donde assistiam, em tempo-sobre-tempo, ao sol no renascer e ao vôo, ainda muito mais vivo, estoante e existente - parado

que não se acabava - do tucano, que vem comer frutinhas na dourada copa, nos altos vales da aurora, ali junto de casa."

Em Grande sertão: veredas, é Diadorim menino quem introduz Riobaldo no mundo maravilhoso e áspero do sertão, que o Rio simboliza. Menino diferente, tem a estatura

de um ser mítico, fabuloso, que parecia igualar-se ao próprio Rio em sua força e em seus segredos. Possui o conhecimento das coisas e mostra a Riobaldo a beleza

das flores e dos pássaros. "Foi o menino quem me mostrou. E chamou minha atenção para o mato da beira, em pé, paredão, feito a régua regulado. -"As flores..."- ele

prezou. No alto, eram muitas flores, subitamente vermelhas, de olho-de-boi e de outras trepadeiras, e as roxas, do mucunã, que é um feijão bravo (...) Um pássaro

cantou. Nhambu? E periquitos, bandos, passavam voando por cima de nós. Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder deslembrar? (...) Ele

o menino, era dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma. Comparável um suave de ser, mas asseado e forte - assim se fosse um cheiro bom sem

cheiro nenhum sensível - o senhor represente (...) Se via que estava apreciando o ar do tempo, calado e sabido, e tudo nele era segurança em si.""

Diadorim, ambíguo, menino que é também menina, desperta a alma de Riobaldo, infunde-lhe o desassossego, toque de Eros, que mais tarde, nos longes do sertão, se converterá

em amor.

Z Vide também o vaqueiro legendário, Menino, que consegue amansar o boi indomável, na estória contada por seu Camilo. "Uma estória de amor (A festa de Manuelzão).11

126

Irreonuçno GERAL / FORTUNA CRíTICA 127

Na estória de "Nenhum, nenhuma", vamos encontrar um terceiro personagem menino. Esse novo exemplar prende-se a uma vaga reminiscência de um passado longínquo, ao

desejo de romper a obscuridade, de clarear o que há de enigmático no começo de ser individual, quando impressões indeléveis gravam-se na memória, formando uma primeira

versão das coisas vividas, que o tempo dilui e afunda na irrealidade. A infância, aqui, é mais do que a etapa inicial da vida; é também uma tentativa de retorno

à origem. O menino encontra-se numa casa de fazenda, descrita nebulosamente - mansão estranha em lugar incerto, em "indescoberto rumo". E tenta recordar-se, despertar

reminiscências; lembra-se de lembrar uma infância ignota, mas longínqua, princípio em que se agita a "porção escura de nós mes-" mos". "Se eu conseguir recordar,

ganharei calma, se conseguisse religar-me: adivinhar o verdadeiro e real, já havido. Infância é coisa, coisa?"

O menino de "Nenhum, nenhuma" vive em companhia de um Moço,,, de uma Moça e de um homem triste. Num dos quartos da casa está uma "velhinha (...) velhíssima" da qual

a Moça não pode separar-se. É o espectro da morte interposto entre ela e o Moço que a ama. O menino compreende o amor, que deverá perpetuar-se na memória dos namorados,

também a Morte, que só aparentemente se opõe ao amor. Ele é a frágil união dos extremos que deveriam tocar-se. "Atordoado, o Menino, torna do quase incônscio, como

se não fosse ninguém, ou se todos uma pessoa só, uma só vida fossem: ele, a Moça, o Moço, o Homem velho e a Nhenha, velhinha, em quem trouxe os olhos."

Só o menino consegue vislumbrar a unidade, conciliar os opostos, apagar as diferenças transitórias. Nhenha, na sua extrema velhice, regride a estado de infância.

O fim assinala um novo começo. Da morte sai a vida como na dialética da geração recíproca dos contrários. Ele não esquece que os pais já esqueceram; detém a sabedoria

que eles perderam, jazente n memória. Ao voltar da casa estranha, entrevista em sonho ou reminiscên cia, na companhia do Moço apaixonado, que obteve o amor da Moça

somente para efeito de recordá-lo, volta como se fosse uma alma desgarrad do cortejo dos espíritos puros da alegoria platônica de Fedro, que não ti vesse de todo

perdido suas asas. Encontra o Pai e a Mãe, e os desconhec

"Vocês já se esqueceram de tudo o que, algum dia, sabiam!..."De súbito sen

te-se entre estranhos, entre corpos divididos, prisioneiros do tempo, 1 embotados para sentir o apelo uníssono de Eros e Tanatos. "Por que e desconheci meus Pais

- eram-me tão estranhos, jamais poderia verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?" O menino sente-se outro, um estrangeir também, que pertence a si mesmo e ao mundo ilimitado,

não preso a um topologia terrestre, mas viajor que percorre estações de passagem - desci do à terra por descuido ou desígnio insondável. Destino semelhante é o d

rapaz enigmático, de "Um Moço Muito Branco", que veio não se sabe d

onde, aparecendo na comarca do Serro Frio após um terremoto que se deu na noite de novembro de 1872, em Minas Gerais. Comparável a um anjo, o Moço cândido e distante,

que em todos acende confiança e afeição repentinas, impõe-se como ser superior em relação ao qual "nós todos, comuns, temos os semblantes duros e o aspecto de má

fadiga constante." Depois de operar prodígios, o Moço desaparece. "Com a primeira luz do sol, o moço se fora, tidas asas."

Pelos seus dons divinatórios e encantatórios, a esquisita Nhinhinha, de "A Menina de lá", pode ser filiada à estirpe de que estamos tratando. Quieta, de olhar vago,

de palavras poucas e extravagantes, desligada deste mundo, contemplativa, meio imbecil, fala com as estrelas, o vento, o sabiá, em resumidas frases, sempre reticente.

Adivinhou o seu dia de morrer, pediu "um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes", como se pedisse um brinquedo. Nhinhinha era milagreira, e dessa capacidade

a família guardava silêncio, prevenindo escândalos da vizinhança. "O que ela queria, que falava, súbito acontecia. Só que queria muito pouco e sempre as coisas levianas

e descuidosas, o que não põe nem quita."

Esses personagens - o Menino, a Menina, o jovem - dados a encantamento e sortilégios, munidos de dons extraordinários, e que podem ter das coisas uma visão mais

completa do que a comum, pertencem a uma só família mítica. A infância ou a juventude é neles um estado de receptividade, de sabedoria inata, e tem duplo sentido:

por um lado, remoto e nebuloso passado, que se confunde com as origens, e, por outro, prenúncio de um novo ser, ainda em esboço, que advirá do que é humano e terrenal.

Sob o primeiro aspecto, essa infância simboliza a alma que nasceu da Unidade primordial e que, por isso, ainda participa da indistinção caótica anterior à separação

dos elementos e ao conflito dos princípios opostos do mundo sensível. É, por esse lado, potência obscura, indefinida, cuja natureza oscila entre o divino e o diabólico.

Mas se assim é em seu aspecto noturno, ancestral, o símbolo da infância, desentranhável dos personagens a que nos reportamos, exprime, em sua face luminosa, a idéia

de um novo nascimento, da reintegração da alma dividida, a qual deverá recuperar a sua unidade congênita e ingressar num estado de plena harmonia consigo mesma,

harmonia que superará os contrários - o masculino e o feminino - que a dividem no estágio terreno de sua peregrinação.

O infante de Guimarães Rosa, pelos seus atributos míticos, pelo seu caráter peregrino, abrange simbolicamente esses dois nascimentos. Por isso é que a estirpe do

Menino, com seus muitos avatares, da Menina encant da e do Rapaz alado, é espécie representativa de um padrão mitológico de uma essência arquetípica, inserta nas

formas religiosas arcanas, e qu tem servido de conduto à imaginação poética: a Criança Primordial.

A Criança Primordial ou Criança Divina, ocupa, segundo Jung, u campo mitológico versátil. 12 Apesar de corresponder a certas formas sig frcativas, arquetípicas,

as suas manifestações fenomênicas variam: men algumas vezes, menino de ouro outras e, ainda, jovem, efebo alado, se lhante à representação pictória do divino Eros,

tal como o rapaz da estór "Um moço muito branco", que se retira desse mundo movido só pela for de suas próprias asas renascentes. Natureza protéica, ambivalente

quan ao sexo, é, mitologicamente, idêntico ao andrógino. E é devido a essa ide tidade que se constitui em teofania primitiva, uma vez que a androgt caracteriza a

divindade nas religiões arcaicas.` Como explica Eliade, androginia divina, fenômeno religioso complexo, "é uma fórmula arcai universal para exprimir a totalidade,

a coincidência dos contrário coincidentia oppositorum.24 Liga-se ao mito da origem divina da alma e seu final retorno à Unidade da qual foi desapossada.

O andrógino, a que se refere Platão em O banquete, é a espécie prr tiva da humanidade, que se teria dividido em dois seres incompletos q se buscam, movidos pela

força original de Eros, cada qual ativado por u princípio complementar do outro. Da união deles resultaria a coincidem oppositorum.

A Criança Primordial ou Divina pertence, pois, a um domínio qu comum à simbologia erótica e mística, porque representa a final restit ção do homem à divindade ou,

numa interpretação mais condizente co ensino das correntes ocultistas, que admitem a androginia, da final cone são do ser humano ao divino. 25

O andrógino, desse modo, comporta os mesmos aspectos retrospecti. e prospectivos do infante mítico, da Criança Divina, que Guimarães R recriou poeticamente com seus

Meninos sábios e extremamente seus - um dos quais devassa o passado imemorial, chegando ao domínio fu

22 Essas formas são também peculiares à simbologia onírica. Vide Jung, Psicologia Transferencia, p. 45-46.

23 " Encontramos traços de androginia (diz Eliade) tanto nos deuses - como Atis, A mis, Dioniso- quanto nas deusas, como Cibele. E se compreende por quê: a vida

j de uma plenitude, de uma totalidade." Mircea Eliade, Mythes, réves et mystères, 2

Gallimard, 1957.

24 "Mais do que uma situação de plenitude e de autarquia sexual, a androginia simbo a projeção de um estado primordial, não condicionado. É por essa razão que a

andr mia não é limitada aos seres supremos." Idem, 233. São andróginos os gigantes cós COSI e Adão é considerado hermaphroditus.

27 Nesse sentido é que Jorge de Sena assinala a presença do mito da Divina Criança, drógina, na obra de Fernando Pessoa, manifestada por três figuras que compõem

verdadeiro ciclo: Menino Jesus, Antínoo, Dom Sebastião. O Menino Jesus, no 8o poema "O guardador de rebanhos", é, para Alberto Caeiro, "a Eterna Criança, o deus

que

tava"... Jorge de Sena, "Nietzsche, Pessoa e outras coisas mais", in O Poeta é um dor, 41 e 59 (nota 47), Lisboa, Ática, 1961.

INTRODUÇAO GERAL / FORTUNA CRITICA 129

dio das reminiscências - como seu jovem alado, prenúncio de um novo ser, tal como aquele que, na operação alquímica, destinada a produzir a pedra filosofal, resultaria

da conjunção dos opostos, encarnando a própria natureza da alma purificada.` Reminiscência de um estado originário que foi perdido, a Criança Divina é também a superior

excelência de um estado ideal a conquistar.` Além dessa ambivalência no tempo, ela possui o caráter ambíguo das teofanias primitivas, peculiar à dialética do sagrado,

do numinoso.28 Seduz e fascina, aterroriza e inquieta. Força ambígua, seus efeitos ora são benéficos ora maléficos, podendo ser fonte do Bem ou causa do Mal. Possui

um pólo luminoso, amável e propício, e outro sombrio, repelente e hostil - um pólo divino e um pólo demoníaco, reversível, pois que o diabo fascina e Deus é, por

vezes, sombrio e tortuoso. 29

Diadorim, ser andrógino, é, ao mesmo tempo, divino e diabólico. É ele quem, ainda menino, ensina Riobaldo a ver a beleza que vai pelo mundo. Mas no instante em que

ilumina a alma do companheiro, marca-lhe sombriamente o destino. Na amizade com Diadorim-menino estaria a antecipação daquele pacto com o demônio, que Riobaldo se

decidiu a firmar. Pois na infância já se emaranham fios de incerta origem, que tecem a vida de um homem, em seu direito e avesso.

Diadorim é um outro modo de amor, incomparável com o de Otacília e Nhorinhá - amor que tinha um quê de paradisíaco, de idílico, e algo de ameaçador, escondendo o

encanto noturno e proibido de uma felicidade enganosa, que se esfumaçou, em meio ao sangue das guerras de vingança,

2`A Teosofia encara o hermafroditismo dos deuses e heróis como a plenitude de um estado espiritual efetivo do qual a humanidade foi desapossada. A perda da androginia

significa a perda da espiritualidade. H.P. Blavatsky, La Doctrina Secreta, Buenos Aires,

vol. 364. Kier, sd. Esse ensinamento deita raízes na tradição neoplatônica e hermética. Para a Teosofia, o centro, o interior daquilo que comumente se chama alma,

é a própria divindade (Espírito, Atmã). "Para nós-sentenciava Blavatsky-o homem inte

rior é o único Deus que podemos conhecer." La clave de la teosofia, 6O, Buenos Aires, Saros, sd. A conquista da essência íntegra da alma é o momento da identificação

do hOrnem com o princípio divino que nele reside e que é o seu verdadeiro, antigo e novo

ser, origem e fim do humano.

O andrógino inclui simbolicamente esses dois aspectos, retrospectivo e prospectivo. Enraíza-se no "remoto passado platônico" e projeta-se no futuro. Cirlot, Diccionario

de símbolos, 83. Igualmente Jung, em sua Psicologia de Ia transferencia, 8O: "É o homem redondo, isto é, perfeito dos tempos primigéneos e últimos, princípio e fim

do homem"

"& Roger Caillois, L"Homme et le sacré, 43. Paris, Gallimard, 195O.

Dessa polarização é que nos fala Roger Caillois. O pólo demoníaco sintetiza os aspectos "terríveis e perigosos" do sagrado, mas que são atraentes, tentadores. "O

diabp, por exemplo, não é só aquele que castiga cruelmente os condenados ao inferno; é t bém aquele cuja voz tentadora oferece ao anacoreta as doçuras dos bens da

terra" Roger Caillois, L"Homme et le sacré, 43. Gallimard, 195O.

13O

INrROUUÇAO GERAI, / FORTUNA CRITICA 131

como se evaporam as simulações do Maligno. Nele o divino e o diabólic são permutáveis e simbolizam dois momentos da aventura que se reali no homem - o momento ancestral,

do velho ser humano dividido, qu permanece presa das forças elementares, materiais e sensíveis, e o momen to por vir, que lentamente se prepara, da transformação

do humano e divino, e em relação ao qual a vida constitui uma iniciação e uma aprendizagem.

O problema da existência de Deus e do Demônio e o das relações entre Bem e o Mal, plano de fundo de Grande sertão: veredas, pode ser enquadrado nessa perspectiva

que nos foi possível traçar, arrimados à simbolog erótica e mística da obra de Guimarães Rosa. É a perspectiva alquímica d transubstanciação do humano em divino,

uma vez libertado aquele centr incomovível da alma, partícipe da Unidade. Em abono dessa conclusão, nada melhor do que as últimas reflexões de Riobaldo, terminando

o relato da epopéia do sertão. "Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for.. Existe é homem humano. Travessia." Ao dizer que o que existe é honre humano, Riobaldo

não somente estaria dando ênfase ao seu pensamento por essa feliz redundância poética, mas talvez lhe passasse no espírito a sus peita de que o humano contém só

um dos lados da natureza do homem, que a vida é uma tentativa de travessia - para o outro lado, divino.

N

Diadorim, que pertence à família do infante mítico, representa a fas caótica, ambígua de eros. Mas eros é extremamente versátil e suas encarna ções são múltiplas.

A galeria dos tipos femininos criados por Guimarãe Rosa estaria incompleta, se não colocássemos ao lado de Nhorinhá, Jin Otacília, a figura ímpar dessa velhinha

extremamente sábia, Dona Rosalina, de "A estória de Lélio e Lina", velha-moça, que é muito mais do que o símbolo da eterna fluência da vida, renascendo das cinzas

da velhice. Pois s trata da última encarnação de eros, culminãoncia de sua trajetória, limite e tremo de suas metamorfoses.

A singularidade de Dona Rosalina, quanto ao físico, reside no apelo res guardado, que nela não se extinguiu, da juventude, ainda viva no "aces rideiro dos olhos"

e nos gestos, por onde se traduz "uma vontade medid de movimentos". "Velhinha como-uma-flor. O rastro de alguma belez que ainda se podia vislumbrar." Logo entre

ela e o vaqueiro Lélio, jovem de "coração lavradio e pastoso" , se estabelece firme entendimento recíproco como se há muito se conhecessem e apenas estivessem renovando

antig laço de amizade ou amor. Ele é, para Dona Rosalina, desde o primeiro íris tante, "Meu Mocinho". Em torno dela reinava uma quietude, um sosseg remansoso que

nada podia perturbar, a modo de atmosfera familiar qu

nos protege. "Tão à vontade, Lélio achava estúrdio que o conhecimento dela tivesse sido só daquela mesma hora, parecia poder puxar lembrança comprida." Encontrou-a

por acaso, numa volta do caminho: "E, vai, a solto, sem espera, seu coração se resumiu: vestida de claro, ali perto, de costas para ele, uma moça se curvava, por

pegar alguma coisa no chão. Uma mocinha."

Assim a velhinha aparece, vez primeira, como mocinha, e só essa pura visão, que logo se desfaria, toca a alma de Lélio, levando-o a um estado de súbito encantamento:

"Era um estado - sem surpresa, s.em repente - durou como um rio vai passando." Como se estivesse passando por um transe, Lélio é arrebatado pela repentina visão.

"A gente pode levar um bote de paz, transpassado de tranqüilo por um tiro de raio." Findo o êxtase, a mocinha desaparece. Surpreso, Lélio distingue a vera forma

da pessoa que recolhia gravetos no mato: "Mas: era uma velhinha! Uma velha... Uma senhora." De pronto ele se esquece da esquisita sensação que o dominara. Mas ao

carregar os gravetos que ela tinha juntado, ouve-lhe a voz, e lembra-se da velhinha lendária, fraca e desamparada do conto infantil, na qual Nossa Senhora se disfarça

para experimentar a caridade dos passantes. "Porque aquela voz acordava nele a idéia - próprio se ele fosse o rapazinho da estória: que encontrava uma velhinha na

estrada e ajudava-a a pôr o atilho de lenha às costas, e nem sabia quem ela era, nem que tinha poderes..."

O encontro de Lélio e Lina tem, assim, um contorno folclórico e mágico. Dona Rosalina (Mãe Lina ou simplesmente Lina) é, de fato, dona de muitos poderes, os quais

se manifestam menos por efeitos visíveis do que pela generosidade maternal que ela irradia. "Às vezes, olhado por aqueles olhos, homem destremia da banzeira da vida,

se livrava de qualquer arrocho e ria de si mesmo um pouco, respirando mais." Maternal, ela se doa a Lélio e dele recebe filial dedicação: "Assim Dona Rosalina tinha

gostado dele como mãe gosta de um filho: orvalho de resflor, valia que não se mede nem se pede - se recebe."

De seu passado, a velhinha fala, sem aversão ou desmedida saudade. Havia amado muito, no mundo; e em sua velhice não renega a mulher cortejada que tinha sido. O

tempo de amor que se fora, lhe pertencia, integrado em uma outra espécie de vida e de amor. "Já fui mesmo rosa [dizia ela]). Não pude ser mais tempo. Ninguém pode...

Estou na desflor. Mas estas mãos já foram muito beijadas. De seda... Depois, fui vendo que o tempo mudava, não estive querendo ser como a coruja - de tardinha, não

se voa..."

Dessa experiência evocativa de Dona Rosalina sobressai o seu grande onheclmento do amor - do amor realizado que ela podia r ver, como quem recapitula as fases de

uma trajetória. Poderia ter amado élio. Noutra vertente do tempo a singular amizade que tem por ele cria ligação

1:," rROiwçAO GERAL / FORTUNA CRITICA

133

amorosa. "Agora é que você vem vindo, [diz-lhe Dona Rosalina] e eu já vou-m"bora. A gente contraverte. Direito e avesso... Ou fui eu que nasci demais cedo ou você

nasceu tarde demais. Deus pune só por meio de pesadelo. Quem sabe foi mesmo por um castigo?..."

Na verdade, Dona Rosalina dá ao seu Mocinho uma forma de amo mais completa, mais ampla, que sumariza os seus passados amores, e qu tem o poder de sublimar o impulso

amoroso do vaqueiro, disperso em pai xões várias, a ela confidenciadas. "O amor tenteia de vereda em vereda, d serra em serra... Sabe que: o amor, mesmo, é a espécie

rara de se achar... Lina oferece-lhe a espécie rara e ardentemente buscada por ele nas mulher que amava. 3O

O fogo do sexo, que nela ardera, se transformara na chama de uma bele za reminiscente e se tornava "em vida ensinada", capaz de infundir no vá queiro amoroso "outro

poder inteiro de se viver". Eros converte-se, e Dona Rosalina, naquela fruição de si mesmo - no amor do amor que in pirava os trovadores e que os místicos conhecem.`

Por isso é que ela na sente o coração envelhecer: "Um dia você ainda vai ver, meu Mocinho: co ração não envelhece, só vai ficando estorvado... Como o ipê: volta

a fl antes da folha..."

Ela é a vitalidade do amor consumada em sabedoria, a experiência eró ca transformada em experiência contemplativa. Eis a razão por que a s velhice física exprime

uma nova juventude, e por que, na aparência de anc se escondia a mocinha, que Lélio vislumbrou numa curva do caminho.

Na figura dessa velha jovem ressurge uma antiga imagem da literato universal, freqüentemente utilizada pelos escritores da Alta e da Baixa Id de Média?" Então, a

dupla "anciã e menina" se ajustava à experiência uma época de transição em que o velho e o novo se achavam confundido No século II d.C., o símbolo da Igreja é uma

anciã rejuvenescente. Boéci mais tarde, representa a filosofia como respeitável matrona, cheia de vital dade, embora muito velha, quando essa imagem já tinha decaído

em chã retórico. Ela constituiu porém um arquétipo, arraigado no inconscient podendo renascer com o vigor de verdadeiro mito.

Na escala da simbologia amorosa em que devemos situá-la, a Rosalina de Guimarães Rosa, na qual renasce a imagem arquetípica da velha-jovem, que tem simbolizado a

espiritualidade da religião e a inteligência da filosofia, merece o lugar de Sofia, Sapientia, última etapa da cultura de

Eros. 33

Expressão do eterno feminino, Sofia, que não é objeto de amor carnal como Eva, nem de amor-paixão como Helena, aproxima-se da função religiosa preenchida por Beatriz

ou por Maria. Ela representa a divina sabedoria. 34 Mas como vimos que a tradição mais condizente com o erotismo místico de Guimarães Rosa é á que deflui do platonismo

e se insere na sabedoria alquímica, e que esse erotismo místico nos leva à idéia da imanência da divindade no homem, não podemos interpretar Sofra no sentido de

sabedoria celestial, supraterrena, e sim como aquela que esplende da própria alma convertida em si mesma, nos movimentos de retorno ao núcleo do seu verdadeiro ser.

No final da estória, Lélio e Lina seguem juntos, em demanda do lugar por nome Peixe Manso. Essa viagem, travessia do sertão, é como que a boda mística em que termina

o idílio do rapaz com a velha-jovem. Em Rosalina, rosa mística, floração tardia de eros- o sexo se cristalizara, e a seiva do élan amoroso se convertera em anelo

da divindade.

O MOTIVO INFANTIL NA OBRA DE GUIMARÃES ROSA

Henriqueta Lisboa

E POR QUE terei escolhido o motivo infantil para tecer considerações em torno da obra de Guimarães Rosa? Há temas mais assoberbantes e mais absorventes nesta "selva

selvaggia": a essência metafísica, a mística repartida entre Deus e o demônio, a consciência do bem e do mal, a dicotomia medo-coragem, o amor em multiformes aspectos,

o deslumbramento da natureza - fauna e flora -, a integração do regional no universal, isto sem falar nas inovações da linguagem, no emprego das metáforas, no domínio

estilístico.

Parece-me, todavia, que na realização dessa obra monumental e com

J119, Psicologia de Ia transferencia, 36.

Sofia é a quarta etapa da cultura de eros." A primeira é biológica e é representada por Eva como esposa-mãe que deve ser fecundada. A segunda refere-se a um eros

predominantemente sexual, mas num nível estético e romântico, em que a mulher já possui alguns valores individuais. A terceira etapa (representada por Maria, infinitamente

distante de Helena ou Margarida, símbolo da segunda) sublima o eros na devoção religiosa, espiritualizando-o... A quarta etapa, por fim, ilustra algo que ultrapassa

a terceira etapa, a qual se diria insuperável: é a Sapiência. Jung, 36.

3O Lélio, tal como Riobaldo, experimenta diferentes espécies de amor. Tem a sua Otac" na mocinha de Paracatu, imagem ideal, angélica, mas obsessiva e alienante-um

"m drastio", como diz a velhinha em sua profunda sabedoria das coisas do amor (2OO). Também ama Jini, mulata cor de violeta, que é sensualidade pura, o extremo oposto

Sinhá Linda do Paracatu (171). - E há duas outras, Manuela e Mariinha, namora românticas (193, 232), além do amor incomum de Dona Rosalina (191). C. B. 31 Esse amor

seria também o de Tristão e Isolda. "Ce qu"ils aiment, c"est l"amour, c"est fait même d"aimer", - observa Dénis de Rougemont, L"Amour et POccident, 27. 32 Ernst

Robert Curtius, Literatura européia e Idade Média latina, 1O6-11O, Rio de Jan ro, Instituto Nacional do Livro, 1957.

JOAO GUIMARAES ROSA / FICÇAO COMPLETA"

IN] RODUÇAO GERAL / FORTUNA CRITICA

plexa, a infância assume, quer na qualidade de tema quer como presença ou vivência, importância liminar e até fundamental.

À base da criação artística existe sempre um acervo de emoções cuja índice é o próprio temperamento do indivíduo. Como se sabe, essas emoções se revelam por meio

de imagens, elementos verbais, exterioridade rítmicas, incidências que resultam de uma determinada visão do mundo.

Assim, esta visão do mundo que, na alma do artista, é de ordem subjetiva, torna-se objetiva a partir de sua obra, como se fosse um espelho. Pois bem: a visão do

mundo de Guimarães Rosa, traída a cada passo pelo impetuoso dinamismo que preside à forma poética, revela a presença constantes e pertinaz da infância. O menino

de "Campo geral" reponta com surpreendente vitalidade em tudo quanto escreve o nosso autor.

Há uma aura de tresloucada candura ao longo de suas páginas as mais realistas. A alegria inexplicável das coisas amanhecentes, a descoberta da; natureza, o despontar

do pensamento através de palavras anteriores à lógica, a trepidação dos diálogos, o fluxo e refluxo dos monólogos, o jogo das metáforas, a própria filosofia matreira

dos primitivos, personagens de su dileção, os quais devem o que pensam ao que vêem, tocam e degustam, a fontes ocultas no magma em potencial, o bárbaro e o primevo,

tudo iss remonta à infância do autor, tudo isso demonstra a sua faculdade de pro longar a infância.

Sua intuição amorosa, seu gosto pela vida e pela renovação da vida atra vês da arte tomada como atividade lúdica fazem com que ele se assemelh às crianças e aos

primitivos, seres que se agitam e se movimentam sem mo tivação exata e sem interesse consciente.

O escritor parece divertir-se e, todavia, comover-se com seus mito tanto quanto o menino com seus brinquedos e o primitivo com suas su perstições, ao considerá-los

objetos reais dentro ao reino em que vivem, sobrenatural. Tal como eles, com alegria e unção, o poeta ultrapassa os li mites da realidade em seus raptos criadores.

O "eu profundo" de Rosa, o eu confuso, inexplicável e original de qu fala Bergson, e não apenas o eu superficial, claro, impessoal, formado pel experiência, é de

natureza infantil, instintiva, emotiva, manifestando-s por isso mesmo, o seu gênio com radiante espontaneidade.

Essa tese não invalida a afirmação, aparentemente paradoxal, de que escritor agencia como poeta uma vasta e fecunda erudição. Mas é que es erudição precede à obra;

com ela se preparou para as lides literárias, assi como o atleta prepara os músculos antes de penetrar na arena: eis o que lh faculta a eclosão dos estados anímicos.

A tese não impede tampouco a afirmação de que o espírito desse poeta de ordem metafísica. Porque o instinto metafísico, o mais agudamente in teligente dos instintos

humanos, manifesta-se desde tenros anos.

A irrequieta curiosidade do menino leva-o a desmontar e a desmembrar brinquedos para saber como são por dentro. Na ânsia de conhecer o princípio e o fim das coisas,

a criatura analisa, decompõe e finalmente recompõe as partes de um todo em síntese, muitas vezes artística. Este é o caso em apreço.

A estranheza diante do universo, como se cada dia fosse um primeiro dia, perfaz e complementa a personalidade de Rosa, pressionando magicamente a sua obra, insuflando-lhe

aquela força de imã a que se refere Platão, a amabilis insania de Horácio, a "loucura passageira" segundo Schiller. Rosa é um criador delirante, suponho, exatamente

porque possui o sentimento da infância. O que nem sempre acontece com grandes criadores, por exemplo, com o nosso admirável e grave Machado de Assis. Por exemplo,

ainda, com Graciliano Ramos, que nos deixou um livro intitulado Infância, magistral em todo sentido, mas tocado daquela severidade enxuta de adulto que é seu traço

característico.

O escritor brasileiro com que Rosa se harmoniza, também a esse aspecto, é Mário de Andrade. A alegria de viver e de criar, a faculdade de expandir-se no jorro abundante

das palavras, o dinamismo estilístico levado às raias da ingenuidade, certas expressões de mato verde são peculiares aos dois.

O autor de Miguilim se assemelha, de certo modo, a Chesterton, o homem que fazia questão de chegar até à velhice sem se aborrecer. E por isso cultivava com extremado

carinho, voluntariamente e até mesmo grotescamente, o dom de prolongar a infância, inventando personagens extravagantes como aquele Smith que promovia piqueniques

no telhado, para escândalo da turma dos sorumbáticos. Como se vê, porém, o escritor inglês possui métodos diferentes, mais agressivos; busca o prolongamento da infância

por determinação e convicção de que, para entrar no reino do céu, o homem precisa recuperar a simplicidade perdida. Ele age como cristão, inspira-se na ética, deseja

propagá-la. Rosa identifica-se quase inconscientemente com o mundo que o inspira e no qual mergulha por completo, por ser este o seu próprio mundo, o da iniciação,

o do perpétuo nascimento das coisas.

Diz-se que "o ato instintivo é uma espécie de concatenação regular que não é interrompida, e os movimentos sucedem os movimentos, evocados uns pelos outros". Pois

bem: podemos afirmar que o estilo de Rosa é um ato instintivo. O que não impede - excusa repetir - sua capacidade seletiva. Em estudo sobre Grande sertão: veredas

escreveu, com a habitual clarividência, Casais Monteiro: - "Primitivo e elaborado - estes dois conceitos não são de modo algum antitéticos. A sua fala é emanação

de sua natureza em luta com um instrumento inadequado precisamente pelos

seus elementos lógicos."

1\1 ROUUÇÃO GERAL / FORTUNA CRÍTICA

137

Em verdade o que surge à tona de seus livros é um borbulhar de forma buscadas em fontes aurorais, coisas prematuras, antecipadas ao uso, à ba da noção do eu físico

do escritor, vale dizer, de sua cenestesia.

Como ser instintivo, ele é, evidentemente, emotivo. Não caminha marcha natural do espírito, não vai do sincretismo para a análise e des para a síntese: vai e volta

como sem rumo, à feição de rio a traçar cure e oblíquas, levado por energia recôndita, obscura porém eficaz e semp a evoluir.

"A emoção tende a perpetuar-se: quanto mais se foge, mais medo tem." É o que diz uma corrente existencialista. Nesse caso se explica a emo tividade crescente e ascendente

de Guimarães Rosa, à medida que se acu mulam as suas expressões. Escritor apaixonantemente levado pela palav ao contexto, vive a aventura de uma linguagem paroxística,

a desenovela se em redemoinho. Não é em vão que uma palavra - nonada - e out palavra - travessia - assinalam o começo e o desenlace de seu grau romance.

Entretanto é de notar-se: "o complexo psíquico adquirido sobre as pe cepções que se acham na consciência" a que se refere Dilthey, ao fazer distinção entre a loucura

e o gênio, aqui funciona com lucidez. O poe encontra na palavra o princípio e o fim das revelações. Turbulentas abundantes, suas palavras acusam uma riqueza psicológica

digna de mal estudo. Dificilmente lograríamos separar, para análise, os valores do ver e os de seu significado. A invenção de Rosa é o esquema total, dentro de s

poder de transferir e aproveitar sentimentos e experiências de ordem a tiva, de emaranhar fatos e sensações, de recordar eventos longínquos sabiamente colocados

à distância.

"Na própria precisão com que outras passagens lembradas se oferece de entre impressões confusas, talvez se agite a maligna astúcia da por escura de nós mesmos, que

tenta incompreensivelmente enganar-nos, o pelo menos, retardar que perscrutemos qualquer verdade." Aí está um d sabafo pensante em meio à nebulosidade constelada

de "Nenhum, nenh ma", página em que se reproduz uma das mais fugidias reminiscências Menino.

Gostaria mesmo o nosso escritor de recordar com maior nitidez tu quanto enriqueceu sua infância, ou essa queixa representa apenas um curso de evasão e despistamento

para enredar a narrativa?

Também Chesterton se impressionava com os processos da memo Eis o que diz ele na Autobiografia: - "Em verdade, as cousas que recor mos são as que olvidamos. Isto

é, quando nos visita a memória repentin aguda, perfurando a proteção do olvido, aparece, durante alguns inst tes, exatamente como era. Se pensarmos nisso amiúde,

suas partes ess ciais permanecem verdadeiras porém se transformam, cada vez mais,

nossa própria recordação da coisa, em lugar de transformar-se na coisa em si." Ainda mais: - "Podemos fazer a prova do estado de espírito infantil, pensando não

só no que ele continha mas também no que poderia haver contido."

Numa de suas crônicas, alude Mário de Andrade a preocupação idêntica: - "As memórias são fragílimas, degradantes e sintéticas, para que possam nos dar a realidade

que passou tão complexa e intraduzível. Na verdade o que a gente faz é povoar a memória de assombrações exageradas. Estes sonhos de acordado, poderosamente revestidos

de palavras, se projetam da memória para os sentidos, e dos sentidos para o exterior, mentindo cada vez mais."

Esta é a grande margem para a imaginação criadora. De alguns vagos elementos pode renascer algo mais forte do que aquilo que desapareceu; pode surgir a maravilha,

palavra tão cara ao autor de Corpo de baile que foi por ele transformada em "vilhamara", num alvitre pueril, de passagem.

O conto-poema "Nenhum, nenhuma", construído de forma revolucionária, tramado de névoa com uma ou outra lucilação, termina de modo convenientemente realista, em corte

insípido, como se fosse o término da própria infância subitamente arrancada ao seu reino: - "Nunca mais soube nada do Moço, nem quem era, vindo junto comigo. Reparei

em meu pai, que tinha bigodes." Depois do que vem o choro de raiva, os gritos de revolta do Menino, porque os outros já não sabiam de nada... Tanto é verdade que

cada ser humano é uma ilha. Foi talvez esta uma primeira experiência da solidão, do sentimento da solidão.

Tratamento diverso mereceu o romancinho "Campo geral" que ultimamente passou a ter o título de Manuelzão e Miguilim. Nessa biografia da infância, em sentido genérico,

em que há uma boa dose de transferência, quer dizer, de evocações colhidas aqui e acolá para efeito de conjunto e tessitura da fábula, os traços autobiográficos

são nítidos.

Se observarmos o comportamento de Miguilim em diferentes ensejos, seu psiquismo, intuições e reações, experiências afetivas, reflexões mentais, problemas morais,

deslumbramento diante da natureza, apreensiva sensibilidade, fascinação pelas sete cores, desejo de compreender e ser compreendido, pudor no sofrimento, faculdade

de contenção, fantasias despautadas, chegamos à conclusão tranqüila de que se trata de um menino poeta.

Com oito anos, já gostava de inventar "estórias tiradas da cabeça dele mesmo"; sonhava "Fazer estórias, tudo com um viver limpo, de consolo." Era delicado: "a alma

dele temia gritos (...) espécie de nojo das pessoas grandes" que matavam tatu por judiação. Começava a sentir uma saudade de não sei o que é". Pressentia a diferença

toda "das coisas da vida". Era tímido, "não tinha vontade de crescer". E logo ressentido: "Ser menino, a gente não valia para querer mandar coisa nenhuma." Bastante

orgulhoso, de

138

IN"FROUUÇAO GERAI. / FORTUNA CRITICA

139

acordo com a opinião paterna: "menino que despreza os outros e se muitos penachos". Feixe de nervos, supersticiosamente marcava data par morrer. Magoava-se com facilidade:

"porque era que um bicho ou um pessoa não pagavam sempre amor-com-amor de amizade de outro?" Co agudo senso moral observava em momento de dura provação: "A coes

mais difícil que tinha era a gente poder saber fazer tudo certo, para os o tros não ralharem, não quererem castigar."

Tal pensamento se torna obsessivo; passa a perguntar sucessivamen aos que o rodeiam, em primeiro lugar ao irmãozinho predileto: - "Dit como é que a gente sabe certo

como não deve de fazer alguma coisa, me mo os outros não estando vendo?" À empregada: - "Rosa, quando é que gente sabe que uma coisa que vai não fazer é malfeito?"

Ao empregado: "Vaqueiro Jé: malfeito como é, que a gente se sabe?"

Nenhuma resposta o ajudaria no dificil transe de resolver se entrega ou não o bilhete cuja gravidade não podia aquilatar mas já vislumbrav Nenhuma resposta o ajudaria

senão a da própria consciência de sensitiv por isso mesmo precoce.

A emocionante obra-prima que é todo o romancinho atinge nesta pa sagem uma grandeza estranha, tanto mais delicada quanto mais densa. I sove dentro da noite, a de

muitos medos, o menino sofre sem poder dize ninguém a causa de seu sofrimento por uma questão de honra. É a lu entre o dever e a amizade, o gosto de ser dócil e

o desgosto de praticar proibido, entre o bem e o mal, forças todavia ainda obscuras para o s débil conhecimento da vida. Ensaia várias hipóteses de evasiva e fuga

de mesmo. Na hora decisiva, chora. Mas cumpre o que era para ele uma 1 posição moral.

Neste dramático momento de que eventualmente o menino poderia s vencido ou vitorioso, se faz patente uma linha de caráter dotado de escr pulos. Ganha a partida,

"Miguilim chorava um resto e ria, seguindo s caminhinho (...) andava aligeirado, desesfogueado, não carecia mais pensar!"

Vem depois a fatalidade, a hora irreversível da tragédia, a morte irmãozinho admirado e querido. Entrega-se aos soluços convulsivos, "as grimas quentes, maiores

do que os olhos". Mas não deixa de ser um esp tador: observa o gesto materno afagando o pequenino morto: "O cari da mão de Mãe segurando aquele pezinho do Dito era

a coisa mais fo neste mundo." Daí, "todos os dias que depois vieram eram tempo de doe

Ao drama de ordem pessoal e à tragédia inelutável, segue-se o confli com a força maior, representada pelo domínio paterno contra o qual insurge o menino, ferido

nos brios. A represália do pai é tremenda. Ma menino que tinha mesmo "coisa de fogo", e estava "nas tempestades", fica atrás na réplica. Pisa, quebra, arrebenta

e arrasa ele próprio os s

últimos brinquedos em devastação total. Crescia de repente, era homem. (Como no conto "Nenhum, nenhuma", o fim da infância, ou seu primeiro desengano, é assinalado

com raivosa violência.)

Aos poucos, Miguilim vai adquirindo seus pequenos conceitos conformistas - a que nem os poetas escapam: - "Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se

importando demais com coisa nenhuma."

Chega afinal a experiência da separação. Vai-se deixar levar para longe da família, do Mutum, "lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato,

distante de qualquer parte". Miguilim é todo sentimento e ternura. Timidamente pede os óculos do doutor para ver melhor, o míope. "E Miguilim olhou para todos, com

tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca do feijãobravo e são-Caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos

e os vidros altos da manhã. Olhou, mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. O

Mutum era bonito! Agora ele sabia."

Aí estão os principais acontecimentos dessa obra de gênero indefinível em que persiste e sobrevive a infância pela intensidade com que se projetam os estados da

alma do autor, pela animação de suas imagens, sutileza de sugestões, justeza de expressão.

Assim, por fenômeno de empatia, conduzidos a um mundo interior que já nos pertence, temos a sensação da infância dentro de uma absoluta verdade lírica.

Artista minucioso, Rosa apresenta esse ambiente em linguagem dútil, tenra, pitoresca e gentil, de que ressaltam os diminutivos. Além do nome de herói, Miguilim,

à feição de outras tantas rimas para acarinhá-lo, há uma porção considerável de meiguices: "pertim, pelourim, sozim, papelim, espiro, lugarim, menorzim, ioioim,

durim, xadrezim, direitim, barulhim, demonim, bruxolim, barbim, passarim, beijim".

Esse processo estilístico de nivelamento com o estágio infantil não se repete no conto mágico de Primeiras estórias. "Campo geral" é vivência no passado; "Nenhum,

nenhuma" é revivescência no presente. O primeiro é a plenitude de um capítulo da vida humana; o segundo, a restauração de um antigo estado lírico.

Marcel Proust saiu à procura do tempo perdido por influência de determinado aroma que voltou a perceber. É nos sentidos, notadamente no olfato, que se concentra

Guimarães Rosa para lembrar-se: "o mais vivaz, persistente, e que fixa na evocação da gente o restante, é o da mesa, da escrivaninha, vermelha, da gaveta, sua madeira,

matéria rica de qualidade: o cheiro que nunca mais houve." É o adulto que fala, sem dúvida, para que o mistério permaneça, e apenas tremulem as franjas, sem desvendarem

o que está do outro lado. Não importa o que o Menino viu ou deixou de ver,

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IN -l ROPUÇAO GERAL / FORTUNA CRÍTICA

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mas o que ele pressentiu, imaginou, idealizou e aureolou, pelo condão d sua própria sensibilidade.

Aqui se comprova, talvez ainda mais fortemente, a marca da infânci na personalidade do autor. "Houve o que há."Sente-se confuso: "Infânci é coisa, coisa?" Sendo

um artista plástico, vale dizer, sabendo dispor d palavra como elemento dimensional, procura transformar o abstrato e concreto, "as coisas mais ajudando", nesse

processo de "retrocedimento na tenebrosidade". "Tenho de me recuperar, desdeslembrar-me, excogit - que sei? das camadas angustiosas do olvido." Porém as coisas concreta

apenas tocadas, se desvanecem, vão-se tornando outra vez abstratas. E adulto reconhece: "Então o fato se dissolve. As lembranças são outras dis tâncias. Eram coisas

que paravam já à beira de um grande sono."

Voltemos por um momento a Chesterton: "Há dois meios de estar e casa - disse - um, permanecendo nela; outro, partindo para a distância fim de contemplá-la, voltar

a ela."

A primeira visão é realista; a segunda, idealista ou melhor, super-reate ta. Porque as coisas do coração estão acima e não fora da realidade.

Classificam-se as duas páginas de Rosa nessa dupla situação: "Camp geral" dentro da órbita objetiva, "Nenhum, nenhuma" em esfera subje va. Divergem na substância

e na estrutura. Uma trata de episódios enc deados que se relacionam entre si, esquematicamente; outra fica suspen no ar entre suposições, reticências e devaneios,

é mais fluência que forro A exemplo, um trecho do conto de Primeiras estórias: "Tudo não dem rou calado, tão fundamente, não existindo, enquanto viviam as pesso

capazes, quem sabe, de esclarecer onde estava e por onde andou o Me no, naqueles remotos, já peremptos anos? Só agora é que assoma, mui lento, o difícil clarão reminiscente,

ao termo talvez de longuíssima vi gero, vindo ferir-lhe a consciência. Só não chegam até nós, de out modo, as estrelas."

Em contraparte, o ambiente em que se move Miguilim é todo de cla perceptibilidade, elementar rusticidade, campo aberto, povoado de vi criaturas primárias, paixões

insofridas, bichos de mistura com gente atenderem por nome próprio: Catita, Sobrado, Floresto, Pingo-de-Our o mundo da natureza visível, audível e palpável, direta

e simples, com br nhas, pastos e águas. O mundo extrovertido e divertido de Seo Aristeu:

Amarro fitas no raio / formo as estrelas em par / faço o inferno fechar porta / dou cachaça ao sabiá.

O outro reino, em que se esconde ou se procura o Menino, é requint do, interiorista, respira mistério, levita na intemporalidade, mora ou pe vaga numa estranha mansão

em que os personagens, o Moço, a Mo anonimamente simbolizam sonho, renúncia, amor sublimado. Trata-se,

bem de ver, da recorrência de uma primeira contemplação inefável de categoria intimista.

Desenvolve-se esse poema, por sua vez, em dois planos simultâneos: o da narrativa em tênues pinceladas tom de cinza, e o do reflexivo em nítidas marcações que, ao

contrário do que se podia supor, apagam ainda mais o que o tempo já desgastou.

Sim, os comentários marginais que, em outro clima ou separadamente do enredo, teriam incumbência explícita, e efeito lógico, agem e funcionam como expectativa, ansiedade,

insistência, angústia, desânimo: técnica admirável, de perfeita eficiência para traduzir certo estado psíquico a que chamamos nostalgia, aliado a um longo estado

metafísico sem nome, além do tempo, o êxtase - quem sabe?

Encontram-se ao longo da obra de Rosa outros muitos momentos em que reaparece o Menino ou surgem novos meninos e meninas. Porém nas páginas a que me refiro, as de

maior autenticidade e profundidade, se resume o essencial. Reunidos o cândido Miguilim e o Menino saudoso, surpreende-se, em síntese, toda uma extraordinária sensibilidade

poética.

O RITMO EM "O BURRINHO PEDRÊS"

Ângela Vaz Leão

DOS ELEMENTOS que constituem a poesia talvez seja o ritmo o mais característico, o mais essencial. Há poesia sem rima, sem estrofe, sem verso. Mas dificilmente haverá

poesia sem ritmo. Aliás, a exigência de ritmo não é somente da poesia e da música. É de qualquer arte. Apenas ocorre que, em cada arte, em cada época, em cada gênero,

em cada obra, busca o homem novas soluções para o mesmo problema. Em outras palavras, busca o artista o seu próprio ritmo. E, através do ritmo encontrado, a composição

se estrutura.

Aceitar esse ponto de vista significa considerar o ritmo como um dos mais importantes instrumentos da estruturação da obra literária, seja ela em verso, seja ela

em prosa. E quer-nos parecer que não tem sido outra a posição dos grandes escritores, em todas as literaturas.

Nada mais natural, portanto, que, num escritor tão artista quanto Guimarães Rosa, a busca do ritmo seja um problema constante em todos os momentos da criação. É

o que tentaremos mostrar, através de um conto, "O burrinho pedrês", que abre Sagarana.

Trata-se da história de Sete-de-Ouros, um burrinho "velho e sábio", amante do repouso e da solidão, enfiado no "umbigo do mundo", Fazenda da Tampa, no vale do Rio

das Velhas, no centro de Minas Gerais. Vivia rnodorrando. Omundo de fora lhe chegava coado através das pestanas se-

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INTRODUÇAO GERAL / FORTUNA CRÍTICA

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micerradas, o de dentro o levava a "reservatórios profundos". Certo di "nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas", com do vaqueiros, o dono da fazenda,

Major Saulo, conduz uma boiada de quatr centos e sessenta reses ao arraial, onde deveria ser embarcada. À falta melhores animais - os cavalos haviam fugido quase

todos durante a no por um rombo no fundo do pasto - também serve de montaria o ve burrinho introvertido. Faz-se o trajeto debaixo de chuva, vara-se a encheu do córrego

da Fome, chega-se à estação. Enquanto se embarca o gado, e quanto se bebe cachaça, a inundação cresce: o riacho ralo vira mar. Depo do embarque, o patrão fica no

arraial, voltam os vaqueiros. Topam aque mundo d"água. Dois recusam-se a entrar. O burrinho sonda, "toma conh cimento", espera qualquer coisa, avança resoluto. Aí,

os cavalos tambe começam a seguir. Com inteligência, sem pressa, parando quando é preci parar, entregando o corpo à correnteza onde é preciso entregar, poupand forças

para o fim, vai o burrinho vencendo a enchente, que continua a cre cer e a engrossar, que se retorce e lateja. De repente, o frio aumenta, há u pressão dura, cresce

o rumor da corredeira: é o leito primitivo do córrego madre-do-rio, "a barriga faminta da cobra. Os cavalos aflitos perdem a f ça e o fôlego. A corrente entorna

o pessoal, enrola-o e leva-o: oito vaqueir mortos, até hoje se fala na grande enchente da Fonte. Sete-de-Ouros, se susto, na hora certa, soube que ali era o ponto

de se entregar, pouco impo tava que fosse muito para baixo do lugar da travessia. Deixou-se ir, não r sistiu. Depois, "três pernadas pachorrentas", e pronto: um

fio propício corredeira o entregou à outra margem. Quando estacou, foi no seco, com vaqueiro bêbado que o montava e com mais outro que, debatendo-se água, pudera

agarrar uma coisa movente, encordoada, nada mais nada m nos que o rabo do burrinho. No fim de tudo, há de novo o pátio da fazen com os cochos, e depois o pasto,

com "sombra, capim e sossego".

Um pobre resumo desses não pode dar uma idéia da beleza do tons 66. E não pode, por muitas razões: uma delas é que mudou o ritmo.

Transformamos em chão relato cronológico uma narrativa não-line com idas e voltas no tempo e no espaço, entremeada de outras narrativ conduzida num ritmo lento e

realçada por belo fundo musical.

Com efeito, o movimento narrativo, embora se desenhe em peque superfície, não é uma linha reta. A ação é curta. Não gasta mais do q algumas horas das seis da manhã

à meia-noite: (...) "a estória de um b rinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo um só dia de sua vida." Apesar dessa unidade de tempo, que

se po comparar ao presente vivido no palco, a narrativa salta com freqüência passado e ao futuro. A linha narrativa ziguezagueante rompe a cronolo mergulhando no

"reservatório profundo" que é a memória do burrinh ou na sua fina intuição, que quase lhe confere capacidade divinatória.

Também com as personagens humanas se verifica o mesmo movimento, principalmente através da inserção de outras narrativas dentro da narrativa principal. O processo

é bastante conhecido, podendo-se lembrar as novelas inseridas no D. Quixote, os episódios contados dentro da narrativa épica camoniana, a representação que se realiza

em Sonho de uma noite de verão, e, mais perto de nós, uma peça dentro de outra peça, como em Um auto de Gil Vicente de Almeida Garres, e Seis personagens à procura

de um autor, de Pirandello, ou ainda, um romance dentro de outro romance, como os moedeiros falsos, de André Gide.

No conto de Guimarães Rosa a história central, do burrinho, é intermitente: a todo momento é interrompida por longas descrições da boiada e por episódios vividos

pelos vaqueiros, como a rivalidade amorosa entre Badu e Silvino, o plano de um crime de morte, a luta de Badu com o zebu atiçado por Silvino etc. Até aí, são ações

contemporâneas da principal, que com ela se cruzam, um presente cortando outro. Mas, além dessas, há também as histórias do passado, narradas pelos vaqueiros, enquanto

a boiada não dá trabalho. Tose, por exemplo, conta o caso do companheiro morto a chifradas, por uma vaca com cria. João Manico, o mais velho da turma, narra uma

história passada com ele mesmo e o patrão, quando este ainda era moço e magro. É uma longa e bela história, em que se distinguem várias partes: a boiada mazelenta

e feia, comprada para lá do sertão goiano; o pretinho que trouxeram com o gado, para entregar a um irmão em Curvelo; a tristeza dos animais, que berravam comprido,

virando para trás; os lamentos sem fim do menino, com saudade, querendo voltar; o pouso noturno no campo; o canto do menino, que ainda era mais triste que o choro

e encantava os bois; o sonho do narrador, a fuga da boiada, o desaparecimento definitivo do pretinho...

Mas o melhor contador de casos é Raimundão. Se interrompe a narrativa para falar da boiada ou da chuva, os companheiros e o próprio patrão lhe pedem que continue.

A fala é viva e poética, obtendo plena adesão dos ouvintes, entre os quais se inclui o leitor. Ouvimos da boca do Raimundão quatro histórias completas, que cortam

a história do burrinho e que, por sua vez, são cortadas por observações do narrador, as mais diversas, sob protesto dos ouvintes. É o zebu Calundu, pondo em fuga

uma "onça-tigre macho, das do mato-grosso". É o próprio Raimundão dando a sua primeira topada com o boi bravo e pitando o primeiro cigarro bravo na vista do pai.

E ainda o Calundu, com espírito mau no corpo, matando o menino Vadico e amanhecendo murcho, morto, no meio do curral. É o "homem herodes" Leôncio Madureira, que

vendia o gado, cercava e matava os boiadeiros na estrada, a tormenta a tomar o gado, indo "pros infernos" depois de morto, amaldiçoado pelo berro dos bois.

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1S I ROUUÇAO GERAL / FORTUNA CRITICA

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Dessa forma, o conto do burrinho pedrês poderia dividir-se em vário contos menores, todos eles antológicos. A dificuldade estaria nos corte que exigiram alterações

delicadas, nas passagens em que as narrativas interpenetram. Não se julgue daí que haja falta de unidade de ação, fal de homogeneidade estilística, ou relatos excessivos

e supérfluos. Não. cada um dos casos narrados dentro do conto pode ter vida independent a recíproca não é verdadeira. A narrativa principal perderia, se despoja

daqueles que, em aparência, são secundários. Porque, na realidade, o bui rinho só revela a sua personalidade, o ato do burrinho só cobra a sua ve dadeira dimensão,

em relação com os outros episódios, num contexto d terminado. É o que diz o prol. dr. Oscar Lopes no excelente prefácio Sagarana: "Assim, logo no primeiro conto

de Sagarana que vem a s "O burrinho pedrês", a gente segue a esperteza mansa do bicho, a sua nura de instinto e inteligência que o faz poupar-se, furtar-se a choques

mais pisos e, por fim, orientar-se a salvar-se numa cheia onde os cavai se afogam, carregando um bêbado às costas e ainda outro náufrago encl vinhado no rabo: mas,

paralelamente, vemos mil e oitocentos (sic) bo nos de todas as raças e têmperas em marcha da fazenda para o comboi sabemos pouco a pouco das intenções homicidas

de um vaqueiro, que maiorais vão controlando; e, de longada, os sertanejos contam-me a to propósito histórias que são outras tantas variantes possíveis para vári

episódios do acontecer real em processo. E tudo isto ajuda a conhecer burro porque ele é inseparável do seu mundo e tudo isto se sente com solidário e essencial".

As histórias, por desencontradas que pareçam, convergem todas, po para um fim único, que é dar relevo ao ato silencioso lúcido do burrin A unidade de ação soma-se

à unidade de tempo e à unidade de lugar. Po que até esta existe, se levarmos em conta que a história do Sete-de-Our se passa inteira no latifúndio do Major Saulo,

"onde tudo era enorme despropositado" e se considerarmos os episódios narrados dentro do co to como as chamadas cenas de exposição do teatro clássico.

Cremos ter mostrado que o ritmo da narrativa é lento, sem pressa chegar, como o próprio burrinho que atravessa a enchente. Ao reconstit o plano do conto, marcando,

como era possível, as dezenas de cortes, ve ficamos, num cálculo grosseiro, que as passagens em que aparece dire mente o burrinho representam cerca de 4O%, ficando

cerca de 6O% para descrições e narrações interpoladas, ou melhor integradas. Algumas ince polações são longas e, à primeira leitura do conto, podem desnortear o

le tor não avisado, fazendo-o esquecer o fio da narrativa principal. Em co tactos seguintes com o texto, entretanto, percebe-se, no decorrer dos rei tos secundários,

uma ou outra alusão ao "burrico miserável", "burrin caduco", quase sempre em tom jocoso, menos freqüentemente em tom

dúvida ou de impaciência - de qualquer forma, alusões que lembra ao leitor a presença humilde e o põem na expectativa de um acontecimento surpreendente.

Aliás, o desfecho é preparado pouco a pouco, não só pelos adjetivos e verbos que se referem ao burrinho, normalmente denotativos de qualidades e ações humanas -

"não recebera aviso", "detesta conflitos", "pensando", "concorda", "desgostoso", "sábio", "introvertido", "lúcido", - mas também por frases inteiras, que dão ao

burrinho uma alma ou que põem no mesmo plano burros e homens. Assim, quando Sete-de-Duros atravessa o pátio e se desvia da vaca Açucena, com um bezerrinho de dois

dias, lemos: "Mas, também, qualquer pessoa faria o mesmo" Quando comete o erro de postar-se junto à varanda, de onde é visto e lembrado para a viagem, o narrador

comenta o fato como um erro necessário: "equívoco que decide do destino e ajeita caminho à grandeza dos homens e dos burros." Mais significativos ainda são trechos

de diálogos que falam da inteligência e valentia dos burros, em comparação com a de outros animais: "E o Sete-de-Duros é velho, mas é um burro bom, de gênio... Você

sabe que um burro vale mais do que um cavalo, Manico?..." Várias vezes volta o assunto, nas conversas entre o dono da fazenda e o vaqueiro que monta Sete-de-Duros:

"Escuta uma pergunta séria, meu compadre João Manico: você acha que burro é burro? - Seo Major meu compadre, isso até é que eu não acho, não. Sei que eles são ladinos

demais..." A expectativa do leitor vai aumentando e torna-se pressentimento, quando o patrão diz ao seu vaqueiro: "Mas, desencosta essa tristeza, João Manico meu

compadre, que eu acho que estou guardando, ao daqui a pouco, um espanto bom para você."

Se as narrativas secundárias se integram na estrutura global, fazendonos compreender o mundo do burrinho, determinando a dimensão do seu ato, criando um clima favorável

ao desfecho, também as descrições, principalmente a da boiada, são necessárias à composição do conto, constituindo uma espécie de acompanhamento ou fundo musical

para a ação. Participam do ritmo geral, que é um dos elementos estruturadores do conto, e têm o seu ritmo interno, variável em função dos objetos e movimentos representados,

e obtido, como é normal, pela extensão dos segmentos, pela distribuição de acentos e pausas, pela repetição de palavras e sons expressivos,Pelo jogo de aliterações,

assonãoncias e rimas.

Em três ocasiões consegue o autor dar-nos a impressão exata de movimentos circulares ou espiralados, descritos por animais:

"Como correntes de oceano, movem-se cordões constantes, rodando remoinhos" os bois se deslocam no curral, antes da partida);

"Caracoleiam os cavalos, com os cavaleiros, em giros de picadeiro" os vaqueiros, já montados, se preparam para partir);

IN TRODUÇAO GERAL / FORTUNA CRITICA

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"... aquilo tudo, espremido, parecia uma rodeira gigante, rodando e ficando cada vez mais pequena, sem parar de rodar... as vacas do Calundu se" apertam em círculo,

com medo da onça).

A marcha da boiada, da fazenda para o arraial de embarque, pode se vista e ouvida, tal é o poder sugestivo dos termos e imagens, tal é a justeza do ritmo reproduzido.

lá nos deslocamentos desordenados da partida, destaca-se um ou outro boi, que ganha marcha cadenciada, traduzida pela cadência da frase:

"Estampa de boi brioso. Quando corre, bate caixa, quando anda, amassa o chão!"

"E os tocos da testa do mocho macheado, e as armas antigas do boi cor palão..."

Pouco a pouco, porém, as aguilhoadas e gritos dos vaqueiros vão uniformizando o passo, o ritmo de um animal vai-se transmitindo a outro, e o gado marcha igual numa

cadência só:

"As ancas balançam, e as vagas de dorsos, de vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couro, estralos de guampas,

estrondos e baques, e o berro queixoso do gado Junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos querência dos pastos de lá do sertão..."

Todo o parágrafo, composto de 16 pentassílabos, com acento na 2a e na 5a sílabas, traduz o ritmo uniforme, mas ainda lento, da boiada.

Pouco a pouco, a velocidade aumenta, o ritmo dispara e a frase se estru tura em 12 versos trissilábicos, agrupados de quatro em quatro (quase coe mo estrofes), com

acentos na la e na 3a sílabas-tudo isso sublinhado pel pontuação e pela alteração do b no 1 - grupo, do d no 2o e do v no 3o:

"Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai nã volta, vai varando..."

Mas os vaqueiros ainda receiam uma dispersão do gado, uma surpres má, porque "só está quase pronta a boiada, quando as alimárias se agiu tinam em bicho inteiro -

centopéia"

São as cantigas, aboios, toques de berrante, que acabam de aglutin as reses em um bicho só. A cadência dos bois vai ganhando também homens e cavalos, até que, sem

perceber, todos se integram no rebanho. E estrutura do verso trissilábico volta no fim do parágrafo, retratando a união total do mesmo ritmo e, pela aliteração,

o retumbar dos passos na estrada:

"E, agora, pronta de todo está ela ficando, cá que cada vaqueiro pega balanço de busto, sem-querer e imitativo, e que os cavalos gingam bovinamente. Devagar, mal

percebido, vão sugados todos pelo rebanho trovejara te - pata a pata, casco a casco, soca soca, fasta vento, rola e trota, cabisbai xos, mexe lama, pela estrada,

chifres no ar..."

Agora, "os homens tomam gestos de repouso nas selas, satisfeitos", enquanto os animais guardam uma fidelidade de ritmos", correndo estrada fora:

"E o chapadão atroa, à percussão debulhada dos mil oitocentos e quarenta cascos de unha dupla. Sopra sempre o guia no seu corno, porém, e os outros insistem no canto

arrastado, tão plangente, que os bois vão cadenciando por ele o tropel."

Muitos outros casos de ritmo funcional da frase podem encontrar-se no conto, mas, para não alongar este trabalho, citamos exemplos tirados apenas da descrição da

marcha da boiada, em que o batido dos cascos no solo, os berros, os aboios e cantigas, os toques do berrante formam um acompanhamento polifónico para a ação.

Quanto às aliterações, algumas há que também enriquecem o ritmo: Sete-de-Duros "pega o passo pelo pátio"; na estrada, vai "mudo e mouco" ; os cavalos entram na enchente

tateantes, "pata e peito, passo e passo" . Outras, entretanto, parecem excessivas, como estas, que se distribuem duas a duas, na descrição dos bois: "Galhudos, gaiolos,

estrelos, espácios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, cambraias, chamurros, churriados, corombos, cornetos, bocalvos, borralhos, chumbados, chitados,

vareiros, silveiros..."

O mesmo não se poderia dizer de algumas rimas que parecem gratuitas, a princípio. Lembre-se o gosto da rima na linguagem popular: figura nos provérbios e frases

feitas, nas parlendas e adivinhas, e mesmo na fala cotidiana, quando se procura, por jogo ou ironia, rimar a resposta com a pergunta ouvida. É a estilização da linguagem

oral sertaneja que explica a freqüência da rima no conto do burrinho pedrês: "espetados para diante como presas de elefante" "Vamos dar uma topada, para ver se ela

tem mesmo coragem conversada." "E, aí, soltaram a chuva de verdade: chuva pesada, despejada"; "sem bambeio nem falseio"; "o que ia sendo ia-se vendo"; "E pois, logo

depois, encharcados, enlameados"; "Era uma vez, era outra vez, no umbigo do mundo, um burrinho pedrês." Para confirmar a explicação dessas rimas pelo seu caráter

lúdico e pela sua oralidade, lembremos que muitas aparecem em diálogos: - "Tenho vaqueiros, que são bons violeiros..."; - "Olha para mim, Francolim"; - "Não quero

esse boi para ser Francolim, que não sai de perto de mim..."; - "Mas pulou no cangote do zebu? - Que óte! que ú...".

De qualquer forma, porém, tenha sido esse ou não o propósito do autor, elas concorrem, juntamente com a distribuição de pausas e acentos, para o enriquecimento do

ritmo interno de cada parte do todo.

E esse ritmo interno, por sua vez, se alia ao ritmo geral da narrativa, elemento que harmoniza a sucessão das várias partes, dando validade estética à estrutura

do conto.

I~TKODUÇAO GERAL / FORTUNA CRÍTICA

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Não resta dúvida; estamos diante de uma obra-prima. Esse burrinho que renasce da enchente - "Era uma vez, era outra vez, no umbigo do mundo, um burrinho pedrês"

- renasceu para não morrer. E se morresse um dia, haveria de ir para o paraíso dos burrinhos, que um poeta já inventou. Ao lado de seus irmãos mais velhos, Cadichon,

Morgado, Culotte Platero, estaria livre dos homens e dos bois. E então poderia continuar o seu eterno cochilo, "devagar, por todos os séculos e séculos, mansamente

amém".

GUIMARÃES ROSA, NOVELISTA

Braga Montenegro

A OBRA de Guimarães Rosa, por motivo da singularidade estilística em que se comporta, da afoiteza lingüística que a assinala numa paródia admirável da oralidade

primitiva dos "gerais", oferece à crítica um campo sedutor às interpretações de estrutura. Neste sentido, pode dizerse, esses estudos se têm desenvolvido e alcançado,

quando não o necessário apogeu, pelo menos um grau de validade que se poderia admitir base tante compensador. A começar pelo penetrante ensaio que M. Cavalcan Proença

dedicou a Grande sertão: veredas, oportunidade em que deixaria implícitos seus intuitos de análise já na variante expressiva que retl raria do próprio título com

que o romancista batizara o seu livro. Proença, a despeito de ressaltar no romance três partes essenciais a subjetiva, que define os antagonismos do comportamento

humano; coletiva, influenciada pela literatura popular; a telúrica, mítica, qu empresta aos elementos físicos ambienciais e aos bichos uma aparên cia transumanada

- inclina-se significativamente a considerar os a pectos formais, estilísticos e lingüísticos, que dão, sem a menor dúvid à obra de Guimarães Rosa a sua mais forte

originalidade. E de tal sorte est observação se torna oportuna que o crítico Wilton Cardoso afirma e jus fica que, no caso presente, "a linguagem não é simples meio

d expressão da realidade, senão que é ela própria que compõe essa me ma realidade". z

Mas há aqui um ponto a ser considerado: uma prosa de tal modo ass nalada por uma riqueza verbal e semasiológica sem precedentes em nos literatura, a qualquer estudioso

mais inteligente seria dado o alcance de 1 definir e especificar os caprichos de composição, as argúcias estilística

" Trilhas do grande sertão. In: Augusto dos Anjos e outros ensaios. Rio de janeiro: Jo

Olympio Editora, 1959.

z "A estrutura da composição em Guimarães Rosa". In: Guimarães Rosa (Conferência)

Belo Horizonte, Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais, 1966.

a maneira pessoal como o escritor trabalha os componentes técnicos de sua linguagem, combina os recursos fonéticos, morfológicos, léxicos e sintáticos de sua expressão.

Mas nem sempre são perceptíveis à investigação crítica certos problemas estéticos que repontam na obra de arte independentes das categorias de estrutura e se definem

numa ordem subjacente de intuitos, que é a própria atitude vital do artista, a substância mesma de sua experiência cotidiana.

E se encararmos deste ângulo os estímulos sob os quais o escritor foi levado a formular os experimentos de seu estilo - isto que lhe comprazia deixar bem disfarçado

sob uma espessa cortina de subterfúgios formais, conforme observam Paulo Rónai e Benedito Nunes, relativamente à técnica de despistamento que se infere dos prefácios

de Tutaméia3 - então mais ainda se complica a tarefa para o intérprete cuja ambição não seja essa de simplesmente indicar as virtualidades do processo lingüístico

e de composição na obra do romancista. Antes de mais nada é necessário meditar na formação sertanista do escritor, na realidade ecológica em que se fundamenta, no

cabedal vocabular e expressivo que lhe serviu de escora, enfim, nos atributos todos que lhe são inerentes por contingências biológicas e de cultura.

Como inteligentemente refere Paulo Rónai, Guimarães Rosa jamais se desligaria de seu "mundo arcaico" e "o muito que vira e aprendera pela vida afora serviu-lhe apenas

para aguçar a sua compreensão daquele universo primitivo". Através de anos não se romperia jamais a identificação entre o escritor "e a paisagem, os bichos e as

plantas e toda aquela humanidade tosca em cujos espécimes ele amiúde se encarnava, partilhando com eles a sua angústia existencial". Até às vezes - acrescentemos

de nossa conta, utilizando-nos das palavras do crítico - partilhando-lhes a "luta com a expressão recalcitrante", procurando definir-se, tentando "encontrar o sentido

da aventura humana". 4

Assim referida a luta do ficcionista contra a expressão, subentende-se que a linguagem de seu uso não foi apenas uma cópia do que ouvira e aprendera no meio primitivo,

mas dali recolhera a experiência documentária, em forma e fundo, para forjar com o apoio dela um bem combinado instrumento vocabular e expressivo, capaz de reproduzir

as intenções de arte que lhe vinham de irresistível vocação para as letras. Sua linguagem será, até certo ponto, uma metáfrase da fala popular dos "gerais", mas

inclui, ademais isto, os elementos de cultura que influíram nas disposições inventivas e receptivas do homem civilizado. Em ficção algu

" Paulo Rónai. "Os prefácios de Tutaméia" e "As estórias de Tutaméia% in Suplemento

Literário de O Estados de S. Paulo, 23-3-68. Benedito Nunes. "Interpretação de Tua taméia", loc. cit., 2-9-67.

Paulo Rónai, loc. cit.

15O

ma, das realizadas em nossa literatura, exceto talvez, em reduzido termo, na de Oliveira Paiva (que não teve tempo nem meios para declarar convenientemente sua excepcional

mensagem criadora), houve uma tentativa tão vigorosa de assimilação do mundo regional e que tão bem o entrosasse - em simbiose, proveito e dignidade - na dinãomica

do humanismo contemporâneo, como acontece no caso de Guimarães Rosa.

Não se trata evidentemente de um sistema terminológico ou sintáticode simples invenção, nem ainda de um dialeto peculiar a uma região dada, mas de um hábito de vida,

um admirável artifício de renovação literária, enfim de um estilo.

De certo modo pode parecer esdrúxula, ao leitor desavisado ou mais afeito à perspicuidade clássica do idioma, esta voluntariosa mistura da oralidade rudimentar do

povo e da escrita ordenada dos letrados, mas tudo resulta acessível e familiarizado após breve e bem predisposta iniciação. Por vezes nos fere o acomodamento lógico

o fato de aparecerem freqüentemente expressões eruditas em meio ao saboroso linguajar sertanejo, como neste trecho em que Riobaldo aventa normas legais para pôr

termo aos" motivos (a idéia do demo como encarnação do mal) de sua inquietante~ indagação metafísica: "Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo... Eu quase que

nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre - o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e

eu rastreio essa por fundo de todos matos, amém! Olhe: o que devia de haver, era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições gradas, fecharem o definitivo

a noção - proclamar por uma vez, artes assembléias, que não tem diabo nenhum, não existe, nã pode. Valor de lei! Só assim, davam tranqüilidade boa à gente. Por que

o Governo não cuida?!".

Com o fluir da leitura, entretanto, vem-nos a convicção de que tud isso está certo, que só poderia ser assim mesmo, pois todos esses elemento se adaptam às necessidades

do contexto e se incorporam admiravelment na unidade cosmogônica do romance (ou novela), como a resultante d suas múltiplas ambigüidades. 5

Essas complexidades formais, esses embaraços de composição, ao prt meiro contato dariam a idéia de certa impermeabilidade, de forte obstáculo à audiência do leitor

menos letrado ou menos afeito à intimidade do grandes textos. Mas não: as edições se sucedem; as traduções também. Ist demonstra a validade sugestiva da arte e a

sua identificação com o homem O povo conserva seus padrões literários, aos quais a memória coletiva se acha familiarizada, mas ao mesmo passo não desdenha o discrepante

e ort

s C£ Antonio Candido. "O homem dos avessos". In Tese e antítese. São Paulo: Companhia Editora Nocional, 1964.

ginal, conquanto seja capaz de lhe infundir uma emoção autêntica.

M. Cavalcanti Proença se encarregaria de mostrar os equívocos daqueles

que pretendem se aproximar da multidão pelo consentimento do estilo e

dos temas ao nível da trivialidade cotidiana, e com isto mutilam a arte e se

apagam de vez. Registra: "Se a forma fosse empecilho à penetração da obra

literária no conceito popular, Iracema, de Alencar, e Eu, de Augusto dos Anjos, não teriam chegado à primeira dezena de edições.""

Essas considerações, todavia, não são de molde a, isoladamente, esclarecer, ou fornecer os dados esclarecedores, ou, sequer, indicar as vias de acesso por onde atingir

a totalidade significante da novelística de Guimarães Rosa, abrangendo todo o seu conspecto realizador. O seu mistério há de permanecer íntegro e desafiante até

na medida em que será lícito admitir na obra sua personalidade no tempo. Desta sorte, qualquer interpretação que se experimente há de resultar arbitrária por carência

de constatação lógica na dinãomica de um cosmos todo elaborado em magia, lenda e mito. "O mundo é mágico", diria o escritor em seu único, definitivo discurso. Toda

e qualquer tentativa de sondagem terá, portanto, de se desenvolver numa prospecção de escolha, no propósito de iluminar, quando muito, uma ou poucas das sinuosas,

múltiplas veredas que levam ao núcleo vital de onde se irradia essa admirável energia fecundante.

O propósito destas notas não será outro senão indicar uma das figurações por que se apresenta a ficção de Guimarães Rosa, jamais equacioná-la em todos os problemas

com que por esta parte ela se oferece ao estudo. A esse propósito, não seria ocioso referir que o ensaio de Proença foi deveras percuciente no indicar e esclarecer

as origens medievais da temática de Grande sertão: veredas. O grande crítico escancarou com isto, por assim dizer, uma das estreitas cancelas por onde dar ao manancial

mitológico e ontológico em que se encerra a estória de Riobaldo.

Ortega y Gasset discordando de Croce, cuja teoria de inconsistência genérica da arte "no há conseguido dejar Ia menor huella en Ia ciencia estética", afirma: "Toda

obra literária pertence a um gênero, como todo animal a uma espécie.` Não seria, portanto, fora de propósito registrar aqui a tendência dominante, no quadro das

espécies e gêneros literários, da ficção de Guimarães Rosa. E até não constitui audácia enquadrá-la - essa tendência dominante - na ordem formal da novela. A novela

entendida como uma divisão da atividade literária e prosa artística - o roman

ce, a novela e o conto.

6 Augusto dos Anjos e outros ensaios, cit.

La desuhumanización del arte", in Obras completas. t., 111, 3. ed. Madri, Revista de Ocidente S.A., 1955.

11,~"rRODUÇAO GERAL I FORTUNA CRÍTICA

153

É certo que a voz "novela" tem dado motivos a uma forte ambigüidade de conceitos, não sendo ela, a rigor, um gênero literário, mas uma subdivisão formal específica

da prosa de ficção. De qualquer sorte, por extensão um gênero, tal como vulgarmente aceito. Os teoristas classificam-na ora em sua significação numérica, ora em

seus preceitos de estrutura, ora em seu processo de elocução ou índole narrativo-realista. De todos esses elementos há de a novela comportar o influxo, embora em

continente e natureza esteja situada a meio caminho entre o romance e o conto, como convenientemente a entende Jean Suberville: "La nouvelle tient le milieu entre

le roman et le conte, moins etendue que le premier, plus longue que le second." E mais: "Come lés poèmes à forme fixe, ces petits gerires de prose cachent, sons

leur apparente facilité, une difficulté d"art que vaiquent seulement lés maitre écrivains." $

Deste modo seriam novelas "O burrinho pedrês", "A hora e vez de Augusto Matraga", "Campo geral", "Meu tio, o lauaretê", "Os chapéus transeuntes" e tantas outras,

por se enquadrarem na conceituação modernamente admitida, qual essa de Suberville. E sendo essas estórias do coelho e mais característico que produziu o escritor,

não será talvez audaciosa a afirmativa de que a qualidade literária primordial de Guimarães Rosa es teja justamente em sua produção novelística. Na estória de Miguilim

pro vavelmente estará sua mais perfeita realização artística e até em Grand sertão: veredas, por seu processo de elaboração, seu tom narrativo, seu ri mo de tempo

e efabulação, suas raízes populares - de farta inspiraça cavaleiresca medieval aculturada nos sertões - estará por certo a vocaçã do novelista bem mais perceptível

que a do romancista.

M. Cavalcanti Proença referindo-se ao romance (tal como rotulado livro pelo autor e está sendo aceito em sua ambigüidade formal) fala e epopéia, o que é muito bem

aplicado, tendo-se como se tem o fato de q na idade moderna o romance (ou a novela) substitui em grande cópia poema heróico da idade clássica, até ainda, no caso

vertente, por sua índ le mítica e transcendental. A que outra coisa senão a uma epopéia se pod riam assemelhar as andanças de Riobaldo e de seu bando, os lances

heró" cos, os recalques, as abnegações e as misérias do comportamento jagunç e mais a atmosfera de idealidade e poesia que o autor conseguiu transfu dir no meio

hostil, na alma de uma humanidade primitiva toda imersa mistério étnico e cultural? Sim, a estória de Riobaldo tem por certo o se significado épico.

Menéndez y Pelayo, não obstante afirmar que a ficção novelesca se ca racteriza pelo predomínio da fantasia individual, no livre impulso da ima nação criadora, admite

seja a Odisséia, na maior parte do seu contexto, u

1 Théorie de l"art et des gerires linéraires. Paris, Les Éditions de L"Éccle, 1948.

grande novela de aventuras? Novela, não romance, cuja acepção é idêntica em língua espanhola, salvo a designação quantitativa de "novela curta" utilizada por alguns

teoristas - Mariano Baquero Goyanes e outros.

Grande sertão: veredas, em seu conteúdo trágico, é denso e complexo, mas se distancia em ritmo e efabulação da aparência romanesca tradicional. Será, pois, em sentido

genérico, como a Odisséia, uma grande novela de aventuras.

Note-se que em sua teoria de reconto elementar, Riobaldo, por assim dizer, não narra nem descreve - monologa, fala para dentro de si, como um pesadelo incessante.

E a ação da estória, em sua trama central, vai-se desenrolando, com idas e vindas, ao sabor das recordações, com interpolações arbitrárias de peripécias acessórias,

num fluir sinuoso, os fatos recentes antecipando-se aos mais remotos sem qualquer disciplina cronológica, exceto o episódio revelador do verdadeiro sexo de Diadorim,

o que ficaria para o remate espetacular de toda uma soma de instigações psicológicas, de mistérios e premonições sensíveis na pessoa do herói, para o final da cadeia

narrativa, tal como ocorre com a teoria dos eventos novelescos.

Como foi amplamente demonstrado por M. Cavalcanti Proença,1o a saga de Riobaldo está prenhe de ressonãoncias medievais. Não talvez por experiência diretamente abeberada

nos textos eruditos ou ainda populares em que a matéria está contida, mas pela paciente observação do romancista na tradição rural. A literatura cavaleiresca, apreendida

na memória coletiva através dos tempos, impregnou de lirismo e epopéia a imaginação do povo sertanejo, que a repete e a deturpa ao sabor de sua fantasia ingênua,

notadamente aquela do ciclo carolíngio e a do romanceiro peninsular. Guimarães Rosa ao utilizar esses motivos não teve, portanto, a necessidade de recorrer ao manancial

crítico dos eruditos em assuntos literários da Idade Média ou da antigüidade remota, mas simplesmente os recolheu dos temas correntes nos sertões - tanto esses inerentes

aos fenômenos de aculturação, como aquele da legenda ameríndia. A aptidão imaginativa de Riobaldo (por vontade consciente do romancista) estaria, assim, profundamente

embebida desses mitos históricos e era tanto mais eficiente quando havia em sua pessoa os estímulos de uma vida aventureira com amplo ensejo para a invenção e a

fantasia. Sobretudo ele se revelaria versado no assunto de um livro Popular de farta circulação nos meios rurais brasileiros - a História de Carlos Magno e dos doze

pares de França, cuja influência nos sertões transcenderia a lenda e se manifestaria com grande eficácia nas rebeliões e na resistência armada das hordas de jagunços

e fanáticos: Canudos, na Bahia; o Contestado, em Santa Catarina; o Caldeirão do Beato Lourenço, no Ceará...

óOrígenes de la Novela, t. i. Buenos Aires, Editorial GLEM, 1943. Op. Cit.

IN 1 RODUÇAO GERAL 1 FORTUNA CRÍTICA

155

O romancista, com esse proceder, revelaria uma dimensão excepcional, incutiria um significado anímico de superior qualidade em seu personagem narrador.

Ainda como elemento de influência, convém lembrar a circunstância de que Diadorim é uma personagem decalcada na lenda. Provém certamente da inspiração de uma estória

de farta circulação no meio sertanejo, no Nordeste e nas regiões do Brasil Central, em inúmeras versões. Trata-se, portanto, de uma réplica algo estilizada, senão

talvez bastante deturpada, do "romance" castelhano "A donzela que vai à guerra" ou "O rapaz do conde Daros" ("A moça do conde Dare", como é conhecido no Nordeste),

recolhido por Almeida Garrett no Romanceiro.

Contudo, onde efetivamente Guimarães Rosa demonstra melhor os seus talentos de fccionista é nas composições de média extensão, como aquelas já referidas nas presentes

notas. Grande sertão: veredas é sua obra principal, aquela em que pôde oferecer, em amplas dimensões e complexidades formais, a exata medida de suas virtualidades

criadoras; todavi será em "Campo geral" onde suas potencialidades inventivas e sua sensi. bilidade poética esteja mais em evidência. A carga de poesia, a força suges

tiva de vida latente que essas páginas encerram, a energia de traços co que se delineiam as figuras, a sóbria linguagem da estrutura, o profund conhecimento que

o autor revela do ambiente e das coisas sertanejas, apreensão dos usos, dos meios de expressão e do comportamento d criaturas humanas numa rotineira fazenda de criar

das desertas parage dos confins mineiros - tudo isso ali está em seus valores próprios, e suas necessárias proporções humanas e artísticas.

Todavia, como assim destacaram-se os indícios formais dessa novel não vale dizer seja Guimarães Rosa, de índole, um naturalista, sequer u realista. Apenas sua ficção

expressa o real, o que é bem outra coisa. S realidade é depurada, de um significativo acento lírico e, conquanto ps cológica, nada tem de psicologísmos teóricos.

Conterá, certamente, aqu Ia verdade psicológica que Edmund Wilson encontrou no UOses, e que define em apanhar a vida no processo mesmo de ser vivida, os seres h

manos identificados com o mundo ambiente que lhes condiciona as fo mas de existência, em sentido físico, profissional e emotivo."

"Campo geral" é uma estória que, ao mesmo tempo, se compadece, e conformidade perfeita, com os conflitos da natureza bruta, a truculênc das gentes afeitas ao meio

rude e as generosas manifestações do lirism

do amor, da abnegação. Seu cenário se desdobra, longínquo, "no me

dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta,

de serra", lá no Mutum, Urumutum de origem segundo o Tio Osmun

t Edmund Wilson. Axel"s Castle. Nova York: Charles Scribner"s Sons, 1931, p. 219-2

Cessim.12 Era uma fazenda de cultivo rudimentar, da entrega de certo

Nhô Bero ou Berno. Esse ruralista, Bernardo Vaz de nome verdadeiro, era

de temperamento impulsivo. Vovó Izidra dizia: - "Esse Bero tem osso no

coração..." Mas não: era apenas um homem muito infeliz. Certo dia, de

sesperado com a adversidade que o perseguia - ás carências do orçamen

to doméstico, a morte do filho, as infidelidades da esposa, as deficiências

todas do ermo - assassina um dos amantes da mulher e suicida-se.

No Mutum viviam, além da família do encarregado, o Tio Terez, que se

tomou de amores pela cunhada e teve de abandonar a casa, Vovó Izidra,

Mãetina, a Rosa, a Maria Pretinha, o vaqueiro Saluz, o vaqueiro Jé; por fim

o Luisaltino, que ficou agregado e acabou assassinado pelo patrão. E mais os bichos: os cães Zerró, Seu-Nome, Gigão, Caráter, Catita, Soprado, Floresto, Leal, Julim,

este o tamanduá matou; o gato Sossõe e o gato Quóquo, que "repufava" de raiva quando via cachorros; Papaco-o-Paco, o papagaio, que, tagarela como era, muito contrariou

o Dito até a morte, por não lhe querer repetir o nome; o touro Rio-Negro, que nunca pagava o bem com o bem que lhe faziam, os gados, os animais de serviço.

Ademais estes seres, havia os comensais da fazenda, os camaradas, os passantes, dentre estes seu Deográcias e seu filho Patori. Há um episódio tocante com estas

duas personagens. O Patori matara casualmente um companheiro com um tiro, e seu Deográcias afundara em nojo. O vaqueiro Saluz encontrara-se com ele e contava, "redondeava"!

"Seo Deográcias estava revestido de preto, envelhecido com os cabelos duma hora para outra, percorrendo todas as veredas, e dando aviso às pessoas, dizendo que o

Patori não queria assassinar, só que estavam experimentando arma-defogo, a garrucha disparou, o rapazinho morreu depressa demais. O Patori esquipou no mundo, de

si devia de estar vagando, campos. Seo Deográcias pedindo, a todos, para cercarem sem brutalidade. Seo Deográcias só perguntava, repetidas, se não achavam que o

Patori, sendo sem idade e sem culpa governada, não devia de escapar de cadeia, se não chegava ser mandado para a Marinha, em Pirapora, onde davam conta de dureza

para meninos apoquentados.".

Mas, além de seu Deográcías e do Patori, o Grivo, o Nhangã, o vaqueiro Ridualdo, o velho Rocha Surubim, tantos... Por aí se vê o gosto que o escritor retinha por

nomes! Em seu discurso de posse na Academia deixou registrado- "tudo quanto há com nomes me apanha". Sua numerosa antroponímia era quase toda calcada em alcunha,

às vezes com nítida representação ambiental e de idéia - os semantemas uma forte peculiaridade de seu estilo. Veja-se ainda a estranha cópia de apelidos em Grande

sertão: veredas: Riobaldo, Diadorim, Quelemém, Alarípe, Zé Bebelo, Selorico, João

12 Corpo de baile, 2. ed. Rio de janeiro: José Ol-i- PA;-_ , ^-°

156

1-T RcwuçAO GERAI. / FORTUNA CRíTtcA

157

Goanhá, João Concliz, Fafafa, Nhorinhá, Sesfredo, Sidurino, Diodolfo Quipes e tantos outros, e por toda a obra.

A família de Nhõ Bero se compunha de mulher, Nanhina de apelido, dos filhos - dentre estes "Liovaldo, que estava distante dali, nem se sabe dele quase notícia, nem

nele não se pensava", pois vivia com o Ti Osmundo - Drelina, a Chica, o Dito, o Tomezinho e Miguilim. Este tinh oito anos e era míope. E porque era míope Miguilim

não vivia bem identi ficado com o mundo da realidade, senão com o mundo do mito. Sua sensi bilidade não reagia jamais sob o efeito de uma visão diáfana das coisas,

m da magia das coisas; jamais de certeza como as coisas fossem mas da imag nação do que elas poderiam ser. Fê-lo assim o novelista, tal como fizer temporariamente

cego, por via de estranho sortilégio, aquele personage do conto "São Marcos", 13 para que ele usufruísse com intensidade maio toda a gama de sons e melodias do mundo

que o circundava, e para que, recobrada a vista, ele pudesse admirar com amor a grande beleza ambient

O autor em vez alguma diz que Miguilim era míope. Apenas suge Nem ainda deixa perceber diretamente suas intenções, as sutilezas poétic que o fato comporta. A chave

dessa ardilosa trama ele não nos concede s quer no pórtico da narrativa, mas reserva-a para o remate, após submeter leitor a uma verdadeira jornada de emoções, de

penetração no vago, n todo obscuro, tal como uma teoria conradiana. Ao meio de sua estón Miguilim, numa cavalgada com o Dito, sob a vigilância do vaqueiro Jé, n

encalço dos bois, forceja para distinguir a pelagem do gado, "queria v mais coisas, todas, que o olhar dele não dava". Adiante nos vem outra ref rência ao caso.

O pai arreliava e "ralhava sempre, porque Miguilim não e xergava onde pisasse, vivia escorregando e tropeçando, esbarrando, qua caindo nos buracos". Somente ao final

quando lhe aparece o doutor Jo Lourenço, que viera caçar na Vereda do Tipã, com quem teria de ir embo do Mutum, e lhe emprestaria os óculos, ele teria a visão perfeita

das coisas noção exata das microformas, até então despercebidas. Olhou. Uma pais gero nova se revelaria a seus olhos. "Nem não podia acreditar! Tudo e uma claridade,

tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as cai das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas men res, as formiguinhas passeando

no chão de uma distância. E tonteava."

Contudo, para Miguilim o Mutum era bonito. "Mas sua mãe, que e linda e com os cabelos pretos e compridos, se doía de tristeza de ter viver ali." Apontava o morro:

- "Estou sempre pensando que lá por d trás dele acontecem outras coisas, que o morro está tapando de mim, que eu nunca hei de poder ver..." E com isto denunciava

sua insatisfaçã sua índole sonhadora. Mas seria o Mutum o universo mágico de

13 In Sagarana. Rio de janeiro: Editora Universal, 1946.

quilim. Todas as ocorrências, enquanto estória, estariam ligadas a ele, circulavam em torno de sua pessoa, de seus gestos, de suas atitudes, de suas palavras e de

seus sonhos. Quando ele vai para a casa do vaqueiro Saluz, porque o Pai estava "raivável" com ele, tinha sido mau por lhe ter soltado os passarinhos e destruído

as gaiolas, a fazenda ficaria sem crônica. Cessa então, em torno ao Mutum, aquela atmosfera de mistério. Mistério cósmico, mistério físico e metafísico, aquela fatalidade

noturna que somente tinha realidade na alma da criança.

Mas logo Miguilim volta e se identifica no medo. Sim, como ocorre em Heart of Darkness, de Joseph Conrad, aqui também uma das principais personagens da novela é

o medo. Medo às noites e aos dias mal percebidos, medo aos castigos, medo aos cerrados e aos descampados, medo ao egoísmo rancoroso do Pai e a inelutável sensualidade

da Mãe, medo à maldade inconseqüente dos familiares, medo aos raios e aos trovões, aos animais do mato e aos animais domésticos, à morte, às almas do outro mundo,

aos apelos e frustrações do sexo, aos abismos das cogitações metafísicas.

Miguilim concentrava em seu ser todas as dúvidas, as precocidades, as angústias do menino rural. Ali a lição da natureza é sempre contundente e pertinaz e a sensibilidade

cedo se acomoda às suas sugestões e aos apelos - ou de ordem física, ou psicológica, ou transcendental e onírica. O espírito de Miguilim, porque ele era míope, porque

era desamparado e lírico, permanecia no medo e no sonho. "Uma vez ele tinha puxado o paletó de Deus." E essa atitude assinalaria todos os acontecimentos de sua existência.

Naquele momento, quando se engasgara com um osso de galinha; depois, em uma ocasião em que se imaginara tísico e aprazara com Deus a data de morrer; por ocasião

da morte de Dito; e por variadas vezes. A principal porém foi essa em que esteve portador do bilhete do Tio Terez. O tio se enamorara da Mãe e tivera de abandonar

a casa na qual traía o próprio irmão. Todos sabiam do caso mas não há disso uma referência precisa. Vovó Izidra aludia a Caim e Abel. Ele, Miguilim, indagava-se

até quando certas coisas estariam direitas. O Pai manifestava suas amarguras, de maneira indireta, nos ralhos com as pessoas da casa. Mãe, suspirosa sempre, "olhava

com aqueles tristes e bonitos olhos". E até Luisaltino, que tão duro pagara sua culpa, em passeio de proveito na ausência de Vovó Izidra, manifestara, oblíquo, o

seu parecer: "que judiação do mal era por causa que os pais casavam as filhas muito meninas, nem deixavam que elas escolhessem noivo".

Em dado tempo, Tio Terez, ausente de casa, encontrara-se com Miguilim no caminho do mato e lhe confiara o bilhete. Era para a mãe. O Tio Terez invocara na ocasião

o seu pacto de amizade, confundira-o, "foi falando e desaparecendo nas árvores". Dera-lhe o fato motivo a um terrível draina de consciência e a uma paralela indagação

metafísica. Com o bilhete no bolso, durante dois dias perguntava a todos "como é que a gente sabe

Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a

intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma

manifestação do pensamento humano..

Mostrou-me depois o índice no começo do volume, curioso de v eu lhe descobria o macete.

- Será a ordem alfabética em que os títulos estão arrumados?

- Olhe melhor: há dois que estão fora da ordem.

- Por quê? i

- Senão eles achavam tudo fácil.

"Eles" eram evidentementeoscrlt~cos. Rosa, para quem escrever tia tanto de brincar quanto de rezar, antegozava-lhes a perplexidade enca Irando prazer em aumenta-la.

Dir-se-ia até que neste volume quis adre4 submetê-los a uma verdadeira corrida de obstáculos.

Seria esse o motivo principal da multiplicação dos prefácios, de q livro traz não um, mas quatro?

Prefácio por definição é o que antecede uma obra literária. Mas no do leitor que não se contenta com uma leitura só, mesmo um pref colocado no fim poderá ter serventia.

Estórias à primeira vista, num segundo relance os prefácios hão de r lar uma mensagem. Juntos compõem ao mesmo tempo uma profissão fé e uma arte poética em que o

escritor, através de rodeios, voltas e per ses, por meio de alegorias e parábolas, analisa o seu gênero, o seu in mento de expressão, a natureza da sua inspiração,

a finalidade da sua de toda arte.

Assim "Aletria e hermenêutica" é pequena antologia de anedotas versam o absurdo; mas é, outrossim, uma definição de "estória" no sen especificamente guimarães-rosiano,

constante de mostruário e teoria qu completam. Começando por propor uma classificação dos subgêneroa conto, limita-se o autor a apontar germes de conto nas "anedotas

de ali ção", isto é, nas quais a expressão verbal acena a realidades inconceb pelo intelecto. Suas estórias, portanto, são "anedóticas" na medida eni certas anedotas

refletem, sem querer, "a coerência do mistério geral que envolve e cria" e faz entrever ` o supra-senso das coisas".

"Hipotrélico" aparece como outra antologia, desta vez de diverti expressivas inovações vocabulares, não lhe faltando sequer a infalível dota do português. E é a

discussão, às avessas, do direito que tem o esc de criar palavras, pois o autor finge combater "o vezo de palavrízar", mando por sua conta os argumentos de que já

se viu acossado c deturpador do vernáculo e levando-os ao absurdo: põe maliciosame vista as inconseqüências dos que professam a partenogênese da língua pasmam ante

os neologismos do analfabeto, mas se opõem a que palavra nasça do amor da gente", assim "como uma borboleta sai do

da paisagem". A "glosação em apostilas" que segue esta página reforç a aparência pilhérica, mas em Guimarães Rosa zombaria e pathos como o reverso e o anverso da

mesma medalha. Oprimeiro "pr

_, DUÇÃO GERAL / FORTUNA CRÍTICA lól

u para nos fazer compreender que em suas mãos até o trocadilho vira o para espiar o invisível.

aNós os temulentos" deve ser mais que simples anedota de bêbado,

se nos depara. Conta a odisséia que para um borracho representa a

volta a casa. Porém os embates nos objetos que lhe estorvam o ca

o envolvem-no em uma sucessão de prosopopéias, fazendo dele, em

de com esse outro temulento que é o poeta, um agente.de transfigu

do real.

" almente confissões das mais íntimas apontam nos sete capítulos de re.a escova e a dúvida", envolvidas não em disfarces de ficção, como se tantos narradores, mas,

poeticamente, em metamorfoses léxicas e

o próprio ficcionista que entrevemos de início num restaurante chic " a discutir com um alter ego, também escritor, também levemente

ado, que lhe censura o alheamento à realidade: "Você evita o espirmexer da realidade, então foge-não-foge." Surpreendidos de se enem face a face, os dois eus encaram-se

reciprocamente como perns saídas da própria imaginativa, perturbados e ao mesmo tempo tados com a sua "sociedade" (sic!), tecendo uma palestra rapsódica " s em que

o tema do engagement ressurge volta e meia como preo`o central. O Rosa comprometido sugere ao Rosa alheado escreve. livro juntos; este não lhe responde a não ser

através da ironia

com que sublinha o contraste do ambiente luxuoso com o ideal

e redenção do povo".

a resposta à acusação de alheamento deve ser buscada também e

do nos capítulos seguintes. Em primeiro lugar, põe-se em dúvida a da realidade através da parábola da mangueira, cada fruta da qual em seu caroço o mecanismo de

outra mangueira; e o inacessível entos mais óbvios do cotidiano real é aduzido, afirmado, exempli

Depois de tentar encerrar em palavras o cerne de uma experiência sua, o autor procura captar e definir os eflúvios de um de seus dias es" a oscilar incessantemente

entre azarado e feliz, até enredá-lo

decisão irreparável. Possivelmente há em tudo isto uma alusão à re

lnfluência de nossa vontade nos acontecimentos, às decorrências toimprevisíveis de nossos atos. A seguir, evoca o escritor o seu prionformismo de menino em discordância

com o ambiente sobre to de somenos, o uso racional da escova de dentes; o que explicanão-participação numa época em que a participação do escritor é e ordem. Nisto,

passa a precisar (ou antes a circunscrever) a natu

inar e supraconsciente da inspiração, trazendo como exemplo a várias de suas obras, precisamente as de mais valor, antes impose projetadas de dentro para fora.

Para arrematar a série de confidências, faz-se o contista intermediári lição de arte que recebeu de um confrade não sofisticado, o vaqueiro p em companhia de quem

seguira as passadas de uma boiada. Ao contar. trovador sertanejo o esboço de um romance projetado, este lhe exprob decididamente o plano (talvez, excogitado de parceria

com o sósia Montmartre), numa condenação implícita da intencionalidade e do re mo: "Um livro a ser certo devia de se confeiçoar da parte de Deus, depor para todos."

Arrependido de tanto haver revelado de suas intuições, o escritor, n tro esforço de despistamento, completou o quarto e último prefácio c um glossário de termos

que nele nem figuram, mas que representam ou tantas idiossincrasias suas, ortográficas e fonéticas, a exigir emendas nos positórios da língua.

Absorvidos pelos prefácios, ei-nos apenas no limiar dos quarenta c tos, merecedores de outra tentativa de abordagem. Quantas vezes, mes nesta breve cabra-cega preliminar,

terei passado ao lado das intenções quivas do contista, quantas vezes as suas negaças me terão levado a in pretações erradas? Só poderia dizê-lo quem não mais o

pode dizer; será que o diria?

Descontados os quatro prefácios, Tutaméia, de Guimarães Rosa, c tém quarenta "estórias" curtas, de três a cinco páginas, extensão impo pela revista em que a maioria

(ou todas) foram publicadas. Longe constituir um convite à ligeireza, o tamanho reduzido obrigou o escrit excessiva concentração. Por menores que sejam, esses contos

não se ap ximam da crônica; são antes episódios cheios de carga explosiva, retro que fazem adivinhar os dramas que moldaram as feições dos modelos, montes em potencial

comprimidos ao máximo. Nem desta vez a tarefa leitor é facilitada. Pelo contrário, quarenta vezes há de embrenhar-se novas veredas, entrever perspectivas cambiantes

por trás do emaranh de outros tantos silvados. Adotando a forma épica mais larga ou gên mais epigramático, Guimarães Rosa ficava sempre (e cada vez mais) fi sua

fórmula, só entregando o seu legado e recado em troca de atençã adesão totais.

A unidade dessas quarenta narrativas está na homogeneidade do ce rio, das personagens e do estilo. Todas elas se desenrolam diante dos ba dores das grandes obras

anteriores; as estradas, os descampados, as ma os lugarejos perdidos de Minas, cuja imagem se gravara na memória escritor com relevo extraordinário. Cenários ermos

e rústicos, intoca pelo progresso, onde a vida prossegue nos trilhos escavados por uma na secular, onde os sentimentos, as reações e as crenças são os de ou tempos.

Só por exceção aparece"neles alguma pessoa ligada ao século civilização urbana e mecanizada; em seus caminhos sem fim, topamós c

iNTRODUÇAO GERAL ~ FORTUNA CRÍTICA ló3

vaqueiros, criadores de cavalos, caçadores, pescadores, barqueiros, pedreiros, cegos e seus guias, capangas, bandidos, mendigos, ciganos, prostitutas, um mundo arcaico

onde a hierarquia culmina nas figuras do fazendeiro, do delegado e do padre. A esse mundo de sua infância o narrador mantémse fiel ainda desta vez; suas andanças

pelas capitais da civilização, seus mergulhos nas fontes da cultura aqui tampouco lhe forneceram temas ou motivos, o muito que vira e aprendera pela vida afora serviu-lhe

apenas para aguçar a sua compreensão daquele universo primitivo, para captar e transmitir-lhe a mensagem com mais perfeição.

Através dos anos e não obstante a ausência, o ambiente que se abrira para seus olhos deslumbrados de menino conservou sempre para ele suas cores frescas e mágicas.

Nunca se rompeu a comunhão entre ele e a paisagem, os bichos e as plantas e toda aquela humanidade tosca em cujos espécimes ele amiúde se encarnava, partilhando

com eles a sua angústia existencial. A cada volta do caminho suas personagens humildes, em luta com a expressão recalcitrante, procuram definir-se, tentam encontrar

o sentido da aventura humana: "Viver é obrigação sempre imediata"; "Viver seja talvez somente guardar o lugar de outrem, ainda diferente, ausente." "A gente quer

mas não consegue furtar no peso da vida." "Da vida sabe-se: o que a ostra percebe do mar e do rochedo." "Quem quer viver, faz mágica."

A transliteração desse universo opera-se num estilo dos mais sugestivos, altamente pessoal e no entanto determinado em sua essência pelas tendências dominantes,

às vezes contraditórias, da fala popular. O pendor do sertanejo para o lacônico e sibilino, o pedante e o sentencioso, o tautológico e o eloqüente, a facilidade

com que adapta o seu cabedal de expressões às situações cambiantes, sua inconsciente preferência pelos subentendidos e elipses, seu instinto de enfatizar, singularizar

e impressionar são aqui transformados em processos estilísticos. Na realidade o neologismo desempenha nesse estilo papel menor do que se pensa. Inúmeras vezes julga-se

surpreender o escritor em flagrante de criação léxica, recorre-se, porém, ao dicionário, lá estará o vocábulo insólito (acamonco alarife, avejão, brujajara, caraÌuz,

chuchorro, esmar, ganjã, grinfo, gueto, jaganata, marupiara, nômina, panema, pataratesco, quero, sáflo, seresma, séssil, uca, voçoroca etc) rotulado de regionalismo,

plebeísmo, arcaísmo ou brasileirismo, outras vezes, não menos freqüentes, a palavra nova representa apenas uma utilização das disponibilidades da língua, registrada

por uma memória privilegiada ou esguichada pela linspiração do momento (associoso, borralheiras, convidatividade, de extraordem, inaudimento, infinifão, inteligentudo,

inventação, mal-entender-se, mirificácia, orabolas deles!, reflor!, reminisfão etc) Com freqüência bem menor há, afmal, as criações de inegável cunho individual,

do tipo dos amálgamas, abusufruto, f~aternura, lunático de mel, metalurgir, °Mandante, psiquepiscar, utopiedade com que o espírito lúdico se compraz a

i64

matizar infinitamente a língua. Porém, as maiores ousadias desse estil que o tornam por vezes contundente e hermético são sintáticas: as fias Guimarães Rosa carregam-se

de um sentido excedente pelo que não diz num jogo de anacolutos, reticências e omissões de inspiração popular, c estudo está por fazer.

Estonteado pela multiplicidade dos temas, a polifonia dos tons, o for gar de caracteres, o fervilhar de motivos, o leitor naturalmente há de, no do volume, tentar

uma classificação das narrativas. É provável que a or alfabética de sua colocação dentro do livro seja apenas um despistamen que a sucessão delas obedeça a intenções

ocultas. Uma destas será provav mente a alternãoncia, pois nunca duas peças semelhantes se seguem. A tantâneos mal esboçados de estados de alma sucedem densas microbio

fias; a patéticos atos de drama rápidas cenas divertidas; incidentes banais dia-a-dia alternam com episódios lírico-fantásticos.

Entre os muitos critérios possíveis de arrumação vislumbra-seum sugerido pelo que, por falta de melhor termo, denominaria atonímia metafísica. Essa figura estilística,

de mais a mais freqüente obras do nosso autor, surge em palavras que não indicam manifestação" real e sim abstrações opostas a fenômenos percebíveis pelos sentidos,

como: antipesquisas, acronologia, desalegria, improrrogo, irriticên desverde, incogitante, descombinar (com alguém), desprestar (atençã inconsiderar, indestruir,

inimaginar, irrefutar-se etc, ou em frases co "Tinha o para não ser célebre." Dentro do contexto, tais expressões cl mente indicam algo mais do que a simples negação

do antônimo: alu a uma nova modalidade de ser ou de agir, a manifestações positivas que não é.

Da mesma forma, na própria contextura de certos contos o inexiste entremostra a vontade de se materializar. Em conversa ociosa, três vaq ros inventam um boi cuja

idéia há de lhes sobreviver consolidada em m incipiente ("Os três homens e o boi"). Alguém, agarrado a um fragme de frase que lhe sobrenada na memória, tenta ressuscitar

a mocidade quecida ("Lá nas campinas").Ameaça demoníaca de longe, um touro rioso se revela, visto de perto, um marruá manso ("Hiato").

Noutras peças, o que não é passa a influir efetivamente no que moldá-lo, a mudar-lhe a feição. O amante obstinado de uma megera, morrer, transmite por um instante

aos demais a enganosa imagem que formara ("Reminisção"). A idéia da existência, longe, de um desconhec" benfazejo ajuda um desamparado a safar-se °de suas crises

("Rebimb bom"). Um rapaz ribeirinho consome-se de saudades pela outra mar do rio, até descobrir o mesmo mistério na moça que o ama ("Ripuári Alguém ("João Porém,

o criador de perus") cria amor e mantém-se fi uma donzela inventada por trocistas. ~

Num terceiro grupo de estórias por trás do enredo sè delineia outra que poderia ter havido, a alternativa mais trágica à disponibilidade do destino. p povo de um

lugarejo livra-se astutamente de um forasteiro doente em quem se descobre perigoso cangaceiro ("Barra de Vaca"). Um caçador vindo da cidade com intuito de pesquisas

escapa com solércia às armadilhas que lhe prepara a má vontade do hospedeiro bronco ("Como ataca a sucuri"). Enganado duas vezes, um apaixonado prefere perdoar à

amada e, para depois viverem felizes, reabilita a fugitiva com paciente labor junto aos vizinhos ("Desenredo").

Noutros contos o desenlace não é um "desenredo", mas uma solução totalmente inesperada. Atos e gestos produzem resultados incalculáveis num mundo que escapa às leis

da causalidade: daí a multidão de milagres esperando a sua vez em cada conto. Por entender de través uma frase de sermão, um lavrador ("Grande Gedeão") pára de trabalhar;

e melhora de sorte. Um noivo amoroso que sonhava com um lar bonito é abandonado pela noiva; mas o sonho transmitiu-se ao pedreiro ("Curtamão") e nasce uma escola.

Para que a vocação de barqueiro desperte num camponês é preciso que uma enchente lhe desbarate a vida ("Azo de almirante").

Nessa ordem de eventos, uma personagem folclórica ("Melim-Meloso") cuja força consiste em desviar adversidades extraindo efeitos bons de causas ruins, apoderou-se

da imaginação do escritor a tal ponto que ele promete contar mais tarde as aventuras desse novo Malasarte. Infelizmente não mais veremos essa continuação que, a

julgar pelo começo, ia desabrochar numa esplêndida fábula; nem a grande epopéia cigana de que neste livro afloram três leves amostras ("Faraó e a água do rio", "O

outro ou o outro", "Zingaresca"), provas da atração especial que exercia sobre o erudito e o poeta esse povo de irracionais, ébrios de aventura e de cor, refratários

à integração social, artistas da palavra e do gesto.

Muito tempo depois de lidas, essas histórias, e outras que não pude citar, germinam dentro da memória, amadurecem e frutificam, confirmando a vitória do romancista

dentro de um gênero menor. Cada qual descobrirá dentro das quarenta estórias a sua, a que mais lhe desencadeia a imaginação. Seja-me permitido citar as duas que

mais me subjugaram pela sua condensação, dos romances em embrião que fazem descortinar os horizontes mais amplos. "Antiperipléia" é o rélatório feito em termos ambíguos

por um aleijado, ex-guia de cego, do acidente em que seu chefe e protegido perdeu a vida. Confidente, alcoviteiro e rival do morto, o narrador ressuscita-o aos olhos

dos ouvintes enquanto tenta fazê-los partilhar seus sentimentos alternados de ciúme, compaixão e ódio; "Esses Lopes" é a história, também contada pela protagonista,

de um clã de brutamontes violentos que perecem um após outro, vítimas da mocinha indefesa a quem julgavam reduzir

166 JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COM

a amante e escrava. Duas obras-primas em poucas páginas que basta para assegurar a seu autor uma posição excepcional.

PROCESSO DA LINGUAGEM, PROCESSO DO HOMEM

Rui Mourão

A NovE1,A desse nome," incluída em Corpo de baile, constitui, a nosso v

experiência estrutural mais arrojada de João Guimarães Rosa. O asp

caótico daquelas páginas sugere imediatamente uma aproximação

James Joyce. Na verdade, nunca se pode falar do autor de Grande se

veredas sem que a sombra do romancista irlandês esteja rondando nas

ximidades, mas no caso presente a descontinuidade narrativa é ap

aparente, não estando a serviço daquele propósito de simultaneidade

indiscutível em Ulisses. A mutação constante do esquema composici

de "Cara-de-Bronze" - que, sendo rigoroso ou não no seu intento, p cura incorporar técnicas as mais variadas: teatro, cinema, charnadas~ pé-de-páginas - se mantém,

do princípio ao fim, rigorosamente fi uma terceira pessoa não onisciente, assegurando a persistência de um c tador-de-estórias, que jamais se ausenta da obra de

Guimarães Rosa. S primeira vista, por exemplo, o texto teatral formal e o roteiro cinema o fico formal elidem o narrador discursivo. Essas diversas partes não se

lig por justaposição, por aproximação contundente, mas por mediação da narrativa, que sempre se deixa denunciar ao arremedo do teatrólogo a localizarem as cenas:

"Entram os vaqueiros Tadeu e Sãos" etc ao se re trarem os incidentes que sobrevêm ao desenvolvimento dos quadr "(Leve pausa.)" "(pausa)" etc , e ao se indicar o

revezamento dos per nagens nos diálogos. Da mesma forma, o leitor está sendo conduzido mão quando aparece o título: "ROTEIRO" e o relato passa a se desenvol apoiado

em registros como: "Interior - Na cobertura - Alta manh "Quadros de filmagem:" etc.

O que é indiscutível é o movimento da narrativa agindo e reagiu sobre si mesma. O olho condutor do discurso não altera o seu ângulo enfoque, mas promove a substituição

ad infinitum dos seus instrumen de observação, de sorte que o texto vai se somando através de um proce de substituição, de seleção, de procura. A composição caminha

de u indeterminação para uma objetivação, à medida que se vão sucedeu os recursos técnicos e, examinando as três primeiras páginas, podem" verificar que o autor

já ali nos oferece uma imagem quase gestual des

~ "Cara-de-Bronze", em Corpo de baile, de João Guimarães Roda. Rio de Janeiro:" Olympio, 1956, v. 2, p. 555-621.

i67

~N.~KppUÇAO GERAL ! FORTUNA CRÍTICA

movimento da estrutura. A narrativa se abre apresentando o sertão em termos genéricos; depois se limita para fazer referência a Urubuquaquá; mais ainda, para fixar

um momento definido da estância: "Eram dias de dezembro, em meia-manhã, com chuva em nuvens, dependurada no ar para cair"; concentra-se definitivamente para apanhar

o flagrante de uma conversa de vaqueiros, em que pela primeira vez é usado o recurso teatral e o narrador aparece apenas ao indicar os personagens que estão com

a palavra e ao fechar o quadro entre parênteses; uma radicalização final do processo, pouco adiante vamos deparar com outro diálogo, reduzido a três linhas, expurgado

das apresentações de interlocutores e reunido no centro de uma clareira espacejada pelo texto, de sorte que o narrador dele se subverteu, permanecendo do lado de

fora, apenas denunciado pelos novos parênteses que encerram esta nova tomada e pelo destaque da página em branco. Esse isolamento resultante do distanciamento das

linhas, e principalmente da convergência dos parênteses, é a representação de um campo focal rigorosamente delimitado. Não se pode esquecer que a primeira conversa

dos vaqueiros já vinha inserida entre parênteses; o campo focal que ali aparecia, entretanto, além de concretamente muito mais aberto dentro da página, continha

o narrador em seu interior. Na passagem de um parêntese para outro, o que se verifica é um ajuste focal.

No esquema mais largo da novela, esse movimento de concentração e intensificação no observar se realiza através da progressão estabelecida na passagem do segmento

narrativo mais convencionalmente literário para o que procura tomar as características do texto teatral e, em seguida, o que pretende se converter em roteiro cinematográfico.

E no instante mais agudo, mais devorador desse avanço, não deixa sequer de, ainda uma vez, retratar materialmente a idéia de campo focal, agora com mais abundância

e mais eficiência, graças à disposição gráfica do "ROTEIRO". Em decorrência da variação de manchas tipográficas e manchas de papel em branco, organizam-se conjuntos

filhados.

A expressividade do "ROTEIRO", porém, não se esgota aí. Os quadrados e retângulos que resultam recortados em preto e branco na página lembram, por outro lado, tabuleiro

de xadrez, de sorte que fica também no leitor a sugestão de um jogo em que se convertesse toda a estratégia narrativa. Sob esse aspecto, ele se liga, com um motivo

a mais de coerência, a outro recurso que confere ao relato características de instrumento de decifração, de elucidação, de procura de saída: as notas-de-pé-de-página.

Elas convertem a novela num arremedo de ensaio, de dissertação sistemática e rigorosa, de tese especulativa. O apuro nessa direção é tal que inclui a citação de

obras que têm existência histórica, como é o caso da Divina comédia, de Dante , ou do Fausto, de Goethe.

r68

É indiscutível que a estrutura externa se encontra aparelhada para d vendar um mistério e desde o primeiro instante se movimenta nesse sen do, porém em que direção

caminha a argúcia de todo o mecanismo? "A c - avarandada, [diz o texto] assobradada, clara de cal, com barras de defira dura nos janelões - se marcava." De "batentes

de pereiro e sucupi portas de vinhático", sempre fechada e inacessível, é verdadeira uma pl tada no centro do terreiro. A consciência narrativa circunda-a insistes

mente, sem poder penetrá-la: descreve o ambiente, interroga os vaquei promove acareações entre eles, fotografa-os através do rigorismo mecâni extra-humano e objetivo

da câmara cinematográfica, documenta pass passo as informações obtidas, num apelo à lógica conceituai. A curiosida em torno da viagem do personagem Grivo não passa

de uma ânsia elucidação do que ocorre no interior daquelas paredes. Grivo saiu para mundo, mas no mundo esteve em missão de alguém que ali permane encerrado.

Não se pode fugir à evidência, o mistério em função do qual se aguç os instrumentos narrativos é a existência da estranha figura humana q subsiste precariamente,

prisioneira da sede da fazenda. Ela só é adivin da nas múltiplas, infinitas aparências discordantes, como estão a indi as divergências fonéticas em torno de seu

nome, que leva cada vaqueir eleger a sua versão própria: Sigisbé, Sejisbel, Xezisbéo, Jizisbéu, Zijisb Sezisbério, Segisberto. O desentendimento também é completo,

quan se procura descrever fisicamente a mesma pessoa; as vozes vão se suced do, cada qual ajuntando o que observou, de tal maneira que, ao se co cluir a pintura,

estamos diante de uma imagem incongruente, monstr sa. Quem se esconde por detrás daquelas paredes é um ser que tem nome de muitas pessoas e a aparência de muitas

pessoas. Compreendeentão, o apelido Cara-de-Bronze. Quando discutido, ninguém pode p cisar-lhe a origem. O vaqueiro Adino tentou explicar pela cor do honre "baçoso

escuro, com cara de bronze mesmo"

É quando o texto procura significar que a personagem é a própria carnação do bronze: "Você já viu bronze?" pergunta Moimeichego, que o outro responde- "Eu cá, não,

nunca vi. Acho que nunca vi, não nhor. Mas, também, eu não fui que botei o apelido nele..." Adino nu vira bronze, mas não tinha dúvida quanto à cor do fazendeiro,

a sua re rência para a noção daquela cor não era o metal, era o próprio fazendei Identificado dessa maneira às estátuas, Cara-de-Bronze: melhor se diri estátua do

homem. É o que se ressalta ainda numa passagem em qu vaqueiro Ciciga indaga: "Estúrdio assim de especular... Que mal pergun o senhor, por acaso está procurando achar

alguém, algum certo honre e Moimeichego responde: "Amigo, cada um está sempre procurando das as pessoas deste mundo."

A representatividade de Cara-de-Bronze se explica ainda mais na discussão em torno do seu nome civil. Tadeu declara que, de acordo com a assinatura aposta "embaixo

de documentos", ele se chama, por inteiro, "Segisberto Saturnino Jéia Velho, Filho". "Agora [continua informando] o `Filho", ele mesmo põe e tira: por sua mão, depois

risca... A modo que não quer, que desgosta...". Por que assim procede? Porque o restante do nome é suficiente para caracterizá-lo; porque não é apenas mais um. "Não

é o filho do pai", diz Mainarte "Lá ele pode lá pode ter sido filho de alguém?" diz Doim. Pouco adiante, essa representatividadè vai assumir aspecto até metafísico:

"É o homem mais sozinho neste mundo [observa Tadeu, a certa altura]... É ele, e Deus -" (p. 564). Doim conclui que o colega está identificando as duas entidades

e exclama: "Axi! Deus? Si é o Cara-de-Bronze ajuntando suas duras riquezas...", porém o outro acrescenta, abonando inteiramente aquela interpretação: "Olhe, irmão:

Deus é menino em mil sertões, e chove em todas as cabeceiras..."

Não se deve, porém, ver aí qualquer intenção de ressaltar um possível caráter divino da personagem. O esforço para a expressão da sua representatividade é que levou

o narrador ao extremo da comparação. Cara-deBronze não exibe qualquer dimensão extra-humana; ao contrário, mostrase durante todo o tempo um ser filhado, interceptado,

impotente, fragilmente terreno. Doente, no leito, padece angústia íntima obsedaste. O certo é que podia ser também o mal: "Mas era o Cara-de-Bronze - sozinho, dito

zureta, dito maldito de malacafa? Homem, morgado de morte, com culpas em aberto, em malavento malaventurado..." . A sua aparência atual era algo muito recente: "Mudara

(...) como estivesse caducável". Não, a sua representatividade não extravasa os limites humanos. É simplesmente o ser vivido, experimentado, enriquecido pela luta

- é a sabedoria ou, como a maneira mais comum de nomeá-lo está a indicar, é o Velho.

É a imagem de todos os homens, é a imagem da vida, é a própria vida. A uma pergunta sobre a experiência adquirida por Grivo o texto registra: "Aprendeu porque já

sabia em si, de certo. Amadureceu...", e depois: "O grivo, ele era rico de muitos sofrimentos sofridos passados, uai", e finalmente: "O Velho ensinou" O Velho ensinou

é o mesmo que dizer a vida ensinou. Numa reflexão sobre o processo atado, de pouco rendimento prático, em que se vem desenvolvendo o enredo, o narrador comenta:

"Esta estória se segue é olhando mais longe. Mais longe do que o fim; mais perto". Continuando a tratar do mesmo problema, enquanto insiste na identificaçaO do personagem

com a vida, ressalta o caráter intemporal daquilo que constitui o objeto de toda a novela: "Estória custosa (...) que nem o bicho larvlm que já está comendo da fruta,

e perfura a fruta indo para seu centro. Mas, como na advinha - só se pode entrar no mato é até no meio dele. Assim, esta estória. Aquele era o dia de uma vida inteira."

1]O

je¡TRpDUÇAO GERAL / FORTUNA CRÍTICA

A vida é aquilo que é, em toda a sua inteireza e atualidade. Não se tra de investigar algo que tem continuidade ou sucessividade dentro do tem não se trata de indagar

sobre a origem das coisas, mas sobre a realidade e si. É a vida na sua presença, no seu espanto, que preocupa a inteligência texto. O mistério da vida, na sua acepção

filosófica mais rigorosa, é que co some os últimos dias de Cara-de-Bronze. Homem de atuação objetiva e clusivista, no passado, transforma-se de repente, a ponto

de causar estu fação àqueles que o cercavam: deslocou o centro das suas preocupaç para o lado desinteressado da existência. Diz o relato: "Por perguntar no ciazinhas,

perguntava, caprichava nisso. Só que, agora, estava mudado. N queria relatos da campeação, do revirado na lida" "As suas indagações, a ra, eram a respeito do quem

das coisas!" Desejava adivinhar, a significa do mar, do orvalho, etc. Como sublinha Mainarte, "queria uma idéia co o vento... Por espanto, como o vento. Uma virtudinha

espritada, que t passa o pensamento da gente - atravessa a idéia, como alma de assomb ção atravessa as paredes"

A relação que existe entre Cara-de-Bronze e Grivo é a de mestre e d" pulo. O aprendizado do vaqueiro é rigoroso e se inicia depois de escolhi" entre quarenta homens.

E que lhe ia sendo ensinado? A pôr-se em con com o mundo: "ir, em redor, espiar a vista de-cima do morro e depois, afundar no sombrio de todo vão de grota, o que

tem em toda beira de v tente, e lá em alta campina, onde o sol estrala; e quando o vento rod chuva, quando a chuva fecha o campo", e a procurar em tudo "em ou retentivas",

"ver o que no comum não se vê: essas coisas de que ningu não faz conta..." Era necessário captar até "o cheiro das plantas e terr verificar a "variação do vento".

"Tirar a cabeça, nem que seja por uns mentos: tirar a cabeça, para fora do doido rojão das coisas proveito À medida que progride nas lições, Grivo vai-se comprometendo.

O p cesso da tomada de consciência é irreversível. O problema de CaraBronze acaba sendo também seu: "Não podia desistir? / - Ah, que não dia voltar para trás, que

não tem como. Por causa que quando o Ve manda, ordena. Por causa que o Velho começa sempre é fazendo co gente sociedade...". Termina como aquele que receberá, por

herança, to riqueza do fazendeiro.

Em sua viagem, Grivo percorre grande distância, mas desde o prim momento que está invariavelmente no centro do problema, no foco vida: "No ir - seja até aonde se

for - tem-se de voltar; mas, seja c for, que se esteja indo ou voltando, sempre já se está no lugar, no po final". A sua jornada tinha sido como a daqueles pesadelos

em que tr mos passos permanecendo sempre no mesmo lugar. É no tempo e nã espaço que a aventura tem possibilidades de progredir. No seu reto não chegará com grandes

novidades; a diferença sensível será apenas

um amadurecimento maior. A vida é a mesma em todas as latitudes; o homem, onde quer que esteja, não pode fugir à contingência de estar plantado sobre os seus próprios

pés. A expressão dessa fatalidade existencial é intensificada através da identificação dos homens com as árvores. Oburiti, nomeado reiteradamente, assume importância

simbólica desde a primeira página, mas o seu verdadeiro sentido só se explicita inteiramente quando a narrativa vê em Grivo a encarnação de um coqueiro: "alto e

fino como um coqueiro. (...) Ele se balançou, como um cóqueiro." Ao ser feita ao pé da página uma verdadeira estatística de nomes de árvores, podemos compreender

que esse elemento da paisagem tem significação muito definida, surge ali uma referência que o humaniza inteiramente: "Com que pessoas de árvores ele topou?" Autêntico

representante de Cara-de-Bronze, Grivo é o buriti - a árvore símbolo dos Gerais - e nas suas andanças encontra-se com as demais espécies que povoam os lugares.

Depois da identificação maior entre os homens e as árvores, a narrativa promove a humanização de todos os seres e todas as coisas, como se desejasse ressaltar o

princípio vital único, responsável pela harmonia do universo. A expedição de Grivo é o caminhar para um encontro orquestral com a natureza, onde tudo se agita num

movimento liberto de vida e as pessoas não passam de um elemento a mais, nos seus aparecimentos sem relevo. Os habitantes numerosos dos caminhos são os "verdes viventes,

cada um por chuva e sol, pelejando no seu lugarim"; "os bichos, os bichinhos, os pássaros", que são classificados de almas-viventes, "Toda qualidade de répteis",

"bichos de entre-mato-e-campo, bichinhos de terra e do ar". O vento tem o poder de executar "a palavra" e assume aspectos de bicho: "o vento esbarrou, virou as costas,

bulia só com a cauda, no leve dum desbatido". No final de uma relação de bichos, aparecem as nuvens, que podem jazer em estranhas perspectivas". Há pelo menos um

córrego "que teima em água", e a mitologia do sertão não perde a oportunidade de comparecer encarnada num benévolo Sacizinho que acompanha o viajante.

Minando por todo lado, alagando os campos naquele dia mágico da chegada de Grivo - aquela dia que "era o dia de uma vida inteira" - a água permanece como um transfundo

mítico que faz com que paisagens, bichos e pessoas exibam ao mesmo tempo uma face misteriosa, primitiva, elementar e inaugural. A missão de Grivo termina do outro

lado do "espumoso de um grande rio". Naquela margem oposta, passou dez meses e de lá retornou na companhia de um personagem que é o enigma e a razão de ser da novela:

"a estória não é a do Grivo, da viagem do Grivo, tremendamente longe, °Ia$e~rt tãò tardada. Nem do que o Grivo viu, lá por lá. / Mas - é a estória da moça que o

Grivo foi buscar, a mando de Segisberto Jéia. Sim a que se casou com o Grivo, mas que é também a outra, a Muito Branca-de-todas-asCÓres-" O texto procura sugerir

mesmo que ela é qualquer coisa que paira

1]1

INTRODUÇÀO GERAL / FORTUNA CRITICA

173

acima dos destinos humanos: "Sem a existência dele - o Cara-de-Bron - teria sido possível algum dia a ida de Grivo, para buscar a Moça?" peregrinação às nascentes

da vida, Grivo voltou de braços com a sabedor - casou-se - mas não chegou a se apossar da verdade absoluta, que e explicação para todas as perguntas - a outra, a

Muito Branca-de-todas-a Cores. Não tendo trazido consigo "pessoa de mulher alguma", "nem dis nem não disse" que se casara. Não se vai fundo na procura da razão coisas

sem se voltar comprometido. "Sempre-noivo" é o que repete para curiosos.

"Você viu e aprendeu como é tudo, por lá?", perguntou Cara-de-Bro ze. Sendo positiva a resposta, tornou a indagar: "Como é a rede de moça que moça noiva recebe,

quando se casa?" Respondeu-lhe Grivo: "É u rede grande, branca, com varandas de labirinto...". O momento é de c moção, porque o mestre verifica que o discípulo correspondeu

por interr às suas lições e porque este se sente dignificado com o reconhecimento d outro. É de labirinto a rede que a moça noiva recebe, quando se casa; n chegamos

a uma verdade quando compreendemos que a verdade se enco tra mais além; a sabedoria está na descoberta de que nada nos é permitid saber. Grivo responde ao vaqueiro

Tadeu: "absolvição não é o que manda buscar-que também pode ser condena". O homem sabe que lhe impossível devassar o mistério da existência, mas ainda assim não

desis de se lançar à grande aventura, porque de lá cada geração regressa renova pela esperança, na certeza de que os seus esforços não se fizeram em v" "O que se

manda buscar é um raminho com orvalhos..."

ESTAS EsTóR1As

Fernando Py

1. Ao MORRER, em 1967, Guimarães Rosa deixava, além do vazio prati mente impreenchível, um novo livro, a cujos originais faltava a última r visão ou retoque: Estas

estórias, título já escolhido.

2. Incumbiu-se o prof. Paulo Rónai de organizar e preparar o livro edição. Fê-lo com a honestidade e o critério seguro que o caracterlz Através dele podemos hoje

sentir as mínimas variantes e flutuações de texto não fixado em definitivo. Não influiu,_não procurou assentar o q era duvidoso, registrando, tão somente, em preciosas

notas de pé de pa na, os apontamentos do autor, as possíveis alterações a que teria subme do seu trabalho. Em se tratando de livro de Guimarães Rosa, isso é semp

desejável; e, no caso fluente, imprescindível, por ser edição póstuma.

3. O volume abrange oito estórias e mais a reportagem poética

documentário-ficção-reportagem) "Com o vaqueiro Mariano". Na intr

dução, esclarece o prof. Rónai alguns pontos de ordem bibliográfica, dando-nos a relação das estórias já publicadas e das inéditas. Assim, estas últimas, que por

tal motivo oferecem interesse especial, são as quatro finais: "Bicho mau", "Páramo", "Retábulo de São Nunca" e "O dar das pedras brilhantes". Justamente as que têm

(ou tinham) o texto menos estabelecido, e onde se avolumam as notas do prof. Rónai. Por isso, exceto "Páramo", estão em flagrante desnível com ao menos duas das

estórias éditas e bastante trabalhadas.

4. Em "A simples e exata estória do burrinho do comandante", realizase uma incursão na linguagem típica dos oficiais de marinha e marujos em geral: linguagem essa

que ainda não havia sido explorada pelo autor. O comandante que narra o episódio - ao que sabemos, verídico - detém-se várias vezes a explicar detalhes de manobras

e o nome específico de cada, além de estar constantemente citando autores clássicos. Rosa utiliza o léxico da Armada para ampliar o seu universo vocabular e a incursão

se realiza ao mesmo tempo da excursão narrada: viagem a São Luís, a fim de auxiliar o governador maranhense, ameaçado pelas evoluções da Coluna Prestes. O narrado

se passa em fins de 1926 até começos de 1927...

5. "Os chapéus transeuntes" foi publicado originalmente como uma das novelas de Os sete pecados capitais.l É o orgulho. Orgulho de uma família aferrada, ainda, a

uma série de convenções e preconceitos caducos, e que tenta sobrepor-se à vida e à realidade de uma sociedade em transformação. Narrado na primeira pessoa, por um

dos membros da "nova geração" que não crê mais na superioridade social, mas mantém, embora, os vestígios e o exterior de alta classe. O amor entre dois primos no

velórió do chefe do clã é a nota discordante, mesmo inconsciente, das atitudes de menosprezo e soberba assumidas pelo resto da família. A estória se desenvolve em

tom confessional e aos poucos se desvenda a intimidade e fragilidade do ídolo do narrador, o tio, o pai da namorada, Nestorionestor (ou Nestornestório). O grande

escândalo surgido na família, há anos, mantido em segredo, a separação de corpos entre "Vovô Barão", o recém-falecido, e Vovó Olegária, de juventude e desgostos

morta, explode, súbito, no reler-se o testamento: para nem na morte ficar ao lado da esposa, deixava dito o velho avô que não o enterrassem no mausoléu da família,

no cemitério das pessoas ilustres da eidadezinha. E sim que o sepultassem em qualquer chão de lama e poeira, no modestíssimo cemitério de Quimbondo. E é nesse ponto

que se revela a desarticulação e inanidade dos filhos, netos e sobrinhos. Resistem, repugnalhes a disposição do morto mas acabam (tio Nestorionestor, o último) con

cor~ando.

~ Os sete pecados capitais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. (Em colaboração com diversos autores.)

174

6. Das quatro estórias tidas como prontas, as duas a seguir, "A estória d Homem do Pinguelo" e "Meu tio o Iauaretê", são antecipadas de uma esp cie de reportagem

feita presumivelmente pelo próprio autor nos sertões Mato Grosso. Há que emendar, antes de entrar no seu mérito, uma quest~ cronológica. É a seguinte: está dito

na nota biográfica sobre Guimarã Rosa, por Renard Perez, em Escritores brasileiros contemporâneos,z que autor de Sagarana "em 1952, faz uma excursão ao Mato Grosso,

de on traz uma reportagem poética - Com o vaqueiro Mariano - publicada e edição limitada". A edição a que Renard se refere é Hipocampo, criação d" Geir Campos e

Thiago de Mello, datada de 1952. Mas a obra já fora esta pada no Rio e em São Paulo, alguns anos antes. No Correio da Manhã sur a 26-1O-1947 (a primeira parte);

as duas outras aparecem em princípios 1948. Quando se publicou o volume Em memória de João Guimarães Rosa lá estava de novo um esboço biográfico de Renard, "Perfil

de João Guim rães Rosa", e o engano persistia à página 52 com quase as mesmas palavr O mesmo ocorreu na quarta edição de Primeiras estórias 4 (a primeira po turra).

E também Mary L. Daniel, em seu ensaio - "João Guimarães Ros travessia literária",5 perfilha o equívoco. No entanto, já Plínio Doy alertado pelo autor destas linhas,

colocara a data correta na sua "Bibliog fia de & sobre Guimarães Rosa",6 trabalho inserido no volume de homen gem póstuma, já citado. Achamos conveniente tocar no

assunto para q tanto o amigo Renard como as demais pessoas retifiquem o lapso assim q puderem. Não sabemos quando se realizou, de fato, tal excursão de Ros mas cremos

ser fácil de verificá-lo.

7. -A narrativa do vaqueiro Mariano se desenvolve em dois planos, de tro das três partes que a compõem. O primeiro é a narrativa pura de epi dios, dos exemplos de

viver entre o gado - e este assume importância de siva, quase familiar, sendo-lhe emprestada certa caracterização psicológ" humana: - "Tem boi que pode tomar ódio

a uma pessoa..." - "Aq o gado é que cria a gente..." A rudeza da vida em comum irmana os ser como numa competição de valores entre rivais da mesma classe, espécie

natureza. Assim se entende o falar de Mariano e a ternura que, dele, se palha pelo acontecido. E vem então a noite totalizante, mil vezes devassa e remexida, "a

noite, vaca". E é essa noite, convexa e silenciosa, que n deixa em sossego o autor, e o faz levantar-se antes da madrugada, esta no que já se esvai, lenta e mole,

a noite antes de luzir o dia. A segunda parte

Z Renard Perez, Escritores brasileiros contemporâneos. Rio de Janeiro: Civilização Brasil

ra, 196O, p. 183. Na segunda edição, 197O, o engano permanece. s Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. a Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.

s Rio de Janeiro: José Olympio, 1968, p. 6 ("Introdução" - cap. I). e Op. cit., p. 2O9. Trabalho de que se fez separata.

175

estória é toda uma descrição direta e subjetiva da antemanhã: cores, ruídos, formas, "no pouco lusco e muito fusco" se apresentam imersos no sono geral, aos poucos

despertando, um novo nascer, aurora. A força descritiva de GR encontra, mais uma vez, campo favorável e arma um painel minucioso e convincente do amanhecer. Acorda

Mariano, inicia-se a reunião das vacas para a ordenha. Na parte final, é a saída para o campo, longe, a cavalo, é a retomada da narrativa exclusivamente por Mariano.

E, bem no fim, o súbito alvoroço de um casal de quero-queros, demonstrando o autor, ainda uma vez, pelas palavras de Mariano, quanto o homem e os animais chegam

a uma compreensão melhor e mais unida de si e da natureza. Os cavalos, imensos para os dois passarinhos, que vinham num vôo doido contra eles a defenderem o seu

ninho, feito entre ervas, no chão. Mariano sugere então, devido à agressividade dos pássaros, dar uma volta e passar de lado para não ter de machucá-los. O companheiro

concorda e o vaqueiro encerra: - "É sim senhor. O amor é assim."

8. A técnica de comentário contraposto à narrativa é o que se observa em "A estória do Homem do Pinguelo". O comentário, em grifo, inicia a peça, com considerações

que serviriam igualmente de epígrafe: "Nada em rigor tem começo e coisa alguma tem fim, já que tudo se passa em ponto numa bola; e o espaço é o avesso de um silêncio

onde o mundo dá suas voltas (...)" Comentários que, a rigor, são diálogos em que se chocam dois níveis de cultura, duas concepções diversas da vida, pondo à mostra

o conflito latente entre o homem urbano e o rural. Mas, não é este o tema da estória, apenas sua estrutura é que depende de um ou outro, no começo acentuada pela

atitude de quase zombaria assumida pelo mais intelectual, crítico da insuficiência expressional do camponês, buscando caracterizá-la pelo uso excessivo de lugares-comuns:

"Súbito acúmulo de adágios - recurso comum ao homem do campo, quando tenta passar-se da rasa realidade, para principiarem fórmulas suas abstrações". Mas esse aspecto,

julgado embora depreciativamente, é ponto básico de riqueza expressional, pois flui com naturalidade, sem artifícios ou preocupação de "fazer literatura". Em suma,

nessas máximas, quase provérbios, de origem popular, está o cerne de uma cultura oral, espontânea, fonte poética, matéria-prima da literatura. O próprio interlocutor

se dá conta disso e diminui progressivamente o teor de ironia, arrastado pela narrativa. Como acontece às vezes em GR, a estória em si é menos importante que outros

aspectos: o lingüístico, o estrutural;~s lições a tirar, o complexo sobrenatural inserido nas personagens- O "Homem do Pinguelo", cuja presença é insinuada no decorrer,

nunca chega a presentificar-se, furtando-se o narrador a referência mais explícita sempre que o outro puxa assunto. Assim, esse ente assume proporções fatais, como

um tabu, de quem sequer o nome deve ser pronunciado. E por quê? Porque, como o Demônio, é ser renegado e de respeito a

abominação. Pelo menos, é o que se pode deduzir das recusas e hesitaçõ e rodeios do narrador, forma simples e simplória de subtrair-se à curiosa dade do ouvinte.

O Demônio, ou o destino fatal, está inserido no context visto que se trata de destino - aqui entendido como forma de evolução das personagens. O encadeamento de

um episódio noutro sugere u predeterminação de fatos: como se tudo já estivesse escrito e impress num livro sobrenatural. Além disso, a palavra "pinguelo" admite

três con cepções: como sinônimo de pinguela, pau estendido sobre um regato a fi de que se possa atravessá-lo, sugere travessia, palavra capital e final d Grande

sertão: veredas, indicando a passagem pela vida, ou seja, a fraçã de eternidade em que se movimenta o homem, fração entre dois nada com o sentido de gatilho, detonador

de arma de fogo portátil, está be próxima da idéia de morte violenta, que inspira horror, quando não med um revólver impõe respeito, mas é também abominado. Finalmente,

signr ficando pênis, pode ser tabu para certas pessoas, como algo intimament desejado mas, ao mesmo tempo, encarado com temor, despertando sentr mentos proibidos.

Todas essas acepções podem ser válidas, ao menos par cialmente, para a interpretação e análise da personagem obscura. Seja que for, indica a situação geral dos participantes

da estória - uma traves sia; é o objeto de repulsa e horror e está envolvida numa destinação fatal;... é também tabu, pois o narrador muda de assunto sempre que

se faz men ção a ela. As frases lapidares do narrador não raro são ditos populares, e rima consoante interna: " (...) inveja é erro de galho, jogar jogo sem bar

lho". "Boiadeiro, quando morre, até o demo a ele socorre..." O nome d uma personagem, embora bastante secundária, informa também o sign da destinação fatal, predeterminada.

Agapito, simples mestre-vaqueiro, é responsável pelo achado de ouro, o qual, a partir da notícia dada, transfo ma, não de chofre, mas aos poucos, o moral e o ânimo

das pessoas abati pelas desventuras sucessivas. O encontro do ouro, aliás, a sua apenas nota cia é suficiente para operar a mudança. Agapito é nome de origem grega

significa "escolhido", "favorito", "preferido" pelo destino" etc. Assim, es tabelece o autor uma relação intercorrente entre o nome do vaqueiro e seu papel na estória:

encontra ouro porque se chama Agapito - dond chama-se Agapito por estar escolhido pelo destino para exercer uma fu ção importante. - "Chegando vinha era o mestre-vaqueiro.

Deu-se q ouro ele tinha achado: um refrigério, bom sobejo." Segue-se comentário d ouvinte, que finda: "O vaqueiro-mestre, testemunha humana, chamavaaliás Agapito."

(O grifo é nosso.) Desse modo, a estória é pontilhada observações pertinentes à ação do destino fatal sobre a vida, e da noção d dever relativa ao estar-no-mundo:

"A gente pensa que vive por gosto, m vive é por obrigação." Assim, "A estória do Homem do pinguelo" apares como uma das mais importantes realizações de Rosa na novela,

explorar{

do um tema que lhe é familiar e que já teve precedentes em "O recado do morro", de Corpo de baile, e Grande sertão: veredas.

9. De todas as estórias éditas do volume, "Meu tio o Iauaretê" foi a única, ao que sabemos, a merecer estudo em profundidade, embora adstrito à linguagem empregada

pelo autor. Queremos nos referir ao ensaio "A linguagem do Iauaretê" de Haroldo de Campos, primitivamente publicado no suplemento literário do Estado de São Paulo."

Essa estória, segundo o crítico e poeta concreto, representa na obra de Rosa "o estágio mais.avançado de seu experimento com a prosa". Estabelecendo algumas relações

entre essa estória e Grande sertão: veredas e, ainda, a novela "Cara-de-Bronze" de Corpo de baile, Haroldo de Campos demonstra que no Iauaretê a palavra irrompe

no primeiro plano, configurando a personagem e a ação. Ou seja, que em "Meu tio o Iauaretê", escrito em forma de diálogo/monólogo - do mesmo modo que Grande sertão:

veredas- a linguagem, mais do que neste, estreitamente vinculada, não só à personalidade do narrador, como ao decorrer da ação, à estrutura da peça e, finalmente,

ao seu desfecho. O onceiro solitário, longe de toda civilização, amando os bichos e, acima de tudo, zeloso da onça fêmea Maria-Maria, remoído pela lembrança das

onças que matara, entrecorta sua narração de partículas sonoras, monossílabos de possível raiz tupi, que se tornam mais freqüentes à medida que a narração se estende

- surge, assim, a sugestão do rosnar e resbunar da onça que vai tomando conta dele. Por fim, o que Haroldo de Campos chama "o clímax metamórfico". Este não se dá

descritiva ou discursivamente, mas sim nos é apresentado pela própria fala do tigreiro, no instante da metamorfose, baleado pelo interlocutor apavorado: "Hé... Aar-rr...

Aaâh... Cé me arrhoôu... Remuaci... Rêiucàanacê... Araaã... Uhm... Ui... Ui... Uh... uh... êeêê... êê... ê... ê..." Nestes conjuntos finais, quase só vocálicos,

notam-se partículas tupis, guturais, auto-agressivas, desarticuladas. A princípio, o tigreiro consegue ainda pronunciar palavras completas, embora já impregnadas

de sons em que prevalece a consoante r, decaindo depois para esboços de palavras, sílabas predominantemente nasaladas, e, por fim, fechadas, surdas. Termina a novela

com a onceiro agonizante, estertorando os últimos sons. Morte vívida: Guimarães Rosa aproxima ao máximo o narrado ao narrador e ao leitor, sem apelar para qualquer

recurso: a morte é tão presente no texto que invade a linguagem- preparando o espírito para o sangrento desenlace. E é tão expressiva essa \linguagem que supre perfeitamente

toda exteriorização ambiental. Por outro lado, é tão flagrante a semelhança do procedimento do autor, nesta estória, com a técnica de Grande sertão: veredas, que

Haroldo de Campos, considerando-a do ponto da vista da lingugem, diz

~ Sào Paulo, 22 dez. 1962. Transcrito em Metalinguagem. Petrópolis: Vozes, 1967, P-47-51.

que é nela que Rosa avançou mais, indo além da sua obra-prima. Infor Paulo Rónai, contudo, na introdução a este volume, que "Meu tr Iauaretê", segundo anotação manuscrita

do autor, constante do origl datilografado, é anterior a Grande sertão: veredas. Esta representaria, ass um retrocesso? Absolutamente. Apenas um ponto-de-vista diverso,

u "tomada" diferente dentro da mesma estrutura. Além do mais, Grande tão: veredas tem alcance mais vasto, abrange maior área, sua problemáti muito mais complexa.

"Meu tio o Iauaretê" pode ter sido, para Rosa, experimento para a obra maior que é o Grande sertão. Escrito antes de porém só publicado na revista Senhor em 1961,

indica, também, que t não se resolveu de imediato, e é possível que tenha sido deixada incompl ou não revisada em definitivo, enquanto o Grande sertão: veredas saía

qu perfeito, num trabalho de sete meses, conforme depoimento do autor.$

1O. Em "Bicho mau", vemos dois planos principais: o do despertar uma cascavel, em seu primeiro dia após os meses frios de hibernação e jum, a nova casca reluzindo

ao lado da velha, fosca, em pedaços. Sem a ao fantástico, a animização da serpente decorre com naturalidade. Se mos a cobra como um ser próximo, suas peculiaridades,

a prudência cessiva, quase covardia, sua desconfiança, seu ódio - tão semelhante homem. Assim, humaniza-se, ganha nome próprio, feito gente: o apela tupi, Boicininga,

cobra-de-chocalho. Desliza, desconfiada, entre folhas chão. Súbito, de um ipê-branco, cai um graveto que lhe roça, num sust pele. Boicininga se entesa, enrodilhada

na defesa, vibrando Oódio; ó que alimentaria semanas e meses, até descarregá-lo venenosamente em guém. E, junto a uma lata d"água, escondida, espreita. O segundo

plano momento, começa: alguns homens, perto, estão roçando, enxada em nho. Um deles morrerá. Ciente, o leitor espera o desenlace - e um del filho do dono da fazenda,

rapaz ainda jovem, cuja esposa espera o prim filho, é o escolhido pelo destino. Então, mostra-nos Rosa o quanto po a ignorância, a miséria, a superstição no interior

desassistido, sem médi e escolas: ao passo que a jovem esposa reclama a vinda de um médico mado, embora residente longe, os velhos pais confiam a cura do filh reza

e benzedura de um preto grosseiro e analfabeto. Depois de insis moça Virgínia, a quem a sogra sequer deixa ver o marido, pois "mu prenhe não pode entrar em casa

em que esteja pessoa ofendida de b mau" - a moça consegue que aceitem a vinda de um médico. Receitas farmacêutico (não se encontrou médico), zelo da esposa em luta

con incredulidade dos sogros naqueles "vidrinhos com água" - tudo res em nada: as injeções prescritas, quatro ampolas, não são dadas, o velho.

179

quebra, fanatizado, às ocultas, os vidros contra a parede. E o filho morre, e tudo está de acordo, pois o preto Jerônimo Benzedor é quem sabe, falara para não se

dar ao doente remédio algum, fosse o que fosse, para não estragar a "simpatia".

11. Das estórias inéditas é "Páramo" a mais próxima da demão final. Forma, juntamente com "A estória do Homem do Pinguelo" e "Meu tio OIauaretê", na primeira linha

das narrativas do volume. As três têm, por outro lado, um ponto básico em comum: são variações em torno do destino e da morte. Em "Páramo", o eu narrador (possivelmentè

autobiográfico), longe dos seus, em missão diplomática no exterior, experimenta um sentimento de morte parcial, de intensa angústia existencial, motivado pela asfixia

que sente em virtude da rarefação do ar. (Trata-se de uma cidade de grande altitude, nos Andes.) O sentimento o invade como um ser estranho, contudo próprio, consubstanciado

na menção freqüente a uma parte de si mesmo como o "homem com a semelhança de cadáver". Narrando a princípio na terceira pessoa, logo passa à primeira, trazendo

para seu íntimo os fatos e as suas reações. Assim, a todo instante, por mais que se acostume (ou procure acostumar-se) a estar longe de tudo e de todos, o narrador

sente a ausência dos seus como uma morte, a saudade o corrói, a parte "morta" é mais presente e atuaste. O "homem com a semelhança de cadáver" funciona como um duplo.

Sentindo o soroche, o mal-das-alturas, a rarefação constante, a sufocação, é como se uma parte se despedisse de si. O duplo é presença aceita com horror, indesejada

e agressiva. Corresponde, de certa forma, a um sentimento de autopunição, e a exploração da "morte parcial" nessa novela é de grande interesse para uma análise psicológica.

O duplo é nomeado sempre de maneira diversa - em nenhuma vez a expressão-chave se repete, utilizando Rosa símiles variados9, os quais têm de igual apenas as palavras

"homem" e "cadáver" - como a sugerir uma convergência irrecorrível, a morte obsedaste: o homem será o que for, a vida inteira, mas acabará sendo, fatalmente, cadáver.

As lágrimas espontâneas, choro imposto pelo organismo para compensar a falta de ar, as gotas "terapêuticas" o acometem várias vezes, e ele procura ocultá-las, não

confessar-se. Além do duplo, outras imagens lhe ocorrem para presentificar a morte a cada instante: quadros de Boecklin, a insônia. A solidão, associada à saudade

e à falta de ar, torna-lhe mais opressivo o comando do "Homem com o frio de cadáver"- Pede-lhe, hutilildemente, que se desligue de seu destino. Está inerme, sente-se

à beira da ucura, de uma esquizofrenia. E há também um ódio.

e E descabido, cremos, relacionar todos. Seja-nos permitido dizer, como acréscimo, o

valor de leit-motiv que têm essas expressões e o movimento ondeante de fluxo e refluxo com que irrompem na narrativa, a fim de que o protagonista nunca possa sentir-se

aliviado.

s Apud Carlos Drummond de Andrade, Cadeira de balanço. Rio de Janeiro: Olympio, 1966. p. 72.

1$O

"Baixei a um mundo de ódio", relata o narrador. As pessoas parecemagressivas, ele fica ciente de casos de incrível perversidade acontecid E isso lhe afeta a sensibilidade,

como o reflexo de um espelho "cislúcid opaco e rancoroso; chega mesmo a citar, a propósito, um verso como ter de comparação: "Ali... estarão situados os infernos

no sono rancoroso minérios."1O Às vezes, sente-se nitidamente morto - e vemos aqui o ca mento da epígrafe da estória, tirada a Eurípedes: "Quem sabe se a vid uma

morte, e a morte uma vida?" Os ciclos completam-se e se repet E, assim como fenômenos externos e fatores alheios à sua vontade con buíram para a formação e manifestação

independente, quase corpórea, seu duplo, assim também razões exteriores dissiparão a presença do mem. Para esquecer a companhia indesejável, a presença deprimente,

co pra um livro de poemas: fuga, alheação necessária. Denomina-o, sem ab lo, o Livro; considera-o seu refém contra a presença do Homem. É b uma atitude esquizóide,

porém positiva, de quem busca recuperar o equ brio, senão psíquico, psicológico e emocional. E, sucedendo-lhe chorar repente, na rua, à vista de todos, refugia-se

acompanhando um ente Leva o Livro. Pensa abandoná-lo para fugir de todos - medo súbito. M de perder o futuro, não sair mais dali, do lado da sepultura. Abandon Livro

para libertar-se e continuar a viver. Mas alguém, que o vira, vem re tuir-lhe o volume à porta do cemitério. E a ameaça do Homem como que desfaz. "Eu voltava, para

tudo. A cidade hostil... o mundo... nem sabia se a vida ou se era a morte". Evidentemente, numa estória tão cheia de alus analógica e alegórica, apesar de mostrar

pontos autobiográficos, será tal excessivo querer desvendar todas as intenções do autor. Parece claro, entanto. Quando, ao receber o Livro, num gesto amistoso, declara

qu como se voltasse, quer dizer que é como se ressuscitasse. O que tem valor.. sua capacidade de comunicação com os seres que o rodeiam. Assim a ci de deixa de ser

verdadeiramente hostil, pois já houve um momento de c fraternização; assim, produz-se uma que integração sua no ambiente, capacidade de aceitação psicológica aliada

ao organismo já acostumado, gamos, ao clima, à altitude; desaparece qualquer menção ao "homem como um cadáver" - o seu espírito é, de novo, uno. Lúcido e corajoso,

volta à cidade, ao mundo, à vida - sem temores, insônia etc - encará-la como é.

12. Em "Retábulo de São Nunca" anuncia-se um noivado e casamen A moça Ricarda Rolandina, rica herdeira, muito querida e respeitada lugar. A estória principia logo

com a notícia do casamento. Sucede no tanto que o namorado forte de Ricarda, o moço Reisaugusto, está fo

1O Do poema "A máquina do mundo", de Carlos Drummond de Andrade, in C enigma.

brigados os dois. Espera-se a reconciliação. A melhor amiga de Ricarda e o melhor amigo de Reisaugusto eram os mais assíduos em visitas à ex-namorada. A estória

penetrou num longo flash-back em que se relatam e retratam as personagens centrais, suas ações e modos de pensar. O amigo Revigildo visita Ricarda, fala-lhe a sós,

dá notícias do distante Reisaugusto. Todos os lugares seguem, passo por passo, os pormenores do romance interrompido. O moço Revigildo é o mais cotado e insinuado

para ocupar o posto de Reisaugusto. Mas, chega o dia de anunciar as bodás. E é um terceiro, afinal, quase esquecido, inesperado, que se consorcia. E na surpresa

geral, no custoso começo de aceitar a realidade, está toda uma censura formal, da parte do autor, aos costumeiros mexericos das cidades provincianas. Por outro lado,

a intenção de Guimarães Rosa deve ter sido menos corrosiva. "Retábulo" é o painel, ou quadro, que decora a parte posterior de um altar, ou simplesmente qualquer

painel. Mas no caso fluente, fiquemos com a primeira acepção. Dia de São Nunca é dia nenhum na linguagem popular. Assim, a estória representaria apenas uma idéia

de casamento que não seria jamais realizado. O subtítulo do conto diz: Painel Primeiro - A fonte, e não há seqüência, ou seja, não há painel segundo. Teria GR intenção

de continuar a estória? Esta é, como está, perfeita e acabada. Porém não haveria razão lógica para escrever aquele subtítulo caso a estória terminasse onde termina.

Mas, assim como o pessoal da aldeia se surpreende e chega mesmo a se sentir frustrado com o casamento proclamado, o possível truncamento da estória pode ser proposital,

e de bom efeito como um tour-de force. No entanto, as palavras grifadas que aparecem em epígrafe desmancham a idéia de uma coisa perfeita: "(Políptico... do estado

de instante de um assombrado amor.)" Políptico: retábulo com vários compartimentos, fixos ou móveis. (O grifo é nosso.) Assim, fortalece-se a idéia de obra incompleta.

Mas basta, cremos. O importante é o painel que existe. Assim como existe o casamento a realizar-se.

13. "O dar das pedras brilhantes" é caso de garimpo. Melhor, envolve sentimentos e impulsos primitivos num clima de agitação, mistério e violência. Vem um Senador

ao arraial de Urumicanga, pacificar, isto é, tentar Impedir a guerra que constava grassar. Encontra na verdade fisionomias veladas, posto que solicitas - muita falsidade

e jogos escusos. Há a trama de usurpação das minas por um certo Hermínio Taborda; de outro lado, um engenheiro conspira. Ambos procuram o atendimento do governo,

que o Senador representa. Há a Mulher - dona do prostíbulo do lugar, companheira de Hermínio, Leopolda de nome. Há outras mulheres, tentações nuas, mostrando-se

nas águas de córregos e rios. Mas é a Mulher, alva, fácil, ousada Leopolda, ue reaparece constante nos sonhos e imaginação do jovem Pinho Pimente companheiro e guia

do Senador. O assomo, a coragem o corpo desejáve - o próprio nome, Leopolda: ousada como o leão.

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Leopolda é o grande trunfo de Hermínio para, definitivamente, afastar pretensões do engenheiro rival. Uma palavra infeliz de Pinho Pimente propósito das mulheres

nuas nos córregos causa um repente de violênct brio ofendido. Leopolda, de um jato, desce a blusa, desnuda-se da cint para cima, feroz, enfrentando qualquer gesto

ou palavra de censura. Lin perturbadora, em desafio. Na manhã seguinte aparece morto o Senad Pinho Pimentel, diante do súbito desenlace, sente-se desprotegido, amea

do. Não tem a mesma autoridade do Senador, a morte deste, embora nat rol, pode dar motivos a murmúrios, é o perigo que cresce contra ele. P não viram sua atenção

presa na Mulher, seu desejo às claras? Mas sim. guém deve substituir o Senador, impor o respeito ao Governo. Sabia q uma bala o alcançaria, agora, defronte de todos,

mal abrisse a boca. M resolveu tentar, de qualquer modo... Fim da estória. Como se uma únl personagem apenas contasse: César Pinho Pimentel. Enquanto existe, e quanto

aparece em cena, a estória prossegue. Rosa não nos diz se Pimen morreu. A estória finda exatamente quando Pimentel abre a boca e com a falar, sabendo que poderá

levar um tiro. A personagem, no caso, imp normas à estória, e esta é somente reflexo de sua existência, seus deseJ suas palavras e imaginação, suas observações.

Chega mesmo a nada sa do que não se passa a seu redor e que, portanto, não surge na estória. outras personagens têm importância de acordo com seu interesse nelas,

pecialmente a mulher, Leopolda.

14. A coletânea é, incontroversamente, melhor que o último livro pub cado em vida de Rosa: Tutaméia. Nesta, o que o autor de Sagarana int tava era um painel minucioso

e, de certa maneira, elucidativo da obra ma anterior. Assim as curtas estórias repetem um tanto - especialmente linguagem - algumas características já descobertas

e "fichadas" - b como processos de estruturação e aprofundamento e multiplicação de pressões típicas e jogos semânticos. Em Estas estórias, o projeto era, nota mais

ambicioso. Ressente-se o livro de ser póstumo, de não ter sido seu t to fixado em definitivo. Porém, ainda assim, é um grande livro, digno Rosa. Três de suas peças

são de primeira ordem e em todas percebemão do autor-aqui e ali, claros traços do seu gênio. Lamentamos, ape a demora da publicação - e ainda faltam várias peças

em prosa - Aqua As grafas, Pé duro chapéu de couro etc - a aparecerem em livro. Espera que não tardem. ~ ~

t83

BIBLIOGRAFIA

I - BIBLIOGRAFIA DE JOAO GUIMARAES ROSA

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TRADUÇÃO do artigo "A organização científica em Minas Gerais", do professor alemão O. Quelle. Jornal Minas Gerais. Belo Horizonte, 5 de out. de 1928.

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Ilustrações de C. Chambelland.

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DISCURSO de agradecimento na Academia Brasileira de Letras, quando da distribuição dos Prêmios Literários de 1936, pelo livro MAGMA. Revista da Academia Brasileira

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1946

CARTA a João Condé (como e por que foi escrito Sagarana). A Manhã. Rio de Janeiro, 21/28 de jul. de 1946. (Suplemento Letras e Artes).

DISCURSO de Posse na Sociedade Brasileira de Geografia. Revista da Sociedade Brasileira de Geogr ta. Rio de Janeiro, (53), 1946.

FIM DA "FORTUNA Cx1TICA"

~ ~ As peças mencionadas fazem parte de outra coletânea póstuma de Rosa, também o nizada por Paulo Rónai: Ave, palavra, publicada pela livraria José Olympio Editora

197O. (Nota de 1992.)

SAGARANA. 1 ed. Rio de Janeiro, Editora Universal, 1946. 344 p. Capa de Geraldo Castro. (Prêmio da Sociedade Felippe d"Oliveira, 1946). 2 ed. Rio de Janeiro, Edit

Universal, 1946. 336 p. Capa de Geraldo de Castro.

"Com o vaqueiro Mariano". Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 26 de out. de 1947. (I Buído em Essas estórias).

1948

CARTA a Cyro dos Anjos. Letras e Artes. Rio de Janeiro, (96), 22 de ago. de 1948.

195O

CARTA à redação de Letras e Artes. Letras e Artes, Rio de Janeiro, (156), 5 de mar. de 19

1951

"O lago do Itamaraty". Selefões do Reader"s Digest. Rio de Janeiro, ago. de 195 L (I cluí em Ave, palavra).

SAGARANA. 3 ed. revista. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1951. 346 Capa de Santa Rosa. (A partir dessa edição não mais aparecem as ressalvas que o

aut incluiu no final das duas primeiras).

1952

COM O VAQUEIRO MARIANO. Niterói, Edições Hipocampo, 1952.52 p. Ilustração Darei Valença Lins. Tiragem de 11O exemplares. (Incluído em Essas estórias). "Pé duro -

chapéu de couro". O Jornal. 28 de dez. de 1952.

1953

De 12-4-1953 a 7-6-1953 publicou no "Suplemento Letras e Artes" do jornal A Man sete textos.

1954

De 6-4-1954 a 1-6-1954 publicou no "Suplemento Letras e Artes" do jornal A Ma sete textos.

1956

CORPO DE BAILE. 1 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956.2 vol. 824 p. Capas de P

GRANDE SERTÃO: VEREDAS. 1 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956. 596 p. Ca

ilustrações de Poty. Prêmios: "Machado de Assis", do Instituto Nacional do Li

r85

"Carmem bolores Barbosa", de São Paulo e "Paula Brito", do município do Rio de Janeiro.

SAGARANA. 4 ed. versão definitiva. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956. 378 p. Capa de Poty.

1957

"Aí está Minas: a mineiridade". Manchete. Rio de Janeiro, 24 de ago. de 1957. p. 26-31. PREFÁCIO "Pequena Palavra", datado de Rio de Janeiro, 27 de ago. de 1956,

à Antologia

do conto húngaro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1957. Seleção, tradução e no

tas de Paulo Rónai.

1958

"Ao pantanal". Jornal de Letras. Rio de Janeiro, jan. de 1958. (Incluído em Ave, palavra). GRANDE SERTÃO: VEREDAS. 2 ed. Texto definitivo. Rio de Janeiro, José Olympio,

1958. 574 p. Capa e ilustrações de Poty.

"O ciclo do carro de boi no Brasil". Boletim bibliográfico brasileiro. Rio de Janeiro, mai. de

1958. (Depoimento sobre o livro de Bernardino José de Souza).

SAGARANA. 5 ed. retocada, forma definitiva. Rio de Janeiro, José Olympio, 1958. 39O p.

Capa e ilustrações de Poty.

TRADUÇÃO de O último dos maçaricos, de Fred Bodsworth. Rio de Janeiro, Selefões do

Reader"s Digest, 1958. vol. 6.

196O

"A simples e exata estória do burrinho do comandante". Senhor. Rio de Janeiro, 2(4): 48

57, abr. de 196O. (Incluído em Essas estórias).

CORPO DE BAILE. 2 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 196O. 516 p. Capa de Poty. PREFÁCIO "Simples Passaporte", datado de Rio de Janeiro, dez. de 1957, à obra de

Vasconcellos Costa: De 7 Lagoas aos 7 mares. Belo Horizonte, Itatiaia, 196O.

1961

"Alguns bichos" (exemplo de prosoema). Brasil. Edição do Sepro da Embaixada do Bra

sil em Lisboa, ns 19, dez. de 1961 a jan. de 1962.

De 7-1-1961 a 26-8-1961, J.G. Rosa publicou 34 textos no jornal O Globo que, revistos,

constituíram, na sua quase totalidade, o livro PRIMEIRAS ESTÓRIAS.

De 2~-2-1961 a 22-7-1961, J.G. Rosa publicou em O Globo 18 poemas usando os ana

gramas Soares Guiamar, Meuriss Aragão e Sá Araújo Segrim, conforme mostrou em

sua excelente pesquisa bibliográfica Plínio Doyle.

DISCURSO de agradecimento na Academia Brasileira de Letras, em sessão de 29 de jun.

de 1961, pelo Prêmio Machado de Assis, para conjunto da obra, publicado na Revista

da Sociedade de Amigos de Machado de Assis. Rio de Janeiro, (7), 29 de set. de 1961. "Meu tio o Iauaretê". Senhor. Rio de Janeiro, (25), mar. de 1961. (Incluído

em Essas es

tórias), ~_

1947

"O burro e o boi no presépio". Senhor. Rio de Janeiro, 3(12): 16-23, dez. de 1961. O MISTÉRIO DOS M M M, romance em colaboração. Coordenação de João Condé,

blicado em O Cruzeiro, de out. a dez. de 1961, com ilustrações de Percy Deane. J

Rosa escreveu no número de 16 de dez. de 1961.

1962

"A estória do Homem do Pinguelo". Senhor. Rio de Janeiro, (37), mar. de 1962. (Inc do em Essas estórias).

"Nenhum, nenhuma". Senhor. Rio de Janeiro, (42), ago. de 1962. (Incluído em Prim estórias).

"Partida do audaz navegante". Senhor. Rio de Janeiro, (39), mai. de 1962. (Indufdo Primeiras estórias).

"Pirlimpsiquice". Comentário. Rio de Janeiro, (11), 1962. (Incluído em Primeiras e rias).

PRIMEIRAS ESTÓRIAS. 1 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1962. 18O p. Capa e dese do índice por Luís Jardim.

"Seqüência". Anuário da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro, 1962/1963. (Incluído Primeiras estórias)

"Substâncias". Senhor. Rio de Janeiro, (38), abr. de 1962. (Incluído em Primeiras rias).

1963

CARTA a Angel Crespo e Pilar Gómez Bedate. Revista de Cultura Brasilena. Madrid, dez. de 1963.

GRANDE SERTÃO: VEREDAS. 3 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1963. 574 p. Ca ilustrações de Poty.

"Maior meu sirimim". Diário Carioca. Rio de Janeiro, 21 de jul. de 1963. (Incluído Ave, palavra).

"Um moço muito branco". Brasil. Edição do Sepro da Embaixada do Brasil em Lis n4 22, 1963.

1964

"As garças". Estado de São Paulo. São Paulo, 22 de fev. de 1964. (Suplemento Liter Incluído em Ave, palavra).

CAMPO GERAL. Rio de Janeiro, Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, 1964. nhos a cores de Djanira, gravados por Darel em cobre e linoleum. Tiragem de exemplares.

CORPO DE BAILE. 3 ed. A partir desta edição desdobra-se o livro em três volumes tônomos, configurando Corpo de baile como subtítulo. 1 vol. Manuelzão e Miguilim.

Rio de Janeiro, José Olympio, 1964.2O4 p. Capa de Com Uma estória de amor e Campo geral.

"Fita verde no cabelo". Estado de São Paulo. São Paulo, 8 de fev. de 1964. (Suplem Literário. Incluído em Ave, palavra).

OS SETE PECADOS CAPITAIS. Livro escrito em colaboração. J.G. Rosa escreveu o tolo I - A Soberba, intitulado Os chapéus transeuntes. Rio de Janeiro, Civilização sileira,

1964. (Republicado em Estas estórias).

PRIMEIRAS ESTÓRIAS. 2 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1964. 18O p. (Esta edição reproduz em tudo a primeira).

SAGARANA. 6 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1964.366 p. Capa e ilustrações de Poty.

1965

CARTA a Bernardo Élis. Goiás agora. Goiânia, jun. de 1965.

CORPO DE BAILE. 3 ed.

2 vol. No Urubuquaquá, no Pinhém. Rio de Janeiro, José Olympio, 1965. 248 p. Capa de Poty. Com Lélio e Lina, O recado do morro e "Cara-de-Bronze". 3 vol. Noites

do sertão. Rio de Janeiro, José Olympio, 1965. 254 p. Capa de Poty. Com Buriti e Dão-Lalalão (O devente).

De IS-5-1965 a 25-12-1965, J.G. Rosa publicou, no jornal Pulsa, do Rio de Janeiro, dezessete textos que, revistos, constitufram parte do livro Tutaméia.

GRANDE SERTÃO: VEREDAS. 4 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1965.462 p. Capa e ilustrações de Poty.

SAGARANA. 7 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1965.366 p. Capa e ilustrações de Poty.

APRECIAÇAO, não datada, sobre o livro SERRAS AZUIS, de Geraldo França de Lima. Rio de Janeiro, Edições GRD, 1965.

1966

De 8-l-1966 a 24-12-1966, J.G. Rosa publicou, no jornal Pulso, do Rio de Janeiro, 26 textos que, revistos, constituíram parte do livro Tutaméia.

1967

CARTA ao Embaixador Antônio C. Câmara Canto. Revista de Cultura Brasilena. Madrid, (21 ), jun. de 1967.

CARTA a Waldemar Reis. Correio do Sul. Bagé, 23 de nov. de 1967.

CARTA ao Cônsul Cabral (a carta em "C"). Jornal da Tarde. São Paulo, 25 de nov. de 1967.

CARTA a Paulo Dantas. Jornal Estado de São Paulo. São Paulo, 25 de nov. de 1967. (SuPlemento Literário).

De 7-l-1967 a 29-7-1967, J.G. Rosa publicou, no jornal Pulso, do Rio de Janeiro, treze textos que, revistos, constitufram parte do livro Tutaméia.

DISCURSO como vice-presidente do II Congresso Latino-Americano de Escritores no México, publicado com o título de "Emoción del Brasil", no El Despertador Americano.

Boletim informativo do Congresso. México, vol. I, ns 2, mai. de 1967.

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"Remimento". Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 25 de nov. de 1967.

SAGARANA. 8 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1967.366 p. Capa e ilustrações de P Prefácio de bscar Lopes. 9 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1967. 366 p. Capa

e il trações de Poty. Prefácio de bscar Lopes. Poema de Carlos Drummond de And (Em dezembro sai a la edição póstuma. A partir desta edição, as subseqüentes rep duzem

esta).

TRÉS CARTAS. Jornal Minas Gerais. Belo Horizonte, 25 de nov. de 1967. (Supleme Literário).

TUTAMÉIA (TERCEIRAS ESTÓRIAS). 1 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1967. 19 Capa de Luís Jardim. (Quatro Prefácios do autor). 2 ed. Rio de Janeiro José Olym 1967.

Crítica de Tristão de Athayde. (A partir desta edição, as subseqüentes repro zem esta).

"Viver é muito perigoso...". Minas Gerais. Belo Horizonte, 25 de nov. de 1967. p (Suplemento Literário).

1968

CARTA a Paulo Hecker Filho. Cultura Contemporânea. Porto Alegre, (1), 1968. CARTA a Vilma. Em memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro, José Olym

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DISCURSO de Posse na Academia Brasileira de Letras, em sessão de 16 de nov. de - "O verbo 8c o logos" -, publicado no livro Em memória de João Guimarães Rio de Janeiro,

José Olympio, 1968. p. 55-87.

PRIMEIRAS ESTÓRIAS. 4 ed. Ilustrada. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968. 18O p. e desenho do índice por Luís Jardim. Introdução de Paulo Rónai. Poema de C Drummond

de Andrade. Nota Biográfica de Rénard Perez. Crônica de Gracilianq mos. (la edição póstuma. As subseqüentes reproduzem esta edição).

"Saudade". Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 1 de dez. de 1968. p. 11.

1969

ESTAS ESTÓRIAS. 1 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1969. 236 p. Capa de Poty. introdutória de Paulo Rónai. Página de saudade de Vilma Guimarães Rosa. Nota de Leo

Gilson Ribeiro. (Obra póstuma. As edições subseqüentes reproduzem esta).

1$9

197O

AVE, PALAVRA. 1 ed. Rio de Janeiro, José Olympio , 197O. 276 p. Capa de Gian. Nota introdutória de Paulo Rónai. (Obra póstuma. As edições subseqüentes reproduzem

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1973

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aconteceu em Gênova, durante o Congresso Internacional de Escritores Latino-Americanos, realizado em 1965).

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II - BIBLIOGRAFIA SELETIVA SOBRE A VIDA E A OBRA DE

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FIM DA "BBLIOGRAFIA"

E DA "INTRODUÇÃO GERAL"

197

O BURRINHO PEDRÊS

"E, ao meu macho rosado, carregado de algodão, preguntei: p"ra donde ia? P"ra rodar no mutirão."

(VELHA CANTIGA, SOLENE, DA ROÇA)

199

ERA UM BURRINHO PEDRÊS, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão. Chamava-sè Sete-de-Ouros, e já fora tão bom, como

outro não existiu e nem pode haver igual.

Agora, porém, estava idoso, muito idoso. Tanto, que nem seria preciso abaixar-lhe a maxila teimosa, para espiar os cantos dos dentes. Era decrépito mesmo à distância:

no algodão bruto do pêlo - sementinhas escuras em rama rala e encardida; nos olhos remelentos, cor de bismuto, com pálpebras rosadas, quase sempre oclusas, em constante

semi-sono; e na linha, fatigada e respeitável - uma horizontal perfeita, do começo da testa à raiz da cauda em pêndulo amplo, para cá, para lá, tangendo as moscas.

Na mocidade, muitas coisas lhe haviam acontecido. Fora comprado, dado, trocado e revendido, vezes, por bons e maus preços. Em cima dele morrera um tropeiro do Indaiá,

baleado pelas costas. Trouxera, um dia, do pasto - coisa muito rara para essa raça de cobras - uma jararacuçu, pendurada do focinho, como linda tromba negra com

diagonais amarelas, da qual não morreu porque a lua era boa e o benzedor acudiu pronto. Vinhalhe de padrinho jogador de truque a última intitulação, de baralho,

de manilha; mas, vida afora, por amos e anos, outras tivera, sempre involuntariamente: Brinquinho, primeiro, ao ser brinquedo de meninos; Rolete, em seguida, pois

fora gordo, na adolescência; mais tarde, Chico-Chato, porque o sétimo dono, que tinha essa alcunha, se esquecera, ao negociá-lo, de ensinar ao novo comprador o nome

do animal, e, na região, em tais casos, assim sucedia; e, ainda, Capricho, visto que o novo proprietário pensava que Chico-Chato não fosse apelido decente.

A marca-de-ferro - um coração no quarto esquerdo dianteiro - estava meio apagada: lembrança dos ciganos, que o tinham raptado e disfarçado, ovantes, para a primeira

baldroca de estrada. Mas o roubo só rendera cadeia e pancadas aos pândegos dos ciganos, enquanto Sete-de-Duros voltara para a Fazenda da Tampa, onde tudo era enorme

e despropositado: três mil alqueires de terra, toda em pastos; e o dono, o Major Saulo, de botas e esporas, corpulento, quase um obeso, de olhos verdes, misterioso,

que só com o olhar mandava um boi bravo se ir de castigo, e que ria, sempre ria - riso grosso, quando irado; riso fino, quando alegre; e riso mudo, de normal.

Mas nada disso vale fali porque a estória de um burrinho, como a his-

2OO JOÃO GUIMARAES ROSA / FICÇAO COM

tória de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de vida. E a existência de Sete-de-Duros cresceu toda em algumas hor seis da manhã à meia-noite - nos

meados do mês de janeiro de um an grandes chuvas, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais

O burrinho permanecia na coberta, teso, sonolento e perpendicul cocho, apesar de estar o cocho de-todo vazio. Apenas, quando ele cab va, soprava no ar um resto de

poeira de farelo. Então, dilatava ainda as crateras das ventas, e projetava o beiço de cima, como um focinh anta, e depois o de baixo, muito flácido, com finas falripas,

deixad pele barbeada de fresco. E, como os dois cavos sobre as órbitas eram um par de óculos puxado para a testa, Sete-de-Duros parecia ainda velho. Velho e sábio:

não mostrava sequer sinais de bicheiras; que ele feria evitar inúteis riscos e o dano de pastar na orilha dos capões, vegeta o cafezinho, com outras ervas venenosas,

e onde fazem vôo, z bidoras e mui comadres, a mosca do berne, a lucília verde, a varejeira da, e mais aquela que usa barriga azul.

De que fosse bem tratado, discordar não havia, pois lhe faltavam pichos ou carrapatos, na crina - reta, curta e levantada, como uma es de dentes. Agora, para sempre

aposentado, sim, que ele não estava, Tanto, que uma trinca de pisaduras lhe enfeitava o lombo, e que João nico teve ordem expressa de montá-lo, naquela manhã. Mas,

disto úl o burrinho não recebera ainda aviso nenhum.

Para ser um dia de chuva; só faltava mesmo que caísse água. M noiteira, sem sol, com uma umidade de melar por dentro as roupas da te. A serra neblinava, açucarada,

e lá pelas cabeceiras o tempo ainda de estar pior.

Sete-de-Duros, uma das patas meio flectida, riscava o chão com bordo do casco desferrado, que lhe rematava o pezinho de Borral E abria os olhos, de vez em quando,

para os currais, de todos os tam em frente ao casarão da fazenda. Dois ou três deles mexiam, de tanto

Alta, sobre a cordilheira de cacundas sinuosas, oscilava a mastrea chifres. E comprimiam-se os flancos dos mestiços de todas as meiasplebéias dos campos-gerais,

do Urucuia, dos tombadores do Rio das reservas baianas, das pradarias de Goiás, das estepes do Jequitinh dos pastos soltos do sertão sem fim. Sós e seus de pelagem,

com as mais achadas e impossíveis:.pretos, fuscos, retintos, gateados, baios melhos, rosilhos, barrosos, alaranjados; castanhos tirando a rubros, p gas com longes

pretos; betados, listados, versicolores; turinos, marc dos com polinésias bizarras; tartarugas variegadas; araçás estranhos estrias concêntricas no pelame - curvas

e zebraras pardo-sujas em verdacento, como cortes de ágata acebolada, grandes nós de madeira da, ou faces talhadas em granito impuro.

Como correntes de oceano, movem-se cordões constantes, rodan

$A~A~N`~ 2O1

moinhos: sempre um vai-vém, os focinhos babosos apontando, e as caudas, que não cessam de espanejar com as vassourinhas. Somam-se. Buscam-se. O crioulo barbeludo,

anguloso, rumina, estático, sobre os maus aprumos, e gosta de espiar o céu, além, com os olhos de teor morno, salientes. O espúrio gir balança a bossa, cresce a

cabeçorra vestindo os lados da cara com as orelhas, e berra rouco, chamando a vaca malabar, jogada para o outro extremo do cercado, ou o guzerate seu primo, que

acode à mesma nostalgia hereditária de bois sagrados, trazidos dos pascigos hindus do Coromândel ou do Travancor. Mudo chamado leva o garrote moço a impelir toda

uma fileira, até conseguir aproximar-se de òutro, que ele antes nunca viu, mas junto do qual, e somente, poderá sentir-se bem. E quando o caracu-pelixado solta seus

mugidos de nariz fechado, começando por um eme e prolongando-se em rangidos de porteira velha, respondem-lhe o lamento frouxo do pé-duro e o berro em buzina, bem

sustido e claro, do curraleiro barbatão.

De vez em quando, rebenta um tumulto maior.

O pantaneiro mascarado, de embornal branco e quatrolhos, nasceu, há três anos, na campina sem cercas. Não tem marca de ferro, não perdeu a vïrilidade, e faz menos

de seis meses que enxergou gente pela primeira vez. Por isso, pensa que tem direito a mais espaço. Anda à roda e ataca, espetando o touro sertanejo, que encurva

o arcabouço de bisonte, franjando um leque de dobras no cachaço, e resolve mudar de vizinhança. Devagar, teimoso, força o caminho, como sabem fazer boamente os bois:

põe todo Opeso do corpo na frente e nas pontas das hastes, e abre bem o compasso das patas dianteiras, enterradas até aos garrões no chão mole, sustentando a conquista

de cada centímetro. O boieco china se espanta, e trepa na garupa do franqueiro, que foge, tentando mergulhar na massa. Um de cernelha corcovada, boi sanga sapiranga,

se irrita com os grampos que lhe arpoam a barriga, e golpeia com a anca, aos recuões. A vaca bruxa contra-esbarra e passa avante o choque, calcando o focinho no

toutiço do mocho. Empinam-se os cangotes, retesam-se os fios dos lombos em sela, espremem-se os quartos musculosos, mocotós derrapam na lama, dançam no ar os perigalhos,

o barro espirra, engavetam-se os magotes, se escoram, escouceiam. Acolá, nas cercas, - dando de encontro às réguas de landi, às vigas de guarantã e aos esteios de

aroeira - carnes quadradas estrondam. E pululam, entrechocados, emaranhados, os cornos - longos, curtos, rombos, achatados, pontudos como estiletes, arqueados, pendentes,

pandos, com uma duas três curvaturas, formando ângulos de todos os graus comios eixos das frontes, mesmo retorcidos para trás que nem chavelhos, mesmo espetados

para diante como presas de elefante, mas, no mais, erguidos: em meia-lua, em esgalhos de cacto, em barras de cruz, em braços de âncora, em Grossas de candelabro,

em forquilhas de pau morto, em puãs de caranguejo, em ornatos de satanás, em liras sem cordas - tudo estralejando que nem um

2oz JoAo GuiMnaAes Rosa / FicçAO CoM

fim de queimada, quando há moitas de taboca fina fazendo ilhas nopinzal.

Agora, se alertam, porque pressentem o corisco. Esperam que a tro da bata pilão, na grota longe, e então se sobrechegam e se agitam, reco çando os espiralados deslocamentos.

Enfarado de assistir a tais violências, Sete-de-Duros fecha os olhos. na engasgado. Entorna o frontispício. E, cabisbaixo, volta a cochilar. calma, renúncia e força

não usada. O hálito largo. As orelhas peludas, didas por diante, como duas mal enroladas folhas secas. A modorra, q leva a reservatórios profundos. As castanhas

incompletas das pernas imponentes ganachas. E o estreme alheamento de animal emancipad híbrido infecundo, sem sexo e sem amor.

Mas para ele não havia possível sossego. O cavalo preto de Benevide soreiro fogoso, de pescoço recurvo em cauda de galo - desatou-se do rão e vem desalojar o burrico

da sua coxia. Está arreado; a jereba urucui bicorcovada, fá-lo parecer uma sorte de camelo raso; os estribos de ma batem-lhe os flancos; e arrasta entre as mãos

a ponta do cabresto. Mas, da assim, não pode admitir, tão perto, a existência de um mísero mu. E sem ao menos verificar o que há, o matungo de Zé Grande espanca

o que da coberta, o amarilho de Silvino saracoteia empinado, quase parri o látego, e o poldro pampa, de finca-pé, relincha escandalosamente.

Mas Sete-de-Duros detesta conflitos. Não espera que o garanhão zelo volva a garupa para despejar-lhe duplo coice mergulhante, co gorosa simetria. Que também, do

outro lado, se assoma o poldro pa espalhando a crina e arreganhando os beiços, doido para morder. Sete Duros se faz pequeno. Escoa-se entre as duas feras. Desliza.

E pega o p pelo pátio, a meio trote e em linha reta, possivelmente pensando: - Q to exagero que há!...

Passa rente aos bois-de-carro - pesados eunucos de argolas nos fies, que remastigam, subalternos, como se cada um trouxesse aind pescoço a canga, e que mesmo disjungidos

se mantêm paralelos, d dois. Corta ao meio o grupo de vacas leiteiras, já ordenhadas, tranq com as crias ao pé. E desvia-se apenas da Açucena. Mas, também, qual

pessoa faria o mesmo, os vaqueiros fariam o mesmo, o Major Saulo f mesmo, pois a Açucena deu à luz, há dois dias, um bezerrinho mui Jante, e é bem capaz de uma brutalidade

sem aviso prévio e de cabeça pegando com uma guampa entre as costelas e a outra por volta do um com o que, contado ainda o impacto da marrada, crível é que o ho

mais virtuoso do mundo possa ser atirado a seis metros de distâncià toda a velocidade, com alças de intestino penduradas e muito sang pulmão à vista.

E Sete-de-Duros, que sabia do ponto onde se estar mais sem túm veio encostar o corpo nos pilares da varanda. Deu de cabeça, para la

SA~AR^N^ 2oj

veloz, o peito, onde a cauda não alcançava. Depois, esticou o sobrebeiço em toco de tromba e trouxe-o ao rés da poeira, soprando o chão.

Mas tinha cometido um erro. O primeiro engano seu nesse dia. O equívoco que decide do destino e ajeita caminho à grandeza dos homens e dos burros. Porque: "quem

é visto é lembrado", e o Major Saulo estava ali:

-Ara, veja, louvado tu seja! Hô-hô... Meu compadre Sete-de-Duros está velho... Mas ainda pode agüentar uma viagem, vez em quando... Arreia este burro também, Francolim!

-Sim, senhor, seu Major. Mas, o senhor está falando.sério, ou é por br ncar?

- Me disseram que isto é sério. Fecha a cara, Francolim!

Com a risada do Major, Sete-de-Duros velou os olhos, desgostoso, mesmo sem saber que eram donas de duras as circunstâncias. Francolim viera contar que não havia

montadas que chegassem: abrira-se um rombo na cerca do fundo do pasto-do-açude, por onde quase toda a cavalhada varara durante a noite; a esta hora, já teriam vadeado

córrego e descambado a serra, e andariam longe, certo no Brejal, lambendo a terra sempre úmida do barreiro, junto com os bichos do campo e com os bichos do mato.

O Major dera de taca no parapeito, muitas vezes, alumiando raiva nos olhos verdes e enchendo o barrigão de riso. Depois, voltou as costas ao camarada, e, fazendo

festas à cachorrinha Sua-Cara, que pulara para cima do banco, começou a falar vagaroso e alto, mas sem destampatório, meio rindo e meio bravo, que era o pior:

-Tenho vaqueiros, que são bons violeiros... Tenho cavalos ladinos, para furarem tapumes. Hô-hô... Devagar eu uso, depressa eu pago... Todoo-mundo aqui vale o feijão

que come... Hô-hô... E hoje, com um tempo destes e a gente atrasada...

Afinal, mandou Sua-Çara descer do banco, e se desvirou, de repente, encarando Francolim:

- Quantos animais ficaram, mulato mestre meu secretário?

- Primeiro que todos, o sardão do senhor, seu Major. Silvino, Benevides, e Leofredo, têm os cavalos lá deles... Zé Grande também, eu também.,, Tem o baio de seu

Tonico... Tem o alazão... E o Rio-Grande. Eu até já estou achando que eles chegam, seu Major.

E Francolim baixava os olhos, sisudo, com muita disciplina de fisionomia.

- Francolim, você hoje está analfabeto. Pensa mais, Francolim!

- Tem também... Só se for o cavalo de Bilhão de sá dona Cota, mais o poldro pampa... É, mas esse não serve: o poldro já está com carretéis nas munhecas, mas ainda

não acabou de ser bem repassado.

O poldro vai, Francolim. i

Então, dão. Assim, estão todos.

2O4 JOÃO GUIMARAES ROSA / FICÇÃO COMP

- Conta nos dedos, Francolim. Têm de ir dez, fora nós dois.

- Falta um cavalo, seu Major!

- Francolim, você acertou depressa demais...

E o Major Saulo foi até à porta, para espiar o relógio da parede da Maria Camélia chegou com a cafeteira e uma caneca. - "Quente mes para velho?" - "De pelar, seu

Major!" Sempre com a mão esquerda ali do a barriga, o Major Saulo chupava um gole, suspirava, ria e chuchurr outro. E a prèta e Francolim, certos, a um tempo, sorriam,

riam e fica sérios outra vez. - "Dá o resto para o Francolim, mas sem soprar, Ma E o Major, já de cigarro na boca, se debruçava no parapeito, pensando

... Boi para encher dois trens, e mais as vacas que vão ficar no raiai... Para a gente sair, ainda é cedo... Mas, melhor que chovesse agora, modo de dar uma estiada

com folga...

E nessa hora foi que Sete-de-Duros se veio apropinquando, brando.

- Arreia este burro também, Francolim!

- Sim senhor, seu Major. Só que o burrinho está pisado, e quase não enxerga mais...

- Que manuel-não-enxerga, Francolim! - e o Major Saulo pa pensando, com um dedo, enérgico, rodante dentro do nariz; mas, mais, se iluminou: - São só quatro léguas:

o João Manico, que é o leviano, pode ir nele. Há-há... Agora, Francolim, vá-s"embora, que e estou com muita preguiça de você.

Mas a preta Maria Camélia se foi, ligeira, levando o decreto do M Saulo de novidade para a cozinha, onde arranchavam ou labutavam meninas, quatro moças e duas velhas,

afora gatos e cachorros que saía entravam; e logo se pôs aceso o mundo: - O João Manico vai tocar bo" no burrinho! Imagina só, meu-deus-do-céu, que graça!...

Porém, cá fora, a vaqueirama começava o corre-corre, pega-pega, reia-arreia, aos gritos benditos de confusão. - "Vamos, gente, pes quem vai na frente bebe a água

limpa!" Voz pomposa, Raymundão, o b co de cabelo de negro: - "Sinoca, larga o que tem dono, que esse cox lho é o meu!" Com Sinoca, das Taquaras, que já teve pai

rico: - "D vota, Leofredo, fasta o seu macho para lá!" Daí Leofredo, magrelo, de bexiguenta, que se prepara cantando: - "Eu vou dar a despedida, c deu o bem-te-vi..."

E Tote, homem sisudo, irmão de Silvino por part mãe, puxando o alazão, que não é mau: - "Ara, só, Bastião, com ess reio de caçambas é que eu não vou, tocando sino

de igreja..." Já Sil cara má, cuspindo nas mãos para dar um nó no rabo do seu café-comde crinas alvas, grande esparramador de lama. E mais Sebastião, o cap pulando

em cima do Rio-Grande - cavalo de casa, com uma anda macia de automóvel, tão ligeira que ultrapassa o picado dos outros am e chega a ser quase um meio-galope. E

o bom Zé Grande, mexendo c boca sem falar, para acabar de enrolar o laço no arção deitado do b

SAGARA~~ 2aS

paulista, e coçando um afago na tábua-do-pescoço do compacto Cata-Brasa, cavalão herdado, bastardo, pesado de diante como um muar e de cabeça volumosa, mas doutor

para conhecer no campo as negaças da rês brava e para se esbarrar para a derrubada, de seda ou de vara. E Benevides, já montado - no Cabiúna manteúdo, animal fino,

de frente. alçada e pescoço leve, que dispensa rabicho mas réclama o peitoral, e é um de estimação, nutrido a lavagens de cozinha e rapadura, o qual não pára um

instante a cabeça, porque é o mais bonito de todos, com direito de ser serrador, e está sôfrego por correr; - Benevides, baiano importante, que tem os dentes limados

em ponta, e é o único a usar roupa de couro de três peças, além do chapelão, que todos têm. Mas Sinoca, novamente, se assentando meio de-banda, por deboche de si

mesmo, em cima do Amor-Perfeito, palafrém tordilho de Dona Maricota, que estranha o serigote, de tanto afeito ao silhão: - "Cavalo manso de moça só se encosta em

tamborete..." - "Ô, gente, ô gente!" - "Desassa a tua mandioca!" E Juca Bananeira, que dá uma palmada na anca do Belmonte - cavalo do menino da casa, desbocado,

viciado e inventador de modas - e sobe, com excelência, perguntando:

- Eh, e o Badu? Qu"é do Badu?!...

- Francolim, Francolim! - chama o Major Saulo, caminhando sulnorte e norte-sul, na varanda, conversando com a cachorrinha.

- Não está aqui, não, seu Major... - anuncia de lá Benevides, que, com simples pressão de pernas nas abas da sela papuda, faz o corcel preto revirar nos cambitos;

e logo ajuda a chamar:

- Ooó, Francolim!

As vacas fogem para os fundos do eirado, com os bezerrinhos aos pinotes. Caracoleiam os cavalos, com os cavaleiros, em giros de picadeiro. E Sua-Cara correu para

latir, brava, no topo da escada.

- Badu, ó Badu!

- Já vem ele ali, Juca, foi se despedir da namorada...

Enfim surge Francolim, vindo da varanda. do lado, mastigando qualquer coisa.

- Fui ver se tudo vai ficar em ordem, lá por dentro, seu Major.

- Olha para mim, Francolim: "joá com flor formosa não garante terra boa!",,, Arrancha aqui, perto das minhas vistas.

E o Major Saulo aponta com a taca, na direção dos currais cheios:

- Boiada e tanto! Nem bem dois meses no meloso, vinte dias no jaraguá e está aí esta primeira leva, berrando bomba de graúda. Nunca vi uma cabeceira-do-gado tão

escolhida assim.

- Isto, seu Major. E só gordura honesta de bois. A gente aqui não faz

roubo.

- E que é que eu tenho com os santos-óleos?

- Sim senhor, seu Major... Estou dizendo é que não é vantagem, no seu Ernesto, eles terem embarcado a cabeceira antes de nós, na outra sema-

zoó

na, porque eu agora estou sabendo que eles lá são mestres de dar sal enxofre ao gado, para engordar depressa, gordura de mentira, de inch

- Cala a boca, Francolim. Estão todos assanhados, não cabend curral...

Quatrocentas e muitas reses, lotação de dois trens-de-bois. Na vés o Major Saulo saíra pela invernada, com os campeiros, ele escolhendo, apartando. O peso era calculado

a olho. O preço fora discutido e com do, em telegramas. E já chegara o aviso do agente: os especiais estava perando, na estação do arraial.

- Vá lavar sua cara, Francolim.

- Lavar cachorro a esta hora, seu Major?

- Não. Lavar sua cara mesma, de você. Há-há... Tempo de tra entrou, Sebastião...

Sebastião subira a escada e se chegara. Com polainas amarelas e pés calços. Concordou. Ia dizer qualquer coisa, mas fechou a boca a te porque o Major Saulo continuava

olhando para a aglomeração de bois"

Nos pastos de engorda, ainda havia milhares deles, e até junho dura êxodo dos rebanhos de corte. E, como acontecia o mesmo em todas a zendas de ali próximo, e, com

ligeiras variantes, nas muitas outras co lações de fazendas, escantilhadas em torno das estaçõezinhas daquele cho, era a mobilização anual da fauna mugidora e guampuda,

com tre mais trens correndo, vagões repletos, atochados, consignados a Sítio e ta Cruz. Depois, nos meados da seca, os pastos se esvaziavam, e os deiros tinham de

espalhar-se em direção aos longínquos centros de para comprar e arrebanhar gado magro. Pelas queimadas, já estaria volta. Repouso. Primeiro sal. Primeiro pasto.

Ração de sal todos os na lua nova. E, pronto, recomeçar.

- Vai cair chuvinha fina, mas as enchentes ainda vão ser bravas. ano acaba em seis!... Pode ajuntar o povo, Sebastião. Chama Zé Gr Mas, que é aquilo, Francolim?

Quando Badu chegou, com muito atraso, das montadas só resta poldro pampa. Já arreado, livre das tamancas nos ramilhos, mante quieto, a grosso ver, mas lançando de

si estremeções e sobressaltos, um grande corpo elétrico.

- Há-há...

- Silvino está com ódio do Badu...

E Badu está acabando de saber que tem de montar o poldro. Não r ma. Fica ressabiado, óbservando.

- ... por causa que Silvino também gosta da moça, mas a moça gostou dele mais...

- Esquece os casos, Francolim!... Ver se o Badu entende de do vai montar...

Badu vem ao animal. Verifica se a cilha está bem apertada. Ajeita

$AGARANA ZoJ

um são caminho de idéias, o seu próprio correão da cintura. Pula de-escancha no arreio, e o poldro - hop pla. - esconde o rabo e funga e de Banda, num estardalhaço

de peixe fera pego no anzol. Se empinou, dá um de-ancas, se empina; saiu de lado, ajuntando as munhecas, sopra e bufa, se abre e fecha, bate crina, parece que vai

disparar.

O Major Saulo assiste, impassível. Só no verde dos seus olhos é que pula o menino do riso. Mas Francolim não se contém:

-Silvino assoviou no ouvido do bicho... Eu reparei, seu Major! Se o senhor mandar, eu vou lá, pôr autoridade nessa gente...

- Caiu, que eu vi!

Era um supersalto magistral, com todas as patas no ar e a cabeça se encostando na cauda, por debaixo do resto. Mas Badu não caiu: perdendo os estribos, aperta os

joelhos na cabeça da jereba, iça o poldro nas rédeas e acalcanha nele as rosetas, gritando: - Desce a serra, pedidor!

- Há-há... Grudou as pernas no santantônio, firme! Está aí, Francolim, você ainda acredita no que vê?

- Sim senhor, seu Major... Sou prevenido. Mas, tem outra coisa que eu careço de dar parte ao senhor... Faz um passo para lá, Zé Grande, que eu preciso de um particular

urgente aqui com o patrão.

- Que é que é, Francolim Fonseca?

- Francolim Ferreira, seu Major... O que é, é que eu sei, no certo, mas mesmo no certo, que Silvino vai matar o Badu, hoje.

- Na minha Fazenda ninguém mata outro. Dá risada, Francolim!

- Sim senhor, mas o caso não é de brinquedo, seu Major... Silvino quer beber o sangue do Badu... Se o senhor fornece ordem, eu dou logo voz de prisão no Silvino,

no arraial, depois do embarque...

- Escuta, Francolim: "não é nas pintas da vaca que se mede o leite e a espuma"!,,, Vamos embora, de uma vez.

E o Major Saulo desce a escada da varanda, com a corte de Francolim e Zé Grande, e vem devagar, a passos pesados, para o esteio das argolas.

- Puxa o cardão, Francolim. 6 João Manico, Manicão meu compadre, que é que você está esperando, para enjambrar essa outra azêmola! - e o Major sobe no cardão, que,

mesmo tão grande, quase se abate e encosta a barriga no chão.

lá encabrestado, Sete-de-Ouros não está disposto a entregar-se: "Vai, mas custa!", quando outros o irritam, é a divisa de um burricoque ancião. Com rapidez, suas

orelhas passam à postura vertical, enquanto acompanha ° homem, com um olho de esguelha, a fito de não errar o coice.

derJoão Manico anda-lhe ã roda, aos resmungos. Põe-lhe o baixeiro. Depois, pelo certo, antes de arrear, bate na cabeça do burrinho, como Deus r da- Sete-de-Ouros

se esquiva à clássica: estira o queixo e se acaçapa,

Bando o traseiro e fazendo o arreio cair no chão. Então o vaqueiro se convence de que precisa de mostrar melhores modos:

2Oó JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COMP

- Eh, burrinho, acerta comigo, meu negro.

Assim, Sete-de-Duros concorda. João Manico passa-lhe a mão es meda no pescoço, e ele gosta e recebe bem a manta de pita. Já não re conformado. Dá apenas o repuxão

habitual da barriga, contraindo bru mente a pele, do cilhadouro às ilhargas e das ilhargas ao cilhadouro. crespa e desencrespa também o couro do pescoço. E acelera

as pancada cauda, no vai-e-vem bulhento de um espanador. Ao aceitar o freio, arr nha demais os beiços num tremendo sorriso de dentes amarelos. Mas 1 regressa ao

eterno cochilo, até que João Manico tenta montar.

- Ara viva! Está na hora, João Manico meu compadre. Você e o b nho vão bem, porque são os dois mais velhos e mais valentes daqui... C vém mais você ir indo atrás,

à toa. Deixa para ajudar na hora do em que... E o Sete-de-Duros é velho, mas é um burro bom, de gênio... V não sabe que um burro vale mais do que um cavalo, Manico?...

- Compadre seô Major, para se viajar o dia inteiro, em marcha de trada, estou mesmo com o senhor. Mas, para tocar boiada, eh, Deus livre que eu quero um burrinho

assim!...

- Mais coragem, Manico, sem gemer... "Suspiro de vaca não arre estaca!"... Mas, que é que você está olhando tanto, Francolim?

É, acolá, no outro extremo do eirado, Juca Bananeira, que brinca mexer tranças na crineira de Belmonte, e conversa com Badu. - "Você mal, de andar assim desarmado

de arma! Silvino é onça-tigre. Tod mundo sabe que ele está esperando hora..." Aí Badu, atravessando na te do arreio a longa vara de ferrão, e mostrando o poldro,

agora quiet exausto de pular, só diz: - "Comigo não tem quem tem! Eu tamb quando vejo aquele, fico logo amigo da minha faca. Mas Silvino é me so, mole, está sempre

em véspera de coisa nenhuma!"- "Aí fiando! Q tem inimigo não dorme!..." E Juca Bananeira vai para a eloqüência, po confia tanto na moleza de Silvino quanto um tem-farinha-aí

acredit imobilidade de uma cobra-cipó, ou uma cobra-cipó crê na lonjura al uma acauã. Mas Badu guina o poldro, vindo cá para perto do canto João Manico conversa

ainda com o Major.

Sete-de-Duros espetou as orelhas para a frente. É calmo e como mas de maneira alguma honesto. Quando João Manico monta, ele nãa la, por preguiça. Mas tem o requinte

de escoucear o estribo direito, pn ro com a pata de diante, depois com a de trás, cruzando fogos.

- Não falei, compadre seô Major?!... Bicho medonho! Burro amansa nunca de-todo, só se acostuma!...

Mas o Major Saulo largava, sem responder, rindo já longe, rumd vaqueiros: lá junto â cerca, core os cavalos formados em fileira, como esquadrão de lanceiros.

- "Olha só, vai trovejar..." E Leofredo mostrava o gado: todos in tos, olhos ansiosos, orelhas eretas, batendo os parênteses das galhas

$AGARANA 2O9

- "Não é trovoada não. São eles que estão adivinhando que a gente está na horinha de sair..." Mas, nem bem Sinoca terminava, e já, morro abaixo, chão adentro, trambulhavam,

emendados, três trons de trovões. Aí, a multidão se revolveu, instantânea, e uma onda de corpos cresceu, pesada, quebrou-se num dos lados do curral e refluiu para

a banda oposta. Em pânico, procuravam a saída.

- Vi-i! Vão dar o que fazer! Vigia ali: tem muito crioulo careço, caçando gente para arremeter... Ei, Zé Grande?...

Zé Grande passa a correia do berrante a tiracolo, e continua calado, observando. Para a sabença do gado, ele é o melhor vaqueiro da Tampa, homem ledor de todos os

sestros e nequícias do bicho boi. Só pelo assim do marruaz bulir ou estacionar, mede ele o seu grau de má fúria, calcula a potência de arremesso, e adivinha para

que lado será o mais dos ataques, e qual a pata de apoio, o giro dos grampos, e o tempo de volta para a segunda ofensiva.

- Ixe, ixe! Muito boi pesado. São os de Fortaleza. Só curraleiro alevantado, nação de boi arisco...

- Olha aquela aratanha araçá, que às há-de-as! Está empurrando os outros, para poder ficar no largo sozinha; não deixa nenhum se encostar. É para curro, vaca roda-saia...

- Parece com a que pegou você mais o Josias, Tote?

- Mas eu já disse... Já jurei que não foi culpa minha, e não foi mesmo. A vaca fumaça estava com a cria no meio do curral, fungando forte e investindo até no vento...

Josias falou comigo: "Vamos dar uma topada, para ver se ela tem mesmo coragem conversada." Eu disse: "Vamos, mas com sossego." Só aí é que aconteceu que nós esquecemos

de combinar, em antes, quem era que esperava e quem era que tirava... Ficamos: eu da banda de cá, ele ali. A"pois, primeiro que a gente pulasse a cerca para dentro,

já a diaba da vaquinha estava de lá, herege, tomando conta do que a gente queria querer fazer!...

- Não era hora de facilitar...

- Mas foi. Mal a gente tinha botado os pés no chão, e ela riscou de ar, sem negaça, frechada, desmanchando o poder da gente espiar... Nós todos dois entesamos de

lado, para tirar, e ninguém não escorou. Foi a conta. Ela deu o tapa, não achou firmeza, e remou as varas para fora... Escolheu quem, e guampou o Josias na barriga...

Mas virou logo para a minha banda, e veio me visitar, me catando com os chifres e me jogando baba na cara. Eu corri. Não tinha mesmo de correr?!...

- Com vara boa, de pau-d"arco, na mão de bom vaqueiro?

-Mas, minha vara, ela tinha mandado longe. Não falei?... Josias foi o mais desfeliz, porque foi jogado para tudo quanto era lado, com a monstra sapateando em cima

dele e chifrando... Mas ela só não me pegou também, porque com o fuzuê, até o bezerrinho levou susto e atravessou na frente, entre nós dois, espinoteando, com a

caudinha na cacunda. Quando eu ia

21O JOÃO GUIMARAES ROSA ~ FICÇÃO COMPLE

pular a cerca, ela ainda me alcançou, na sola dum pé: juntou com a for do pulo que eu ia dando, e eu caí, por riba do monte de achas de amei que estava lá... Culpa

eu tive?... Má-sorte do companheiro. Era o dia dele meu não era!...

- Ei, vamos mudar de contar coisas tristes, que seu Major não gosta

Major Saulo cavalga para cá, acabando de fazer a volta completa d currais, com Zé Grande e Sebastião dos lados, e Francolim.

- Agora, que é que há e que é que não há, Zé Grande?

- Eu acho que a boiada vai bem, seô Major. Não vão dar muito trab lho, porque estão bem gordos, e com preguiça de fazer desordem. Boi b vo, tem muitos, mas isso

o senhor pode deixar por conta da gente... duro, tem poucos... Agora, eu acho que tem alguns que a gente devia apartar. Olha, seô Major: aquele laranjo agarrotado

está só procuran beira de cerca. E o marruaz crioulo, esse ali cor de canela, do pêlo arrepi do, que assusta até com o batido de rabo dos outros... Pois eles dois

hão querer escapulir, e é um perigo os outros estourarem atrás. Aquele camu ça, de focinho preto até por dentro das ventas, está cego de um olho...

- Estará mesmo?

-Agaranto. Olha agora: todos estão gostando de bater nele, da ba cega. Não chega no arraial sem estar muito machucado... E, se a gente d cuidar, ele, atoinha, atoinha,

pega a querer pinchar para fora da estrada, lado do olho são... Aquela vaca moura, também... É maligna, está judian com os outros, à traição. O resto está em ordem.

- Caso com tua fala, Zé Grande. Sinoca, mais Tote: vão separar aq les quatro, e trazer outros, do curral pequeno, para repor no lugar. M Virgem! Não viram aquela

prenda? E ia como boi de corte? Vigia se é cap ou não...

E o Major Saulo indicava, mesmo na beira do estacado, um boi es preto-azulado, azulego; não: azul asa-de-gralha, água longe, lagoa fun céu destapado - uma tinta

compacta, despejada do chanfro ãs sobreunh e escorrendo, de volta, dos garrões ao topete - concolor, azulíssimo.

- É inteiro... Não, é roncolho. Mas bonito como um bicho de Deus

- É só de longe, seu Major. De perto, ele é de cor mais trivial...

- E que me importa? Não quero esse boi para ser Francolim, que sai de perto de mim... Há-há... Aparta, já também. E vamos, vamos c Deus, minha gente. Dá a saída,

Bastião. Ver com isso, compadre Manic

Pobre burrico Sete-de-Ouros, que não tem culpa de ser duro de bo nem de ter o centro-de-gravidade avançado para o trem anterior do corpo

- Toca, gente! Ligeiro! Faz parede!

Sebastião entrou no curral. Zé Grande, o guieiro, sopra no berrante. outros se põem em duas alas divergentes - fazem paredes, formando a ringa. Sinoca escancara

a porteira, que fica segurando. Leofredo, o con dor, reclama:

SA~p72ANA 211

f-Apertem mais, p"ra o gado sair fino, gente! Ajusta, Juca, tu não sabe azer o gado? Ei, um!...

É o primeiro jato de uma represa. Saltou uma vaca china, estabanada, olhando para os lados ainda indecisa. - Dois! - Pula um pé-duro mofino, como veado perseguido.

Passam todos. Três, quatro, cinco. Dez. Quinze. Vinte. Trinta.

- Hê boi! Hê boi! Hê boi-hê boi-hê boi!...

- Cinqüenta! Sessenta!

- Rebate esse bicho bezerro. P"ra um lado! Não presta, não pesa nada.

- Oitenta! Cem!

- Cerca o mestiço da Uberaba. Topa, Tote!... Eh bicho bronco... Chifre torto, orelhudo, desinquieto e de tundá!... - exclamam os vaqueiros, aplaudindo um auroqúe

de anatomia e macicez esplêndidas, que avançou querendo agredir.

- Estampa de boi brioso. Quando corre, bate caixa, quando anda, amassa o chão!

Agora é o jorro, unido, de bois enlameados, com as ancas emplastadas de sujeira verde, comprimidos, empinados, propelindo-se, levando-se de cambulhada, num atropelo

estrugente. Os flanqueadores recuam, alargando o beco.

- Eh, boi!... Eh, boi!...

- Quatrocentos e cinqüenta... e sessenta. Pronto, seu Major.

Corta de lado o Major Saulo, envolto na capa larga, comandando:

- Dianta, Leofredo! Da banda de lá, Badu!

Vão, à frente, Zé Grande, tocando o berrante, e Sebastião, que solta a toda a garganta o primeiro aboio, como um bárbaro refrão:

- Eêêê, bo-oi!...

Escalonados, do flanco direito, Leofredo, Tote, Sinoca e Benevides. Da banda esquerda, Badu, Juca Bananeira, Silvino e Raymundão.

- Boiada boa!... - proclama o Major, zarpando.

- Burrico miserável!... - desabafa João Manico, cravando as esporas nos vazios de Sete-de-Ouros, que abana a cabeça, amolece as orelhas, e arranca, nada macio, no

seu viageiro assendeirado, de ângulo escasso, pouca bulha e queda pronta.

Caniço de magro, com um boné de jóquei no crânio, lá vai Francolim, logo atrás do Major.

- Eh, boi!... Eh, boi...

E ao trompear intercadente do berrante, já ecoam as canções:

"O Curvelo vale um conto, Cordisburgo um conto e cem. Mas as Lages não têm preço, Porque lá mora o meu bem..."

212 JOÃO GUIMARÃES ROSA ~ FICÇÃO COMPL

Nenhum perigo, por ora, com os dois lados da estrada tapados pe cercas. Mas o gado gordo, na marcha contraída, se desordena em turbul cias. Ainda não abaixaram as

cabeças, e o trote é duro, sob vez de aguilh das e gritos.

- Mais depressa, é para esmoer?! - ralha o Major. - Boiada boa!.

Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cubetos, lobun lompardos, caldeiros, cambraias, chamurros, churriados, corombos, c netos, bocalvos, borralhos, chumbados,

chitados, vareiros, silveiros... E tocos da testa do mocho macheado, e as armas antigas do boi cornalão.

- P"ra trás, boi-vaca!

- Repele Juca... Viu a brabeza dos olhos? Vai com sangue no cango

- Só ruindade e mais ruindade, de em-desde o redemunho da testa na volta da pá! Este eu não vou perder de olho, que ele é boi espirrado

Apuram o passo, por entre campinas ricas, onde pastam ou rumin outros mil e mais bois. Mas os vaqueiros não esmorecem nos eias e c gas, porque a boiada ainda tem

passagens inquietantes: alarga-se e reco prime-se, sem motivo, e mesmo dentro da multidão movediça há gr estranhos, que não os deslocamentos normais do gado em marcha

quando sempre alguns disputam a colocação na vanguarda, outros pro ram o centro, e muitos se deixam levar, empurrados, sobrenadando qu com os mais fracos rolando

para os lados e os mais pesados tardando p trás, no coice da procissão.

- Eh, boi lá!... Eh-ê-ê-eh, boi!... Tou! Tou! Tou...

As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, bate com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de c ros, estralos de guampas, estrondos

e baques, e o berro queixoso do g Junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos cam querência dos pastos de lá do sertão...

Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai volta, vai varando...

$AGARANA 213

Pouco a pouco, porém, os rostos se desempanam e os homens tomam

gesto de repouso nas selas, satisfeitos. Que de trinta, trezentos ou três mil,

só está quase pronta a boiada quando as alimárias se aglutinam em bicho

inteiro - centopeia -, mesmo prestes assim para surpresas más. -Tchou!... Tchou!... Eh, boooi!...

E, agora, pronta de todo está ela ficando, cá que cada vaqueiro pega o

balanço de busto, sem-querer e imitativo, e que os cavalos gingam bovina

mente. Devagar, mal percebido, vão sugados todos pelo rebanho trovejan

te-pata a pata, casco a casco, soca soca, fasta vento, rola e trota, cabisbai

xos, mexe lama, pela estrada, chifres no ar...

A boiada vai, como um navio. - Põe p"ra lá, marroeiro! - Investiu?

- Quase...

- Coisa que ele é acabanado e de cupim, que nem zebu...

- Fosse meu, não ia para o corte. Bonito mesmo, desempenado. Até

me lembro do Calundu...

- Qual esse, Raymundão?

- O Calundu? Pois era um zebu daquela idade. O maior que eu já vi. - Guzerá?

- Ach"que.

- Baio, como o Paulatão?

- Cor de céu que vem chuva. Berrava rouco, de fazer respeito... - Todo zebu se impõe.

- Aquele mais. Que marruaz! - Por quê?

- Parecia manso e custava para se enchouriçar. Mas, um dia, brigou

com o reprodutor dos Oliveiras, zebu também, dos pintados. Ferraram lu

ta sem parar, por bem duas horas, e o Calundu derrubou o outro, quase

morto, no desbarrancado.

- E para se lidar?

- Não era qualquer vaqueiro chegado de fora, não. Tinha mania: não

batia em gente a pé, mas gostava de correr atrás de cavaleiro. De longe, ele

já sabia que vinha algum, porque encostava um ouvido no chão, para escu

tar. Olha, que vamos entrar no cerradão. Tento aí, p"ra eles não se espalha

rem para os lados!

_ Abre a guia! Afrouxa o coice! - grita Juca Bananeira, transmitindo

° comando de Sebastião.

Os costaneiros se afastam, e abóiam prolongado: - E-ê-ê-ê-ê, boi...

Enquanto os da frente incitam o marche-marche dos quadrúpedes:

Eh, boi-vaca! Tchou! Tchou! Tchou!... Ei! Ei!...

E ° rebanho se estira e alonga, reduzindo as fileiras, como soldados a

"Um boi preto, um boi pintado, cada um tem sua cor. Cada coração um jeito de mostrar o seu amor."

"Todo passarinh" do mato tem seu pio diferente. Cantiga de amor doído não carece ter rompante..."

214 JOAO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COMPL

passarem, em movimento, de uma formação de grande fundo para col de pelotão.

- Mundo velho, ventania! - brada Juca Bananeira, sustando o cav para apreciar a desfilada dos bois taroleiros, correndo de aspas altas: o bito fluido das patas,

o turbilhão de ângulos, o balouço dos perfis em q na, e o jogo veloz dos omoplatas oblíquos.

-Arreda, bruto, mamolengo!

Um veio de lá, jogado de empuxe, e baqueou meio ajoelhado, jus justo esbarrando no cavalo de Raymundão.

Tropeiam, agora, socornando e arfando, mas os alcantis encapela eriçados de pontas, guardam uma fidelidade de ritmos, escorrendo estr avante. E o chapadão atroa,

à percussão debulhada dos mil oitocento quarenta cascos de unha dupla.

Sopra sempre o guia no seu corno, porém, e os outros insistem no ca to arrastado, tão plangente, que os bois vão cadenciando por ele o trop

- A chuva está aí está caindo, Raymundão. Mas, vigia aquele garro preto, que vai ali, babando em cima da casa dos outros. O Calundu importante assim?

- Vou contar. Espera, vamos fazer uma mamparra: vamos encostar cavalos, e trancar o gado, para ele só dar trabalho da banda do povo de 1 a gente poder conversar

com sossego... Assim. Oh, diabo, você é mestr eu querendo ensinar você a fazer trecho...

-Que história foi? O Calundu matou alguém?

- Depois. O que eu vou contar foi no Retiro... Eu tinha ido lá, bus uma vaca fronteira, da filha de seu Major. A vaquinha tinha parido na rada da lagoa, e jacaré

comeu a cria. Por isso ela estava emperreada, virado bicho-do-mato, correndo atrás de qualquer barulhinho, arre tendo à toa. Me deu tanto trabalho, que eu tive de

dormir lá, no rancho perto dos coqueiros... De noite, saiu uma lua rodoleiro, que alumiava passeio de pulga no chão. Minha cachorra paqueira, que não gostava parar

sem o que fazer, ficou vagabundeando por si, e pegou a acuar. Al tatu rabo-mole, por aí... - eu pensei. Fui ver... Oi, segura, siô!

Um boizão fumaça bufou na orelha do poldro de Badu, que refugou arranco para trás, para a esquerda e para baixo, entortando o pescoço, pidíssimo. Badu balanceou,

bateu mão na giba da jereba, e esteve pende meio segundo, fazendo força para não ir sela abaixo, sob os cascos em parada dos bois. Mas foi ao outro lado, em pulo

seguro, e voltou ao as to, volteando com a ligeireza de um atamã do Ural.

- Foi nada. Conta a história, Raymundão.

- Pois então, quando fui espiar o que a minha cachorra Zeferina e va estranhando...

- Oh, guês! Isso é nome de cachorro?

- Foi por vingança que eu pus, quando minha mulher Zeferina me

SncAR^s`~ ~~5

gou... Mas, a"pois, não imagina o que eu vi! Dei mesmo numa baixada de pasto, e afundei quase no meio das vacas. Já disse que estava lindeza de claridade de noite...

E de repente eu vi que o gado estava cheio de idéia, começando um manejo esquisito. Mandei a cachorrinha calar a boca, e então pude apreciar direito: as vacas, desinquietas,

estavam se ajuntando, se amontoando num bolo, empurrando os bezerros para o meio, apertando, todas encalcarido, de modo que aquilo tudo, espremido, parecia uma rodeira

grande, rodando e ficando cada vez mais pequena, sem parar de rodar...

- E daí?

- Espera, olha a chuva descendo o morro. Eh, água do céu para cheirar gostoso, cheiro de novidade!... É da fina... Mas, então, o Calundu, que era o garrote delas,

ainda parecia ser mais graúdo do que era mesmo, rodeando as vacas, meio dando as costas para a manada, assim de cabeça em pé! E aí eu ouvi um miado longe, e me alembrei

daquela onça preta que estava salteando estrago no gado de seu Quilitano, nas Lages, e no Saco-da-Grota. Onção de todo o tamanho...

- Ei, gente, olha o pé-d"água!

Chegava a chuva, branquejante, farfalhando rumorosa, vinda de trás e não de cima, de carreira. Alcançou a boiada, enrolando-a toda em bruma e continuando corrida

além. Os vultos dos bois pareciam crescer no nevoeiro, virando sombras esguias, de reptis desdebuxados, informes, com o esguicho das bátegas espirrando dos costados.

O pisoteio teve um tom mole, de corrida no bagaço. E houve mugidos. Mas, roufenho, o berrante trombeteou de novo, mais forte, na frente.

- Canta, gente!

E, aí, soltaram a chuva de verdade: chuva pesada, despejada, um vasto vapor opaco. Era como se a gente passasse por debaixo de cachoeira. E desenxergaram-se, de

todo, os bois. Mas os vaqueiros cantavam juntos:

"Chove, chuva, choverá, Santa Clara a clarear Santa Justa há-de justar Santo Antônio manda o sol P"ra enxugar o meu lençol..."

- Oh, diabo, custou que melhorou. A gente nem estava podendo tomar fôlego, embaixo desse dilúvio...

_ Mas, e depois, a onça, Raymundão?

_ A onça, o povo dizia que ela tinha vindo de longe. Onça-tigre mocha, das do mato-grosso... Onça é bicho doido para caminhar, e que anda só de noite, campeando

o que sangrar... Pois, naquela ocasião, eu estava crente que ela estava a muitas léguas de lá onde é que eu estava... Pensei que andasse pelo Maquiné...

- Mas, e o zebu?

- Bom, quando eu ouvi o miado, fui para perto de um angico n por causa que eu estava sem arma de fogo, e onça não trepa em pau fino se diz - que ela não tem poder

de abarcar com as munhecas... Aquilo; pedia a Deus para mandar ela não vir do meu lado... Fiquei alegre, qu do escutei melhor o miado da bicha-fera, lá por trás

do tabocal... E o lundu cavacava o chão e bufava, com uma raiva tão medonha, que aí fi mais animado, por ele estar me protegendo, e até tive pena da pobr oncinha!...

- E depois? A tigre chegou no marruaz?

- Perde essa moda. Zebu é zebu mesmo, e marruaz é garrote, dos tros... Mas, aí, eu vi a canguçu, vi o vulto dela, porque era lua cheia, n clara, já falei.

- Urrando assanhada, Raymundão? Eu já vi uma suçuarana romp te, uma vez...

- Não é capaz. Onde foi que já se viu onça tocaiar criação desse je Aquilo ela vem é feito gato quando quer pegar passarinho: deitada, es regando devagarinho, com

a barriga no chão, numa maciota, só co rabo bulindo... Os olhos é que alumiam verde, que nem vaga-lume gudo...

- Mas, pulou no cangote do zebu?

- Que ote! Que u!... Você acredita que ela não teve coragem?! Naq hora, nem o capeta não era gente de chegar no guzerá velho-de-gue Nem toureiro afamado, nem vaqueiro

bom, Mulatinho Campista, Vir" mais Salathiel, coisa nenhuma... E, quem chegasse, era só mesmo por vontade de morrer suicidado sem querer...

- Ixe!

Mas o Calundu cada vez ia ficando mais enjerizado e mais maludo; safando para ficar doido, chamando a onça para o largo e xingando t nome feio que tem. Aquilo, eu

fui bobeando de espiar tanto para ele, c que nunca eu não tinha visto o zebu tão grandalhão assim! A corcun até lá embaixo, no lombo, e, na volta, passava do lugar

seu dela e vinha chapéu na testa do bichão. Cruz! E até a lua começou a alumiar o Cal mais do que as outras coisas, por respeito...

- Eu estou quase não acreditando mais, Raymundão...

- Bom, pode ter sido também uma visão minha, não duvido na Mas, então foi que eu fiquei sabendo que tem também anjo-da-guar onça!... Você sabe que, quando a tigre

arma o bote, é porque ela já o tudo o que tinha de olhar, e já pensou tudo o que tinha de pensar, nunca que ela deixa de dar o pulo, não é? Pois, nesse dia, a canguç

certo que imaginou mais um tiquinho, porque ela desmanchou o dela, dando de rastro para trás um pedaço bom. Depois, correu para longe,.. um miado, e foi-s"embora.

Onça esperta!...

$A~A~NA 21]

- Oi, que é?

- Estamos chegando no córrego. Vamos lá...

- Vigia só como a cheia está alta. A água quase dando na metade do ingazeiro!... Qu"é do barranco? Sumiu, está vendo?

- Virgem! E agaranto que em até de noite ainda sobe mais... A lua não é boa... Ano acabando em seis...

- A enchente está vindo de desde as cabeceiras: senão não descia tanta folha de buriti...

- Pois diz-se que tem quatro dias que lá nas nascentes não pára de chover.

Chega Francolim, de galope, com um recado do Major para Sebastião: - É para esperar um pouco, e não apertarem o gado na travessia...

- Está feio. Mas isto aqui não se compara com a passagem das boiadas no Jequitinhonha...

- Conheço. Atravessei aquele, com seiscentas cabeças de gado da Bahia... O mais difícil não é pela largura, mas porque é rio bravo, de correnteza... A gente tinha

de tocar adiante um lote de bois mansos, mais acostumados, que não tivessem medo. Alguns até alugavam uns, ensinados, de um sitiante da beira do rio... E a gente

cruzava no batelão, vigiando a boiada nadar...

Chega o Major, chamando por Sebastião...

- Estou vendo que o vau agora está pior do que o resto. Melhor era destorcer mais para baixo, onde deve de estar dando mais pé...

- Pé já não dá mesmo, em lugar nenhum, seô Major. E está desbarrancado, lá na outra beirada, e não tem saidor... Melhor por aqui mesmo, patrão.

- Bem, mas vamos com paciência! Aqui já tem morrido muita gente...

Estacionados na rampa, esperavam que o gado tomasse coragem. A chuvinha agora era um chuvisco rarefeito; mas três regos de enxurrada desciam também, borbotando e

roncando, com brutalidades fluviais. E a enchente crescia. O caudal, barrento, oscilava aos golpes, como uma coisa viva, parecendo às vezes que baixava, para subir

mais. Um pau do mato - ramada, tronco e raízes - derivava tal e qual uma piroga embandeirada em amarelo; esbarrou na copa do tingui, que se submergia fixa e hemisférica;

depois, virou de bordo, retomou rumo, e foi águas abaixo.

Tremendo este córrego da Fome! Em tempo de paz, não passa de um chuí chocho ~ um fio. Mas, dezembro vindo, com o dar das longas chuvas, torna-se mais perigoso que

um rio grande, que sempre guarda seus remansos, praias rasas e segmentos de retardada correnteza.

Entupindo o declive do morro, a boiada permanecia parada. Muitos mugiam.

_ Cou! Cou! Tou! Tou!...

Os primeiros se chegam para a beirada. Zé Grande entra n"água, no Ca-

21ó

ta-Brasa, que pega a nadar. E, já no meio da torrente, o guieiro ainda. volta, tocando o berrante. Um Junqueira longicórnio estica o pescoço fi arrebita o focinho,

e pula, de rabo desfraldado. Então, há que os cocuru estremecem, para a frente e depois para trás. Despencou-se mais um cac de reses. Chapinham com estrupido, os

mocotós golpeando como p vantes. Perderam pé: os corpos desaparecem, ficam de fora somente as çamas, as ventas polposas, palpando ar, e os pares de chifres, como

ten culos de caramujos aquáticos. E aí toda a manada se precipita, com m pressa, transpondo a enchente brava do riacho da Fome.

O Major Saulo, que foi o derradeiro - depois de Sete-de-Duros c João Manico, e mesmo atrás de Francolim - logo os alcança, contu pouco para lá da passagem.

- Viva, meu povo, não se perdeu nenhum!... Francolim, vai dizer a bastião que toquem pelo caminho de baixo, no fim da vargem... E compadre Manico;"que tal com o

meu burrinho sem velhice? Escuta, pico, nesse passo, nesta marcha, escrevo que ele agüenta viagem de mais: um dia.

- É mesmo, seô Major meu compadre. Esperto ele é, pois faz q agüenta, só para poder contrariar a gente.

E certo: Sete-de-Duros dava para trás, incomovível, desaceitando ar mentos e lambadas de pirai. Que, também, burro que se preza não co desembestado, como um qualquer

cavalo, a não ser na vez de justa pres a serviço do rei ou em caso de sete razões. E já bastante era a firmeza c que se escorava nas munhecas, sem bambeio nem falseio

- ploque-pl desferrado - ganhando sempre a melhor trilha.

- Mas, meu compadre, vocês vão indo tão bem, tão sem confusão..

- Sim senhor, seô Major. Eu sei que o senhor está se rindo é por sa sua, não é por debochar de mim... Mas, assim, para não ajudar em n desta vida, eu não carecia

de ter vindo. Estou como ovo depois de dúzi E o burrinho, também, se ele tivesse morrido transanteontem, não es fazendo falta a ninguém!

Mudo e mouco vai Sete-de-Duros, no seu passo curto de introve pondo, com precisão milimétrica, no rasto das patas da frente as mim patas de trás.

- Escuta uma pergunta séria, meu compadre João Manico: você a que burro é burro?

- Seô Major meu compadre, isso até é que eu não acho, não. Sei eles são ladinos demais...

Bem que Sete-de-Duros se inventa, sempre no seu. Não a praça larga claro, nem o cavouco do sono: só um remanso, pouso de pausa, co pestanas meando os olhos, o mundo

de fora feito um sossego, coadd quase-sombra, e, de dentro, funda certeza viva, subida de raiz; com as lhas - espelhos da alma - tremulando, tais ponteiros de quadrante,

$AGA1~N~ 219

episódios para a estrada, pela ponte nebulosa por onde os burrinhos sabem ir, qual a qual, sem conversa, sem perguntas, cada um no seu lugar, devagar, por todos

os séculos e seculórios, mansamente amém.

- Não podemos tocar tão ligeiro como a coragem, Manico, o burrinho não pode com isto.

O rebanho se espraiou, lento, na várzea sobreaguada, só uma ou outra rês correndo, por entre as moitas de sarãs, no galope bovino desconjuntado e ondulado, arrancando

avante com as patas muito abertas, jogando os quartos para cima.

- Oô-ah!... Beleza de gado!... Quase...

- Formosura, seô Major!

- ... quase que cada com o cabelo fino e os meneios todos - cimeiros, alcatra coberta e cordão. Mas, desencosta essa tristeza, João Manico meu compadre, que eu acho

que estou guardando, ao daqui a pouco, um espanto bom para você. Só que esse Francolim deu para ir e não voltar... Sei porquê, que senão nem tinha mandado aquele

recado. Ele foi por uma banda e vai voltar pela outra, e vem me contar paçoca de novidades, tudo Oque os vaqueiros estão conversando e fazendo, ou deixando de fazer.

- Olho e ouvido, andando por longe, é bom para dono e patrão...

-Mas nem sempre traz sossego, e muita vez é pior. Beleza nos bois ele não vê, mas já estou ouvindo o que o Francolim vem falar: que os meus homens estão mamparreando,

indo de prosa... Há-há há... Sei disso, Manico, mas é coisa que mal não dá, porque, se eles têm seu divertimento, ficam mais marinheiros, na hora de fazer força...

Mas o rapaz só serve para isso: para vigiar o pessoal. É gosto...

- Seu Francolim é de culatra, seô Major. Então, hoje, com aquele barrete doido na cabeça, feito fantasma...

- Há-há, Manico velho! Escuta: "para bezerro mal desmamado, cauda de vaca é maminha"... Esta vida é engraçada... Galinha, tem de muita cor, mas todo ovo é branco.

Você sabe escrever e ler, meu compadre João Manico?

- Assim mais assim, com os erros todos e muita demora, até há uns dois anos atrás eu ainda era homem para pôr algum bilhete no papel...

- Pois eu não. Nunca estive em escola, sentado não aprendi nada desta vida. Você sabe que eu não sei. Mas, cada ano que passa, eu vou ganhando mais dinheiro, comprando

mais terras, pondo mais bois nas invernadas. Nào sei fazer conta de tabuada, tenho até enjôo disso... Nunca assentei o que eu ganho ou o que eu gasto. O dinheiro

passa como água no córrego, mas deixa poços cheios, nas beiras. Gosto de caminhar no escuro, João Manico, meu irmão!

- Em Deus estando ajudando, é bom, meu compadre seô"Major.

Também não tomo a reza dos outros, não desfaço na valia deles...

De nenhum jeito, e eu posso ir junto!... Todo o mundo, aqui, trabalha Sem arrocho... Só no falar de obedecer é que todos têm medo do senhor...

22O JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COMPL

- Capaz que seja, Manicão? Será?

- Isso. Uns acham que é porque o seô Major espera boi bravo, a sem ter vara, só de chicote na mão e soprando no focinho do que vem...

- Mas eu gosto dos bois, Manico, ponho amor neles...

- A"pois. Eu sei, de mim que será por causa de nunca se ter certeza que é que o meu compadre está pensando ou vai falar, que sai sempr diverso do que a gente esperou...

Só vejo que esse povo vaqueiro todo t mais medo de um pito do senhor do que da chifrada de um garrote, co parando sem quebrar seu respeito, meu compadre seô Major.

- Escuta, Manico: é bom a gente ver tudo de longe. Assim como dois aqui vamos indo... Pelo rastro, no chão, a gente sabe de muita co que com a boiada vai acontecendo.

Você também é bom rastreador, eu Olha, o que eu entendo das pessoas, foi com o traquejo dos bois que aprendi...

- Estou pensando, seô Major.

- Mas, nem sempre, Manico, não vá o meu compadre imaginar... hô... Aqui, por falar na hora, chegou o prazo de se espiar, tirando a tam da panela. Estamos mas estamos

para sair da vargem, no dar entrada caminho estreito, que foi onde a vaquinha apatacada no ano passado para ruim... Atrasou tudo, por bem meia hora, não deixando

nenh avançar e jogando três bois no barranco, chifrados à traição...

- Lugar zangado, esse um.

- Galopa comigo, Manico, vamos lá, que eu quero ver!... Mais lige compadre, mais no mais!... Promete uma coisa pra esse burrinho, p"ra" correr!... Assim!...

- Afrouxou.

- Ara! ora, uê, que é aquilo? Vaqueiro a cavalo e correndo com m de boi?!... Hó-hó... Anda, Manico... Espera. O resto da boiada vaiem p cheio... Ei, o Badu vai topar!

E - o que ia sendo e ia-se vendo - era que: quando Badu ouviu al zarra e voltou o rosto, foi para ver Silvino vir, galope afoito, e se desvi a poucos passos, deixando-o

com o boi, que vinha atrás. O poldro pa se espavoriu para fora de cena. Badu apanhou a vara.

O touro estacou. Era zebuno e enorme. O vaqueiro, a pé, não lhe in rava o menor respeito.

Cresceu, sacudindo cabeça, cocuruto e cachaço, como um sistem torres superpostas. Encurtou-se, encolhendo os quartos dianteiros e in nando a testa. E veio.

E nem tempo de mudar dois passos, obrigando-o a alterar, em pl avanço, a mira do arremesso: Badu mal pôde quadrar-se, em guarda vara sustida como uma enxada, mão

esquerda a dois palmos da aguilh a direita bem lá atrás.

- Põe p"ra lá, vaca velha!

SAGARANA 22r

Agora! O ferrão toca o chanfro e resvala para a bochecha. Por centímetros! Badu nega o corpo, descaindo de banda. Evita chifre e choque, mas mesmo o raspão já era

um trompaço: mal-governou-se e quase cai, enquanto o touro afunda adiante, sopraz, num rufar de tambor.

- É hora!

E Badu faz vira-cara, que o touro voltava, cru, em ofensiva sagital.

Hora de não olhar o imenso vulto montanhoso, máquina de trem-deferro - terra tremendo e ar tremendo - para não ver a cabeça, vertiginosa, que aumenta de volume,

com um esboço giratório e mil, maldades na carranca. Olhar para a ponta da vara, apenas...

- Põe p"ra lá, marroeiro!

Preciso. O aguilhão feriu o focinho, a vara jogou como um braço de biela, e já Badu empurrou o perfil do boi, tirando o corpo para a esquerda, num pulo de pés juntos.

- Passa, corisco! Aratanha!

Passou, com ventania e estrondo.

- Topada certa! Boa vara e bom vaqueiro meu!...

Já o touro, tendo ido a poucos passos, mugiu curto e voltava, com sua fúria no mais, mais. Tomara a dor e entrava em Badu outra vez.

- Ru, boi! - Quebrando o ímpeto da acometida, o ferro se espetou abaixo do entreolhos, na rampa da cara. Arqueado, o marruá cresceu, subiu na vara, patas no ar,

no raro e horrendo empinado vacum, rosnando e roncando. O pau vergou, elástico - um segundo - mas Badu recargou, teso, e foi e veio com a vara, em mão de vaqueiro

com dez anos de lida nos currais do sertão.

- Assim, cabrito! Não é só com força, é com jeito, que a gente topa boi!

E o zebu-açu, leso o equilíbrio, trambolhou de todo, que nem mancornado, e desmoronou-se, com todas as suas cúpulas.

- Ei, rei! Vai-te ajuntar com os outros!

Some-se a boiada, ao longe.

O Major Saulo e João Manico acendem os cigarros, Sete-de-Ouros ainda arfa cansaço, mais vivo o bater cadenciado das ilhargas.

- Seu Major! Com o que eu vou lhe contar que se deu, o senhor vai precisar de tomar uma autoridade de providência, urgência... - clama, de chegada, Francolim, que

ainda foi com o grupo de vaqueiros, meio caminho e voltou.

- Toma fôlego, Francolim!

- Sério é, seu Major...

- Espera por mim, Francolim. Primeiro eu preciso de você, e desse cavalo seu. Apeia e troca de montada com o João Manico. Isso mesmo, assim. Bobagem, Manico, me

agradece amanhã! Vai para lá, pela mão direita° e manda o Raymundão aqui... E você, Francolim, não é para ficar Segurando o burrinho pela arreata, com pouco caso.

É para montar e me

222

acompanhar. E não espora o meu Sete-de-Ouros, que ele é animal de mação!

- Só mesmo pelo respeito meu do senhor, seu Major.

- Você é meu camarada de confiança, Francolim. Tem mais respo bilidade de ajudar, também...

- Isto, sim, dou meu pescoço! Em serviço do senhor, carrego pe seu Major. Só peço é ordem para o João Manico me dar de novo meu c linho, na entrada do arraial, para

não ficar feio eu, como ajudante do nhor, o povo me ver amontado neste burro esmoralizado... sem qu com isso ofender, por ser criação de que o senhor gosta...

- Garantido, Francolim. Mas, você perdeu a pressa de contar...

- Sem brincadeira, seu.Major... O que houve, eu vi, tudo...

- Todo o mundo viu, Francolim.

- Vi desde o começo, seu Major: o Badu teve de apertar a cilha animal... saiu para um lado, desapeiou, e estava dando as costas pa boiada...

- Ruim, Francolim. Vaqueiro de verdade não faz isso.

- Mas, primeiro, ele quis ficar de frente, só que o poldro é desinqu e andou de roda...

- Está certo, Francolim. O poldro ainda não gosta de ver os bois, ria espiar para o lado do campo, achou melhor...

- Pois foi assim que o Badu aproveitou para ajustar a cilha, e esta prestando atenção no jeito de se destorcer de algum coice... E então foi o Silvino atiçou raiva

no marruaz... Escolheu o mais graúdo de tod Sacudiu lenço vermelho... Em tempo de deixar a boiada atrapalhar, qu vi, só que o Raymundão tomou conta! E aí ele galopou

p"r"avante no B trazendo o marruaz bufando no rabo do cavalo, por querer alguém, Major... Foi de maldade, foi crime, pela metade ao menos, seu Majo propósito...

Pois Silvino, quando chegou no companheiro, esquinou a Tope para uma banda, de repente, e deixou o marruaz investir...

- O resto eu vi, Francolim. Mas os dois não brigaram, e tudo ac bem, como eu gosto que acabe.

- Desculpe, seu Major, mas ainda não acabou, não... Eu acho que da está até começando. O senhor não leve a mal eu dizer, mas a gente de determinar alguma energia

nesses dois, porque, se não, o Silvin matar o Badu, hoje!

- E se o Badu matar Silvino, Francolim?

- Olha o Raymundão aqui... O senhor pergunte.

- Vai ficando aí por trás, devagar, que o burrico já penou muito e

cisa de ir só a passo... Vamos aqui, Raymundão, emparelha o cavalo c

meu, para me fazer companhia um trecho... Que é que você acho

topadas do Badu?

- O companheiro esteve firme, seô Major.

SA~p12ANA 22j

- O marruaz é mau, aquele... Eu acho que ele é um da derradeira ponta de gado que veio do Pompéu. Boi bruto. Será que ele viu Silvino assoar nariz com lenço vermelho?

-Não é capaz, seô Major. Nenhum de nós não anda com pano dessa cor...

-Regra boa, Raymundão... Vermelho é cor de dor de cabeça... Vamos tocar mais ligeiro, quero ir vendo os bois... Mas o Silvino foi escaramuçado, a cavalo. Como foi?

- Não vi direito, seô Major. Só pude ver o Badu topando. Marruaz desse, que vem riscando o chão com a cara, eu gosto de topar no pescoço... Cada um tem uma maneira...

-E é mesmo. Você ainda se lembra da primeira topada sua, Raymundão?

-Ah, seô Major, foi um boi retaco, que caminhava na gente por gosto e investia de olho aberto e cabeça alteada, feito vaca... O senhor sabe, esse é o pior que tem,

para se escorar... Meu pai, que era vaqueiro mestre, achou que era o dia de experimentar minha força... Dei certo, na regra, graças a Deus...

-Você pensou alguma coisa na hora, Raymundão? Que foi que você sentiu?

- Só, na horinha em que o bicho partiu em mim, eu achei que ele era grande demais, e pensei que, de em-antes, eu nunca tinha visto um boi grande assim, no meio dos

outros... Mas isso foi assim num átimo, porque depois as mãos e o corpo da gente mexem por si, e eu acho que até a vara se governa... Quando dei fé, a festa tinha

acabado, e meu pai estava me dando um cigarro, que ele mesmo tinha enrolado para mim, o primeiro que eu pitei na vista dele... E foi falando: - "Meu filho, tu nasceu

para vaqueiro, agora eu sei"...

- Velho inteiro! E a bambeza, depois?

-Não tive, seô Major. Só fome muita, isso sim. O pior foi que eu piscava, e afundei a cabeça n"água fria, mas sem valer, porque fiquei o dia com aquele boi dentro

das minhas vistas, que nem um retrato, que doía até... Era um caraúno caralarga, espácio, com sete anos de idade, com os cinco anéis no pé do chifre...

- Começo bom, Raymundão. Escuta: eu dou valor aos meus vaqueirOS e o que eles contam de si eu aprecio. Pessoal meu é gente escolhida...

- Bondade sua, seô Major.

Converso na lei, Raymurídão. Nunca me dão trabalho... Só de vez em quando é que um quer me saudar com a mão canhota... Agora, tem essa história de Silvino com o

Badu... Você vê algum perigo dessa briga

arruinar?

bem de se ehoar.e. O Badu veio para a Fazenda_faz só disrmeseste tomou

224 JOÃO GUIMARÃES ROSA / PICÇÀO COMP

a namorada do Silvino... Silvino, em vez de fazer cara para o outro la dar ao desprezo, começou a pirraçar... Eu cá não quero dar sentença, que todos os dois têm

razão e nenhum não tem, também.

- E a moça, é bonita?

- Serve. Só que é meio caolha, seô Major. Mas, agora por último, mo o casamento já está marcado, o Badu só pensa nisso, e não quer s de briga nenhuma.

- Mas, e Silvino?

- Também já sossegou, seô Major. A ver, porque ele contou que pensando em voltar para o Curimataí, terra dele, e se casar também, outra noiva que tem lá... Ainda

ontem, ele vendeu as quatro vacas tinha...

- Vendeu? Agora que sobrou campo do melhor, e que sei que estava para dar cria?

- Essa foi a quatrocentos... As outras, a trezentos e cinqüenta e zentos...

- Do de baixo! Por esse preço, a obrigação dele era de vender mim, que dou pasto de graça, e só cobro à meia quando passam de cabeças... Mesmo que ele levasse aquele

gadinho para a terra dele, outro negócio...

-Avoamento, seô Major, sem ser por mal. Ele tinha pressa, dece se acanhou de falar com o senhor a respeito.

- Deve de ter sido isso, Raymundão. Mas, mal-feito é mal-feito!... que foi mais que ele disse?

- Só isso, que falou, seô Major. Mesmo ele hoje estava muito q gostando de saber das coisas que eu estive contando ao Badu também"

- É bom a gente dar uma prosa pequena, enquanto se toca boiada que foi que você esteve contando, Raymundão?

- Conversa boba, seô Major... Era a respeito do Calundu...

- Zebu terrível. Matou o filho do Borges.

- Foi, sim, seô Major. O pobre do seu Vadico... Menino bom, aq

- Você gostava dele, você trabalhou lá?

- Mas muito, seô Major... Coração de anjo... Gostava de todo Odo... Não deixava ninguém judiar com criação nenhuma... Ele quer boiadeiro, queria, por toda-a-lei.

Um dia, em que fizeram ele ficar ab tido, veio logo me procurar: - "Não vou para o colégio! Antes aqui, mundão, nem que seja pisado pelas vacas, mas eu quero é ficar

aqui vocês todos!" - Ah, nunca imaginei que ainda ia ver o menino m daquele jeito...

- Foi no campo, não foi?

- Pois foi na Laje do Tabuleiro, onde tem os cochos... A gente d sal com quina, por causa que, por perto, lá, estava começando a ap peste. O gado fêmea todo reunido:

as novilhas solteiras, as vacas am

SAGARANA 225

do, as outras com as crias taludas, ou bezerrada miúda, de dias só. Seu Neco Borges tinha vindo com a família, para apreciar. Seu Vadico gostava demais do Calundu,

e o zebu também gostava dele, deixava o menino coçar o pêlo e bater palmada no focinho... Doideira, eu sempre achei. Zebu é bicho mau, que a gente nunca sabe o que

é que eles vão cismar de fazer...

- É mau, por causa que eles são tristes... Repara, só, no berro que eles têm...

- Sim senhor, deve de ser, seô Major. O Calundu, não sei se o senhor sabe, não batia em gente a pé... Ao depois, ele estava no meio da vacaria mansa... Seu Vadico

foi fazer festa nele, dando sal para ele lamber na mão. A gente estava ali, com as varas... O boi alisava o menino com o focinho, e até parecia gente, carinhoso...

Quem é que havia de somar? O senhor sabe que boi não entra na gente assim à toa, sem avisar: mesmo quando eles já estão fazendo gatimanha, sapateando, abrindo terra

e soprando em riba, a gente precisa é de não apartar os olhos dos olhos deles...

- Toda a vida. Na hora de um boi partir na gente, os olhos mudam de jeito e ficam maiores, parecendo que não vão caber mais nos buracos das vistas...

- Pois eu juro, seô Major, que aquilo foi de supetão... Eu vi o Calundu abaixar a cabeça... Parecia que ele ia querer mais sal... E, aí, de testada e de queixo,

ele deu com o menino no chão, do jeito mesmo de que um cachorro derruba uma lata. Seu Vadico caiu de bruço, com a cabecinha para dentro das patas do touro... E ele

nem pôs o pé em cima: deu uma passada para trás, e foi uma chifrada só... Depois, o Calundu sungou a cabeça, e o sangue subiu atrás, num repuxo desta altura:...!...

- Muito triste, Raymundão.

- Nós corremos, todos, mas não foi preciso tirar o zebu, porque ele deu as costas, e foi andando para longe, vagaroso, que nem que não quisesse ver o crime que tinha

feito... Aquilo era sangue por todo lado, e o pessoal gritando... Seu Neco Borges virou um demônio, puxou o revólver... Mas seu Vadico, antes de morrer, falou determinado,

que nem pessoa grande: - "Não mata o Calundu, pai, pelo amor de Deus! Não quero que ninguém judie com o Calundu!..."

- Um-hum!

- Seu Borges mandou levar para o seu Lourenço, na Vista-Alegre, para ser vendido ou dado de graça... Aí eu disse que levava, porque só eu era quem sabia fazer a

simpatia do cambará. O senhor conhece? Pois eu juntei o bicho com um terno de vacas mansas, montei no meu quartão castanho, e Joguei um raminho de cambará para trás:

aquilo, o zebu me acompanhou, que nem um bezerrinho correndo para o úbere da mãe... Eu falava: - Vaders para adiante, assassino!... - Mas falava baixo, para ele

não me enten

- Não me deu trabalho nenhum. Agora, quando chegamos lá no Sacodo-Sobre; então foi que eu tive medo, porque a simpatia do cambará só

226 JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COM

serve para quando a gente está indo na estrada... Fui gritando: -Abr porteiras dos dois lados, abrir logo!... - E emboquei e atravessei o c de galope, saindo da

outra banda. Ele e as vacas entraram atrás, e os vaq ros fecharam tudo. Mas, de noite... Eu pernoitei lá, e vi a coisa, seô M Ninguém não pôde pegar no sono, enquanto

não clareou o dia. O Ca1u aquilo ele berrava um gemido rouco, de fazer piedade e assustar... U" até feito cachorro, ou não sei se eram os cachorros também uivando,

causa dele. Leofredo, que era de lá naquele tempo, disse: - "Ele está pendido, por ter matado o menino"... - Mas o velho Valô Venãoncio queiro cego que não trabalhava

mais, explicou para a gente que era u pírito mau que tinha se entrado no corpo do boi... Parecia que ele q mesmo era chamar alguma pessoa. Fomos lá todos juntos.

Quando ele viu, parou de urrar e veio, manso, na beira da cerca... Eu vi o jeito de ele queria contar alguma coisa, e eu rezava para ele não poder falar... manhã

cedo, no outro dia, ele estava murcho, morto, no meio do curr

- Às vezes vêm coisas dessas, que a gente não sabe, Raymundão.

- Isso, agora, eu acredito, seô Major. Sei de um caso que se passo muitos anos, contado por meu pai, que quando moço foi campeiro de tal Leôncio Madurera, no sertão.

Leôncio Madurera era um Nome rodes, que vendia o gado e depois mandava cercar os boiadeiros na es para matar e tornar a tomar os bois. Pois meu pai contava que,

quand morreu, e os parentes estavam fazendo quarto ao corpo, as vacas de começaram a berrar feio, de repente, no curral. Coisa que o garrote p urrava:

- Madurera!... Madurera!...

E as vacas respondiam, caminhando:

- Foi p"r"ol infernos!... Foi A"r"os infernos!...

...Tiveram de soltar tudo e de enxotar para o pasto, porque eles

queriam sair de de-perto da casa. E meu pai contou que, de longe, a

ainda escutava a maldição deles, que subiam o caminho do morro,

parar de berrar:

-Madurera!... Madurera!...

- Foi p"r"os infernos!... Foi p"r"os infernos!... ... Arrepia as costas, mesmo para se contar... - Medonho, Raymundão. - Medonho, seô Major.

- Olha, Raymundão, daqui"a pouco estamos chegando!

Já se avista, lá muito embaixo, o arraial: a igrejinha, boneca e branc tope do outeiro; as casas, da Rua-de-Baixo e da Rua-de-Cima; e a esta com os trens parados,

no meio da fumaça das locomotivas.

- Pois é, Raymundão, eu acho que tudo vai mesmo bem. E a res do Badu com Silvino, eu estou com você, que essa rixa dá em nada. D da estrepolia com o zebu que o Badu

topou, não ficou tudo em risada

SncA~N^ 227

- Sim senhor, seô Major. Levaram a coisa na brincadeira.

. Você acha que Silvino respeita muito o Tote, irmão dele?

-Até ontem, eu sabia que sim, seô Major. Mas aí eles tiveram uma discussão, e estão sem falar um com outro.

_ Você sabe por que, Raymundão?

- No certo não sei, seô Major, porque ninguém não escutou o que eles falaram. Mas eu acho que foi por Silvino ter cobrado um dinheiro que o Tote estava devendo a

ele...

-Ho-hô-hô-hô!... Está direito, Raymundão, tudo em,ordem. Você me deu boa prosa e companhia... Agora, você pode ir, e manda o meu compadre João Manico aqui, para

desberganhar de montada com o Francolim... Com Deus, Raymundão!

A um aceno do Major, se apressa de lá Francolim, escanchado em cima de Sete-de-Ouros, que vinha, até então, desatual, na marchinha costumeira, sem demonstrar cansaço,

sem veleidades de empacar.

- Às ordens, seu Major.

- Escuta, Francolim: agora eu quero ver se você sabe prestar bem atenção nas coisas, para receber categoria de sujeito meu de confiança! Você é capaz de me dizer

o que é que o Silvino vai levando hoje, com ele, de bagagem e mat"otagem?

- Ah, eu também já reparei, seu Major! - que é mais do que nenhum outro: patrona cheia e meio-saco cheio, na garupa, afora outros trens, embrulhados no capote...

Se o senhor quiser conhecer o que é que está dentro, é só eu ir lá perto dele, conversar, e daqui a pouco eu volto, eu conto...

- Precisa não, Francolim. Olha o João Manico chegando com o cavalo. Destroca. Tem paciência, compadre Manico, este burrinho é hoje só. Até já, compadre! Corre Francolim,

deixa de ajustar esse gorro bobo, que você já está bonito demais. Galopa comigo, que é para o povo do lugar ver que o meu secretário é você...

Passam a ponte do ribeirão. Agora, um subúrbio do arraial, com as cafuas mais pobres. Lavadeiras, espaventadas, de trouxas nas cabeças, com o lava-pés agredidas

em seu formigueiro, fugindo com as ninfas e ovos brancos.

- Francolim, escuta: eu tenho um mandado sério, para você cumprir, com toda a regra, porque sei que você é o meu homem para isso. Espera. Boca fechada e olho aberto,

na volta, Francolim. Eu resolvi ficar hoje no arraial, com a família, e você vai vir com os vaqueiros, trazendo na algibeira autoridade minha. Olha lá, Francolim,

como é que você arranja as coisas, sem ninguém desconfiar de nós...

_ Nem que eu morra em nome da lei, na palavra do senhor, seu Major!

A boiada entra no beco - "Tchou! Tchou! Tchou!"... - "Contado, Leofredo? \ . , - "Falta nenhum!" - "Oi, gente, corta aquele golpe, Badu!"

22H JOÃO GUIMARÃES ROSA ~ FICÇÃO COM

- É para vigiar o Silvino, todo o tempo, que ele quer mesmo m Badu e tomar rumo. Agora, eu sei, tenho a certeza. Não perde os d olho, Francolim Ferreira!

Os cavaleiros se entremeiam na manada, falsando clivagens, fracio do o gado, para evitar embotamento. Num pataleio dianho, fazendo rar lama vermelha, metem-se pela

rua principal. E quatro vaqueiros t adiante, dançando com os cavalos, trazendo-os nas esporas pãra fie firmes nos freios, e gritando com o povo, a impedir seja esmagada

al pessoa ou criação.

Mulheres puxando meninos para dentro das casas. Portas bat Gente apinhada nas janelas. Cavalgaduras, amarradas em frente das das, empinando, quase rompendo os cabrestos.

Galinhas, porcos e e tos, afanados, se dispersando sem tardança. E os vaqueiros, garb aprumados, aboiando com maior rompante.

Com um último trompejo do berrante, engarrafam no curral da e da-de-ferro o rebanho, que rola para dentro e se espalha, como um b de laranjas despejado no chão.

Mesmo com a meia-chuva, vinha o po lugar, em fé de festa, para gozar o espetáculo. E começou o embarq rico de sortes, peripécias e aplausos -,que durou mais de hora

e mer a boiada inteira, lote a lote, desaparecer no bojo dos carros-jaulas dos"trens especiais. E pois, logo depois, encharcados, enlameados, cansa mos e famintos,

os vaqueiros saíram para comer, e beber, principalm porque força há na cachaça que custa dinheiro da gente. E, com isso, d ram todos de caber no dia, que rodou e

se foi, redondo e repleto, c tarde a cair rente, uma tarde triste de tempo frio.

Enquanto isso tudo, na coberta do Reynero, ali perto, afrouxadas as rigueiras e tirados os freios, os cavalos descansavam. Longe dos outros xado num extremo, no

canto mais escuro e esquerdo do telheiro, Seté Duros estava. Só e sério. Sem desperdício, sem desnorteio, cumprid obrigação, aproveitava para encher, mais um trecho,

a infinda lingü vida.

De repente, na mata resseca do sonho, crepitou e chamejou o ba houve homens, indesejados, se mexendo, como bichos-de-queijo ná espessura do silêncio. Eram os vaqueiros,

voltando, em busca dos a seus. Chegaram, montaram, saíram. Penúltimo, Silvino, pegando Orilho crinudo; último, João Manico, pondo mão no poldro pampa; r falando,

muito, os dois. Com o que, no prazo de um bom coice, e a n pelo mulo mísero Sete-de-Duros, ficou vazio o galpão. Era uma ve outra vez, no umbigo do mundo, um burrinho

pedrês.

Mas, agora, maior, mais real, direto - no lugar amplo e sem á formas - um homem sozinho: bebedérrimo, Badu. Pressentindo a ruim de regresso, então Sete-de-Duros

abriu bem os olhos, e avanç beiços num derradeiro molho de capim.

z29

SA~A~NA

. Que é do meu poldro?! O-quê!? Só deixaram para mim este burro desgraçado?... Só porque eu fui comprar uma prenda para a minha morena...

Sete-de-Duros mastigava, mais depressa. E pausa.

- Ei, que nós dois somos mesmo burros, hem, pandorgas?

E Badu caminhou e puxou o burrinho do cocho. Sete-de-Duros se aviou. O capim que ficara a sair-lhe dos cantos da boca foi encurtando e sumiu, triturado docemente.

Então ele dilatou as narinas. Trombejou o labro. E fez brusca eloqüência de orelhas. -

- Fecha essa queixada, cujo, que isto não é comida, não, é o freio! E não me morde. Assim!

Sete-de-Duros tornou a girar as vastas conchas, em circundação. Bateu com a mão direita. E bufou, abanando a cabeça.

- Se tu me der um coice, eu te amostro! Escuta o Rio Preto, burro bobo:

"Rio Preto era um negro

que não tinha sujeição. No gritar da liberdade

o negro deu para valentão..."

- Deixa de chamar mais chuva, vá-s"embora. Badu! - gritaram, lá de

fora.

- Uai, ainda tem algum sobrando? Que é do meu poldro? Sete-de-Duros enrugou a pele das espáduas. Foi amolecendo as orelhas.

E fechou os olhos. Nada tinha com brigas, ciúmes e amores, e não queria

saber coisa a respeito de tamanhas complicações. Badu montou. -Vamos, briguelo!

A desproporção era grande, quando saíram pela rua, o homem num

ridículo de pernas, quase arrastando os pés no chão. Alguém vaiou:

- Uê, Badu, vai vender leite? Que é das latas?... Você está carregando O

burrinho por debaixo?...

- Cambada!

Dançando estão, dançando vão, as casas todas, em procissão. Mas, aqui,

no fira do lugar, quem é este vulto de cavaleiro parado, na boca do beco do

Gentil da Ponte? Francolim.

- Estava esperando, seu Balduíno, por lhe fazer companhia...

- E... Ficam por aí, desse jeito, que eu até já ia passando fogo, pensan

do qUe era sombração!...

- Mas o senhor não está desarmado? Como é que ia poder atirar, sem

ter garrucha nem revólver?

Que me importa?! É de sua conta?

Não se por mal, seu Balduino, mas beber assim demais é facilitar...

23o JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COM

- Cataplasma! Para conversar comigo, como amigo, têm de me por Badu. E essa graça de "senhor", "senhor",.também não me serve! gosto dessa cerimônia...

-É o direito, homem. Eu hoje aqui não sou eu mesmo: estou re sentando seu Major...

- Nos cornos! Estou cuspindo nessa bobagem! Não quero prosa gente pirrônica... Vou com paz, mas vou ligeiro, sem conversa!

E com isso concordou Sete-de-Ouros, não por causa das rosetas chilenas - maus-tratos não lhe punham posse - mas por sentir, ab adiante, o caminho de casa, enrolado

e desenrolado, até à porteira do to: promessa de repouso e de solidão. Mais e mais, daí a pouco, qu escorregaram as rédeas, Badu pendeu para a frente, mãos perdidas,

no chilo da cachaça. Mas, mesmo assim, o passo do burro rendia pouco em sorna progressão.

- Homem ignorante... Malagradecido... - resmungou, para Francolim.

No covo da ipueira, o coaxar dos sapos avançava longe e voltava um... um... um... - como se corressem escalas em enorme teclado fa E, sobressaindo, aqui e ali, parecendo

provir de grande esforço, o b solitário do sapo-bezerro, regrosso.

Escurecia. Sem se deixar ver, pouco de a uns poucos metros, ou de trás das moitas, alguém podia matar fácil, com um tiro ou dois. E Si " Francolim deu de ombros

e picou o cavalo, ainda atirando a Badu olhar de desprezo, ao passar por ele, no galope.

Mal adiante um quilômetro, alcançava os outros vaqueiros. Vin em fila índia, sopesando as varas. Cada um trazia, na capanga, bem ag lada, uma garrafa suplementar.

Cavalgada estúpida. Sem a boiada, se como almas sem corpo. Sem a bebida menos conseguiriam tocar.

- Pára com essa cantiga, Leofredo!

- Uai, é o coco do Mestre Louco...

Estiara a chuva. Mas um vento fustigou os galhos da beira da est derrubando chuvisco.

- Já estão longe, aqueles... - Aboiada era boa.

Entravam na passagem do desbarrancado. Ainda havia um luscona estrada; mas, passo ou olhada, logo em volta, dava no pretume, q engrossando, imenso. Sinoca falou,

para todos:

- Tomara que se acabe o tempo dos embarques. O que eu não g de trazer desse gado gordo, que vai para morrer... Quero mas é ir b boi magro, no sertão.

- Que nem que o Martinho, por roubar mulher dos outros, em g - Para isso - que é só eu ter minha vontade! Você não sara de i car com a vida dos companheiros, Sebastião!

$AGARANA 231

- Briga não, gente! Eu cá, por mim, gosto de ver é pessoa de opinião, como o João Manico, que não vai buscar boiada brava, nem ali perto no Pompéu.. .

-Ah, isso não é de pouca-vergonha nenhuma, e eu mesmo sei de mim. Não gosto, não vou mesmo!... A gente deve de ficar é na terra sua, por não precisar de ver muita

coisa feia, que por este mundo tem...

- Essa cisma é só por causa de uma boiada, que estourou, é não, Manico?

- Vocês não estão cansados de saber?! Aí já contei, tanta vez...

-Eu não sei, juro. Quem falou isso comigo foi o Tote, mas não explicou nada como foi. Que é do Tote? 6 Tote!?...

- Não está aqui, não.

- Está indo lá adiante, com o irmão... 6, Tote!?

- Eu aqui. O que é que estão querendo de mim? Já vou!

Mas, em vez de vir cá para o grupo, Tote continua falando com Silvino, a gingar, como um tamanduá de abraço armado, ao sabor dos arrancos do lobuno trotão:

- É a última vez que eu aconselho, mano, para não pensar nessa doideira que você quer fazer...

- Não adianta, meu irmão; é hoje! Sangro o homem. Juro em cruz!...

- Silvino, você vai se desgraçar...

- Já estou desgraçado, mano... Agora, só mordendo o duro dele... peixa a gente passar o córrego e chegar na cava do matinho, no atalho... Faço o meu serviço, pego

a estrada da Lagoa, e calço de areia... O sujeito vem no burrinho sem préstimo, e ele está tonto como negro em Folia-deReis... Cumpro, e caio no mundo. Você não

precisa de dizer que sabia de nada... O crime é meu... Tenho sorte ruim!...

- Espera, mano... - sussurrou Tote, de repente. - Olha esse sujeitinho aí de especula...

- Será que ele ouviu?

- Não é capaz. Espera... Ei, Francolim, o que é que você vem fazer aqui, sorrateiro? Até parece, está querendo ouvir a conversa dos outros?

- Não me ofende, companheiro, que isso é coisa que eu não faço. Só estou é vendo que vocês dais já estão amigos outra vez...

- E é da sua conta, Francolim?!

Os três estacaram os cavalos.

- Tudo, hoje, é da minha conta, porque eu estou aqui é com autoridade, estou representante de seu Major!...

Os outros vinham chegando:

- Oh, Tote, garante uma palavra minha, aqui para o João Manico.

fro- Bem, pelo amor-de-deus vocês parem com isso, que eu não gosto de

JOCa core o meu nome no meio! Eu conto. Conto, mas é a derradeira vez- Depois ao quero mais que ninguém venha falar nisso comigo!...

232 JoAO GUIMAAAES Rosn / F~cçno Co

O grupo se uniu mais, todos querendo emparelhar com João M Os cavalos se entrepisavam os cascos. - E então, Manicão?

- Só conto porque é o meu compadre Sebastião quem está pe mas não é para vocês fazerem teatrinho aqui, numa hora destas... E desembolando para lá, que eu acabo tendo

de sujar algum, na hora cuspir!

- Isso se deu há muito tempo, Manico?

- Se duvidar, para mais de vinte anos. Não tinha trem-de-ferro raiai... Ainda nem tinha casa-de-fazenda na Tampa...

- Onde é que você campeava então?

- Para o meu compadre seô Major Saulo mesmo... Só que ele er ço e magro, nesse tempo, e a gente falava "seu Saulinho"... Ele já casado, casado de novo, e terras

dele eram só as do Retiro, mais u queires de pasto de brejo, no Pontilhão, que todo o mundo chamava Jatobá...

- Mas, como foi?

- Foi que a gente tinha ido por longe, muito longe mesmo, no do sertão, lá para trás dos Goiás... Era porque por todo lugar tinha peste, e criação de chifre andava

vasqueira, como nunca em antes. mos uma boiada das carepas: só bicho mazelento e feioso: bom quase nenhum, muito pouco marruaz taludo, tudo com focinho seco, ga

com carrapatos de todo tamanho, cheios de bernes e bicheiras, e co carne esponjosa de frieira entre as unhas, que era isto:...!...

- Paz para mim! Feito bois sem dono.. .

- ... Pois era uma gentinha magra mesmo héctica, tudo meio d que eram só se lambendo e caçando jeito de se coçarem cada pé de á que encontravam... Mas, para ser

bravos, isso eles não estavam do não, que eram só fazendo arrelia e tocaiando para querer matar gen

- Boi do mato, sem paciência...

- E ir buscar coisa ruim assim, tão longe!

- ... Pois foi... Eu cá, por mim, nem que não era capaz de despe dinheiro meu com aquele refugo de gado. Mas seu Saulinho - seô Saulo, pelo direito - sempre foi

estúrdio, pensando tudo por regra dele... Olha, assim uma vez, que nós chegamos no sítio de um honre um braço, lá perto do Paracatu: no curral, tinha uma vaca mestiça;

pintarroxa... Quando nós íamos chegando, ela berrou, um berro b de buzina, que era todo cantado e só no fim era que gemia... Seu Saulinho estava alegre... Foi perguntando

ao dono, gritando, ainda tes de desapear do cavalo: - "Quanto quer pela clarineta?"... - "É mil réis!"... - "Pois chego mais dez, pelo berro!"...

-Assim é que eu gosto! Dá respeito...

- ... É... Mas pagou à toa, à toa, sem precisão. Naquele tempo, ís

SncAk^N^ 233

bom dinheiro... Mas, como eu ia contando, a gente estava desgostosa com aquele restolho de boiada má sem qualidade... Mas, o pior, Deus que me livre dele, foi o

menino... o pretinho...

- Que pretinho, Manico?

- Um negrinho, que tinha também. Assinzinho, regulando por uns sete anos, um toquinho de gente preta... O fazendeiro que vendeu o gado pediu a seu Saulinho para

trazer, para entregar a um irmão, no Curvelo, e seu Saulinho prometeu... A"pois, o tal pretinho era magrelo, com uns olhos graúdos, com o branco feio de tão branco,

que até mesmo, Deus que me perdoe, mas eu acho que alguns pretos têm o branco-dos-olhos assim só para modo de assombrar a gente!... E, aquilo, ele chorava, sem parar,

e de um sentir que fazia pena... Não adiantava a gente querer engambelar nem entreter... Eu pelejei, pelejei, todo-o-mundo inventava coisa para poder agradar o desgraçadinho,

mas nada dele parar de chorar...

- Que inferno!

- ... E o gado também vinha vindo trotando triste, não querendo vir. Nunca vi gado para ter querência daquele jeito... Cada um caminhava um trecho, virava para trás,

e berrava comprido, de vez em quando... Era uma campanha! A qualquer horinha a gente estava vendo que a boiada ia dar a despedida e arribar. E era só seu Saulinho

recomendando: - "Abre o olho, meu povo, que eles estão com vontade de voltar!"

- E o menino preto?

... O pretinho vinha comigo na garupa, dando soluços grandes, e molhando minhas costas de tanta lágrima... Então eu falei: - "Olha os bois também com saudade dos

pastos lá da fazenda"... - Para que foi que eu fui dizer isso! Ele abriu ainda mais no bué, e começou a gemer: - "Ai, seu mocinho bom! Ai, seu mocinho bom! Me deixa

eu ir-s"embora para trás! Me deixa eu ir-s"embora para trás!"...

- .. Bem que eu tinha pena, mas que é que eu podia fazer? Fiquei calado, e deixei o pobrezinho ir gemendo. Quando ele viu que não adiantava nada pedir, garrou só

a exclamar: - "Ai, seu mocinho ruim! Ai, seu mocinho ruim! . , , Eu só queria poder sentar agora, um tiquinho, naquela canastra de couro, que tem lá no rancho de

minha mãe... Queria só ver, de longe, a minha mãezinha, que deve de estar batendo feijão, lá no fundo do quintal!". , _ E ele se abraçou comigo, feito um doido,

e eu nem podia deixar que ele visse minha cara, porque eu estava com os olhos cheios de outras lágrimas, também...

- - - Nós tocamos cinco dias, sem sossego, porque não havia remédio nenhum para o gado perder aquela tristeza. A gente via que via mesmo eles resolverem, de repente,

e darem para trás, todos juntos... De noite, ninguém dormia direito: a gente tinha de acender muitas fogueiras no redor, e passear com tição de fogo na mão, que

era só no que eles atendiam, e assim mesmo mur vez estavam não querendo obedecer!...

234 JOÃO GUIMARÃES ROSA / PICÇÀO COMP

... Afinal, atravessamos um rio grande, e ficamos mais descansa porque agora decerto que eles iam tomar consolo e dar uma folga... - E o negrinho?

- ... O pretinho, a gente perdeu a paciência com ele, e o Zacarias, era o capataz nosso, passou nele um aperto: - "Se você chorar mais, nhinho, eu te corto a goela,

e amarro teu defuntinho preto em riba daq boi jaguanês!..." Então o desgraçadinho arregalou muito os olhos,

no meio do choro, ficou quieto e não gemeu mais. Também, não quisw mer nem nada, naquele dia, e não dava mais resposta, quando a gente ria puxar conversa...

... De tardinha, a gente pousou num campo formoso, com agu, cheio de coqueiro buriti. Mas não tinha manga, nem malhador, nem nenhum fechado, e então tivemos de pôr

o gado no encosto... Enca mos a boiada numa bocaina, e acendemos o fogo. - "Vocês hoje po dormir..." - disse seu Saulinho. - "Só o Aristides e o Binga chegam, ra

vigiar por volta da meia-noite"...

... Eu já vivia quase caindo, de tonto de sono; por isso gostei da dem de seu Saulinho, por demais. Comi meu feijão e sentei na raiz pau-d"óleo, pitando e já meio

cochilando... E foi aí, bem na hora em o sol estava sumindo lá pelos campos e matos, que o pretinho começ cantar...

... Ah, se vocês ouvissem! Que cantiga mais triste, e que voz mais t de bonita!... Não sei de onde aquele menino foi tirar tanta tristeza, repartir com a gente...

Inda era pior do que o choro de em-antes...

... E, aquilo, logo que ele principiou na toada, eu vi que o gado ia f do desinquieto, desistindo de querer pastar, todos se mexendo e faz redemoinho e berrando

feio, quase que do jeito de que boi berra q vê o sangue morto de outro boi...

... Mas, depois, pararam de berrar, eu acho que para não atrap cantoria do pretinho. E o pretinho cantava, quase chorando, soluç mesmo... Era assim uma cantiga sorumbática,

desfeliz que nem sau em coração de gente ruim... Mas, linda, linda como uma alegria chor uma alegria judiada, que ficou triste de repente:

"Ninguém de mim ninguém de mim tem compaixão..."

Aquilo saía gemido e tremido, e vinha bulir com o coração da g mas era forte demais. Octaviano pediu a seu Saulinho para mandar o p nho calar a boca. Mas seu Saulinho

tinha tirado da algibeira o retra patroa, e ficou espiando, mais as cartas... Porque seu Saulinho não ler, mas gostava de receber cartas da mulher, e não deixava

ningué

Sp~,pRpNA 235

para ele: abria e ficava só olhando as letras, calado e alegre, um tempão... E ele disse:

- "Deixa o menino chorar suas mágoas, que o pobre está com a alminha dele entalada na garganta!"...

... Aí, então, eu comecei a me alembrar de uma porção de coisas, do lugar onde eu nasci, de tudo... José Gabriel ficou cantando baixinho, para ele mesmo só, e pelo

que com os dedos, do jeito de que estivesse acompanhando o canto do negrinho, numa viola qualqual... Aristides bebeu sua cachaça, que não foi brinquedo, mas ninguém

não falou, porque o Aristides se estava com olho-de-choro... Até eu mesmo. Aquilo parecia: que a vaqueirada toda virando mulher...

... E o pretinho ia cantando, e, quando ele parava ponto para tomar fôlego, sempre alguma rês urrava ou gemia, parecendo que estavam procurando, todos de cabeça

em pé... Então, o Binga me disse: - "Repara só, João Manico, como boi aquerenciado não se cansa de sofrer"... - Mas, aí a gente foi cabeceando, em madorna. Sei de

mim que ainda vi uma estrelinha caindo, e pedi ao anjo uma graça, de voltar com saúde para a casa que já foi minha, lá nas baixadas bonitas do Rio Verde...

... Então, eu acho que cheguei a dormir, mas não sei... O canto do pretinho, isso havia!... E sonhei com uma trovoada medonha, e um gado feio correndo, desembolado,

todo doido; e com um menino preto passar cantando, toda a vida, toda a vida, sentado em cima do cachaço de um marruaz nambiju!...

... Foi de verdade? Foi visão de sonho? Eu já estou velho, para querer saber. Muita gente acha que sim, mas só tem coragem de dizer que não! Sei lá... Mas - Virgem

Santa Mãe de Deus! - acordei, de madrugada, foi com os gritos do patrão. Que é do gado?! Só o rastro da arrancada. Tinham arribado, de noite!... Mas, ainda foi mais

triste: no lugar onde deviam de ter ficado Aristides mais Octaviano, nem cadáver!: os bois tinham passado por cima, e, eles, mais os arreios que estavam servindo

de travesseiros para eles dormirem, estavam pisados, moídos, tinham virado bagaço vermelho...

- Já vi disso, Manico. É a mesma coisa que quando eles estouram na estrada... Um assusta, com qualquer bobagem à toa, e sai na carreira, e os outros todos desandam

atrás desse, correndo por informação, sem nem saber direito do quê... Adianta querer cercar, quando eles desembestara?... Derrubam paredes de tijolo, vão se matando

uns aos outros.

- E, mas a pior de todas é a arrancada do gado triste, querendo a querênc¡a.. _ Boi apaixonado, que desamava, vira fera... Saudade em boi, eu acho que ainda dói

mais do que na gente...

- Mas, conta o resto...

_ O resto! O resto foi que nós levamos mais de uma semana para poder ajuntar as reses outra vez... Tinham espandongado por ali afora, e a

236 lOAO GUIMARÃES ROSA / FICÇAO CO

gente foi achar uns atolados no brejão, outros de pescoço quebrado, no fundo das pirambeiras, e muitos perdidos no meio do mato, serra+ saber por onde dar volta

para acharem o caminho de casa... Ou nham rolado rio abaixo, para piranha comer. E, os que a gente pôd banhar de novo, deram, mal e mal, uma boiadinha chocha, assim

de quedo, e numa petição-de-miséria, que a gente até tinha pena, e vontade de se botar a bênção neles e soltar todos no sem-dono! Sã não tinha quase nenhum... Eram

só bois náfegos, vacas descadeirad zerros com torcedura de munheca ou canela partida, garrotes com de palheta ou de anca, o diabo! E muitos desmochados ou de chifre

dado, descascado fundo, dando sangue no sabugo, de tanto bater em árvore... Por de longe que a gente olhasse, mesmo o que estada lhorzinho não passava sem ter muito

esfolado e muita peladura n po... Um prejuizão!...

- E o pretinho, Manico?

-Ah, esse ninguém não viu, nem teve notícia dele mais!... Deus que diga minha alma salva!... Por via dessa que houve, e de que podia haver, é que eu não gosto de

ser andejo, e fico quieto n canto. Quem viaja por terras estranhas, vê o que quer e o que não qu

- É isso mesmo...

- Bobagem! É andando que cachorro acha osso, < - Cachorro é quem quiser, mais a família! Não estou dando. selho...

- Não zanga à toa, Manico. Todo gosto é regra.

- Chega, gente. Ó Zé Grande, que é que você deixou cair? - Risca um pau de fósforo... - Nada não, gente... Estou estranhando o chão. - O caminho está certo.

- Isto eu sei... Desencosta, Juca!

- É cisma. Vou beber outro gole, para ficar com mais caráter. Os animais se atolavam no terreno empapado da várzea, que

um pantanal.

- Oi, dianho!

Foi de repente: o cavalo de Benevides, que guiava a fila, passarinh

outros empacavam, torcendo os pescoços.

- O que é? Alguma coisa?

-É o desgramado desse bichinho espírito. Olha só como é"q

canta!

- João, corta pau! João, corta pau! - Passa fogo, Bastião!

- Espera, gente. Não é de pássaro nenhum que os cavalos es medo. É a enchente!...

- Não pode. Será?!

237

SA~p~¿ANA

-Mas, como é que a enchente está chegando até aqui?

- É ela mesmo! Olha como esfriou: isto é friagem de beira de rio. - É mesmo, gente.

- João, corta pau! João, corta pau!

- Mas a Fome passa longe, quase a quarto de Légua... Só se a baixada

virou lagoa...

- É manha dos animais.

-É mesmo...

- Não é, não, Leofredo... Escuta!

- É manha, sim. Quem estiver atrás, vá relando o ferrão, e eu quero ver se cavalo anda ou fala porque é que não anda! - Não faz isso, Juca, espera.

- João, corta pau! João, corta pau!

- Vamos deixar chegar o Badu, mais o burrinho caduco, que vêm vindo aí na rabeira, minha gente!

- Isso mesmo, Silvino. Vai ser engraçado...

- Engraçado?! É mas é muito engano. O burrinho é quem vai resolver: se ele entrar n"água, os cavalos acompanham, e nós podemos seguir sem susto. Burro não se mete

em lugar de onde ele não sabe sair!

- É isso! O que o burrinho fizer a gente também faz.

- João, corta pau! João, corta pau!

-Dou meu voto. Dou meu voto, e estou falando pensado, em visto Odever da continência que eu hoje tenho!

- Tira tua colher do tacho, Francolim! Isto aqui não é hora para palhaçada!

-Respeita o nosso patrão, Sinoca, que seu Major me entregou a responsabilidade dele, para tomar conta e determinar, nos casos...

-Bestagem... O-ô, Badu! Anda, homem!...

- Olha ele chegando...

- João, corta pau! João, corta pau!

- Lá vou eu, meus parentes! ... Lá vou eu, suas injúrias-peladas de vaqueiros sem boi nenhum!

E, falando, Badu se abraçou com o pescoço do burrinho, numa ternura súbita...

- Eh, meu velho, coitado, que trapalhada! Estou doente, dei na fraque

, com este miolo meu zanzando, descolado da cabeça... Muito doente... Estou com medo de morrer hoje... Mas, se você fosse mais leve, compadre, eu era capaz de te

carregar!...

Veio com o comocheio... Está bêbado que nem gambá.

Ei, Silvino, por que é que você está chegando para perto do Badu, aí no escuro, coisa que você não deve de fazer?! Não consinto, não está direi

b°êbaa~ á quii ocês estão brigados, e ainda mais agora, que o outro está

X38 JOÃO GUIMARAES ROSA ~ FICÇÃO COM

- Tu arrepende essa boca, Francolim! filho de outra... Desarrega sai por embaixo!... Eu vou aonde eu quero!...

- João, corta pau! João, corta pau!

- Não adianta bufar que nem tigre, Silvino, que eu estou falando paz, só na lei, no nome de seu Major!

- Não é caso de briga, Silvino, porque alguma razão Francolim te

- Alguma, não! Razão inteira, porque estou representando seu Ma por ordem dele, e meu revólver pode parir cinco filhotes, para mama no couro de quem trucar de-falso!

- Deixa de valentia boba, Francolim!

- Juízo, gente! Olha o burro...

Sete-de-Duros parara o chouto; e imediatamente tomou conhecime da aragem, do bom e do mau: primeiro, orelhas firmes, para cima-p go difuso, incerto; depois, as orelhas

se mexiam, para os lados - dificul de já sabida, bem posta no seu lugar. E ficou. A treva era espessa, e burro não é gato e nem cobra, para querer enxergar no escuro.

Ele espiava, não escutava. Esperava qualquer coisa.

E, quando essa chegou, Sete-de-Duros avançou, resoluto. Chafurd espadanou água, e foi. Então, os cavalos também quiseram caminhar.

Mas, aí soou o pio, que vinha da moita em cada minuto, justo:

- João, corta pau! João, corta pau!

E João Manico conteve a cavalgadura, e disse:

- Eu não entro! A modo e coisa que esse passarinho ou veio ficar a para dar aviso para mim, que também sou João, ou então ele está ma agourando... Para mim, de noite,

tudo quanto há agoura!

- Perde o medo, Manico! Você não sabe que joão-corta-pau é o pas rinho mais bonzinho e engraçadinho que tem, e que nunca ninguém disse que ele agoura?! Isto, que

não veio falar aviso, nenhuns-nada, ele g ta é de se encolher dentro da moita, por causa do molhado, e é capaz ele fique aí a noite toda, dando seus gritinhos de

gaita... Vam"bora!

- Não... Não vou e não vou, de jeito nenhum! Para este poldro tanger dentro d"água no meio do córrego?... O burrinho é beócio... E vou mesmo! Não sei nadar...

- Pois, então, eu fico com você, Manico, para lhe fazer companhia

- Eh, Juca! você não vem? Está com medo também?!

- Medo não, companheiro, dobra a língua! Estou meio ruim, res do, e não posso molhar mais o corpo!... Vamos voltar, Manico, para ca um lugar alto, a donde a gente

esperar que a sopa seque e que darei dia...

Manico tossiu e assentiu. Olhou. O último dos outros homens cavai va para dentro da escuridão.

E era bem o regolfo da enchente, que tomava conta do plaino, até o podia alcançar. Os cavalos pisavam, tacteantes. Pata e peito, passo e p

SA~~~~A 239

contra maior altura davam, da.correnteza, em que vogava um murmúrio. A inundação. Mil torneiras tinha a Fome, o riacho ralo de ontem, que da manhã à noite muita

água ajuntara, subindo e se abrindo ao mais. Crescera, o dia inteiro, enquanto os vaqueiros passavam, levavam os bois, retornavam. E agora os homens e os cavalos

nela entravam, outra vez, como cabeças se metendo, uma por uma, na volta de um laço. Eles estavam vindo. O rio ia.

De curto, Sete-de-Duros perdeu o fundo e rompeu nado; mas já tivera tempo de escolher rumo e fazer parentesco com a torrente. De trás, veio Oruído de muitas patas,

cortando água, e um chamado:

- Segura bem, Badu! Me espera! .. .

E a voz de Silvino:

- Arreda, Francolim! deixa eu passar!

Mas um rebojo sinuoso separou-os todos. O córrego crispou uma sístole violenta. E ninguém pôde mais acertar o caminho.

Se Badu estivesse um pouco menos bêbado, teria sido mais prudente: seu a seu, porém, sentindo o frio duro nas coxas, apenas se agarrou, com força, ao burrinho.

-Eh, aguão!...

Pendeu demais, seguras as mãos na crina. Cabeceou e molhou a cara. Cuspiu. Vai, vai, que o burrinho avançava.

-Te vi, meu velho! O mundo está se acabando em melado!... - e rogou uma praga imoral, porque os gorgolões lhe repassavam cócegas no queixo, e tinha cãibras nas barrigas-das-pernas,

tudo no desconforto de cruzar a cavalo um rio fundo, sem ter firmeza nenhuma, pois a água, por si sozinha, levanta o cavaleiro da sela, e o mesmo seria estar sentado

numa plasta de angu mole.

- Ai, meu Deus, que nem beber não posso, que só disse copo e meio em antes, garrafa e meia ao depois!... Vam"embora, burro meu!

Contra o dito, sem porquê, bom e melhor que Badu estava como estava, que para córrego cheio mais vale homem muito ébrio, em cima de burro mui lúcido. Progrediam,

varando os rolos d"água. - Créu! Créu!... - guinchou um bicho, nas vascas. - "Oi, até mutum-do-mato está vindo morrer aqui?! Não tem asa, bobo?!... Ou será que é

algum sariguê, de grito fino que nem passarinh"?"... - O dilúvio não dava fim. Sete-de-Duros metia o peito. De enxurro a jorro, o caudal mais raivava, subindo o

sobrerumor. O burrinho se encolheu, deu um bufo. Avançou mais. Pesado, espadanando, pulou um corpo, por perto. - "São Bento me valha, que aí vem jacarezão, caçando

o que comer!" - O mundo trepidava. Pequenas °ndas davam sacões, lambendo Badu. Escurão. O burro pára. O mundo bóia. Mas Sete-de-Duros esperou foi para deixar passar,

de ponta, um lenho longo, que vinha com o poder de uma testa de touro. Desceu, sumiu. Em cima, no céu, há um pretume sujo, que nem forro de cozinha. Noite

2¢O JOÃO GUIMARÃES ROSA I FICÇÀO COMP

ruim. Agora, atrás, passa um bolo de folhas e galhos, danisco, que ai agarra Badu, com uma porção de braços, empurrando. Força de mão, p jogar para lá essa coisama!

Paz, que já virou, graça Deus, também. -" molhou todo, rasgou minha roupa, diabo!... Goiabeira, pelo cheiro Fosse um imbaré ou um pau de espinho, me matava!"...

- Lhó... lh lhó... -vão, devagar, as braçadas de Sete-de-Duros.

Vestindo água, só saído o cimo do pescoço, o burrinho tinha de se queixar para o alto, a salvar também de fora o focinho. Uma peitada. tro tacar de patas. Chu-áa!

Chu-áa... - ruge o rio, como chuva deitada; chão. Nenhuma pressa! Outra remada, vagarosa. No fim de tudo, te pátio, com os cochos, muito milho, na Fazenda; e depois

o pasto: somb capim e sossego... Nenhuma pressa. Aqui, por ora, este poço doido, q barulha como um fogo, e faz medo não é novo: tudo é ruim e uma só coi no caminho:

como os homens e os seus modos, costumeira confusão. É fechar os olhos. Como sempre. Outra passada, na massa fria. E ir sem afã voga surda, amigo da água, bem com

o escuro, filho do fundo, poupara forças para o fim. Nada mais, nada de graça; nem um arranco, fora de ra. Assim.

E descia mais porcariada, mal visível, de ciscos e gravetos; desciam tor flutuantes, e corpos, mortos ou meio, de pêlo, de escama e de pena, co viajando com a babugem

e com os pedaços vegetais. Mas a enchente ai despejava e engrossava, golfando com intermitências, se retorcendo-pororoca, querendo amassar cama certa para poder

correr. Cada copa árvore, emergente ou afundada, cada grota submersa ou elevação de reno, tudo servia para mudar a toada das águas soltas. E, no bramido quele mar,

os muitos sons se dissociavam - grugulejos de remoinhos, s surros de remansos, chupões de panelas, chapes de encontros de ora marulhar de raseiras, o tremendo assobio

dos vórtices de caldeirões, cir lares, e o choro apressado dos rabos-de-corredeira burburinhantes. Á que ia e vinha, estirando botes, latejando, com contra-correntes,

balóu de vagas, estremeções e retrações. Mas, de repente, foi apenas uma pre tesa e um grande escachôo. O frio aumentou. Estavam no leito primit normal do córrego

da Fome. Atravessavam a mãe-do-rio.

E ali era a barriga faminta da cobra, comedora de gente; ali onde fi vam o fôlego e a força dos cavalos aflitos. Com um rabejo, a corrente tornou a si o pessoal

vivo, enrolou-o em suas roscas, espalhou, afun afogou e levou. Ainda houve um tumulto de braços, avessos, homens vargaduras se debatendo. Alguém gritou. Outros gritaram.

Lá acolá, d haver terríveis cabeças humanas apontando da água, como repolhos de canteiro, como moscas grudadas no papel-de-cola. A estibordo de Sete. Duros, foi

o berro convulso, aspirado, de uma pessoa repelida à tona, da pela primeira vez. Mas isso foi bem a uns dez metros, e cada qual cur va de si.

24i

SAGAF2ANT

Noite feia! Até hoje ainda é falada a grande enchente da Fome, com oito vaqueiros mortos, indo córrego abaixo, de costas - porque só as mulheres é que o rio costuma

conduzir de bruços... O cavalo preto de Benevides não desceu, porque ficou preso, com a cilha enganchada num ramo de pé-deingá. Mas o amarilho bragado de Silvino

deve de ter dado três rodadas completas, antes de se soverter com o dono, ao jeito de um animal bom. Leofredo, não se achou. Raymundão, também não. Sinoca não pôde

descalçar o pé do estribo, e ele e a montada apareceram, assim ligados os dois defuntos, inchados como balões. Zé Grande e Tote, abraçados, engalfinhados, sobraram

num poço de vazante, com urubus em volta, aguardando Oque escapasse das bocas dos pacamãs. Mas o que navegou mais longe foi Sebastião, que aproou - barca vazia

- e ancorou de cabeça, esticado e leve, os cabelos tremulando como fiapos aquáticos, no barro do vau da Silivéria Branca...

Alguém que ainda pelejava, já na penúltima ânsia e farto de beber água sem copo, pôde alcançar um objeto encordoado que se movia. E aquele um aconteceu ser Francolim

Ferreira, e a coisa movente era o rabo do burrinho pedrês. E Sete-de-Duros, sem susto a mais, sem hora marcada, soube que ali era o ponto de se entregar, confiado,

ao querer da correnteza. Pouco fazia que esta o levasse de viagem, muito para baixo do lugar da travessia. Deixou-se, tomando tragos de ar. Não resistia. Badu resmungava

más palavras, sem saber que Francolim se vinha agüentando atrás, firme na cauda do burro. Aí, nesse meio-tempo, três pernadas pachorrentas e um fio propício de corredeira

levaram Sete-de-Duros ao barranco de lá, agora reduzido a margem baixa, e ele tomou terra e foi trotando. Quando estacou, sim, que não havia um dedo de água debaixo

dos seus cascos. E, ao fazer alto, despediu um mole meio-coice. Francolim - a pé, safo.

Badu agora dormia de verdade, sempre agarrado à crina. Mas Sete-deOuros não descansou. Retomou a estrada, e, já noite alta, quando chegaram à Fazenda, ele se encostou,

bem na escada da varanda, esperando que o vaqueiro se resolvesse a descer. Ao fim de um tempo, o cavaleiro acordou. Bradou nomes feios, e começou a cantar um ferra-fogo

- dança velha, que os negros tinham de entoar em coro, fazendo de orquestra para o baile dos senhores, no tempo da escravidão. Aí, os camaradas que dormiarn no paiol

grande despertaram com a algazarra, vieram desmontá-lo, e carregaram com ele, para curtir a bebedeira num jirau. Depois, desarrea

ram o burrinho.

Ach olgado, Sete-de-Duros endireitou para a coberta. Farejou o cocho.

ou milho. Comeu. Então, rebolcou-se, com as espojadelas obrigatóri

as, dan ando de patas no ar e esfregando as costas no chão. Comeu mais.

Depoisç rocurou um lugar qualquer, e se acomodou para dormir, entre a

r¡dã mocha e a vaca malhada, que ruminavam, quase sem bulha, na escuo,

TRAÇOS BIOGRÁFICOS DE LALINO SALÃTHIEL

OU

A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO

"Negra danada, siô, é Maria:

ela dá no coice, ela dá na guia, lavando roupa na ventania. Negro danado, siô, é Heitô: de calça branca, de paletó,

foi no inferno, mas não entrou!"

(CANTIGA DE BATUQUE, A GRANDE VELOCIDADE)

- Ó seu Bicho-Cabaça!? Viu uma velhinha passar por aí?... - Não vi velha, nem velhinha, corre, corre, cabacinha... Não vi velha nem velhinha! Corre! corre! cabacinha..."

(DE UMA EST6RIA)

245

I

NOVE HORAS E TRINTA. Um cincerro tilinta. É um burrinho, que vem sozinho, puxando o carroção. Patas em marcha matemática, andar consciencioso e macio, ele chega,

de sobremão. Pára, no lugar justo onde tem de parar, e fecha imediatamente os olhos. Só depois é que o menino, que estava esperando, de cócoras, grita: - "Íssia!..."

- e pega-lhe na rédea e o faz volver esquerda, e recuar cinco passadas. Pronto. O preto desaferrolha o taipal da traseira, e a terra vai caindo para o barranco.

Os outros ajudam, com as pás. Seis minutos: o burrinho abre os olhos. O preto torna a aprumar o tabuleiro no eixo, e ergue o tampo de trás. O menino torna a pegar

na rédea: direita, volver! Agora nem é preciso comandar: - "Vamos!"... - porque o burrico já saiu no mesmo passo, em rumo reto; e as rodas cobrem sempre os mesmos

sulcos no chão.

No meio do caminho, cruza-se com o burro pêlo-de-rato, que vem com Ooutro carroção. É o décimo terceiro encontro, hoje, e como ainda irão passar um pelo outro,

sem falta, umas. três vezes esse tanto - do aterro ao corte, do corte ao aterro - não se cumprimentam.

No corte, a turma do seu Marra bate rijo, de picareta, atacando no paredão pedrento a brutalidade cinzenta do gneiss. Bom. trecho, pois, remunerador. Acolá, a turma

dos espanhóis cavouca terra mole, xisto talcoso e micaxisto; e o chefe Garcia está irritado, porque, por causa disso, vão receber menos, por metro quadrado e metro

cúbico. Adiante, uns homens colocando os paus do mata-burro. Essa outra gente, à beira, nada tem conosco: serviço particular de seu Remígio, dono das terras, que

achou e está explorando uma jazida de amianto. E, mais adiante, o pessoal do Ludugero, acabando de armar as longarinas da ponte.

Dez horas da manhã. A temperatura do ar prolonga a do corpo. Só se sabe do vento no balanço dos ramos extremos do eucalipto. Só se sabe do s°I nas arestas dos quartzos

-.cada ponta de cristal irradiando em agulheiro. Cantos de canarinhos e pintassilgos, invisíveis. E cheiro de mato moço. Tudo muito bom. E isto aqui é um quilômetro

da estrada-de-rodagem Belorizonte - São Paulo, em ativos trabalhos de construção.

Seu Marra fiscaliza e feitora. De vez em quando, pega também no pesado- Mas não tira os olhos da estrada.

Bem, buzinou. É o caminhão da empresa. Vem de voada. Diminuiu a marcha... Seu Waldemar, o encarregado, na boléia, com o chau~feur...

246 Jono Gu~MnRnes Rosn / Ficçno Co

O caminhão verde não pára... Mas, lá de-trás, escorregando dos sa caixotes que vêm para o armazém, dependura o corpo para fora, os pula, maneiro, Lalino Salãthiel.

Os trabalhadores cumprimentaram seu Waldemar, seu Marra esb qualquer coisa assim como uma continência, seu Waldemar bateu passou.

Agora seu Marra fecha a cara. Lalino Salãthiel vem bamboleando, ridente. Blusa cáqui, com bolsinhos, lenço vermelho no pescoço, ch lão, polainas, e, no peito, um

distintivo, não se sabe bem de quê. chapelão: cabelos pretíssimos, com as ondas refulgindo de brilha borora.

Os colegas põem muito escárnio nos sorrisos, mas Lalino dá o asp

de quem estivesse recebendo uma ovação:

- Olá, Batista! Bastião, bom dia! Essa força como vai?... - Boa tarde!

Lalino tem um soberbo aprumo para andar. - Ei, Túlio, cada vez mais, hein? - An-han...

Lalino nunca foi soldado, mas sabe unir forte os calcanhares, ao de tar seu Marra. E assesta os olhinhos gateados nos olhos severos do che

- Bom dia, seu Marrinha! Como passou de ontem?

- Bem. Já sabe, não é? Só ganha meio dia.

E seu Marra saca o lápis e a caderneta, molha a ponta do dedo na líi~ molha a ponta do lápis também, e toma nota, com a seriedade de q assinasse uma sentença.

(Lá além, Generoso cutuca Tercino:

- Mulatinho descarado! Vai em festa, dorme que-horas, e, qu

chega, ainda é todo enfeitado e salamistrão!...)

- Que é que eu hei de fazer, seu Marrinha... Amanheci com uma"

vralgia... Fiquei com cisma de apanhar friagem... - Hum...

- Mas o senhor vai ver como eu toco o meu serviço e ainda faç povo trabalhar...

- Não se venha! Deixa os outros em paz...

(Tercino apóia o pé no ferro da picareta; o que é que diz:

- Trabalhar é que não trabalha. Se encosta p"ra cima, e fica cont

história e cozinhando o galo...

- Também, no final, ganha feito todos, porque, os que são m"o, trela!

E Pintão golpeia com o dorso da pá, sem dó nem piedade, fazen rilhar nos torrões.)

Lalino passa a mão, ajeitando a pastinha, e puxa mais para fora o cinho do bolso.

SAGARANA 247

. Vou p"r"a luta, e tiro o atraso! ... Mas, que dia, hein, seu Marra?!

- Tu está fagueiro... Dormiu mais do que o catre...

- Falar nisso, seu Marrinha, eu me alembrei hoje cedo de outro teatrinho que a companhia levou, lá no Bagre: é o drama do "Visconde Sedutor"... Vou pensar melhor,

depois lhe conto. Esse é que a gente podia representar...

(Pintão suou para desprender um pedrouço, e teve de pular para trás, para que a laje lhe não esmagasse um pé. Pragueja:

- Quem não tem brio engorda!

- É... Esse sujeito só é isso, e mais isso... - opina Sidu.

- Também, tudo p"ra ele sai bom, e no fim dá certo... - diz Correia, suspirando e retomando o enxadão. - "P"ra uns, as vacas morrem... p"ra outros até boi pega a

parir...")

Seu Marra já concordou:

- Está bem, seu Laio, por hoje, como foi por doença, eu aponto o dia todo. Que é a última vez!... E agora, deixa de conversa fiada e vai pegando a ferramenta!

- Já, já, seu Marrinha. "Quem não trabuca, não manduca"!...

Seu Marra sente-se obrigado a dar as costas. Opor carranca não adianta. Lalino vai para o meio dos outros, assoviando. Leva minutos para arregaçar bem as mangas.

E logo comenta, risonho e burlão:

-Xi, Correia!...

- Que é, comigo?

- P"ra que é que você põe tanto braço no braçal? Com menos força e mais de jeito, você faz o mesmo serviço, sem carecer de ficar suando, péde-couve no chuvisco!

- É... Mas, muito em-antes de muita gente nascer, eu...

- Você já penava que nem duas juntas de bois, p"ra puxar um feixinho de lenha, não é, fumaça?... Qual, eu estou é brincando... (Correia tinha feito uma cara ruim...)

Lá até que é um arraial supimpa, com a igrejinha trepada, bem no monte do morro... E as terras então, hein, Correia?! P"ra cana, p"ra tudo! (Correia se praz)...

Eu acho que nunca vi espigas de milho tào como as de lá...

- É. A terra é boa...

- Caprichada! E ainda estou por conhecer lugar melhor para se viver. Essa gente da Conquista é que diz que lá só tem fumaça de pretos... Mas isso é inveja, mas muita!

(Lalino passou a declamar(sorriso) Qual!... Criação de cavalo, é no Passa-Tempo... Povo p"ra saber discurso, no Dom Silvério... E, festa de igreja, no Japão... Mas,

terra

boa, de verdade, e gente boa de coraçào, isso é só lá no Rio-do-Peixe!

- Serve... Serve, seu Laio...

- Ah, eu inda hei de poder arranjar dinheiro p"ra comprar uns dez alqueires ali por perto, só de mato-de-lei... Ui, que você é um mestre neste

248 JOÃO GUIMARÀES ROSA / FICÇÃO CO

serviço, que até dá gosto ver!... (Correia descuidou sua tarefa, e agor picareta para Lalino, que põe mão na cintura e não pára de discorr É isso! Mando levantar

casa, com jardim em redor, mas só com fl mato: parasitas, de todas... E uma cerquinha de bambu, com trepa p"ra alastrar e tapar, misturadas, de toda cor... Onde

foi mesmo que assim?... Bom, depois compro mais terra... Imagina só: quero um queiro grande, bem fechado, e nele botar pacas... Vou criar! Aquilo cil... Ficam mansinhas

e gordas, que nem porco... Levando lá no B zonte, faço freguesia... Um tanque grande... Criar capivaras tamb óleo, só, já dá um dinheirão!...

- Tu é besta, Correia! Cavacando, aí, p"ra outro... - zomba Ge so, que parou para enrolar um cigarro.

-Te sara de invejas, siô! Pode ver ninguém com amizade, que ~ meça intrigando?... Caroço!... Ah, há-te, espera: hoje eu tenho uma boa... - E Lalino estende o maço

de cigarros. - Pode tirar mais. V eh, também?... (Generoso aceita, calada a boca, porque é Bovino razo sabe ser grato, valendo a pena.) Estou contando aqui um arranjo...

V eu aposto que nunca pensaram em ter um galinheiro enorme, cheio cus, de perdizes, de codornas... Mas hei de plantar também uma chá" como ninguém não viu, com as

qualidades de frutas... Até azeitona!

- Ara, azeitona de lata não pega! não dá!

- Ora se dá! Vocês ainda hão... Compro breve meus alqueirinh há de ser no Brumadinho, beira da estrada-de-ferro...

-Oh, seu Laio!... Pois, no começo, não estava dizendo que era minha terra, no Rio-do-Peixe?!...

- Sim, sim, é no Rio-do-Peixe mesmo, Correia! Falei variado, fo4 esquecimentos... Mas, melhor é o ror de enxertos que vou inventar: l ja-de-abril em goiabeiras...

Limão-doce no pé de pêssego... Vai ver, fruta, diferente de todas que há...

- Não pega!

- Pega! Deve de ser custoso, mas tem de se existir um jeito...

Mas Tercino, que é dono de um relógio quase do tamanho de u nho, olha as horas e olha depois o sol, para ter bem a certeza, e grita:

- Vamos boiar, gente... Está na hora do almoço!

A turma vem para as marmitas. Tercino acende um foguinho, aquentar a sua. Lalino trouxe apenas um pão-com-lingüiça.

- Isso de carregar comida cozinhada de madrugadinha, p"ra d comer requentada, não é minha regra. b coisa, ô Sidu! Por que é que está triste, homem?... Falar nisso,

hoje de noite, se seu Marrinha arr o merenguém, eu meio que pago cerveja. Feito?... A gente podia cha Lourival, com a sanfona. Isto aqui está ficando choroso demais...

Conradol Tu veio espiar o que a gente está comendo? Foi a espanh quem mandou você vir bater panela aqui?

Generoso e Correia se afastaram, catando gravetos. Generoso tem maus bofes:

- O que esse me arrelia, com o jeito de não se importar com nada! Só falando, e se rindo contando vantagens... Parece que vê passarinho verde toda-a-hora... Se reveste

de bobo!

- É mas, seja não: é só esperto, que nem mico-estrela...

E Correia se volta, para rever furtadamente o mulatinho, que lá gesticula, animado, no meio da roda.

- Prosa, só... Pirão d"água sem farinha!... Era melhor que ele olhasse p"r"a sua obrigação... Uns acham um assim sabido, que é -muito ladino; mas, como é que não

enxerga que o Ramiro espanhol anda rondando por perto da mulher dele?!

- Séria ela é, seu Generoso. Ela gosta dele, muito...

- É, mas, quem tem mulher bonita e nova, deve de trazer debaixo de olho... - E Generoso estalou um muxoxo: - Eu, tem hora que eu acho que ele é sem-brio, que não

se importa... Mas agora eu vou falar com ele, vou chamar à ordem...

- Acho que o senhor devia de não mexer com essas coisas, de famíliados-outros, seu Generoso. Isso nunca que dá certo!

- Tem perigo não... Só dar as indiretas!

Lalino tinha-se sentado num toco, perto das Boqueiras das bananeiras, e os outros rodeavam-no, todos de cócoras. Mas chega Generoso, com a língua mesmo querente:

- Então, seu Laio, esse negócio mesmo do espanhol...

-Ara, Generoso! Vem você com espanhol, espanhol!... Eu já estou farto dessa espanholaria toda... Inda se fosse alguma espanhola, isto sim!

- Mas, escuta aqui, seu Laio: o que eu estou falando é outra coisa...

- É nada. Mas, as espanholas!... Aposto que vocês nunca viram uma espanhola... Já?... Também, - Lalino ri com cartas - também aqui ninguém não conhece o Rio de Janeiro,

conhece?... Pois, se algum morrer sem conhecer, vê é o inferno!

- Ara, coisa!

- Tem lugar lá, que de dia e de noite está cheio de mulheres, só de mulheres bonitas!... Mas, bonitas de verdade, feito santa moça, feito retrato de folhinha...

Tem de toda qualidade... francesa, alemanha, turca, italiana, gringa... É só a gente chegar e escolher... Elas ficam nas janelas e nas portas, vestindo de pijama...

de menos ainda... Só vendo, seus mandioqueiros! Cambada de capiaus!...

- Desta vez a turma esta anzolada. Alargam as ventas, para se caber, rebebem as palavras. Lalino acertou. Faz um silêncio, para a estupefaçaO- E principalmente para

poder forjar novos aspectos, porque também ele, Eulálio de Souza Salãthiel, do Em-Pé-na-Lagoa, nunca passou além de Congonhas, na bitola larga, nem de Sabará, na

bitolinha, e, por-

SpGARANA

249

2So lOAO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COM

tanto, jamais pôs os pés na grande capital. Mas o que não é barra q detenha:

- Em nem sei como é que vocês ficam por aqui, trabalhando tanto, gastarem o dinheirinho suado, com essas negras, com essas roxas de ças... Me dá até vergonha, por

vocês, de ver tanta falta de vontade de ter gresso! Caso que não podem fazer nem uma idéia... Cada lourinha, u As francesas têm olho azul, usam perfume... E muitas

são novas, pare até moça-de-família... Pintadas que nem as de circo-de-cavalinho... E na seda, calçadas de chinelinhos de salto, vermelhos, verdes, azuis... E "querido"

p"ra cá, "querido" p"ra lá... A gente fica até sem jeito...

- Ó seu Laio! Faz favor!

É seu Marrinha chamando. Lalino se levanta, soflagrado, e os ou resmungam contra o chefe-da-turma, assim com caras.

- Acabou de almoçar, seu Laio?

- Estou acabando... Meu almoço é isto aqui...

E Lalino ferra os dentes no seu sanduíche, que, por falta de tempo, ainda intacto.

Seu Marra tem noção de hierarquia e tato suficiente. Começa:

- Olha, seu Laio, eu lhe chamei, para lhe aconselhar. A coisa assim vai!... Seu serviço precisa de render...

- Pois, hoje, eu estou com uma coragem mesmo doida de trabal seu Marrinha!...

- É bom... Carece de tomar jeito!... O senhor é um rapaz intelig de boa figura... Precisa de dar exemplo aos outros... Eu cá, palavra qu gosto de gente assim, que

sabe conversar... que tem rompante... Até s para fazer o papel do moço-que-acaba-casando, no teatro...

Seu Marra foi muito displicente no final. Deu a deixa, e agora olha o matinho lá longe, esperando réplica.

Mas não pega. Não pega, porque, se bem que Lalino esteja cansa saber o que é que o outro deseja, não o pode atender: do Visconde Se mal conhece o título, ouvido

em qualquer parte.

- Qual, isso é bondade sua, seu Marrinha... São seus olhos melho

- Não. Eu sou muito franco... Quando falo que é, é porque é mo... (Pausa)... Quem sabe, a gente podia representar esse drama, seu Laio?... Como é que chama mesmo?...

"O Visconde Sedutor"... que você disse, não foi?

- Isso mesmo, seu Marrinha.

Definição, amável mas enérgica:

- Bem, seu Laio. Vamos sentar aqui nestas pedras e você vai me

a peça.

Agora não tem outro jeito. Mas Lalino não se aperta: há atualment seus miolos uma~circunvoluçãozinha qualquer, com vapor solto e frouxos, e tanto melhor.

SA~A~NA 251

.O primeiro ato, é assim, seu Marrinha: quando levanta o pano, é uma casa de mulheres. O Visconde, mais os companheiros, estão bebendo junto com elas, apreciando

música, dançando... Tem umas vinte, todas bonitas, umas vestidas de luxo, outras assim... sem roupa nenhuma quase...

- Tu está louco, seu Laio!?... Onde que já se viu esse despropósito?!... Até o povo jogava pedra e dava tiro em cima!... Nem o subdelegado não deixava a gente aparecer

com isso em palco... E as famílias, homem? Eu quero é levar peça para famílias... Você não estará inventando? Onde foi que tu viu isso?

- Ora, seu Marrinha, pois onde é que havia de ser?!... No Rio de Janeiro! Na capital... Isso é teatro de gente escovada...

- Mas, você não disse, antes, que tinha sido companhia, lá no Bagre?

- Cabeça ruim minha. Depois me alembrei... No Bagre eu vi foi a "Vingança do Bastardo"... Sabe? Um rapaz rico que descobriu que a...

- Espera! Espera, homem... Vamos devagar com o terço. Primeiro O"Visconde Sedutor". Acaba de contar.

- Bem, as mulheres são francesas, espanholas, italianas, e tudo, falando estrangeirado, fumando cigarros...

- Mas, seu Laio! Onde é que a gente vai arranjar mulher aqui para representar isso?... De que jeito?!

- Ora, a gente manda vir umas raparigas daí de perto...

- Deus me livre!

- Ou então, seu Marra, os homens mesmo podem fantasiar de mulher... Fica até bom... No teatro que seu Vigário arranjou, quando levaram a...

-Aquilo nem foi teatro! Vida de santo, bobagem! Bem, conta, conta seu Laio... Depois a gente vai ver.

- Bom, tem uma francesa mais bonita de todas, lourinha, com olhos azulzinhos, com vestido aberto nas costas... muito pintada, linda mesmo... que senta no colo do

Visconde e faz festa no queixo dele... depois abraça e beija...

- Espera um pouco, seu Laio...

~ o caminhão da empresa, que vem de volta. Parou.

- Alguma coisa, seu Waldemar? - pergunta seu Marra.

_ Nada, não. Quero só lembrar a esse seu Lalino, que ele não deixe de ir hoje Está ensinando a patroa a tocar violão, mas já tem dias que ele não aparece lá em casa...

Foi por doença, seu Waldemar... E, trasantontem, umas visitas, que me empalharam de ir...

dia_ Bem, bem, mas seja, hoje não tem desculpa. E, olhe: um dia é um

pode chegar para jantar... No em-ponto!

Seu Marra se lembrou de qualquer assunto:

252 JOÀO GUIMARÃES ROSA ~ PICÇÃO COMP

- Bem, seu Laio, o senhor agora pode ir. Eu tenho uma conversa p cular, aqui com seu Waldemar.

- Pois não, seu Marrinha, depois o resto eu conto. Adèusinho,~ Waldemar, até mais logo!

Lalino se afasta com o andar pachola, esboçando uns meios pass corta-jaca, e seu Waldemar o acompanha, com olhar complacente.

- Mulatinho levado! Entendo um assim, por ser divertido. E não adulador,"mas sei que não é covarde. Agrada a gente, porque é alegre è ver todo-o-mundo alegre, perto

de si. Isso, que remoça. Isso é reger o vi

- É o que eu acho... Só o que tem, que, às vezes, os outros po aprovar mal o exemplo...

- Concordo. Já pensei, também. Vou arranjar para ele um servi parte, no armazém ou no escritório... E é o que convém, logo: veja só..

Lalino, que empunha a picareta, comandando o retorno à lida, e ti do, para que os outros o acompanhem, desafinadíssimo, um coco:

E, aí, com a partida de seu Waldemar, a cena se encerra completar modo de um final de primeiro ato.

Nessa tarde, Lalino Salãthiel não pagou cerveja para os companhe nem foi jantar com seu Waldemar. Foi, sim, para casa, muito cedo, p mulher, que recebeu, entre espantada

e feliz, aquele saimento de caris requintes. Porque ela o bem-queria muito. Tanto, que, quando ele meceu, com seu jeito de dormir profundo, parecendo muito um m

Maria Rita ainda ficou longo tempo curvada sobre as formas tranqüil rosto de garoto cansado, envolvendo-o num olhar de restante ternura.

Na manhã depois, vendo que o marido não ia trabaíhar, esperoú milagre de uma nova lua-de-mel. Enfeitou-se melhor, e, silenciosa, quieta vigilância, desenrolava,

dedo a dedo, palmo a palmo, o grande a teia sorrateira que às mulheres ninguém precisa de ènsinar.

Mas, agora, Lalino andava pela casa e fumava, pensando, o que a mava, por inabitual. Depois ele remexeu no fundo da mala. No fun mala havia uns números velhos de

almanaques e revistas..

E Lalino buscava as figuras e fotografias de mulheres. É, devia d

SpGpRpNA 253

assim. - . Feito esta. Janelas com venezianas... Ruas e mais ruas, com elas.. . Quem foi que falou em gringas, em polacas?... Sim, foi o Sizino Baiano, o marinheiro,

com o peito e os braços cheios de tatuagens, que nem turco mascate-de-baú... Mas, os retratos, quem tinha era o Gestal guarda-freios: uma gorda... uma de pintinhas

na cara... uma ainda quase menina... Chinelinhos de salto, verdes, azuis, vermelhos... Quem foi que falou isso? Ah, ninguém não disse, foi ele mesmo quem falou...

E aquela gente da turma, acreditando em tudo, e gostando! Mas, deve de ser assim. Igual ao na revista, claro...

Maria Rita, na cozinha, arruma as vasilhas na prateleira. Não sabe de nada, mas o arcanjo-da-guarda das mulheres está induzindo-a a dar a últimainvestida, está mandando

que ela cante, com tristeza na voz, o: Eu vim de longe, bem de longe, p"ra te ver..."

... Bem boazinha que ela é... E bonita... (Agora, como quem se esconde em neutro espaço, Lalino demora os olhos nos quadros de guerras antigas, nessas figuras que

parecem as da História Sagrada, no plano de um étero-avião transplanetário, numa paisagem africana, com um locomoveste rinoceronte...) Mas, são muitas... Mais de

cem?... Mil?!... E é só escolher: louras, de olhos verdes... É, Maria Rita gosta dele, mas... Gosta, como toda mulher gosta, aí está. Gostasse especial, mesmo, não

chorava com saudades da mãe... Não ralhava zangada por conta dele se rapaziar com os companheiros, não achava ruim seu jeito de viver... Gostasse, brigavam?

E na revista de cinema havia uma deusa loira, com lindos pés desnudos, e uma outra, morena, com muita pose e roupa pouca; e Maria Rita perdeu.

... Bom, quem pensa, avessa! Vamos tocar violão...

Depois do almoço, saiu. Andou, andou. E se resolveu.

Foi fácil. Tinha algum saldo, pouco. João Carmelo comprava o carroção e o burrinho. Seu Marra fez o que pôde para dissuadi-lo; depois, disse: - "Está direito. Você

é mesmo maluco, mas mais o mundo não é exato. Se veja..." - O pagamento, porém, tinha de ser em apólices do Estado, ao menos metade. - Sim sim, está direito, seu

Marrinha. Em ótimo! - Porque a ação tinha de ser depressinha, depressa, não de dúvidas... E Lalino dava passos aflitos e ajeitava o pescoço da camisa, sem sossego

e sem assento.

Com seu Waldemar, foi mais árduo, ele ainda perguntou: - "Mas que e Sue já vai fazer, seu Lalino?... Quer a vagabundagem inteirada?" - Vou P ra o Belorizonte...

Arranjeizinho lá um lugar de guarda-civil... O senhor sabe: é bom ir ver. Mas um dia a gente volta! - "Mentira pura, a mim tu não engana... Mas deve de ir... Em

qualquer parte que tu "teja tu "tá em casa... podem te levar de-noite p"r"a estranja ou p"r"a China, e largar lá errado dormindo, que de-manhã já acorda engazopando

os japonês!"...

- Adeus, seu Waldemar!

Mas, dez passos feitos, volta-se com uma micagem:

"Eu voú ralando o coco, ralando até aqui...

Eu vou ralando o coco, morena,

o coco do ouricuri!..."

II

254 lOÃO GUIMARÃES ROSA ~ FICÇÃO COME

-Adeus, seu Waldemar!... "Fé em Deus, e... unha no povo!"...

Tinha oitocentos e cinqüenta mil-réis. Mas, vendidas as apólices p Viana, deram seiscentos. Bom, agora era o pior... E, até chegar pert casa, escarafunchava na memória

todos os pequenos defeitos da mulh

Mas, quem é aquele? Ah, é o atrevido do espanhol, que está rabea Bem... Bem.

Seu Ramiro, quis, mas não pôde esquivar-se. Espigado e bigodud ranja um riso fora-de-horas, e faz, apressado, um rapapé:

- Como lhe vão as saúdes, senhor Eulálio? Estava cá aguardando vinda, a perguntar-lhe se há que haver mesmo uma festinha hoje, don Moreiras... É dizer, a festa,

sei que vai ser, mas queria saber... queria s se o senhor também...

(Nada importa. Foi o diabo quem mandou o espanhol aqui... Ele muito dinheiro junto, é o que o povo diz.)

- Seu Ramiro, se chegue. Escuta: tenho um particular, muito im tante, com o senhor...

- Mas, senhor Eulálio, eu lhe garanto... À ordem, senhor Euláli Que há? O senhor sabe, que, a mim, eu gosto de estimar e respeitar os amigos, e, grande principalmente,

as suas famílias excelentíssimas...

(É preciso um sorriso, um só, senão o espanhol fica com medo. depois, fecha-se a cara, para a boa decência... )

- Eu sei, eu sei. Olhe aqui, seu Ramiro: eu quero é que o senho empreste um dinheiro. Uns dois contos de réis... Feito?

- Mas, senhor Eulálio... O senhor sabe... As posses não dão.. coisas...

- Olhe, seu Ramiro... a estória é séria... Eu vou-m"embora d A mulher fica... Vou me separar... Ela não sabe de nada, porque e~ assim meio assim, de fugido... O

senhor me empresta o dinheiro, qué que falta. Senão, eu não posso ir... É só emprestado. Daqui a uns seiSl ses, lhe pago. Mando. Tenho um emprego bom, arranjei -

vou ser dor de bonde, no Rio de Janeiro... Se não, eu não posso ir... (Ago hora de uma série de ares.) Sem dinheiro, não vou. Não vou ir... Co que posso?!...

O espanhol está com os beiços trêmulos e alisa a dedos a aba do p

- Com que... mas, o senhor está declarando, senhor Eulálio? acaso, não vai se arrepender... Nunca mais voltará aqui, o afirma?

- De certo que não. Não seja! (Lalino tem outro acesso de prec ção(sorriso) Ixe, já viu sapo não querer a água?! Então, arranja o cobre, não e tem que ser é p"r"agorinha...

- Mire: um conto eu posso... Fazendo um sacrificiozinho, cara - Serve, serve. Mas é de indo já buscar, que o caminhão sai em p"ra o Brumadinho... A já!

Agora, entra ou não entra em casa? Não tem que levar nada, s

$AGARANA 2S5

mulher desconfia... Mas entra: o coração está mandando que ele vá se despedir... E pega a brincar. Maria Rita está no diário, está normalmente. Brincando, brincando,

Lalino lhe dá um abraço, apertado.

- Você é bobo... Laio - ela diz, enjoosa.

Agora, disfarçando, ele põe uma nota de quinhentos em cima da mesa... Vamos! Senão a coragem se estraga.

- Você já vai sair outra vez?

- Vou ali, ver o-que que o Tercino quer...

O Ramiro espanhol, soprando de cansado, já está lá debaixo do tamarindeiro. Trouxe, certo, um conto, em cédulas de cem.

- Tudo num santiamém, senhor Eulálio... Mire o que digo...

- Té quando Deus quiser! O dinheiro eu lhe mando, seu Ramiro.

Vai afadigado. Sobe para o lado do chauffeur.

- Não carece de buzinar, seu Miranda... Vamos ligeiro...

Brumadinho, enfim. Ainda não estão vendendo passagens. - Vem tomar uma cerveja, seu Miranda. Oi! Que é aquilo, meu-deus? Ah, é a ciganada que está indo embora. Pegaram

um dinheirão, levando gente de automóvel p"r"a Santa Manoelina dos Coqueiros, que agora está no Dom Silvério. Olha: tem uma ciganinha bem bonita. Mas isto é povo

muito sujo, seu Miranda. Não chegam aos pés das francesas... Seu Miranda, escuta: vou lhe pedir um favor.

- Que é, seu Laio?

- Olha, fala com a Ritinha que eu não volto mais, mesmo nunca. Vou sair por esse mundo, zanzando. Como eu não presto, ela não perde... Diz a ela que pode fazer o

que entender... que eu não volto, nunca mais...

-Mas, seu Laio... Isso é uma ação de cachorro! Ela é sua mulher!...

-Olha, seu Miranda: eu, com o senhor, de qualquer jeito: à mão, a tiro, ou a pau, o senhor não pode comigo - isto é - não é?... Então, bem, eu sei que não é por

mal, que o senhor está falando. E agora eu não quero me amofinar, não tenho tempo p"ra estragar a cabeça com raiva nenhuma, à toa-ã toa. Sou boi bravo nem cachorro

danado, p"ra me enraivar? Mas, é bom o senhor pensar um pouco, em antes de falar, hein?

- Bom, eu não tenho nada com coisas dos outros...

- E, é. Quiser dar o recado, dá. Não quiser, faz de conta.

Apitou. O trem.

-Adeus, seu Miranda!... Me desculpe as coisas pesadas que eu falei, que é porque eu estou meio nervoso...

- Inda está em tempo de ter juízo, seu Laio! O senhor pode merecer um castigo de Deus...

a - Que nada, seu Miranda! Deus está certo comigo, e eu com ele. Isto gora é que é assunto meu particular... Alegrias, seu Miranda!

- Não vai, não, seu Laio! Pensa bem...

Nos pântanos da beira do Paraopeba, também os sapos diziam adeus.

256 Jono GUIMARÃES Rosn / FicçAO CoM

Ou talvez estivessem gritando, apenas: - Não! Não! Não!... Bão!t Bão!... - em notável e aquática discordância.

E foi assim, por um dia haver discursado demais numa pausa de de almoço, que Eulálio de Souza Salãthiel veio a tomar uma vez o tre oito e cinqüenta e cinco, sem

bênçãos e sem matalotagem, e com o do dinheiro defendido por um alfinete-de-mola. Procurou assento, re tou-se, e fechou os olhos, saboreando a trepidação e sonhando

- so errados por excesso - com o determinado ponto, em cidade, onde liscas veteranas apregoavam-aos transeuntes, com frinéica desenvolto amor: bom, barato e bonito,

como o queriam os deuses.

Um mês depois, Maria Rita ainda vivia chorando, em casa.

Três meses passados, Maria Rita estava morando com o espanhol.

E todo-o-mundo dizia que ela tinha feito muito bem, e os que difé dessa opinião não eram indivíduos desinteressados. E diziam tambét~7y o marido era um canalha,

que tinha vendido a mulher. E que o R espanhol era um homem de bem, porque estava protegendo a aban da, evitando que ela caísse na má-vida.

Mas, no final dos comentários, infalível era a harmonia, em sen convergência:.

- Mulatinho indecente! Cachorro lambeu a vergonha da cara del jeito ordinário... Eu em algum dia me encontrar com ele, vou cuspiu fuça!... Arre, nojo!... Tem cada

um traste neste mundo!...

E assim se passou mais de meio ano. O trecho da rodovia ficou pró O pessoal de fora tomou rumo, com carroções e muares, famílias é f mentas,-e bolsos cheios de apólices,

procurando outras construções.

Mas os espanhóis ficaram. Compraram um sítio, de sociedade. ram relações e se fizeram muito conceituados, porque, ali, ter um p. de terra era uma garantia e um título

de naturalização.

As aventuras de Lalino Salãthiel na capital do país foram bonitas, m podem ser pensadas e não contadas, porque no meio houve ííemásia dé ralidade. Todavia, convenientemente

expurgadas, talvez mais tarde a çam, juntamente com a estória daquela rã catacega, que, trepando na vendo o areal rebrilhante à soalheira, gritou - "Eh, aguão!..:"

- e com gosto, e, queimando as patinhas, deu outro pulo depressa para

Portanto: não, não fartava, as hurís eram interesseiras, diversas e do, indiferentes, apressadas, um desastre; não prezavam discursos,

SAGARANA ZS7

queriam saber de românticas histórias. A vida... Na Ritinha, nem não devia de pensar. Mas, aquelas mulheres, de gozo e bordel, as bonitas, as lindas, mesmo, mas

que navegavam em desafino com a gente, assim em apartado, no real. Ah, era um outro sistema.

Aquilo cansava, os ares. Havia mal o sossego, demais. Ah, ali não valia a pena.

Ir-se embora? Não. O ruim era só no começo; por causa da inveja e das pragas dos outros, lá no arraial... Talvez, também, a Ritinha estivesse fazendo feitiços, para

ele voltar... Nunca.

Caiu na estrepolia: que pândega! Antes magro e solto do que gordo e não... Que pândega!

Mas, um indivíduo, de bom valor e alguma idéia, leva no máximo um ano, para se convencer de que a aventura, sucessiva e dispersa, aturde e acende, sem bastar. E

Lalino Salãthiel, dados os dados, precisava apenas de metade do tempo, para chegar ao dobro da conclusão.

O dinheiro se fora. Rareavam os biscates. Veio uma espécie de princípio de tristeza. E ele ficou entibiado e pegou a saudadear.

Foi quando estava jantando, no chinês:

- E se eu voltasse p"ra lá? É, volto! P"ra ver a cara que aquela gente vai fazer quando me ver...

Deu uma gargalhada de homem gordo, e, posto de lado o dinheiro para a passagem de segunda, organizou o programa de despedida: uma semaninha inteira de esbórnia e

fuzuê.

A semana deu os seus dias.

Quando entrou no carro, aconteceu que ele teve vontade de procurar um canto discreto, para chorar. Mas achou mais útil recordar, a meia-voz, todas as cantigas conhecidas.

Um paraibano, que vinha também, gostou. Garraram a se ensinar, letras e tons, tudo ótimo.

E, tarde da madrugada, com o trem a rolar barulhento nas goelas da Mantiqueira, no meio do frio bonito, que mesmo no verão ali está sempre tinindo.. ,;

-Quero só ver a cara daquela gente, quando eles me enxergarem!...

Riu, e aquele foi o seu último pensamento, antes de dormir. Desse jeito, não teve outro remédio senão despertar, no outro dia, pomposamente, terrivelmente feliz.

V

Quando Lalino Salãthiel, atravessado o arraial, chegou em casa do espanhoh já estava cansado de inventar espírito, pois só com boas respostas é que ia podendo enfrentar

as interpelações e as chufas do pessoal.

- Eta, gente! Já estavam mesmo com saudade de mim...

Ramiro viu-o da janela, e sumiu-se lá dentro.

III

IV

ZSH IOÃO GUIMARÃES ROSA ~ FICÇÃO COM

Foi amoitar a Ritinha e pegar arma de fogo... - Lalino pensou.

Já o outro assomava à porta, que, por sinal, fechou meticulosa atrás de si. E caminhou para o meio da estrada, pálido, torcendo o bi de pontas centrípetas.

- Compassou, seu Ramiro? Bem?

- Bem, graças... O senhor a que vem?... Não disse que não va nunca mais?... Que pretende fazer aqui?

- Tive de vir, e aproveitei para lhe trazer o seu dinheiro, par pagar...

(Ainda bem! - o espanhol respira. - Então, ele não veio pa a negociar.)

- Mas, não é nada... Não é necessário. Nada tem que me pagar..: vista de certos acontecidos, como o senhor deve saber... eu... Bem, se só por isso, não me deve mais

nada, caramba!

(Agora é Lalino - que não tem tostão no bolso - quem se soluciü

- Bem, se o senhor dá a conta por liquidada, eu lhe pego da pal porque "sal da seca é que engorda o gado!..." O dinheiro estava aq algibeira, mas, já que está tudo

quites, acabou-se. Não sou homem s bo!... Mas, olha aqui, espanhol: eu não tenho combinado nenhum você, ouviu?! Tenho compromisso com ninguém!

- Mas, certo o senhor Eulálio não vai a quedar-se residindo aqui, verdade? Ao melhor, pelo visto, estou seguro de que o senhor se vai...

- Que nada, seu espanhol... Não tenho que dar satisfação a ning tenho?... E agora, outra coisa: eu quero-porque-quero conversar com tinha!

Lalino batera a mão no cinturão, na coronha do revólver, como algum mal, e estava com os olhos nos do outro, fincados. Mas, para su sa, o espanhol aquiesceu:

- Pois não, senhor Eulálio. Comigo perto, consinto... Mas nã aproveita, que ela não o quer ver nem em pinturas!

Lalino titubeia. Decerto, se o Ramiro está tão de acordo, é porque que a Ritinha está impossível mesmo, em piores hojes.

- Qual, resolvi... Bobagem. Quero ver mais a minha mulher tam não... O que eu preciso é do meu violão... Está aí, hem?

- Como queira, senhor Eulálio... Vou buscar o instrumento... momentito.

Lalino se põe de cócoras, de costas para a casa, para estar já deboch do espanhol, quando o cujo voltar.

- Aqui está, senhor Eulálio. Ninguém lhe buliu. Não se o tirou d capado... Há mais umas roupas e algumas coisitas suas, de maneiras Onde as devo fazer entregar?...

- Depois mando buscar. Não carece de tomar trabalho. Bem, mais nada que conversar. Espera, o senhor está tratando bem da Ri

Sn~~R^"A 259

phn, não é por nada não. Mas, se eu souber que ela está sendo judiada!... Bem. Até outro dia, espanhol.

- Passe bem, senhor Eulálio. Deus o leve...

Mas Lalino não sabe sumir-se sem executar o seu sestro, o volta-face gaiato:

- Ô espanhol! Quando tu vinha na minha porta, eu te mandava entrar p"ra tomar um café com quitanda, não era?

- Oh, senhor Eulálio! Me desculpe... mas...

- Você é tudo, bigodudo!... Não vê que eu estou é arrenegando?!

Sobre o que, Ramiro vê o outro se afastar, sem mais, no gingar, em arte de moleque capadócio.

E talvez Lalino fosse pensando: - Está aí um que está rezando p"ra eu levar sumiço... Eu quisesse, à força, hoje mesmo a Ritinha vinha comigo... E se... Ah, mas

tem os outros espanhóis, também... Diabo! É, então vamos ver como é que a abóbora alastra... e deixa o tiziu mudar as penas, p"ra depois cantar...

Olhou se o pinho estava com todas as cordas.

- Vou visitar seu Marrinha...

No caminho, cruza com o Jijo, que torce a cara, respondendo mal ao cumprimento.

- Onde é que vai indo, seu Jijo?

- Vou no sítio. Estou trabalhando p"ra seu Ramiro mais seu Garcia.

- E p"ra seu Echeviro e seu Saturnino e seu Queiroga, e p"r"a espanholada toda, não é? Mas, então, seu Jijo, você não tem vergonha de trabalhar p"ra esses gringos,

p"ra uns estranjas, gente essa, gente à-toa?!

- Eu acho pouca-vergonha maior é...

- Olha, seu Jijo, pois enquanto você estiver ajustado com esse pessoal, nem me fale, hein?!... Nem quero que me dê bom-dia!... Olha: eu estou vindo da capital: lá,

quem trabalha p"ra estrangeiro, principalmente p"ra espanhol, não vale mais nada, fica por aí mais desprezado do que criminoso... É isso mesmo. E nem espie p"ra

mim, enquanto que estiver sendo escravo de galego azedo!

O Jijo quase corre. Se foi. Lalino, já que parou, contempla os territórios ao alcance do seu querer.

Bom, pousei no bom: estou vendo que já tem melancias maduras... Roça do Silva da Ponte... Melancia não tem dono!... Depois eu vou no seu Marrinha.

Torna a trilha da beira do córrego. Mas, que lindeza que é isto aqui! Não e 9°e eu não me lembrava mais deste lugar?!

Somente a raros espaços se distingue a frontaria vermelha do barranco. Omais é uma mistura de trepadeiras floridas: folhas largas, refilhos, sarmentos, avinhas,

e, em glorioso e confuso trançado, as taças amarelas da erya"cabrgita, os fones róseos do carajuru, as campânulas brancas do cipó-

26O JOÃO GUIMARÃES ROSA ~ FICÇÃO CO

de-batatas, a cuspideira com campainhas roxas de cinco badalos, e os azulados da flor-de-são-joão.

Lalino depõe o violão e vai apanhar uma melancia. Tira o paletó, rosto. Come. Faz travesseiro com o paletó dobrado, e deita-se no cap sombra do ingá-açu, namorando

a ravina florejaste. Corricaram, s mangues-brancos; voou uma ave; mas não era hora de canto de pa nhos. Foi Lalino quem cantou:

"Eu estou triste como sapo na lagoa..."

Não, a cantiga é outra, com toada rida:

"Eu estou triste, como o sapo na água suja..."

E, no entanto, assim como não se lembrava do lugar das trepad não está pensando no sapo. No sapo e no cágado da estória do sapo cágado, que se esconderam, juntos,

dentro da viola do urubu, para p rem ir à festa no céu. A festa foi boa, mas, os dois não tendo tido tem entrar na viola, para o regresso, sobraram no céu e foram

descob E então São Pedro comunicou-lhes: "Vou varrer vocês dois lá para b Jogou primeiro o cágado. E o concho cágado, descendo sem pára-que. vendo que ia bater mesmo

em cima de uma pedra, se guardou em si e tou: "Arreda laje, que eu te parto!" Mas a pedra, que era posta e pro não se arredou, e o cágado espatifou-se em muitos

pedaços. Remend no, com esmero, e daí é que ele hoje tem a carapaça toda soldada de p Mas, nessa folga, o sapo estava se rindo. E, quando São Pedro perg por que,

respondeu: "Estou rindo, porque se o meu compadre cas soubesse voar, como eu sei, não estava passando por tanto aperto..." tão, mais zangado, São Pedro pensou um

pouco, e disse:

- "É assim? Pois nós vamos juntos lá embaixo, que eu quero pi você, ou na água ou no fogo!" E aí o sapo choramingou: "Na água Patrão, que eu me esqueci de aprender

a nadar..." - "Pois então é água mesmo que você vai!..." - Mas, quando o sapo caiu no poço, es para os lados as quatro mãozinhas, deu uma cambalhota, foi ver se

otinha fundo, mandou muitas bolhas cá para cima, e, quando teve te veio subindo de-fasto, se desvirou e apareceu, piscando olho, para "Isto mesmo é que sapo quer!..."

E essa é que era a variante verdadeira da estória, mas Lalino Sal nem mesmo sabia que era da grei dos sapos, e já estava cochilando, bém.

Daí a pouco, acordou, com um tropel: é o seu Oscar, que anda co tando tapumes e vem vindo na égua ruça. - O-quê!? seu Laio!... Tu está de volta?!... Não é possível!

SAGARANA 261

. "Terra com sede, criação com fome", seu Oscar...

. E chegou hoje?

-Ainda estou cheirando a trem... Vim de primeira... - Ô-ome!

- Só o que não volta é dinheiro queimado, seu Oscar! - E agora?

- Enquanto um está vivendo, tem o seu lugar. - E a sua vida?

- Moída e cozida...

- Já se viu?! Então, agora, ainda vai atrapalhar mais as coisas? Decerto

vai querer tornar a tomar a mulher que você vendeu, ahn? Não deve de

fazer isso. Piorou!

- Que nada, seu Oscar. Eu estou querendo é sossego.

-A-hã?... Uê... Então... Mas, então, tu não vai cobrar teu direito do

espanhol? Vai deixar a sá Ritinha com o Ramiro?... Malfeito! Isso é ter

sangue de barata... Seja homem! Deixar assim os outros desonrando a

gente?! .. .

- Ara, ara, seu Oscar! Uai! Pois o senhor não estava dizendo primeiro

que era errata eu querer me intrometer com eles? Pois então?!

-Ora, seu Laio, não queira me fazer de bobo, hom"essa!... Bem que

sabe o-que que eu quero dizer... Eu mesmo gosto de gente aluada, quando

são assim alegres e têm resposta p"ra tudo. Por isso é que estou dando con

selho...

- Eu sei, seu Oscar... Lhe fico até agradecido... Mas, o senhor repare:

se eu for agora lá, derrubo cinza no mingau! A Ritinha, uma hora destas,

há-de estar me esconjurando, querendo me ver atrás de morro... E a espa

nholada, prevenida, deve de estar arreliada e armada, me esperando. Sou lá

besta, p"ra pôr mão em lagarta-cabeluda?! Eu não, que não vou cutucar

caixa de mangangaba...

- É, isso lá é mesmo. Mas, e ela? - Vou chamar no pio. - E o espanhol? - Vai desencostar e cair. -Mas, de que jeito, seu Laio? - Sei não.

- E você fica aí, de papo p"ra riba?

- Esperando sem pensar em nada, p"ra ver se alguma idéia vem... - Hum-hum!

- E o que é, seu Oscar. Viver de graça é mais barato... É o que dá

mais, , .

- E os outros, seu Laio? A sociedade tem sua regra... Isso não é modinha que eu inventei. Tá varrido!

262 JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO CO

- Pode que seja, seu Oscar. Dou água aos outros, e peço água, q estou com sede... Este mundo é que está mesmo tão errado, que ne a pena a gente querer concertar...

Agora, fosse eu tivesse feito o m por um exemplo, seu Oscar, ah! isso é que havia de ser rente!... Magi eu agora estava com vontade de cigarrar... Sem aluir daqui,

sem nemï os olhos direito, eu esticava o braço, acendia o meu cigarrinho lá no s depois ainda virava o sol de trás p"ra diante, p"ra fazer de-noite e a poder dormir...

Só assim é que valia a pena!...

- Cruz-credo! seu Laio. Toma um cigarro, e está aqui o isqueiro.. de fumar, sem imaginar tanta bobagem... Essa pensação besta é que qualquer um maluco, é que atrapalha

a sua vida. Precisa de tomar fazer o que todo-o-mundo faz!... Olha: tu quer, mas quer mesmo, d dade, acertar um propósito? Se emendar?

- Pois então, seu Oscar! Quero! Pois quero! Eu estou campean isso mesmo...

- Bom, prometer eu não prometo... Não posso. Mas vou falar

velho. Vou ver se arranjo p"ra ele lhe dar um serviço.

- Lhe honro a letra, seu Oscar! Não desmereço...

- Eu acho de encomenda, p"ra um como você, tomar uma empret

com essa política, que está brava...

- Isto! seu Oscar... O senhor já pode dizer ao velho que eu altar

parte minha! Ah, isto sim! Agora é que essa gente vai ver, seu Oscar..:

ver que eleiçãozinha diferente que vai ter... Arranja mesmo, seu Osc

Já estou aflito... Já estou vendo a gente ganhando no fim da mão! - Não pega fogo, seu Laio. Vou indo... - Seu Oscar...

- Que é mais?

- Como vai passando o seu Marrinha? - Se mudou. Foi p"ra o Divinópolis... - Ara! foi?

- Ganhou bom dinheiro... Disse que quer pôr um teatro lá... - Me agrada! Ô homem inteligente!

Além de chefe político do distrito, Major Anacleto era homem de pr pios austeros, intolerante e difícil de se deixar engambelar. Foi categó

- Não me fale mais nisso, seu Oscar. Definitivamente! Aquilo égrandissíssimo cachorro, desbriado, sem moral e sem temor de De Vendeu a família, o desgraçado! Não

quero saber de bisca dessa mar E, depois, esses espanhóis são gente boa, já me compraram o carro gra os bezerros... Não quero saber de embondo!

263

SAGARpIJA

Seu Oscar falou manso:

. Está direito, pai... Não precisa de ralhar... Eu só pensei, porque

o ,nulatin ra eoder corm as s nv ee onheiras do Beri eno co oai dssoal d ~e,

nei que, p" P g g P

do pior... Mas já que o senhor não quer, estou aqui estou o que não. Agora, mudando de conversa: topei com outro boi ervado, no pastinho do açude...

Esse "mudando de conversa", com o Major Anacleto, era tiro e queda: pingava um borrão de indecisão, e pronto. Mas seu Oscar, pouco hábil, vinha ultimamente abusando

muito do ardil. Por isso o Major soube que o filho estava sabendo e esperando a reação. E ele nunca dava nem um dedo a torcer.

Mas, aí, Tio Laudônio - sensato e careca, e irmão do Major - viu que era a hora de emitir o seu palpite, quase sempre o derradeiro.

Porque, Tio Laudônio, quando rapazinho, esteve no seminário; depois, soltou vinte anos na vida boêmia; e, agora, que deu outra vez para sisudo, a síntese é qualquer

coisa de terrível. Devoto por hábito e casto por preguiça, vive enfurnado, na beira do rio, pescando e jogando marimbo, quando encontra parceiros. Pouquíssimas vezes

vem ao arraial, e sempre para fins bem explicados: no sábado-de-aleluia, para ajudar a queimar o judas; quando tem circo-de-cavalinhos, por causa da moça - nada

de comprometedor, apenas gosta de ter o prazer de ir oferecer umas flores à moça, no meio do picadeiro, exigindo para isso grande encenação, com a charanga funcionando

e todos os artistas formando roda; quando há missões ou missa-cantada, mas só se por mais de um padre; ou, então, a chamado do Major, em quadra de política assanhada,

porque adora trabalhar com a cabeça. Fala sussurrado e sorrindo, sem pressa, nunca repete e nem insiste, e isso não deixa de impressionar. Além do mais, e é o que

tem importância, Tio Laudônio "chorou na barriga da mãe" e, como natural conseqüência, é compadre das coisas, enxerga no escuro, sabe de que lado vem a chuva, e

escuta o capim crescer.

- Um mulato desses pode valer ouros... A gente esquenta a cabeça dele, depois solta em cima dos tais, e sopra... Não sei se é de Deus mesmo, mas uns assim têm qualquer

um apadrinhamento... É uma raça de criaturas diferentes, que os outros não podem entender... Gente que pendura o chapéu em asa de corvo e guarda dinheiro em boca

de jia... Ajusta o mulatinho, mano Cleto, que esse-um é o Saci.

~ Major sabia render-se com dignidade:

-Bem bem, já que todos estão pedindo, que seja! Mandem recado p"ra ele vir amanhã. Mas é por conta de vocês... E nada de se meter com os espanhóis! Isso eu não admito.

Absolutamente!...

Deu passadas, para lá e para cá, e:

Seu Oscar!?

VI

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z65

- Nhor, pai?

- E avisa a ele para não vir falar comigo! Explica o-que que ele t fazer... Eu é que não abro boca minha para dar ordens a esse tralha, deu?!

- O senhor é quem manda, pai.

VII

Entretanto, Eulálio de Souza Salãthiel parecia ter pouca pressa de as as suas novas funções. Não veio no dia seguinte. E quando aparec fazenda, só quarta-feira de-tarde,

foi na horinha mesmo em que o Má referia à sua pessoa, caçoando do seu Oscar e de Tio Laudônio, di que o protegido deles começava muito final, e outras coisas mais;

formemente.

E, quando o mulatinho subiu, lépido, a escadinha da varanda, Anacleto, esquecido da condição ditada em hora severa, dispensou o i médio de seu Oscar, e chofrou o

rapaz:

- Fora! Se não quer tomar vergonha e preceito, pode ir su daqui! O senhor está principiando bem, hein?! Está pensando que é dor ou bispo, para ter seu estado?

Mas teve de parar, porque Lalino, respeitosamente ereto, desfreo tarata:

- Seu Major, faz favor me desculpe! Demorei a vir, mas foi por que não queria chegar aqui com as mãos somenos... Mas, agora, muita coisa p"ra lhe avisar, que o senhor

ainda não sabe... Olhe aqui: o-mundo no Papagaio vai trair o senhor, no dia da eleição. Seu Be andou por lá embromando o povo, convidando o Ananias p"ra ser có dre

dele, e o diabo!... Na Boa Vista, também, a coisa está ruim: quem da mais lá é o Cesário, e ele está de palavras dadas com os "marimbo Lá na beira do Pará, seu Benigno

está atiçando uma briga do seu An com seu Martinho, por causa das divisas das fazendas... Todos dois, mo sendo primos do senhor, como são, o senhor vai deixar eu

diz eles são uns safados, que estão virando casaca p"ra o lado de seu Be porque ele é quem entende mais de demandas aqui, e promete aI um, p"ra depois ir prometer

a mesma coisa ao outro... Seu Benign tem sossegado! E é só espalhando por aí que seu Major já não é co em-antes, que nem agüenta mais rédea a cavalo, que não pode

co gata p"lo rabo... Que até o Governo tirou os soldados daqui, porq quer saber mais da política do senhor, e que só vai mandar outro d mento porque ele, seu Benigno,

pediu, quando foi lá no Belorizonte. Benigno faz isso tudo sorrateiro. E, olhe aqui, seu Major: ele não sai d do Vigário... Confessa e comunga todo dia, com a família

toda...

falando também que o senhor tem pouca religião, que está virando maçom... Está aí, seu Major. Por deus-do-céu, como isto tudo que eu lhe contei é a verdade! ...

- Espera, espera aí, seu Eulálio... Espere ordens!

E o Major, estarrecido com as novidades, e furioso, chamou Tio Laudônio ao quarto-da-sala, para uma conferência. Durou o prazo de se capar um gato. Quando voltaram,

o Major ainda rosnava:

-E o Antenor! E o Martinho Boca-Mole!... E eu sem saber de coisa nenhuma!

- Não é nada, mano, isto é o começo da graça... Dá dinheiro ao mulatinho, que a corda nele eu dou... Cem mil-réis é muito, cinqüenta é o que chega, p"ra principiar...

Mas, na hora de sair, Lalino fez um pedido: queria o Estevam - o Estevão -,para servir-lhe de guarda. Podia alguém do Benigno querer fazerlhe uma traição... Depois,

esse povo andava agora implicando com ele, por demais. Não queria provocar ninguém... Era só para se garantir, se fosse preciso.

O Major fechara a cara, mas, a um aparte cochichado de Tio Laudônio, acedeu:

- Pode levar o homem, mas olhe lá, hem! Não me cace briga com pessoa nenhuma, e nem passe por perto da casa dos espanhóis. Eles são meus amigos, está entendendo?!

E, como agora estivesse de humor melhor, o Major ainda fez graça:

- Vendeu a mulher, não foi?! ... Nem que tivesse vendido ao demo a alma... É só não arranjar barulho, que eu não vou capear malfeito de ninguém.

- Isto mesmo, seu Major. Com paz é que se trabalha! Amanhã, vou dar um giro, de serviço... Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, seu Major!

E, no outro dia, Lalino saiu com o Estevam, - o Estevão -, um dos mais respeitáveis capangas do Major Anacleto, sujeito tão compenetrado dos seus encargos, que jamais

ria.

E, quando alguém vinha querendo debicá-lo, Lalino ficava impassível. Mas, como bom guarda-costas, o Estevão se julgava ali na obrigação de escarrar para um lado,

com ronco, e de demonstrar impaciência. E o outro tal se desculpava:

- Estava era brincando, seu Laio...

Porque, ainda mais, o Estevão era de Montes Claros, e, pois, atirador de lei, e estava sempre concentrado, estudando modos de aperfeiçoar um golfe seu: pontaria

bem no centro da barriga; para acertar no umbigo, varar cinco vezes os intestinos, e seccionar a medula, lá atrás.

E Lalino fazia um gesto vago, e continuava com o ar de quem medita Brandes coisas. E assim o povo do arraial ficou sabendo que ele era o cabo eleitoral de seu Major

Anacleto, e que tinha de receber respeito.

E tudo o mais, com a graça de Deus, foi correndo bem.

VIII

Com o relatório de Lalino, o Major compreendeu que não podiadescansado. Tinha de virar andejo. Mandou selar a mula e bateu p casa do Vigário. Mas, antes da sua pessoa,

enviou uma leitoa. Confe se, deu dinheiro para os santos. O padre era amigo seu e do Governo, com o raio do Benigno chaleirando e intrigando, a gente não podt certeza.

Felizmente, estava vago o lugar de inspetor escolar. OfereceuVigário.

- Mas, Major, não me fica bem, isso... Meu tempo está tomado, deveres de pároco...

- É um favor aceitar, seu Vigário! Precisamos do senhor. Não é na política. É só pelo respeito, para ficar uma coisa mais séria. E é para a gião. Comigo é assim,

seu Vigário: a religião na frente! Sem Deus, nada

O padre teve de aceitar leitoa, visita, dinheiro, confissão e cargo; e a falou:

- Sabe, Major? Quem esteve aqui ontem foi esse rapaz que agora trabalhando para o senhor. Também se confessou e comungou, e trocou duas velas para o altar de Nossa

Senhora da Glória... E rezou terço inteiro, ajoelhado aos pés da Santa. O caso dele, com a mulher m espanhol, é muito atrapalhado, e por ora não se pode fazer coisa

algu Mas, havendo um jeito... Como bom católico, o senhor não ignora: a não deve poupar esforços visando à reconciliação de esposos. Aliás, s falo nisso porque é

do meu dever. O moço não me pediu nada, e isso p que ele tem delicadeza de sentimentos. Depois, assim com tanta devo Virgem Puríssima, ninguém pode ser pessoa de

todo má...

- Com a Virgem me amparo, seu Vigário!

-Amém, seu Major!

E Major Anacleto tocou pelas fazendas, em glorioso périplo, com Laudônio à direita, seu Oscar à esquerda, e um camarada atrás.

Passaram em frente da chácara dos espanhóis. Seu Ramiro baixou trada, convidando-os para uma chegada. Mas isso era contra os princí do Major. Então, seu Ramiro,

ali mesmo, fez suas queixas: que o se Eulálio, apadrinhado pelo Estevão, viera por lá, a cavalo, somente p provocar... Não o saudara, a ele, Ramiro, e dera um "viva

o Brasil!" m diante da sua porta. E, como a Ritinha estivesse na beira do córrego, la do roupa, o granuja, o sem-vergonha, tivera o atrevimento de jogar-lh beijo...

Ele, mais os outros patrícios, podiam haver armado uma conte pois se achavam todos em casa, na hora. Mas, como o maldito perro estava trabalhando para o senhor Major,

não quiseram pegá-lo com chiporras... Agora, todavia, tinha que pedir-lhe justiça, ao distinguido4 nhor Major Dom Anacleto...

SAG~RANA 26]

Nisso o Major, vendo que Tio Laudônio fazia esforços para não rir, ficou sem saber que propósito tomar. Mas o espanhol continuou:

_ E creia, senhor Major, não o quero molestar, porém o canalha não lhe merece tantas altas confianças... Saiba o senhor, convenientemente, que ele se há feito muito

amigo do filho do senhor Benigno. Foram juntos à Boa Vista, todos acá o hão sabido... Com violões, e aguardente, e levando também o Estevão, que vive, tarai! o creio,

à custa do senhor Major...

Aí, foi o diabo. Major Anacleto ficou peru, de tanta raiva. Então, o Lalino, andando com o filho do adversário, e indo os dois para a Boa Vista, um dos focos da

oposição? Bem feito, para a gente não ser idiota! E, pelo que disse e pelo que não disse, seu Oscar teve pena do seu protegido, seriamente.

E, uma semana depois, quando, encerrada a excursão eleitoral, regressaram à fazenda, a apóstrofe foi violentíssima. Lalino tinha chegado justamente na véspera, e

estava contando potocas aos camaradas, na varanda, o que foi uma vantagem, porque o Major gritou com ele antes de ter de briquitar para tirar as botas, o que geralmente

aumenta muito a ira de um cristão.

- Então, seu caradura, seu cachorro! O senhor anda agora de braço dado com o Nico do Benigno, de bem, para me trair, hein?!... Mal-agradecido, miserável!... Tu vendeu

a mulher, é capaz de vender até hóstias de Deus, seu filho de uma!

- Seu Major, escuta, pelo valor do relatar! Eu juntei com o filho do seu Benigno foi só p"ra ficar sabendo de mais coisas. P"ra poder trabalhar melhor para o senhor...

E mais p"ra uma costura que eu não posso lhe contar agora, por causa que ainda não tenho certeza se vai dar certo... Mas, seu Major, o senhor espere só mais uns

dias, que, se a Virgem mais nos ajudar, o povo da Boa Vista todo, começando por seu Cesário, vai virar mãe-benta para votarem nós...

Aí, Tio Laudônio fez um sinal para o Major, que se acalmou, por metade. Afinal o diabo do seu Eulálio podia estar com a razão. Mas o Major tinha outros motivos para

querer desabafar:

- Eu não lhe disse que não fosse implicar com os espanhóis? Não falei?! Que tinha o senhor de passar por lá, insultando?

- Ô diabo! Não é que já foram inventar candonga?!... Não insultei ninguém, seu Major...

- Tu ainda nega, malcriado? O Ramiro me fez queixa...

- Seu Major, só se aqueles estrangeiros acham que a gente dar viva ao Brasil é mexer com eles. Mas eu nunca ouvi ninguém dizer isso... A gente na política tem de

ser patriota, uai! O senhor também não é?!

Deixe de querer se fazer! Mais respeito!... O senhor não pode negar que foi se engraçar com a dona Ritinha, que estava lá quieta na fonte, esfregando roupa...

268

- Ora, seu Major, o senhor não acha que a gente vendo a mulhe já foi da gente, assim sem se esperar, de repente, a gente até se esque que ela agora é de outro? Foi

sem querer, seu Major. Agora; o senho deixa contar o que foi que eu fiz nestes dias...

- Pois conta. Por que é que ainda não contou?!

- Primeiro, fui no Papagaio, assustei lá uns e outros, dando not" que vem aí um tenente com dez praças... Só o senhor vendo, aquele nho ficou zaranza! As mulheres

chorando, rezando, o diabo!... Depois seguei todos, e eles prometeram ficar com o senhor, direitinho, p"ra v tudo!...

- Hum...

- Depois, fui dar uma chegada lá no Mucambo, e, com a aju Deus, acabei com a questão que o seu Benigno tinha atiçado...

Tio Laudônio se adianta, roxo de curiosidade profissional:

- Como é que você fez, que é que disse?

- Ora, pois foi uma bobaginha, p"ra esparramar aquilo! Primeir medo no seu Antenor, dizendo que seu Major era capaz de cortar a a Pois a aguada da fazenda dele não

vem do Retiro do irmão do seu jor?... Com seu Martinho, foi mais custoso. Mas inventei, por muit gredo, que o senhor dava razão a ele, mas que era melhor esperar

at pois das eleições... Até, logo vi que o seu Benigno não tinha arranjado.. a mexida... A briga estava sendo por causa daqueles dois valos segar os pastos... O

senhor sabe, não é? Tem o valo velho, já quase entupi todo, e o novo. Levei seu Martinho lá, mais seu Antenor... Expliquei pela regra macha moderna do Foro, o valo

velho não era valo e nem que era grota de enxurrada... E que o valo novo é que era velho... E uma porção de conversa entendida... Falei que agora tinha uma no que,

em caso de demandas dessas, tinha de vir um batalhão todo de do Governo, p"ra remedirem tudo... E o pagamento saía do bolso de q perdesse... Quando falei nos impostos,

então, Virgem! Só vendo c eles ficaram com medo, seu Major! Então, resolveram partir a razã meio. Ajudei os dois a fazerem as pazes...

- Valeu. O que você espalhou de boca, de boca o Benigno ajunta.. zer política não é assim tão fácil... Mas, alguma coisa fica, no fun tacho...

- Pois, não foi, seu Laudônio? Faço o melhor que posso, não so grato. Mas, como eu ia contando... Bem, como seu Martinho é ho enjerizado e pirrônico, eu, na volta,

fui na cerca que separa a roça de pasto do pai do seu Benigno... Dei com pedras e cortei com facão, ab rombo largo no arame... e toquei tudo o que era cavalo e vaca,

p"ra d da roça. Ninguém não viu, e vai ser um pagode! Assim, não tem pe quem é pra ficar brigado agora é o seu Martinho com o pai do ou decerto, depois, com seu

Benigno também...

gncnw~~~ 269

. Não tenho tanta esperança... - opinou o Major, já conforme.

E Lalino concluiu, com voz neutra, angelical:

_ Está vendo, seu Major, que eu andei muito ocupado com os negócios do senhor, e não ia lá ter tempo p"ra gastar com espanhol nenhum? Gente que p"ra mim até não

tem valor, seu Major, pois eles nem não votam! Estrangeiros... Estrangeiro não tem direito de votar em eleição...

Correram uns dias, muito calmos, reinando a paz na fazenda, porque o Major teve a sua enxaqueca, e depois o seu mal de próstata. Já sem dores, mas ainda meio perrengue,

passava o tempo no côncavo generoso da cadeira-de-lona, com pouco gosto para expansões.

O comando político estava entregue agora quase completamente a Tio Laudônio, que transitava com pouco alarde e se deitava na cama quando queria pensar melhor. De

vez em quando, apenas, vinha comentar qualquer coisa, fazendo o Major enrugar mais a testa e pronunciar um murmúrio de interjeições integérrimas. Mas isso poucas

vezes acontecia, por último. Da curva da cadeira, ia o Major para em-frente da cômoda do quarto-de-dormir, e lá ficava, de-pé, armando paciências de baralho - conhecia

muitas variedades mas só cultivava uma, prova de alta sabedoria, pois um divertimento desses deve ser mesmo clássico, o mais possível.

Enquanto isso, Lalino Salãthiel pererecava ali por perto, sempre no meio dos capangas, compondo cantigas e recebendo aplausos, porque, como toda espécie de guerreiros,

os homens do Major prezavam ter as façanhas rimadas e cantadas públicas.

E, vai então pois então, Lalino teve um momento de fraqueza, e pediu a seu Oscar que procurasse a Ritinha e falasse, e dissesse, mas não dissesse isso, e calasse

aquilo, mas dando a entender que... mas sem deixar que ela pensasse que... e aquil"outro, e também etc., e pronto.

Na manhã seguinte, seu Oscar, prestativo e bom amigo, foi. Rabeou redor à casa do espanhol, e fez um acaso, atravessando na frente da mulher, quando ela saía para

procurar ninhos de galinha-d"angola no bamburral.

Mas Maria Rita tinha olhos, pernas e cabelos tentadores, e seu Oscar se atarantou. E, se chegou a se perturbar, é claro que foi por ter tido inspiraçào nova, resolvendo,

num átimo, alijar a causa do mulatinho e entrar em execução de própria e legítima ofensiva.

Em sã consciência, ninguém poderia condená-lo por isso, mas Maria Rita desconfiou do contrário - do que antes fora para ser, mas que tinha deixado agorinha mesmo

de ser - e foi interpelando:

Já sei! Foi aquele bandido do Laio, que mandou o senhor aqui para me falar; não foi, seu Oscar?

IX

Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a

intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma

manifestação do pensamento humano..

27O JOÃO GUIMARÃES ROSA I FICÇÃO Co "

Seu Oscar era jogador de truque e sabia que "a primeira é a que . missa!" Assim, achou que estava na hora de não perder a vaza, e dis

- Pois não foi não, sã Ritinha... Aquele seu marido é um ingrato! nhora não deve nem de pensar nele mais, porque ele não soube dar vale que tem... Não guardou estima

à prenda de ouro dele! É um vagab que vive fazendo serenata p"ra tudo quanto é groteira e capioa por aL

Maria Rita perdeu o aprumo:

- Então, ele nem pensa mais em mim, não é?... Faz muito bem..m que eu cá tenho sentimento! Nem vestido de santo, não quero ver!

- Está muito direito, sa dona Ritinha! Assim é que deve ser. Osenhora merece coisa muito melhor do que ele... e do que esse esp. também... Eu juro que nunca vi

moça tão bonitonazinha como a sei, nem com um jeito tão bom p"ra agradar à gente...

Maria Rita sorria, gostando.

- É assim mesmo, dona Ritinha... Esses olhos graúdos... Essa b nha sua... A gente até perde as idéias, dona Ritinha...

Chegou mais para perto.

- Não ri, não, dona Ritinha! Tem pena dos outros... Ah! Se eu um beijinho à senhora...

Mas Maria Rita pulou para trás, vermelha furiosa:

- O senhor é um cachorro como os outros todos, seu Oscar! ffinenhum não presta!... Se o senhor não sumir daqui, ligeiro, eu

o Ramiro para lhe ensinar a respeitar mulher dos outros!

Seu Oscar, desorganizadíssimo, quis safar-se. Mas, aí, foi ela q reteve, meio brava meio triste, agora em lágrimas:

- E, olhe aqui: o senhor está enganado comigo, seu Oscar! Onão me conhece! Eu procedi mal, mas não foi minha culpa, sabe?! E é mesmo do Laio, só dele! Não presta,

eu sei, mas que é que eu hei zer?l... Pode ir contar a ele, aquele ingrato, que não se importa co Fiquei com o espanhol, por um castigo, mas o Laio é que é meu mas

eu hei de gostar dele, até na horinha d"eu morrer!

Seu Oscar se foi, quase correndo, porque não suportava aquele,, consentido e aqueles gritos de louca. E nem soube que, por artes das travessas da boa escrita divina,

se tinha saído às mil maravilhas da xada que Lalino Salãthiel lhe cometera.

Chegou em casa com uma raiva danada de Lalino, e, para se de, foi decepcionando a sôfrega expectativa do mulatinho:

- Pode tirar o cavalo da chuva, seu Laio! Ela gosta mesmo do, nhol, fiquei tendo a certeza... Vai caçando jeito de campear outra que essa-uma você perdeu!

Lalino suspirou...:

- É, mulher é isso mesmo, seu Oscar... Também, gente que a t ; pada com política não tem nada que ficar perdendo tempo com de.

A 2J1

`muito obrigado, seu Oscar. O senhor tem sido meu pai nisso tudo. escutar agora o hino que estou fazendo p"ra o senhor?

as seu Oscar não queria escutar coisa nenhuma. Deixou Lalino na vae foi falar com o velho, aproveitando a oportunidade de Tio Laudômomento não estar lá.

jor Anacleto relia - pela vigésima-terceira vez - um telegrama do

e Vieira, Prefeito do Município, com transcrições de um outro

a, do Secretário do Interior, por sua vez inspirado nas anotações

esidente do Estado fizera num anteprimeiro telegrama, de um Miconterrâneo. E a coisa viera vindo, do estilo dragocrático-mando

activo ao cabalístico-estatístico, daí para o messiânico-palimp-parafrástico, depois para o cozinhativo-compadresco-recordante, de caçarola a tigela, de funil

a gargalo, o fino fluido inicial se fizera gordo, mui substancial e eficaz; tudo isto entre parênteses, para mos

das razões por que a política é ar fácil de se respirar - mas para -casa, que os de fora nele abafam, e desistem. Major Anacleto tomava

"cha em punho.

Oscar foi de focinho:

.;Agora é que estou vendo, meu pai, que o senhor é quem tinha razão.

Pois não foi? Se o Compadre Vieira não abrir os olhos, com o pessoal e-Serras nós ficamos é no mato sem cachorro... Eu já disse! Bem

rinha falado com o Compadre, que isso de se querer fazer política

modos não vai!

sso mesmo, pai. O senhor sempre acerta. É como no caso do mula-desse Lalino... Olha, eu já estou até arrependido de ter falado em

o...

Seu Major! Seu Major! - (Lalino invadira a sala, empurrando para °um curiboca mazelento e empoeirado, novidadeiro-espião chegaVista num galope de arrebentar cavalo.)

ue é? Que houve? Mataram mais algum, lá na Catraia?

"Major se levantava - tirando óculos e enfiando óculos, telegrama,

e lenço, na algibeira, - aturdido com o alarido, se escapando da

ra.

ão senhor, seu Major meu padrinho... Louvado seja Nosso Senhor " to... - e o capiauzinho procurava a mão do Major, para o beijo

o Foi na Boa Vista... Seu Cesário virou p"ra nós!

mo foi isso, menino? Conta com ordem!

povo está todo agora do lado da gente... Não querem saber mais enigno... Tudo vota agora no senhor, seu Major meu padrinho! já sabia... Mas conta logo como foi!

i porque o filho do seu Benigno, o Nico... que desonrou, com peravra, seu Major meu padrinho... que desonrou a filha mais nova

4

2]2 JOÃO GUIMARÃES ROSA ~ FICÇÃO CO

do seu Cesário... Os parentes estão todos reunidos, falando que tem sar, senão vai ter morte... E matam mesmo, seu Major! Seu Cesário~ aqui, p"ra combinar paz com

o senhor, seu Major meu padrinho...

Lalino, por detrás, fazia sinais ao Major, que mandasse o mensag retirar.

- Está direito, Bingo. Vai agora lá na cozinha, p"ra ganhar al

comer. Depois, você volta p"ra lá, e fica calado, escutando tudo dire"

Mal o outro se sumira, e Lalino Salãthiel gesticulava e modulava

- Eu não disse, seu Major?! Não falei? No pronto, agora, o senti vendo que deu certo... Pois foi p"ra isso que eu levei o Nico na Boa ensinando o rapaz a cantar

serenata e botar flor, e ajeitando o namor a Gininha! Estive até em perigo de seu Benigno mandar darem um t mim, porque ele não queria que o filho andasse em minha

má c nhia... Ah, com o amor ninguém pode!

- Pois o senhor fez muito mal. Pode dar e pode não dar certo:., rapaz casa com a moça, tudo ainda fica pior...

-Ele não casa, seu Major! Eu sabia que ele não casava, porque Benigno quer mandar o filho p"ra o seminário... E eu aconselhei o quietar no mundo... Ele está revelio,

seu Major, seu Osçar, está ern ninhos!

- É... Eu não gosto das coisas tão atentadas... Não sei se isto é c Deus manda... A moça, coitadinha, vai sofrer?! Ninguém tem o direi fazer isso...

-Há-de-o, que eu já deduzi também, seu Major, não arranjo sem mais a metade. Depois do que for, das eleições, a gente rege o ra faz o casório... Tem de casar, mas

só certo... Eu sei onde é que o Nic amoitado... Aí a raiva do seu Benigno vai ser cheia. E as festas!...

- Está direito, seu Eulálio. O senhor tem galardão.

- Só quero servir o senhor, seu Major! Com chefe bom, a gente longe!

- Bem, pode ir... E guarde segredo da trapalhada que o senhor a tou, hem?!

E, ficando só com seu Oscar, Major Anacleto retomou a conversa,, no ponto em que fora interrompida:

- Bem o senhor estava me dizendo, agorinha mesmo, que ele é 1 de ladino! Foi um servição que o senhor me fez, trazendo esse diabo mim. Gostei, seu Oscar. O senhor

tem jeito para escolher camaradasz filho.

- As vezes a gente acerta... Era isso mesmo que eu vinha lhe falar pai...

- Está direito... Agora o senhor vá no arraial, mandar um tele meu para o Compadre Prefeito. Um vê, não vê estes tantos constant balhos que a política dá... Passa

no Paiva, e na farmácia...

SAGARANA 273

Seu Oscar saiu e o Major se assoou, voltou para a cadeira-de-lona. Mas, daí a pouco, chegava Tio Laudônio, trazendo uma grande notícia: tinham recebido aviso, no

arraial, de que nessa mesma tarde devia passar de automóvel, vindo de Oliveira, um chefe político, deputado da oposição. Seu Benigno tinha ido para a beira do rio,

para vir junto. Não sabiam bem o nome.

- Se chegarem por aqui, nem água para beber eu não dou, está ouvindo? Inda esturro cachorro neles! - rugiu o Major.

- Qual, passam de largo... Que é que eles haviam de querer aqui?

- Pau neles, isto sim, que era bom! Por isto é que eu não gosto de estrada de automóvel! Serve só para pôr essa cambada trançando afoita por toda a parte... E o

cachorro do Benigno vai ficar todo ancho. Decerto há-de fazer dircurso, louvar as lérias... Olha, o Eulálio podia ir no arraial, hem? Para arranjar um jeito de atrapalhar,

se tiver ajuntamento.

- Não vale a pena, mano Cleto.

- É, então pode deixar... A gente já está ganhando, longe! Ah, esse seu Eulálio fez um... Já sabe?... O Oscar contou?

Aí o Major se levantou e foi até à janela. E, quando ele ia assim à janela, não era sempre para espiar a paisagem. Agora, por exemplo, era para apurar alguma ideiazinha.

Tio Laudônio sabia disso, e esperava que ele se voltasse com outra pergunta. E foi:

-Escuta aqui, mano Laudônio: é verdade que espanhol não vota?

- Não. Não podem. São estrangeiros... A coisa agora está muito séria.

-Ahn... Sim... Olha: manda levar mais madeira para o seu Vigário... Para as obras da capelinha do Rosário...

- Já mandei.

- Diabo! Vocês, também, não deixam nada para eu pensar!...

E foi para a espreguiçadeira, dormir.

Quando acordou, horas depois, foi a sustos com uma matinada montante: o mulherio no meio da casa; os capangas, lá fora, empunhando os cacetes, farejando barulho

grosso; e muita gente rodeando uma rapariga bonita, em pranto, com grandes olhos pretos que pareciam os de uma veadinha acuada em campo aberto.

Corn a presença enérgica do patriarca, amainou-se o rebuliço, e a moça veio cair-lhe aos pés, exclamando:

- Tem pena de mim, seu Coronel, seu Major!... Não deix"eles me levarem! pelo amor de suas filhas, pelo amor de sua mulher dona Vitalina... Não me desampare, seu

Major...

Pois sim, moça... Mas, espera um pouco... Sossega. Daqui ninguém tira a senhora por mal, sem minha ordem... Conta primeiro o que é que houve... A senhora quem é?...

Sou a mulher do Laio seu Major... Me perdoe, seu Major... Eu sei que o senhor tem bom coração... Sou uma infeliz, seu Major... É o Ramiro,

274 lOAO GUIMARAES ROSA / FICÇAO CO

o espanhol, que me desgraçou... Desde que o Laio voltou, que ele and ciúme, só falando... Eu não gosto dele, seu Major, gosto é do Laio!.. ou ruim, não tem juízo

nenhum, mas eu tenho amor a ele, seu M, Agora o espanhol deu para judiar comigo, só por conta do ciúme. o seu Oscar conversando comigo hoje, e disse que o seu Oscar

esta levando recado... Quis me bater, o cachorro! Disse que me mata, Laio, e depois vai se suicidar, já que está mesmo treslouco... Então eu para vir pedir proteção

ao senhor, seu Major. Pela Virgem Santíssim me largue na mão dele, seu Majorzinho nosso!

- Calma, criatura! - levanta, vai lavar esses olhos... Ó Vitalina gambela ela, dá um chá à coitadinha... Afinal... afinal ela não tem cul nada... É uma história

feia, mas... Nem o Eulálio não tem culpa tam não... Foi só falta de juízo dele, porque no fundo ele é bom... Mas, diabo! O espanhol é boa pessoa... Arre! Só o mano

Laudônio mes quem pode me aconselhar... Bem, fala com as meninas para tomarem ta dela, para ver se ela fica mais consolada... E a senhora pode dormir com descanso,

moça, não lhe vai acontecer coisa nenhuma, ora! - 6 vam! Qu"é-de seu Eulálio?

- Seu Laio saiu... Foi p"ra a beira do rio...

- Mande avisar a ele, já! Fala que á mulher dele está aqui...

- O Juca passou ainda agorinha no caminhão, e disse que o seu estava lá, numa cachaça airada, no botequim velho que foi da emp com outros companheiros, fazendo sinagoga.

Diz que chegou um do no automóvel e parou para tomar água, mas ficaram conversando e o do as parlas do seu Laio, achando muita graça, gostando muito...

- Ra-ch"ou-parta! diabo dos infernos! Maldito! Referido!

Em fel de fera, Major Anacleto sapateava e rilhava os dentes. Os ho silenciaram, na varanda, pensando que já vinha ordem para brigaf. mulheres, arrastando Maria

Rita, se sumiram no corredor. Só Tio nio, que entrava de caniço ao ombro, vindo do corguinho, foi quem nuou calmo, pois que coisa alguma poderia pô-lo de outro jeito.

O Major bramia:

- Cachorrão! Bandido!... Mas, tu não está entendendo, mano nio?! É o diabo do homem, do tal, o deputado da oposição!... Parou.. certo! Tinha de gostar... Pois encontra

o mulatinho bêbedo, botand sa, contando o caso da Boa Vista, e tudo... Nem quero fazer idéia de é que vai ser isto por diante... Cachorro! Agora vai dar tudo com

os n"água, só por causa daquele cafajeste! Mal-agradecido! E logo ago eu ia proteger o capeta, fazer as pazes dele com a mulher, mandar os nhóis para longe... Mas,

vai ver! Me paga! Leva uma sova de relho escapa!

- Calma, mano Anacleto... A gente não deve de esperdiçar chor antes de ver o defunto morrer...

SAGAFUNA 2]5

. Qual! história... Vitalina! Ó Vitalina!... Não deixa as meninas ficarem mais junto com essa mulher! Não quero mau exemplo aqui dentro de casa!... Mulher de dois

homens!... Imoralidade! Indecência!

A muito custo, Tio Laudônio conseguiu levar o Major para o quarto, e encomendou um chá de flor-de-laranjeira.

- Calma. Pode, no fim, não ser tão ruim assim.

E foi comer qualquer coisa, pois já estava com atraso.

Principiou a escurecer. A gente já ouvia os coaxos iniciais da saparia no brejo. E os bate-paus acenderam um foguinho no pátio e se dispuseram em roda. Tio Laudônio,

já jantado, chamou o Major para a varanda.

- Lá vem um automóvel...

- São eles, Laudônio... Manda vigiarem e não olharem! Manda não se estar, fecharem as janelas e portas! Ah, mulatinho - para cá, e arrastado com pancada grossa!...

- Espera... Olha, já parou, por si.

Lalino saltou primeiro e ajudava os outros a descerem. Três doutores. Um gordo... um meio velho... um de óculos... Lalino guiava-os para a escada da varanda.

- Só eu indo ver quem é, mano Cleto.

- Mas, que é que essa gente vem fazer, aqui?... Eu quero saber de oposição nenhuma, mano Laudônio! Eu desfeiteio! Eu...

- Quieto, homem, areja! Vamos saber, só, primeiro. Se entrarem, é porque são de paz... Vem p"ra dentro. Eu vou ver.

Mas, daí a um mijo, Tio Laudônio gritava pelo Major:

- Depressa, mano, que não é oposição nenhuma, é do Governo! Depressa, homem, é Sua Excelência o Senhor Secretário do Interior, que está de passagem, de volta para

o Belorizonte.

O Major correu, boca-aberta, borres, se aperfeiçoando, abotoando Opaletó. Os viajantes já estavam na sala, com Lalino -pronto perto, justo à vontade e falante.

E nunca houve maior momento de hospitalidade numa fazenda. O Major se perfazia, enfim, quase sem poder bem respirar:

- Ah, que honra, mas que minha honra, senhor Doutor Secretário do Interior!... Entrar nesta cafua, que menos merece e mais recebe... Esteja à vontade! Se execute!

Aqui o senhor é vós... Já jantaram? ô, diacho... Um instantinho, senhor Doutor, se abanquem... Aqui dentro, mando eu - com suas licenças : mando o Governo se sentar...

P"ra um repouso, o café, um licor... O mano Laudônio vai relatar! Ah, mas Suas Excelências fizeram boa viagem?...

si Mas" não: Suas Excelências tinham pressa de prosseguir. O cafezinho, m, aceitavam. Viagem magnífica, excursão proveitosa. Um prazer, estarem ali. E o titular

sorria, sendo-se o amistoso de todos, apoiando a mão, familiar, no ombro do Major. Ah, e explicava: tinha recebido o convite,

2]Ó JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO CO

para passar pela fazenda, e não pudera recusar. O senhor Eulálio - e o Doutor se entusiasmava - abordara o automóvel, na passagem d O que fora muito gentil da parte

do Major, haver mandado o seu emi esperá-los tão adiante. E, falando nisso, que magnífico, o senhor E Divertira-os! O Major sabia escolher os seus homens... Sim,

em tudo jor estava de parabéns... E, quando fosse a Belorizonte, levasse o E que deveria acabar de contar umas histórias, muito pândegas, da sua da no Rio de Janeiro,

e cantar uns lundus...

Tomado o café, alegria feita, cortesia floreada, política arrulha muito mais - o estilo, o sistema, - o tempo valera. Daí, se despe abraço cordial, abraço cordial...

E o Doutor Secretário abraçou também Lalino, que abria a port do carro.

- Adeus, Senhor Eulálio. Continue sempre ao serviço do Senhor jor Anadeto, que é ótimo e digno chefe. E, quando ele vier à capit prometeu trazê-lo também...

Lalino pirueteava, com risco de cair, conforme dava todos os vivas

O automóvel sumiu-se na noite.

E, no brejo, os sapos coaxavam agora uma estória complicadíssim um sapo velho, sapo-rei de todos os sapos, morrendo e propondo o t mento à saparia maluca, enquanto

que, como todo sapo nobre, fica sentado, montando guarda ao próprio ventre.

- "Quando eu morrer, quem é que fica com os meus filhos?"...

" - - -

- Eu nao... Eu nao! Eu não!... Eu nao!"...

(Pausa, para o sapo velho soltar as últimas bolhas, na água de em

- "Quando eu morrer, quem é que fica com a minha mulher?"

- "É eu! É eu! É eu! É eu! É eu!"...

Major Anacleto chama Lalino, e as mulheres trazem Maria Rita, p pazes. O chefão agora é quem se ri, porque a mulherzinha chora de a1 e Lalino perdeu o jeito. Mas,

alumiado por inspiração repentina, o vem para a varanda, convocando os bate-paus:

- Estêvam! Clodino! Zuza! Raimundo! Olhem: amanhã cedo vão lá nos espanhóis, e mandem aqueles tomarem rumo! É para su já, daqui!... Pago a eles o valor do sítio.

Mando levar o cobre. Mas irem p"ra longe!

E os bate-paus abandonam o foguinho do pátio, e, contentíssimos,

que de há muito tempo têm estado inativos, fazem coro: "Pau! Pau! Pau! Pau de jacarandá!...

Depois do cabra na unha, quero ver quem vem tomar!..."

$pGARANA 2]]

E os sapos agora se interpelam e se respondem, com alternãoncias estranhas, mas em unanimidade atordoante:

No alto, com broto de brilhos e asterismos tremidos, o jogo de destinos

esteve completo. Então, o Major voltou a aparecer na varanda, seguro e

satisfeito, como quem cresce e acontece, colaborando, sem o saber, com

a direção-escondida-de-todas-as-coisas-que-devem-depressa-acontecer.

E gritou:

- Olha, Estevam: se a espanholada miar, mete a lenha! - De miséria, seu Major!

- E, pronto: se algum quiser resistir, berrem fogo! - Feito, seu Major!

E, no brejo - früssimo e em festa - os sapos continuavam a exultar.

- Chico? - Nhô!? - Você vai? - Vou! - Chico? - Nhô! - Cê vai? - Vou!...

SARAPALHA

"Canta, canta, canarinho, ai, ai, ai... Não cantes fora de hora, ai, ai, ai... A barra do dia aí vem, ai, ai, ai... Coitado de quem namora!..."

(O TRECHO MAIS ALEGRE, DA CANTIGA MAIS ALEGRE, DE UM CAPIAU BEIRA-RIO)

TAPERA DE ARRAIAL. Ali, na beira do rio Pará, deixaram largado um povoado inteiro: casas, sobradinho, capela; três vendinhas, o chalé e o cemitério; e a rua, sozinha

e comprida, que agora nem mais é uma estrada, de tanto que o mato a entupiu.

Ao redor, bons pastos, boa gente, terra boa para o arroz. E o lugar já esteve nos mapas, muito antes da malária chegar.

Ela veio de longe, do São Francisco. Um dia, tomou caminho, entrou na boca aberta do Pará, e pegou a subir. Cada ano avançava um punhado de léguas, mais perto, mais

perto, pertinho, fazendo medo no povo, porque era sezão-da brava - da "tremedeira que não desamontava" - matando muita gente.

- Talvez que até aqui ela não chegue... Deus há-de...

Mas chegou; nem dilatou para vir. E foi um ano de tristezas.

Em abril, quando passaram as chuvas, o rio - que não tem pressa e não tem margens, porque cresce num dia mas leva mais de mês para minguar - desengordou devagarinho,

deixando poços redondos num brejo de ciscos: troncos, ramos, gravetos, coivara; cardumes de mandis apodrecendo; tabaranas vestidas de ouro, encalhadas, curimatãs

pastando barro na invernada; jacarés, de mudança, apressados; canoinhas ao seco, no cerrado; e bois sarapintados, nadando como búfalos, comendo o murerê-de-flor-roxa

flutuante, por entre as ilhas do melosal. Então, houve gente tremendo, cora os primeiros acessos da sezão.

- Talvez que para o ano ela não volte, vá s"embora...

Ficou. Quem foi s"embora foram os moradores: os primeiros para o cemitério, os outros por aí afora, por este mundo de Deus. As terras não valiam mais nada. Era pegar

a trouxa e ir deixando, depressa, os ranchos, os sítios, as fazendas por fim. Quem quisesse, que tomasse conta.

Aí a beldroega, em carreirinha indiscreta - ora pro-nobis! ora pro-nob"S!- apontou caules ruivos no baixo das cercas das hortas, e, talo a talo, avançou. Mas o cabeça-de-boi

e o capim-mulambo, já donos da rua, tangeram-na de volta; e nem p8de recuar, a coitadinha rasteira, porque no quintal °s joás estavam brigando com o espinho-agulha

e com o gervão em flor. E, atrás da marfa-preta e da vassourinha, vinham urgentes, do campo - oiar! _ o amor-de-negro, com os tridentes das folhas, e fileiras completas,

colunas espertas, do rijo assa-peixe. Os passarinhos espalhavam sementes

2ó2 lOAO GUIMARÃES ROSA ~ FICÇÃO CO

novas. A gameleira, fazedora de ruínas, brotou com o raizame nas par desbarrancadas. Morcegos das lapas se domesticaram na noite sem fim quartos, como artistas de

trapézio, pendentes dos caibros. E aí, então, rização consumada, quando o fedegoso em touças e a bucha em latadas deram retomar seu velhíssimo colóquio, o povoado

fechou-se em seus tos, que nem o coscorão cinzento de uma tribo de marimbondos estére

Mas, é só andar três quilômetros para cima, brejo adentro, beirapara se achar algum morador.

O mosquito fêmea não ferroa de-dia; está dormindo, com a trom pleta de maldades; somente as larvas, à flor do charco, comem-se unu~ outras, brincando com as dáfnias

e com as baratas-d"água; as touca cheirosas do capim-gordura espantam para longe a urutu-coatiara; a 1 raquinha-da-barriga-vermelha é mansa, não morde; e essas outras

cob claras, que passam de cabeça alçada, em nado de campeonato, agora, mo que queiram, não poderão morder. Mas é bom não pisar forte naq las esponjas verdes, que

costuma haver uma cisterna profunda, por b das folhas dos aguapés.

É aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma fazenda, denegrida e mantelada; uma cerca de pedra-seca, do tempo de escravos; um rego ~ cho, um moinho parado; um cedro

alto, na frente da casa; e, lá dera uma negra, já velha, que capina e cozinha o feijão. Tudo é mato, cresce sem regra; mas, em volta da enorme morada, pés de milho

levantam es gas, no chiqueiro, no curral e no eirado, como se a roça se tivesse enco do, para ficar mais ao alcance da mão.

E tem também dois homens sentados, juntinhos, num casco de co emborcado, cabisbaixos, quentando-se ao sol.

O rio, lá adiante, vê-se agora a três dimensões; porque o rolo de né alagartado, vai, volta a volta, pela várzea, como fumaça cansada qu quer descer e adormecer.

Primo Ribeiro dormiu mal e o outro não dorme quase nunca. Mas bos escutaram o mosquito a noite inteira. E o anofelino é o passarinho canta mais bonito, na terra

bonita onde mora a maleita.

É de-tardinha, quando as mutucas convidam as muriçocas de volta ra casa, e quando o carapanã rafado mais o mossorongo cinzento se r lhem, que ele aparece, o pernilongo

pampa, de pés de prata e asas de drez. Entra pelas janelas, vindo dos cacos, das frinchas, das taiobeiras, bananeiras, de todas as águas, de qualquer lugar.

- Olha o mosquito-borrachudo nos meus ouvidos, Primo!...

- É a zoeira do quinino... Você está tomando demais...

Vem soturno e sombrio. Enquanto as fêmeas sugam, todos os mae montam guarda, psalmodiando tremido, numa nota única, em tom de E, uma a uma, aquelas já fartas de

sangue abrem recitativo, esvoaçara uma oitava mais baixo, em meiga voz de descante, na orgia crepuscul

$pGARANA 2$3

Mas se ele vem na hora do silêncio, quando o quinino zumbe na cabeça do febrento, é para consolar. Sopra, aqui e acolá, um gemido ondulado e sem pouso... Parece

que se ausenta, mas está ali mesmo: a gente chega a sentir-lhe os feixes de coxas e pernas, em linhas quebradas, fazendo cócegas, longas, longas... Arrasta um fio,

fino e longínquo, de gonzo, fanho e ferrenho, que vem do longe e vai dar no longe... Estica ainda mais o fiapo amarelo de surdina. Depois o enrola e desenrola, zonzo,

ninando, ninando... E, quando a febre toma conta do corpo todo, ele parece, dentro da gente, uma música santa, de outro mundo.

Manhãzinha fria. Quando os dois velhos - que não são velhos - falam, sai-lhes da boca uma baforada branca, como se estivessem pitando. Mas eles ainda não tremem:

frio mesmo frio vai ser daqui a pouco.

Há mais de duas horas que estão ali assentados, em silêncio, como sempre. Porque, faz muito tempo, entra ano e sai ano, é toda manhã assim. A preta vem com os gravetos

e a lenha. Os dois se sentam no cocho, Primo Argemiro da banda do rio, Primo Ribeiro do lado do mato. A preta acende o foguinho. O cachorro corre, muitas vezes,

até lá na tranqueira, depois se chega também cá para perto. A preta traz café e cachaça com limão. Primo Argemiro sopra os tições e ajunta as brasas. E, um pouco

antes ou um pouco depois do sol, que tem um jeito de aparecer sempre bonito e sempre diferente, Primo Ribeiro diz:

- Ei, Primo, aí vem ela...

- Danada!...

- Olh"ele aí... o friozinho nas costas...

E quando Primo Ribeiro bate com as mãos nos bolsos, é porque vai tomar uma pitada de pó. E quando Primo Argemiro estende a mão, é pedindo o cornimboque. E quando

qualquer dos dois apóia a mão no cocho, é P°rque está sentindo falta-de-ar.

E a maleita é a "danada"; "coitadinho" é o perdigueiro; "eles", a gente do povoado, que não mais existe no povoado; e "os outros" são os raros viajantes que passam

lá em-baixo, porque não quiseram ou não puderam dar volta para pegar a ponte nova, e atalham pelo vau.

Primo Argemiro olha o rio, vendo a cerração se desmanchar. Do colmado dos juncos, se estira o vôo de uma garça, em direção à mata. Também, primo Argemiro não pode

olhar muito: ficam-lhe muitas garças pulando, diante dos olhos, que doem e choram, por si sós, longo tempo.

- Está custando, Primo Argemiro...

- E do remédio... Um dia ele ainda há-de dar conta da danada!...

O sol cresce, amadurece. Mas eles estão esperando é a febre, mais o tremor" Primo Ribeiro parece um defunto - sarro de amarelo na cara chu a da, olhos sujos, desbrilhados,

e as mãos pendulando, compondo o eq 1 ífirlO" sem re a escorar dos lados a bambeza do corpo. Mãos moles, sem

P

meza que deixam cair tudo auanm P1P r,,,P;ra nPOar unha hat,~ ,-„~„a

z84 lono GuiMnxAes Rosa / F~cçAO Co

cospe, vai fincando o queixo no peito; e trouxe cá para fora a caiai

remédio, a cornicha de pó e mais o cobertor.

- O seu inchou mais, Primo Argemiro?

- Olha aqui como é que está... E o seu, Primo? - Hoje está mais alto.

- Inda dói muito?

- Melhorou.

É da passarinha. No vão esquerdo, abaixo das costelas, os baços J cessam de aumentar. E todos os dias eles verificam qual foi o que pa frente.

Um barulho. É o cachorro magro, que agita as orelhas dormindo, e

me alertado, com o focinho cúbico encostado no chão.

Primo Argemiro espera um pouco. Aí, ele se espanta. De há m

anos, dia trás dia, tem a hora do perdigueiro dormir ali perto, e a ho

do perdigueiro sacudir as orelhas, que é o momento de Primo Ribeiro - Vida melhor do que a nossa... Para Primo Argemiro, eternamente, responder: - É sim...

E, agora, Primo Ribeiro não falou. Por quê? Ficou mudo, espian três galinhas, que ciscam e catam por ali. Por quê?... Está desfiando a da do cobertor, com muita

nervosia de unhas. É preciso perguntar-1 guma coisa.

- Será que chove, Primo? - Capaz.

- Ind"hoje? Será?

-"Manhã.

- Chuva brava, de panca? - Às vez...

- Da banda de riba?

- De trás.

O passopreto, chefe dos passopretos da margem esquerda, pincha galho de cedro e convoca os outros passopretos, que fazem luto ale vassoural rasteiro e compõem um

kraal nos ramos da capoeira-b Vão assaltar a rocinha; mas, antes, piam e contrapiam, ameaçando potético semeador:

- Finca, fin-ca, qu"eu "ranco! qu"eu "ranco!...

Sobem, de escantilhão, para a copa da árvore, como um borrifo d teiro. Gritam, gritam. Daí, para os pés de milho, descaem aos flocos nem os torrões da última pazada

de um foguista. Tão sabidos, que as pas de onde saíram balançam, mas não há a menor agitação nos s nem nos colmos e nem nas espigas do milharal.

SpGpRANA 285

Podem zombar, podem chamar o resto dos melros, podem comer o milho todo e o arrozal já selvagem. Porque, mais da metade de uma hora é passada, e nada dos dois homens

se mexerem de onde estão.

Mas Primo Ribeiro nunca teve esses olhos estúrdios e nem esse ar de fantasma. E Primo Argemiro tem de puxar qualquer conversa:

- Olha, Primo, se a gente um dia puder sarar, eu ainda hei de plantar uma roça, no lançante que trepa para o espigão. Deve de ser bom a gente poder capinar lá em

riba, de manhã cedinho... Tem uma noruega, lá atrás, cheia de samambaia e parasita roxa. Eu havia de fazer uma roça de três quartas, mas com uns cinco camaradas

no eito, todo-o-mundo cantando e puxando o cacumbu!...

- P"ra que, Primo Argemiro?... A gente nem tem p"ra quem deixar...

Silêncio. Passopretos. Silêncio. Ciscado das galinhas. Passopretos. Silêncio. Primo Ribeiro:

- Primo Argemiro!

E, com imenso trabalho, ele gira no assento, conseguindo pôr-se debanda, meio assim.

Primo Argemiro pode mais: transporta uma perna e se escancha no cocho.

- Que é, Primo Ribeiro?

- Lhe pedir uma coisa... Você faz?

- Vai dizendo, Primo.

- Pois então, olha: quando for a minha hora, você não deixe me levarem p"ra o arraial... Quero ir mas é p"ra o cemitério do povoado... Está desdeixado, mas ainda

é chão de Deus... Você chama o padre, bem emantes... E aquelas coisinhas que estão numa capanga bordada, enroladas em papel-de-venda e tudo passado com cadarço,

no fundo da canastra... se rato não roeu... você enterra junto comigo... Agora eu não quero mexer lá... Depois tem tempo... Você promete?...

- Deus me livre e guarde, Primo Ribeiro... o senhor ainda vai durar mais do que eu.

- Eu só quero saber é se você promete...

- Pois então, se tiver de ser desse jeito de que Deus não há-de querer, eu Prometo.

- Deus lhe ajude, Primo Argemiro.

E Primo Ribeiro desvira o corpo e curva ainda mais a cara.

Quem sabe se ele não vai morrer mesmo? Primo Argemiro tem medo do silêncio.

- Primo Ribeiro, o senhor gosta daqui?...

- Que pergunta! Tanto faz... É bom, p"ra se acabar mais ligeiro... ~ dOUtor deu prazo de um ano... Você lembra?

- Lembro! Doutor apessoado, engraçado... Vivia atrás dos mosquitos, ~Onhecia as raças lá deles, de olhos fechados, só pela toada da cantiga... Disse que não era

das frutas e nem da água... Que era o mosquito que pu-

286

nha um bichinho amaldiçoado no sangue da gente... Ninguém não tou... Nem no arraial. Eu estive lá, com ele...

- Primo Argemiro, o que adianta...

- ... E então ele ficou bravo, pois não foi? Comeu goiaba, com lancia da beira do rio, bebeu água do Pará, e não teve nada...

- Primo Argemiro...

- ... Depois dormiu sem cortinado, com janela aberta... Apanho termitente; mas o povo ficou acreditando...

- Escuta! Primo Argemiro... Você está falando de-carreira, só p~ me deixar falar!

- Mas, então, não fala em morte, Primo Ribeiro!... Eu, por na não queria ver o senhor se ir primeiro do que eu...

- P"ra ver!... Esta carcaça bem que está agüentando... Mas, agq estou vendo o meu descanso, que está chega-não-chega, na horin chegar... .

- Não fala isso, Primo!... Olha aqui: não foi pena ele ter ido s"em Eu tinha fé em que acabava com a doença...

- Melhor ter ido mesmo... Tudo tem de chegar e de ir s"embora vez... Agora é a minha cova que está me chamando... Aí é que eu que Nenhumas ruindades deste mundo

não têm poder de segurar a gentc sempre, Primo Argemiro...

- Escuta, Primo Ribeiro: se alembra de quando o doutor deu a d dida p"ra o povo do povoado? Foi de manhã cedo, assim como ag O pessoal estava todo sentado nas portas

das casas, batendo queix ajuntou a gente... Estava muito triste... Falou: - "Não adianta to médio, porque o mosquito torna a picar... Todos têm de se mudar d Mas

andem depressa, pelo amor de Deus!"... - Foi no tempo da ele seu Major Vilhena... Tiroteio com três mortes...

- Foi seis meses em-antes-de ela ir s"embora...

De branco a mais branco, olhando espantado para o outro, Prim gemiro se perturbou. Agora está vermelho, muito.

Desde que ela se foi, não falaram mais no seu nome. Nem uma v como se não tivesse existido. E, agora...

- É isso, Primo Argemiro... Não adianta mais sojigar a idéia. noite sonhei com ela, bonita como no dia do casamento... E, de ma dinha, inda bem as garrixas ainda

não tinham pegado a cochichar na da das telhas, tive notícia de que eu ia morrer... Agora mesmo, g "maginar: não é que a gente pelejou p"ra esquecer e não teve nenh

to?... Então resolvi achar melhor deixar a cabeça solta... E a cabe pensa nela, Primo Argemiro...

- Tanto tempo, Primo Ribeiro!...

- Muito tempo...

- O senhor sofreu muito! E ainda a maldita da sezão...

SAGARANA 2g7

-A maleita não é nada. Até ajudou a gente a não pensar...

Primo Argemiro cata pulgas invisíveis nas pernas das calças. Acerta a correia da cintura. Coça a roupa. Não quer olhar para o outro. Não pode. Afinal, por perguntar,

pergunta:

- Por que é que foi, que só hoje é que o senhor sonhou com ela, Primo Ribeiro?

- Não sei, não... Só sei é que se ela, por um falar, desse de chegar aqui de repente, até a febre sumia...

- É... Se ela chegasse, até a febre sumia...

-Também, não sei: eu hoje cansei de sofrer calado... Vem um dia ern que a gente fica frouxo e arreia... Também, eu só estou falando é com você, que é p"ra mim que

nem um irmão. Se duvidar, nem um filho não era capaz de ser tão companheiro; tão meu amigo, nesses anos todos... E não quis me deixar sozinho, mesmo tendo, como

tem, aquelas suas terras tão boas, lá no Rio do Peixe. Não precisava de ter ficado... O sofrimento era só meu.

- Eu também senti muito, Primo Ribeiro.

Primo Argemiro falou olhando para o coqueiro cintado, erguido lá adiante do cruzeiro, com as palmas recurvas remando o vento.

- Eu sei, Primo. Você tem bom coração...

O perdigueiro despertou e veio fazer festas, dando de rabo, esfregandolhes nas pernas os calombos das costas, cheias de bernes, que ninguém tem ânimo para catar.

Bate a língua, bate orelhas, e anda curta distância, moleando as patas, com donaire de dama.

- Eu acho até que é bom falar. Quem sabe... Assim, ao menos, não fica roendo, doendo dentro da gente...

- É mesmo. P"ra desacochar. Eu nem sei como o senhor não morreu, quando...

- Chorei no escondido. Agora não me importo de contar.

- Ela foi uma ingrata, não foi, Primo Ribeiro?... A gente toma amor até â criação, até aos cachorros. E ela...

- Só três anos de casados!... Lembra, Primo Argemiro?... Você veio morar comigo dois meses depois, p"ra plantar à meia o arroz... Eu não tenho raiva dela. Não tenho

não. Ainda ficava mais triste, se soubesse que ela andava penando por aí à toa. Agora, o tal, esse... Mesmo doente e assim acabado, eu ainda havia de...

- Sossega, Primo Ribeiro. Levanta os braços: o senhor está botando

Sangue pelo nariz...

É de ficar com a cabeça abaixada. Já, já, passa.

- E não. É da doença...

lá, já, passa.

Ai, primo Ribeiro, por que foi que o senhor não me deixou ir atrás

vo~ta"p ra ~ do eles fugiram? Eu matava o homem e trazia minha prima de

28ó

JOÃO GUIMARÃES ROSA I FICÇÃO CO

- P"ra que, Primo Argemiro? Que é que adiantava?... Eu não poli com ela mais... Na hora, quando a Maria Preta me deu o recado despedindo, mandando dizer que ia acompanhar

o outro porque era dele e não gostava mais de mim, eu fiquei meio doido... Mas não atrás, não... Tive vergonha dos outros... Todo-o-mundo já sabia... E, tinha obrigação

de matar também, e sabia que a coragem p"ra isso ha faltar... Também, nesse tempo, a gente já estava amaleitados, pois nã va?... Foi bom a sezão ter vindo, Primo

Argemiro, p"ra isto aqui vir ermo e a gente poder ficar mais sozinhos... Ai, Primo, mas eu não sei é que eu tenho hoje, que não acerto um jeito de poder tirar a

idéia Ô mundo!...

A sombra do cedro vem se encostar no cocho. Primo Ribeiro lev os ombros; começa a tremer. Com muito atraso. Mas ele tem no baça colméias de bichinhos maldosos, que

não se misturam, soltando e no sangue em dias alternados. E assim nunca precisa de passar um d` tremer.

- Olha o frio aí, Primo Argemiro... Me ajuda...

Enrola-se mais no cobertor. Os dentes se golpeiam. Desencontr dançam-lhe todos os músculos do corpo.

- Quer o remédio, Primo?

- Não vou tomar mais... Não adianta. Está custando muito a ch morte... E eu quero é morrer.

- Isso até é ofender a Deus... Ceição! 6 Ceição!

A negra não escuta. Deve de estar lá na porta da cozinha, batendo ou tirando decoada da barrela, para fazer sabão.

Primo Argemiro se agarrou com as mãos nos joelhos. Os maxilar trondam; só param de bater quando ele faz vômitos. E está cor de ce reino quando pega a derreter.

- Ai, Primo Argemiro, eu, numa hora dessas... só queria era me em beira de um fogueirão!... Que frio... Que frio!... E o diabo do s não quenta coisa nenhuma...

O perdigueiro morrinhento pula em volta do cocho.

- Não deixa esse cachorro vir lamber minha cara, Primo... Vo deitar aqui...

- Sai, Jiló!

Primo Ribeiro se deixa cair no lajedo, todo encolhido e sacudido mor. Primo Argemiro fica bem quieto. Não adianta fazer nada. E el muita coisa sua para imaginar.

Depressa, enquanto Primo Ribeiro e o corpo ao acesso e parece ter partido para muito longe dali, não po adivinhar o que a gente está pensando.

E Primo Argemiro sabe aproveitar, sabe correr ligeiro pelos bons nhos da lembrança.

rnm~ era mesmo aue ela era?!... Morena, os olhos muito pretos..

Que tristeza... Não esperava aquilo, não esperava... Parecia combinar bem com o marido... Primo Ribeiro naquele tempo era alegre... E ele sentira até ciúmes de Primo

Ribeiro, ciúme bobo, porque Primo Ribeiro era quem tinha direito a ela e ao seu amor...

Esquisita, sim que ela era... De riso alegrinho mas de olhar duro... Que bonita!... O boiadeiro tinha ficado três dias na fazenda, com desculpa de esperar outra

ponta de gado... Não era a primeira vez que ele se arranchava ali. Mas nunca ninguém tinha visto os dois conversando sozinhos... Ele, Primo Argemiro, não tinha feito

nenhuma má-idéia...

- Sai, Jiló!... Bota abaixo, diabo!... Assim! Assim, cachorrinho bom...

Bem que havia de ser razoável ter podido ao menos dizer à prima que ela era o seu amor... Porque, assim, tinha fugido sem saber, sem desconfiar de nada... Mas ele

nunca pensara em fazer um malfeito daqueles, ainda mais morando na casa do marido, que era seu parente... isso não! Queria só viver perto dela... Poder vê-la a todo

instante...

E Primo Ribeiro nunca tinha posto maldade... Também, que é que havia, para ele poder maldar?... Nada... Só, uma vez, debaixo das jabuticabeiras... Nesse dia, quase

que perdera a força de ser correto. Viu-a de vestido azul-do-mar... Os braços cor de jenipapo... As mãos deviam de ser macias... Mas Deus ajudou, tirando-lhe a coragem...

Também, se tivesse faltado com o respeito à mulher do Primo Ribeiro, teria sumido no mundo, na mesma da hora, com remorso...

Aquilo tinha sido três meses antes de ela fugir. Mas, antes, bem emantes disso, teve uma vez que ela desconfiou. Foi logo que ele chegara à fazenda, uns dias depois.

Estava olhando, assim esquecido, para os olhos... olhos grandes escuros e meio de-quina, como os de uma suaçuapara... para a boquinha vermelha, como flor de suinã...

- "Você parece que nunca viu a gente, Primo!... Você precisa mas é de campear noiva e caçar jeito de se casar..." - dissera ela, rindo.

Ele tinha ficado meio palerma, sem ter nada para responder... Teria ela adivinhado o seu querer-bem?... Não, falara aquilo por brincadeira, decerto, Mas, quem sabe...

Mulher é mulher... E que bom que seria, se ela tivesse ficado sabendo! Ao menos, agora, de vez em quando se lembraria dele, di~ndo: "primo Argemiro também gostou

de mim..."

As palmas do coqueiro estão agora paradas de todo. As galinhas foram pastar as folhas baixas do melão-de-são-Caetano. Nem resto de brumas na baixada. O sol caminhou

muito.

primo Argemiro já se acostumou com o trincar de dentes e com os gefiidos de primo Ribeiro. Não pode dar-lhe ajuda nenhuma. O que pode é Prensar, E pensa mais, quase

cochilando, gemendo também, com as fer

adas no baço. Pensa à toa, como os tico-ticos, que debicam na terra cis-

$AGARANA 289 1

bonita!.,. Os cabelos muito pretos... Mas não paga a pena querer pensar

onde é que ela pode estar a uma hora destas... Quando fugiu, que baque!

29O JOÃO GUIMARÃES ROSA ~ FICÇÃO

cada pelas galinhas, e dão carreirinhas tão engraçadas, que a gen sabe se eles estão cruzando aos pulinhos ou se é vôo rasteiro só.

... Não adiantou ter sido tão direito... Se ele, Primo Argemiro tido coragem... Se tivesse sido mais esperto... Talvez ela gostasse... P" querido fugir com ele;

o boiadeiro ainda não tinha aparecido... Ag havia de se lembrar, achando que era um pamonha, um homem se são... E, no entanto, viera para a fazenda só por causa

dela... Prima não punha malícia em coisa nenhuma... Sim, os dois tinham sido b los, só o homem de fora era quem sabia lidar com mulher!...

Não! Fez bem. Era a mesma coisa que crime!... Nem é bom pen so... Amanhã ele vai ao capoeirão, tirar mel de iruçu para o Primo Ri Deus que livre a gente desses maus

pensamentos!... Primo Ribeiro v satisfeito: ele gosta de mel do mato, com farinha... Primo Ribeiro var alegriazinha... - P"ra que é que há-de haver mulher no mundo

Deus?!...

- Hein?!...

Primo Argemiro estremece. Tinha pensado alto. E agora Primo Ri está espiando para ele, meio espantado, com o branco dos olhos risc de vermelho, no lugar das manchas

amarelas de sempre. Há mur jogou para um lado o cobertor e voltou a sentar-se no cocho. Pass frio, passada a tremura, vem a hora de Primo Ribeiro variar. Pri gemiro

não gosta. Não se habitua àquilo. Ele, nos seus acessos, não nunca: não tem licença: se delirar, pode revelar o seu segredo. Tem" tento na cabeça e de subjugar a

doideira, e sofre o demônio, por viá Mas, mesmo assim, ainda é melhor do que ter de ouvir as coisas que Ribeiro desanda a falar entre o tremor e o suor. Até a cara

de Primo faz medo, de tão vermelha que está. Parece que ele engordou, de Inchaço. E está pegando fogo...

- Ô calorão, Primo!... E que dor de cabeça excomungada!

- É um instantinho e passa... É só ter paciência...

- É... passa... passa... passa... Passam umas mulheres vestidas de água, sem olhos na cara, para não terem de olhar a gente... Só elta não passa, Primo Argemiro!...

E eu já estou cansado de procurar, das outras... Não vem!... Foi, rio abaixo, com o outro... Foram p fernos!...

- Não foi, Primo Ribeiro. Não foram pelo rio... Foi trem-de-fe levou...

- Não foi no rio, eu sei... No rio ninguém não anda.... Só a quem sobe e desce, olhando seus mosquitinhos e pondo neles a b~ Mas, na estória... Como é mesmo a estória,

Primo? Como é?...

- O senhor bem que sabe, Primq... Tem paciência, que não variar...

- Mas, a estória, Primo!... Como é?... Conta outra vez...

$AGARANA

.O senhor já sabe as palavras todas de cabeça... "Foi o moço-bonito que apareceu, vestido com roupa de dia-de-domingo e com a viola enfeitada de fitas... E chamou

a moça p"ra ir se fugir com ele"...

-Espera, Primo, elas estão passando... Vão umas atrás das outras... Cada qual mais bonita... Mas eu não quero, nenhuma!... Quero só ela... Luísa...

- Prima Luísa...

- Espera um pouco, deixa ver se eu vejo... Me ajuda, Primo! Me ajuda a ver...

-Não é nada, Primo Ribeiro... Deixa disso!

- Não é mesmo não...

- Pois então?!

- Conta o resto da estória!...

-..."Então, a moça, que não sabia que o moço-bonito era o capeta, ajuntou suas roupinhas melhores numa trouxa, e foi com ele na canoa, descendo o rio..."

- A moça que eu estou vendo agora é uma só, Primo... Olha!... É bonita, muito bonita. É a sezão. Mas não quero... Bem que o doutor, quando pegou a febre e estava

variando, disse... você lembra?... disse que a maleita era uma mulher de muita lindeza, que morava de-noite nesses brejos, e na hora da gente tremer era quem vinha...

e ninguém não via que era ela quem estava mesmo beijando a gente... Mas, acaba de contar a estória, Primo...

- É tão triste...

- Não faz mal, conta!

- ..."Então, quando os dois estavam fugindo na canoa, o moço-bonito, que era o capeta, pegou na viola, tirou uma toada, e começou a cantar:

- E aí?...

_ O senhor está cansado de saber... "Aí a canoinha sumiu na volta do r~O--- E ninguém não pôde saber p"ra onde foi que eles foram, nem se a moça, quando viu que

o moço-bonito era o diabo, se ela pegou a chorar... °° Se morreu de medo... ou fez o sinal-da-cruz... ou se abraçou com ele assim mesmo, porque já tinha criado amor...

E, cá de riba, o povo escutou a °pz dele, lá longe, muito lá longe..."

Canta como foi, Primo...

E a mesma cantiga...

Mas, canta!

29r

"Eu vou rodando rio-abaixo, Sinhá... Eu vou rodando rio-abaixo, Sinhá..."

z9z lOAO GutMnxAes Rosa / FtcçAo

"Eu vou rodando rio-abaixo, Sinhá... . Eu vou rodando rio-abaixo, Sinhá..."

- Ai, Primo Argemiro, está passando... Já estou meio melho que eu variei?... Falei muita bobagem?...

- Falou, não, Primo... Daqui a pouco é a minha vez... Não di chegar...

Sim, daqui a pouco vai ser a sua hora. Aqui a febre serve de reló~ está ficando mais amolecido. Também deve ser de ter pensado mul tes o outro não tivesse querido

falar em nome guardado... Foi da!r força à saudade... E ele, que nem tem com quem desabafar, não" quem contar o seu sofrimento!... Lá, onde está o cruzeiro, morreu

balhador de roça, um velho. Foi de repente, do coração... Será qué a ainda tem de viver muito?...

- Primo Argemiro!?...

- Que é, Primo Ribeiro?

- Estou com uma sede... Estou me queimando por dentro..; M

caridade de dar um eco na preta...

- A negra não escuta... Eu vou buscar a água, Primo Ribeiro. - Deus lhe pague, Primo.

Primo Ribeiro respira a custo. Está remexendo com os dedos e

sozinho outra vez.

Lá vem o outro com a caneca. Desce a escadinha, muito devagar: gro, magríssimo. Chega trôpego, bambo meio curvante.

- Ai, Primo Argemiro, nem sei o que seria de mim, se não fos adjutório! Nem um irmão, nem um filho não podia ser tão bom... dia ser tão caridoso p"ra mim!...

- Bobagem, Primo. Aproveita e toma o remédio também, tudo de uma vez.

- Não quero, já falei! Quero mas é ajudar este corpo a se acabat ... (- "Nem um irmão, nem um filho!"...) ele está mas é engan

companheiro!... Há quantos anos que esconde aquilo... Não! É hoje!.

está direito... Tem de confessar... ~ - Primo Ribeiro... eu nunca tive coragem p"ra lhe contar uma

Vou lhe contar uma coisa... O senhor me perdoa?!...

- Chega aqui mais p"ra perto e fala mais alto, Primo, que esse

nos ouvidos quase que não deixa a gente escutar...

- Não foi culpa minha... Foi um castigo de Deus, por causa d

pecados... O senhor me perdoa, não perdoa?!...

- Que foi isso, Primo? Fala de uma vez!

- Eu... eu também gostei dela, Primo... Mas respeitei sempre...

SpGpRpNA z93

tei o senhor... sua casa... Nós somos parentes... Espera, Primo! Não foi minha culpa, foi má-sorte minha...

Primo Ribeiro arregalou os olhos. Calcou a mão na madeira do cocho. Faz força para se levantar.

- Não teve nada, Primo!... Juro!... Por esta luz!... Nem ela nunca ficou sabendo... Por alma de minha mãe!

As pernas de Primo Ribeiro se recusam a agüentar-lhe o corpo. Primo Argemiro se levantou também. Quer ajudar o outro a se suster.

- Me larga! Me larga e fala como homem!

- Já falei, Primo. Me perdoa...

- Você veio morar aqui com a gente, foi por causa dela, foi?...

- Foi, Primo. Mas nunca...

- E foi por isso que você não quis ir-s"embora..: depois?... Esperando para ver se algum dia ela voltava, foi?!...

- Não, Primo... isso não!... Não foi nada por causa... Eu também sofri muito... Não queria mais nada no mundo... E foi por conta do senhor, também... Quando ela

deixou de estar aqui, eu fiquei querendo um bem enorme ao senhor... a esta casa de fazenda... aos trens todos daqui... Até à maleita!...

- Fui picado de cobra... Fui picado de cobra... d mundo!

- Mas, sossega, Primo Ribeiro... Já lhe jurei que não faltei nunca ao respeito a ela... Nem eu não era capaz de cair num pecado desses...

- O senhor está variando... Escuta! Me escuta, pelo amor de Deus...

- Não estou variando, não, mas em-antes estivesse!... Some daqui, homem! Vai p"r"as suas terras... Vai p"ra bem longe de mim!... Mas vai logo de uma vez!...

- Quero morrer nesta hora, se algum dia eu pensei em fazer a sua desonra, Primo!

-Anda, por caridade!... Vai embora!...

- Pensa até mais logo, Primo... Pensa até hoje de-tarde...

- Este caco de fazenda ainda bem que é meu... É meu!... Anda! Anda!... Nào quero ver você mais...

- Me dá um prazo, Primo. Até o senhor melhorar...

- Vai!

- Estou pagando o que não fiz...

- Vai!

- O senhor ainda pode precisar de mim, Primo, que sou o único ami

gue o senhor tem...

Então, vai, Primo!... Você não tem pena de mim, que não tenho arma nenhuma aqui comigo, e, nem que tivesse, não rejo mais nem força P ra lhe matar?!

E Primo Ribeiro, branco, encaveirado, soprando, e levantando o queixo a pada ofego, caiu sentado no casco de cocho outra vez.

294 IOÀO GUIMARAES Rosa / Ficçno C

- Pois então, adeus, Primo! Me perdoa e não guarda ódio de mr eu lhe quero muito bem...

- Ajunta suas coisas e vai...

- Não tenho nada... Não careço mais de nada... O que é meu comigo... Adeus!

Primo Argemiro reúne suas forças. E anda. Transpõe o cur entre os pés de milho. Os passopretos, ao verem um espantalho) nhando, debandam, bulhentos. O perdigueiro

de focinho gro correndo também. Vem, mas diz que não vem: vira a cabeça, ol ra Primo Ribeiro, que lá está sentado ainda, curvado para o chão chorro está desatinado.

Pára. Vai, volta, olha, desolha... Não en Mas sabe que está acontecendo alguma coisa. Latindo, choraming chorando, quase uivando. Porque tem ordem de ser sempre

fiel,` sabe mais, não se recorda mais qual dos dois homens será o seu dort dadeiro.

Quando Ooutro passou a tranqueira, Primo Ribeiro levantou a c e espiou. Sua, sua: assim corpo e roupa; e a testa que é só um eâc Fecha os olhos, parecendo que nem

pode morrer direito.

Mas Primo Argemiro anda sem se voltar. Agora atravessa o mati

- I-v-v-v!... O primeiro calafrio... A maleita já chegou...

O cachorro ainda pulou-lhe adiante, ganindo, pedindo... Depois rou. Não quer ir mais longe.

- Adeus, Jiló!...

Fica. Ninguém não mandou que ele fosse embora... Ele pode fica

Outro grande arrepio. Que frio!... E, no entanto, as árvores estã ra sem sombra, e o sol, se caísse, se espetaria no estipe verde do coq

A erva-mãe-boa derrama cachos floridos, no meio das folhas eni ções. Muitas flores. Azuis... Foi num vestido azul que ele a viu pela sé vez, no terço de São Sebastião...

Tantos anos!... Quando a verá ainda?!. Céu, talvez... Mas, mesmo no Céu, ela terá que gostar do boiadeiro ranga. E ele, Argemiro, terá de respeitar Primo Ribeiro,

que é o mar nome de Deus...

... Mas, quando a viu, acompanhando o terço, já gostava dela, tinha amor... Desde de-manhã... na porta da casa, saindo para a mr com a mãe e as irmãs... Já estava

de casamento tratado com Primo ro... Talvez que ela não fosse a moça mais bonita do arraial... E rï mesmo. Mas o amor é assim...

Nunca mais? Nunca mais... Ai, meu Deus! por mim era muito não ter céu nenhum...

... Por aquele tempo, Argemiro dos Anjos era um moço bem-apa de figura, e com oitenta alqueires de terras de cultura, afora algum ro de parte...

Ai! que o frio cai entre os ombros, e vaipelas costas, e escorre das.

$A~A~NA 295

para o corpo todo, como fios de água fina. Zoa nos ouvidos confuso sussurro, e para diante dos olhos vêm coisinhas, querendo dançar.

Ir, para onde?

.,, A primeira vez que Argemiro dos Anjos viu Luisinha, foi numa manhã de dia-de-festa-de-santo, quando o arraial se adornava com arcos de bambu e bandeirolas, e

o povo se espalhava contente, calçado e no trinque, vestido cada um com a sua roupa melhor...

Ir para onde?... Não importa, para a frente é que a gente vai!... Mas, depois. Agora é sentar nas folhas secas, e agüentar. O começo dó acesso é bom, é gostoso:

é a única coisa boa que a vida ainda tem. Pára, para tremer. E para pensar. Também.

Estremecem, amarelas, as flores da aroeira. Háum frêmito nos caules rosados da erva-de-sapo. A erva-de-anum crispa as folhas, longas, como folhas de mangueira. Trepidam,

sacudindo as suas estrelinhas alaranjadas, os ramos da vassourinha. Tirita a mamona, de folhas peludas, como o corselete de um caçununga, brilhando em verde-azul!

A pitangueira se abala, do jarrete à grimpa. E o açoita-cavalos derruba frutinhas fendilhadas, entrando em convulsões.

- Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar bonito p"r"a gente deitar no chão e se acabar!...

É o mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão.

297

DUELO

"E grita a piranha cor de palha, irritadíssima:

- Tenho dentes de navalha, e com um pulo de ida-e-volta resolvo a questão!...

- Exagero... - diz a arraia - eu durmo na areia, de ferrão a prumo, e sempre há um descuidoso que vem se espetar.

- Pois, amigas, - murmura o gimnoto, mole, carregando a bateria - nem quero pensar no assunto: se eu soltar três pensamentos elétricos,

bate-poço, poço em volta, até vocês duas boiarão mortas..."

(CONVERSA A DOIS METROS DE PROFUNDIDADE)

TURÍBIO TODO, NASCIDO À BEIRA DO Borrachudo, era seleiro de profis

são, tinha pêlos compridos nas narinas, e chorava sem fazer caretas; palavra por palavra: papudo, vagabundo, vingativo e mau. Mas, no começo desta estória, ele estava

com a razão. `

Aliás, os capiaus afirmam isto assim peremptório, mas bem que no caso havia lugar para atenuantes. Impossível negar a existência do papo: mas papo pequeno, discreto,

bilobado e pouco móvel - para cima, para baixo, para os lados - e não o escandaloso "papo de mola, quando anda pede esmola"... Além do mais, ninguém nasce papudo

nem arranja papo por gosto: ele resulta das tentativas que o grande percevejo do mato faz para se tornar um animal doméstico nas cafuas de beira-rio, onde há, também

cúmplices, camaradas do barbeiro, cinco espécies, mais ou menos, de tatus. E, tão modesto papúsculo, incapaz de tentar o bisturi de um operador, não enfeava o seu

proprietário: Turíbio Todo era até simpático: forçado a usar colarinho e gravata, às vezes parecia mesmo elegante.

Não tinha, porém, confiança nesses dotes, e daí ser bastante misantropo, e dali ter querido ser seleiro, para poder trabalhar em casa e ser menos visto. Ora, com

a estrada-de-ferro, e, mais tarde, o advento das duas estradas de automóvel, rarearam as encomendas de arreios e cangalhas, e Turíbio Todo caiu por força na vadiação.

Agora, quanto às vibrissas e ao choro sem visagens, podia ser que indicassem gosto punitivo e maldade, mas com regra, o quanto necessário, não em excesso.

E, ainda assim, saibamos todos, os capiaus gostam muito de relações de efeito e causa, leviana e dogmaticamente inferidas: Manuel Timborna, por exemplo, há três

ou quatro anos vive discutindo com um canoeiro do Rio das Velhas, que afirma que o jacaré-do-papo-amarelo tem o pescoço cor de enxofre por ser mais bravo do que

os jacarés outros, ao que contrapõe Timborna que ele só é mais feroz porque tem a base do queixo pintada de limão maduro e açafrão. E é até um trabalho enorme, para

a gente sensata, P°der dar razão aos dois, quando estão juntos.

Assim, pois: de qualquer maneira, nesta história, pelo menos no começo - e o começo é tudo - Turíbio Todo estava com a razão.

Tinha sido para ele um dia de nhaca: saíra cedo para pescar, e faltaralhe à beira do córrego. o fumo-de-rolo, tendo, em coice e queda, de sofrer

3Oo Jono GuiMnxnes Rosn / F~cçno Co

com os mosquitos; dera uma topada num toco, danificando os artelh pé direito; perdera o anzol grande, engastalhado na coivara; e, vol para casa, vinha desconsolado,

trazendo apenas dois timburés no ca Claro que tudo isso, sobrevindo assim em série, estava a exigir des maior, que não faltou.

Mas, por essa altura, Turíbio Todo teria direito de queixar-se tãosua falta de saber-viver; porque avisara à mulher que não viria dorm casa, tencionando chegar até

ao pesqueiro das Quatorze-Cruzes e pe tarem casa do primo Lucrécio, no Decamão. Mudara de idéia, sem ed aviso à esposa; bem feito!: veio encontrá-la em pleno (com

perdão dai vra, mas é verídica a narrativa) em pleno adultério, no mais doce, d descuidoso, dos idílios fraudulentos.

Felizmente que os culpados não o pressentiram. Turíbio Todo c maus chegar com um mínimo de turbulência; ouviu vozes e espiou uma fisga da porta; a luz da lamparina,

lá dentro, o ajudando, viu. Mas fez nada. E não fez, porque o outro era o Cassiano Gomes, ex-anspe do 1~ pelotão da 2a companhia do 5~ Batalhão de Infantaria da

Força blica, onde as gentes aprendiam a manejar, por música, o ZB tch lovaco e até as metralhadoras pesadas Hotchkiss; e era, portanto, m homem para lhe acertar

um balaço na testa, mesmo estando assim e maríssima indumentária e fosse a distância para duzentos metros, co alvo mal iluminado e em movimento.

Turíbio Todo não ignorava isso, nem que o Cassiano Gomes era parável da parabellum, nem que ele, Turíbio, estava, no momento, a com a honra ultrajada e uma faquinha

de picar fumo e tirar bicho-de

Todavia, como o bom, o legítimo capiau, quanto maior é a raiva melhor e com mais calma raciocina, Turíbio Todo dali se afastou mais cio ainda do que tinha chegado,

e foi cozinhar o seu ódio branco em de água fria.

E fez bem, porque então lhe aconteceu o que em tais circunst acontece às criaturas humanas, a 19~ de latitude S. e a 44~ de longitu meia dúzia de passos e todo o

mau-humor se deitava num estado de mesmo de satisfação. Respirava fundo e sua cabeça trabalhava com g compondo urdidos planos de vingança.

E pois, no outro dia, voltou para casa, foi gentilíssimo com a m mandou pôr ferraduras novas no cavalo, limpou as armas, proveu d sas a capanga, falou vagamente

numa caçada de pacas, riu muito, se muito, e foi dormir bem mais cedo do que de costume. E isso foi na q ta-feira. Quinta-feira pela manhã...

... Altos são os montes da Transmantiqueira, belos os seus rios,

os seus vales; e boa é a sua gente... Mas, homens são os homens; e a pa

cia serve para vãos andares, em meados de maio ou no final de agosto.

ruchas há que sozinhas disparam. E é muito fácil arranjar-se uma cruz

SA~A~NA 3O1

as sepulturas de beira de estrada, porque a bananeira-do-campo tem os galhos horizontais, em ângulos retos com o tronco, simétricos, se continuando dos lados, e

é só ir cortando, todos, com exclusão de dois. E... quê? Otatu-peba não desenterra os mortos? Claro que não. Quem esvazia as covas é o tatu-rabo-mole. O outro,

para que iria ele precisar disso, se já vem do fundo do chão, em galerias sinuosas de bom subterrâneo? Come tudo lá mesmo, e vai arrastando ossadas para longe, enquanto

prolonga seu caminho torto, de cuidoso sapador.

Bem, quinta-feira de-manhã, Turíbio Todo teve por terminados os preparativos, e foi tocaiar a casa de Cassiano Gomes. Viu-o à janela, dando as costas para a rua.

Turíbio não era mau atirador; baleou o outro bem na nuca. E correu em casa, onde o cavalo o esperava na estaca, arreado, almoçado e descansadão.

Nem por sonhos pensou em exterminar a esposa (Dona Silivana tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta), porgrie era um cavalheiro, incapaz da covardia de maltratar

uma senhora, e porque basta, de sobra, o sangue de uma criatura, para lavar, enxaguar e enxugar a honra mais exigente.

Agora tinha de cair no mundo e passar algum tempo longe, e tudo estaria muito bem, conseqüente e certo, limpamente realizado, igualzinho a outros casos locais.

Mas... Houve um pequeno engano, um contratempo de última hora, que veio pôr dois bons sujeitos, pacatíssimos e pacíficos, num jogo dos demônios, numa comprida complicação:

Turíbio Todo, iludido por uma grande parecença e alvejando um adversário por detrás, eliminara não o Cassiano Gomes, mas sim o Levindo Gomes, irmão daquele, o qual

não era metralhador, nem ex-militar e nem nada, e que, por sinal, detestava mexida com mulher dos outros. Turíbio Todo soube do erro, ao subir no estribo. - Ui!...

Galope bravo, em vez de andadura!... - pensou. E enterrou as esporas e partiu,jogando o cascalho para os lados e desmanchando poeira no chão.

Cassiano Gomes acompanhou o corpo do irmão ao cemitério, derramou o primeiro punhado de terra, e recebeu, com muita compostura, entristecido e grato, as condolências

competentes. Depois voltou em casa, fechou muito bem as janelas e portas - felizmente ele era solteiro - e saiu, cora a capa verde reiúna, a winchester, a parabellum

e outros petrechos, para procurar o Exaltino-de-trás-da-lgreja, que tinha animais de sela para vender.

Cornprou a besta douradilha; mas, antes, examinou bem, nos dentes, a idade; deu um repasse, criticou o andar e pediu uma diferença no preço. Encerrado o negócio,

com os arreios e tudo, Cassiano mandou que dessem milho e sal à mula; escovaram-na, lavaram-na e ferraram-na de novo.

lá ele pronto, quando estava amarrando a capa nas garupeiras, ainda ouviu o que o Exaltino-de-trás-da-lgreja falou, baixinho, para o Clodino

Preto:

3O2

JOÃO GUIMARAES ROSA / FICÇÀO G

- Está morto. O Turíbio Todo está morto e enterrado!... Esta foi" ma trapalhada que o papudo arranjou...

Cassiano pensou, fumou, imaginou, trotou, cismou, e, já a duas do arraial, na grande estrada do norte, os seus cálculos acharam con Turíbio Todo tinha uns parentes

na Piedade do Bagre, ou ali por longe... Para lá batera, direitinho, ainda assustado por conta do Não podia ter tomado outro rumo, e, de seguro; dando o mais que:

se, teria vindo a galope. Quando ele chegasse na Piedade - para não havia terras aonde um cristão pensasse ir, - descansado, j gente sua, tornaria a ter raiva e

tratava de voltar nos passos.

E estava muito certo disso tudo:

- Ele vai como veado acochado, mas volta como canguçu... No do caminho a gente topa, e quem puder mais é que vai ter razão...

Não precisava, portanto, de pressa, e podia ir na marcha estra sem estropiar a bestinha. E, nem que só para não deixar que se esgota as suas reservas de ódio, punha

ele a idéia em assuntos amenos, e se xava para caçar o jaó nas capoeiras e, nos campos, a codorna e a po torcaz.

Contudo, sabendo que as notícias sempre chegam primeiro do, gente de bem, achava razoável dar às coisas uma demão: era só cruzar um troço de tropeiros tangendo a

burrada, ou alcançar um capinador ia para a roça, de enxada no ombro, e Cassiano parava, procurandq versa e falando no inimigo com os piores insultos:

- Você conhece o Turíbio Todo, o seleiro, aquele meio papudo?... é um... (Aqui, supostas condições de bastardia e desairosas referên genitora. )

Mas, bico trancado, quanto aos planos: nada de ameaças, injúrias

E Cassiano Gomes tinha acertado, em parte. Turíbio Todo viera para Piedade do Bagre, justo como um catingueiro à frente do latido trelas e mais a buzina do perreiro;

e bastara-lhe um dia de repousos compreender que estava num fundo-de-saco, pois que aquele lugare a boca do sertão.

Mas não voltou como onça na ânsia da morte: baldeou do ma ajumentado e estrompado, para um ruço-picaço quatrolho e quatral fez que vinha e não veio, e fez como o

raposão. Obliquou a rota para nordeste, demandando as alturas do Morro do Guará ou do Mo Garça, e aí houve que foi onde Cassiano tinha descalculado, manc traça e

falseando a mão.

- Tem tempo... - disse. E continuou a batida, confiado tão-só piração do momento, porquanto o baralho fora rebaralhado e agot nham ambos outros naipes a jogar.

Porém, posto que a situação se complicara, o essencial era zan sombra, para apanhar o outro desprevenido, de surpresa; e, para

Sr~^R^N`" 3O3

amoitar-se, pois: - Não vê! Quem fica no claro é enxergado mais primeiro, e leva o tiro que quem está no escuro é quem dá!...

Fugindo, Turíbio Todo levava aparente desvantagem. Mas Cassiano fiava muito pouco nessa correria, porque a qualquer momento a caça podia voltar-se, enraivada; e

vem disso que às vezes dá lucro ser caça, e quem disser o contrário não está com a razão.

E assim, pensando dessa louvável maneira, ele passou a viajar de preferência à noite, cortando mato adentro, evitando a estrada-mestra, fazendo grandes rodeios e

dormindo de dia, em impossíveis lugares. Era a conta descuidar-se ou afoitar-se um tiquinho, deixar de esticar voltas e de pegar atalhos, dormir com os dois olhos

fechados ou fazer muito anunciados itinerário e pessoa, para, de hora para outra - não há como um papudo para se sair bem de uma tocaia, todos dizem, - Cassiano

Gomes ser acordado do sono por uma bala ou facada, e, isso mesmo, caso Ooutro houvesse por bem deixá-lo despertar.

Agora, quando encontrava qualquer mandioqueiro ou qualquer um andejo, tinha lérias e embustes para indagar, sem dar a saber quem era; sim, que passara o tempo de

semear notícias, e era abrir os ouvidos e saber do papudo, que precisava de acuar para poder atirar.

E, desse jeito, visto que Turíbio Todo talvez fosse ainda mais ladino e arisco, durante dois meses as informações foram vasqueiras e vagas, e nunca se soube bem

por onde então eles andaram ou por quais lugares foi que deixaram de andar.

Mas, nesse depois, deu que um dia Cassiano, surgindo nas Traíras, escutou conversa de que o outro estava na Vista Alegre, aonde viera ter, aquerenciado, com saudades

da mulher. Cassiano Gomes tirou suas deduções e tocou riba-rio, sempre beirando o Guaicuí, que só vadeou no lugar bonito - com frangos-d"água chocando ovos no fundo

dos quintais, com uma lagoa no centro do arraial - chamado Jequitibá; isso enquanto Turíbio Todo, um pouco além norte, fazia uma entrada triunfal em Santo Antônio

da Canoa, onde ainda ousou assistir, muito ancho, às festas do Rosário, com teatrinho e leilão.

Dançando de raiva, Cassiano fez meia-volta e destorceu caminho, varejando cerradões, batendo trilhos de gado, abrindo o aramado das cercas dos pastos, para cair,

sem aviso, no meio dos povoados tranqüilos dos grotões. Mas eram péssimos os voluntários do serviço de informes, e, perto do Sacodos-Cochos, eles cruzaram, passando

a menos de quilômetro um do outro, armados em guerra e esganados por vingança.

E Cassiano Gomes, por ter apenas vinte e oito anos e, pois, ser estrategista mais fino, vinha pula-pula, ora em recuos estúrdios, ora em bizarras demoras de espera,

sempre bordando espirais em torno do eixo da estradamãe, mias Turíbio Todo, sendo mais velho, tinha por força de ser melhor tático, e vinha vai-não-vai, em marcha

quebrada, como um vôo de borbo-

3O4 Jono GuiMnxAes Rosa / Ficçno Co

Teta, ou melhor de falena, porque também ele se fizera noctâmbulo; va além disso estupenda vantagem, traquejádo no terreno, que lhe e ma das mãos.

E assim continuaram, traçando por todos os lados linhas apre num raio de dez léguas, na mesopotâmia que vai do vale do Rio das -lento, vago, mudável, saudoso, sempre

nascente, ora estreito, ora de água vermelha, com bancos de areia, com ilhas frondosas de ma quase humano, - até ao Paraopeba - amplo, harmônico, impassív voso,

sem barrancas, sem rebordos, com praias luminosas de mala e águas profundas que nunca dão vau.

E nenhum deles era capaz de meter-se em passagens de cavas, n arranchar duas noites seguidas no mesmo pouso, nem de atravessa baixada aberta à vista dos morros;

e, se parassem e pensassem no c da história, talvez cada um desse muito do seu dinheiro, a fim de e dessa engronga, mas coisa isso que não era crível nem possível

mais. ,

Quando Cassiano dobrava a serra Sela do Ginete, transmontando o Cuba, se encontrou com um vira-mundo pedidor-de-esmola, co nas enormes de elefantíase, carregando,

por promessa, a pesada imag inidentificável, de um santo; e o esdrúxulo estradeiro forneceu-lhe.. pista: o papudo também descambara, acompanhando o caminho do

Foi atrás. Mas chegando ao São Sebastião, chorou de ódio: topou um ladrão de cavalos, que subia com a última tropilha, porque já t" ganho muito dinheiro e voltava

para sua terra para tornar a ser hone que disse que Turíbio Todo andava longe, outra vez para lá do Ri Velhas, no Marosso ou no Baldim.

Então Cassiano trocou pela segunda vez de montada, comprand alazão de crineira negrusca, porque estava pisado, em seis pontos do 1 bo, e com fortes assaduras nos

sovacos, o cavalo baio-calçado que b nhara pela mula douradilha, a qual, por sua vez, havia aguado dos dos pés e das mãos.

Também Turíbio Todo já usava a esse tempo a quarta ou quinta gadura, e aí foi que ele teve a audácia de passar no arraial, porque com saudades da mulher, Dona Silivana

- aquela mesma que tinha. olhos grandes, de cabra tonta -,com quem ficou uma noite, e a que hora da despedida, confiou, sob segredo, o seu estratagema último.

A mulher aconselhara:

- Por que é que você não vai para bem longe, esperar que a rai

homem recolha?... (Dona Silivana tinha sábios desígnios na cabecinh - Que-o-quê!... Você jura não contar p"ra ninguém uma coisa?... - Por esta luz!... Pois será

que você já não tem mais confiança ne

mim?!

- Pois, olha: eu, afora o papo, tenho muita saúde, graças a Deus... o tal... Correndo assim por essas brenhas, quero ver! Ele barganha de c

ANA

3O5

$AGAR

lo, troca, troca, que nem cigano, mas não pode bater baldroca com o cora

lá dele, que não regula direito! É só esperar um pouco e sacudir vermeção, ~o nas ventas do touro... Eh, hoi bravo!... Estou sem cachorro, mas estou caçando de espera,

e é espera p"ra galheiro!...

E, com essas, Dona Silivana começou a sentir-se mal, com um frio em si por dentro, porque o Cassiano Gomes não dera baixa da Polícia à toa, e , sim excluído pela

junta médica; e, apesar do seu garboso aspecto, não lhe prestava para muito o coração.

Turíbio Todo tirou as ferraduras da montaria, e comprou outras, que fez que pôs no cavalo, mas não pôs-toda essa manobra para que o outro, dando-se o caso, por mal

informado, se desnorteasse de rasto -; montou e bateu para as Lages, onde um fazendeiro lhe exibiu, já nédio e refeito das marchas forçadas, o baio-calçado, segundo

animal usado por Cassiano. Aí, não resistiu: comprou, pagando sem hesitação preço e meio; e toçou para as Tabocas, ovante, se desmazelando de rir:

-Cavalinho bom, cavalinho de defunto..~Estou recebendo é herança em adiantado, mas com o mais que será de bom!...

E, virando-se para trás, insultou a visão invisível do inimigo:

- "Pega à unha, joão-da-cunha!..."

Cassiano cedo conheceu a intenção do seleiro, que Dona Silivana lhe transmitiu, por quanta boca prestativa faz, na roça, as vezes das radiocomunicações.

Numa várzea bonita, entre Maquiné e Riacho Fundo, ponto fora de rota de povinho a cavalo, um vaqueiro que campeava bois tresmalhados foi mesmo o primeiro que anunciou:

-...e o Turíbio quer é que o senhor morra do coração, seu Cassiano. Não vale a pena dar esse gosto a ele, não!

Cassiano Gomes fez carranca, e pensou; mas respondeu:

- Mamparra! Se ele quisesse isso, não era bobo de sair contando... Ele está mas é com esperança que eu estaque, só por medo de doença...

E sorriu um sorriso sem graça, de ira congelada, descansando num dos estribos, corpo torto e rédea bamba, perquirindo alinha longe dos morros, a ver se ia chover.

Mas, como Turíbio Todo falara a verdade, para o outro pensar que fosse trapaça asime deu que Cassiano Gomes tinha errado mais uma vez

,s s,.

E continuou o longo duelo, e com isso já durava cinco ou cinco meses e meio a correria monótona e sem desfecho

,.

Até que, pois, variaram de lance, partindo, com pouca distância - Turíbio Todo à frente -,outra vez do das Velhas, em direção ao oeste. E isso talvez sem razão nenhuma,

ou porque o seleiro julgasse próprio irritar mais o outro ou fosse porque aquele que tinha deixado a cachaça a bem

,, ~ idéib

a lúcid volt por esse tempo de novo a beer

a,ara,,.

E quando Turíbio Todo riscou um arco, do Aruá ao Cedro, Cassiano

3O6

Gomes vinha precisamente em reta acelerada, e tocou-lhe, amanha tem, a trajetória, em tangente atrasada e em secante adiantada dema pois, viajaram quase de conserva,

perfeitamente paralelos, e amb tindo que estava chegando a hora da missa-cantada, e o fim de caceteação.

Até que, bruscamente, as duas paralelas convergiram, no porto sa, onde um barqueiro transportava animais é pessoas a quatrocen por cabeça, e onde rolava, sujo e

sem sombras, mugindo no descame Paraopeba - o rio amarelo de água chata.

Cassiano, tendo colhido notícias bem pagas, e agora sabendo qué" nos cascos de Turíbio, chegou de-tardinha à borda do rio.

- E se o cachorro do canalha tivesse atravessado?

Foi direito ao rancho, onde havia somente, encostados, abarracado linha, duas dúzias de couros de boi. Pistola em punho, foi levantandopor um. De repente, voltou-se,

violento, pronto para atirar.

Mas era só um menino magrelo, chupando um toro de cana comi como um bambu.

- Você viu passar por aqui um homem branco, assim meio pa num cavalo café-com-leite, preto das quatro mãos? Sabe se ele foi outra banda do rio?

- Nhor não. Esse-um eu não vi não.

- Qu"é-de o barqueiro daqui, pois então?

- E meu pai, sim senhor... Foi buscar rapadura na Coanxa... Arü

cedinho ele "tá"qui "tra vez...

- Pois vai-t"embora e fica espiando, de beirada... Mas não conta ~ guém que me viu, hein!?... Se o tal homem aparecer, você vem ligei avisar, que eu te dou dinheiro,

o que você quiser...

E Cassiano desarreou o alazão e foi deixá-lo, manietado com peia atrás da capoeira de assa-peixe, onde havia grama da miúda e um ceiras de capim-chatinho. Depois

se escondeu debaixo de um dos porque Turíbio Todo tinha que vir por ali, talvez para transpor o rio, uma grande sorte ter chegado primeirão.

Quando escureceu de todo, ele saiu da toca, se esgueirando, de lesta. Havia toadas de grilos, houve risadas de corujas, e, dos fun noite, muito fresca, um cachorro

latiu. ï

E Cassiano deu com os olhos numa fogueira, a menos de trezento3 tros, a jusante. Deitou-se no chão, como nos tempos da vida de so - esperando que a silhueta do papudo

se debuxasse à luz das ch para dar ão gatilho, então. Mas foi do outro lado, por detrás delé, pipoquearam tiros, das moitas de taquari; e o cicio das balas renteou

cabeça.

- Olha a inácia! - ralhou de si Cassiano, apagando o cigarro, que dera alvo tinha sido a brasinha vermelha. Aí, porém, da banda

SAGARANA 3~~

trada, onde a copa do açoita-cavalos negrejava como uma anta encolhida, fizeram fogo também.

Ei, e Cassiano rastejou, recuando, e, dando três vezes o lanço, transpôs as abertas entre a Criciúma e a guaxima, entre a guaxima e o rancho, e entre o rancho e

o gordo coqueiro catolé. Acocorou-se, coberto pela palmeira, e espiou, buscando um sinal claro ou qualquer vulto movente.

Mas, que era aquilo, então? O atirador de rio-acima, dos taquaris, e o outro, o da estrada, do açoita-cavalos, trocavam agora disparos? Cada um, ali, estaria brigando,

de uma vez, contra dois?!

De assim a pouco, entretanto, cessou a fuzilada.

Mas Cassiano não cochilou nem um momento, durante a noite. Mutuns cantaram, certos, às horas em que cantam os galos. No mais, distante, o mato dormia, num quiriri

sem alarmas. O rio era um longo tom, lamentoso. Caía, das estrelas, um frio de se sentarem costas de homem. E crescia, com as horas, o cheiro das folhagens molhadas.

Depois, com os passarinhos, chegou a madrugada. A barra do dia vinha quebrando. E um sujeito, alto e espadaúdo, apareceu, em pé, diante do bivaque. Vinha armado

de foice, e roncou:

- Qu"é-de o seu companheiro, o do papo?

- Estou sozinho, como o senhor vê...

-Não vejo!

E o grandalhão se postara contra um dos moirões do rancho, prevenindo-se contra uma possível agressão pela retaguarda. Retraiu o braço com a foice, e insistiu-

- Quanto foi que o Elias Ruivo pagou a vocês dois, para vocês acabarem comigo? Hã?!

- Não encosta, amigo, que essa distância é boa!

Com os olhos nos olhos do homem, Cassiano foi encolhendo a barriga; e o corpo lhe oscilava um nadinha, levíssimo, como se estivesse suspenso de um fio, balançando

à bafagem do vento. Então, lá de diante, pôde vir o barulhinho, o tênue e constante rangido dos couros de boi.

E os dois não se desfitavam, um e outro vigiando o relance do bote, para o selvagem corpo-a-corpo. Mas, pronto, Cassiano compreendeu o equívoco. E gritou:

- Deixa de conversa errada, homem! O senhor está sonhando? Não te

nada m oesenhor hisEu ando meosmo é atrástda uelleasa udo,n or via de

q PP P °m negócio nosso, e o senhor está empalhando...

brao elha para pertoeda outraá para pensard, e parousdetbrandir a fom e so

Não sei... Não sei... E se não for?...

Ao que Cassiano viu que tinha de convencê-lo depressa, ou senão sena o atracamento bestial, dando ensejo a Turíbio, que devia de estar ron-

jO$ JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO C

dando o rancho, de chegar sem suor, como último convidado. Falo com assomo:

- Eu sou o militar Cassiano Gomes, da Vista Alegre, criatura!

- Hum-hum! Hã-hã!... - fez o homem, derreando a man abalando a cabeça em sim que sim. E no seu entendimento tudo de se aclarado:... ouvira notícia daquela briga,

pois não... Até costuma guntar sempre aos viajantes que vinham para o Oeste, se o "truco, já tinha havido... Que burreza! tomara ós dois por capangas do Elias do

São Sebastião, inimigo seu... Mas eles tinham aparecido assim c ta visagem, com tanto escondido..: E o Elias Ruivo vivia prosando benzer em sangue a água do rio...

E, no há-de que não há, se chegou para Cassiano, traindo nos curiosidade, com sofreguidão. Era o passador da balsa. Acocoroudiante, pachorro, depondo a foice e extraindo

dos bolsos o tolete de os petrechos de pitar. E Cassiano teve de historiar tudo, desde o c enquanto o barqueiro aprovava com a cabeça e mais perguntava, baf do gloriosas

fumaceiras.

Mas Cassiano tinha pressa de caçar o assassino, que não devia longe. E o balseador, sabendo ter de guardar neutralidade, d o rondar por ali, inutilmente, até à hora

do almoço. Turíbio Tod apareceu.

- Decerto ele teve medo, por conta dos tiros... Gastei muito do chumbo...

- É... Deste jeito eu não arranjo nada, e fico me acabando à < É melhor eu voltar p"ra casa e deixar passar uns tempos, até que ele gue e pegue a relaxar...

E Cassiano Gomes estava enganando a si próprio, pois na realid sentia de repente cansado, porque um homem é um homem e nã ferro, e o seu vicio cardíaco começara

a dar sinal de si.

Chico Barqueiro o viu montar e alongar caminho, num chouto alazão batia com moleza, de quadrúpede estradeiro caído havia m desilusão.

E Chico Barqueiro não tinha dado opinião nenhuma, e foi pescar mal acabara de poitar a canoa e jogava o anzol n"água, no meio quando, da margem, alguém gritou e

gesticulou. Não havia dúvida papudo chegando.

Chico Barqueiro colheu a linha, deu boas varejoadas, e proejou, vindo, para a beira de cá.

Turíbio Todo, meiamente ansioso, quis começar com explicaçõ bre os tiros e tudo. Mas o Chico, olhando-o com mau modo, acen que subisse para a balsa, e foi puxar

cá para dentro o cavalo baio, que tia de pés juntos, querendo empinar. Depois o balseiro desprendeu rente, deu um arranco de zinga, e a balsa- um ajoujo de quatro

can

SAGARANA 3~9

proas chanfradas, sobreassoalhado e guarnecido de um gradil sem cancela -balanceou e avançou.

Turíbio Todo se acomodara, e ficou vigiando Ooutro com o rabo-doolho, bem desconfiadíssimo. E nenhum falou. Os feixes de água golpeavam o flanco da balsa, em jacto

mole; a argola rangia,. em cima, no arame; e a correnteza marulhava, a montante.

Os dois homens e o cavalo estiveram quietos. Mas, justo no meio do rio, o barqueiro, carrancudo, começou a encarar, a encarar. Turíbio, de delado, abaixava a vista.

E então Ooutro não se pôde por mais tempo:

- O senhor é o sujeito meio ordinário, sem sustãncia, e sem caráter! Se fosse homem, voltava...

- Eu?... Sou de paz e sou pai-de-família, meu senhor!... O senhor está enganado...

-Eu sei... Vai fugindo, se escondendo... Fico até com nojo de ver tanta falta de pouca vergonha emporcalhando a minha balsa!

E cuspiu n"água, escárrando com estrondo.

Turíbio Todo se encrespou torto, uniu os dentes; e olhos que coriscou raiva. O barqueiro, porém, empunhava o varejão. Mesmo em terra, seria sem esmo ter de enfrentá-lo;

mas, ali - e não sabendo bem nadar, - então, não não, vezes nenhumas! Só protestou:

- Eu não ofendi o senhor, seu tanoeiro! Cada um sabe de si!... Será que até o senhor agora está tomando lado contra mim?!

-Bom,"tá bom... Ah, Deus que me livre. Se esteja... -Chico Barqueiro lento teve de responder.

E esticou para trás a cabeça, para coçar o gogó; ajeitou a gola da camisa; deu uma espiadela para o arame; empurrou com o pé um rolo de corda; e ficou depois soslaiando

O outro, sem saber mais o que arrumar. Até que passou um pato-bravo, no vôo viageiro: pescoço avançado, patas juntas, deitando-se ora numa asa ora na outra; desviou-se

do rumo da balsa, com uma timonada da cauda, desceu mais, distanciou-se, tatalou três vezes e pousou nas tabuas da margem esquerda.

- Oi"ai! Este veio de longe... Está de passagem. Os que vêm de perto, param quando chegam na deixa do rio. Mas, pato-do-mato que é de viagem não pára: atravessa

por cima do rio todo, e só baixa e fecha na outra beirada... Engraçado! Assim, que fazem isso, ach"qu"é p"r"a-mor-de poder mais conhecer onde é que estão...

Sereno. Mas Turíbio Todo não lhe deu resposta. E o balseiro conti

nuou:

-Sei o jeito deles. Conheço esse gadinho de asa! Eles vivem p"ra lá e p ra cá, aciganados, nunca que param de mudar... Às vezes passam os bandos, arrumadinhos em

quina, parece que p"ra o vento não poder esparramar.,, E arribam em tempos, a ver que está tudo de combinação...

Turíbio fingia não ver o sorriso de boa-vontade que o outro lhe ofere-

aio JoAO GUIMARÃES Rosn / Ficçno Co

cia. A correnteza crepitava, em tentativas de onda, batendo o made" O rio aberto cheirava a chuva nova. E a balsa cheirava a breu e óleo

- Tem os paturis... Tem os patos de cara vermelha... Tem o m de bico grande, e outro azulado, e um com enfeite de muitas cores... marrequinho rabudo, que assobia...

Tem os irerês... tem as garças porção!... Mas não é toda raça de bicho de pena que voa por cima não senhor: gavião, passa dos grandes, dos de penacho, aguiados,

s vindo do sertão... E nunca que voltam, parece que os outros matam por aí... Eu cá nunca mato pássaro nenhum. O carapinhé costuma também, mas só quando vem voando

atrás de passarinho pequenó, rendo pegar...

... Às vezes, dá dó, quando chegam, no tempo da seca, uns pat cansados, que devem de ter vindo de longé demais... Assim que ele erro, acham que isto aqui é o São

Francisco, que tem lagoas nas b Pensam p"ra pousar nas canas de taquariubá... Gente vê que eles estão agüentando de ir, mas que não é capaz de terem sossego: ficam

aran asas, parece que tem alguém com ordem, chamando, chupando os pd de de longe, sem folgar... P"ra mim,.muitos desses hão de ir caindo m por aí... Não crê que

tudo é o regrado esquisito, amigo?

- Acho sim.

O cavalo deu com a pata no gradil. Chico Barqueiro insistiu:

- Animal vistoso, o seu. É esquipador? Tem bom andar?

- É... Tem... - resmungou Turíbio.

E ficou ainda mais sisudo, braços cruzados, olhos quase fechad zando da superioridade tão facilmente tomada, tão absoluta e po que ele só não levantava a cabeça

porque papudo não gosta de fazei" mas se sentia com a consciência engordada, tranqüila perfeitamente:.

A terra veio avançando. Encostaram no abicadouro. Turíbio pag

- Vá com Deus!... - desejou-lhe ainda o balseador.

- Amém!... - respondeu Turíbio, já de costas, montando. E to

Com pouco, subia o caminho para a vista do tabuleiro abre-hor onde corriam as seriemas, aos gritos e aos bandos de pernas com Mas, daí por frente, Turíbio Todo começou

a ver lugares que não e cia. Campinas pardas, sem madeiras... Buriti-da-Estrada... Terra verní "carne-de-vaca"... Pompéu... Indaiás nanicas, quase sem caules, abri

verdes palmas... Papagaio... E ele tocava de avança-peito, sempre no e sul.

Então, nesses ares novos, coisas novas andaram-lhe pela cabeça, e lhe também um grande desejo de repousar. Que bom, poder ficar 1" tantas canseiras... "Es-te-den-tro

e este fora!"... Turíbio Todo tinha fora da roda, e não mais brincou.

Veio subindo. Subiu até onde as cercas de arame farpado cediam 1 tapumes de pau-a-pique - magras estacas negras fazendo-se umas

$A~A~~A 311

tras muitas mesuras. Subiu mais. Agora avistava muramentos de pedras pretas, trabalho dos negros cativos. As pequenas fazendas não tinham mais varandas, somente

escadinhas de pedras, com lajes empilhadas formando o patamar. E o povo comia feijão preto, em vez de feijão mulatinho. E era gente boa, mas ainda mais desconfiada

do que a sua. E, então, ele viu que tinha entornado outra cabaça de léguas, e que havia espichado mais mundo para trás.

De sorte que estava no começo da zona a que chamam de Oeste de Minas.

E deu com um rio, verde e guardado, um rio que a gente encontra sempre assim de repente, rio vivo, correndo por entre os matos, como um bicho.

- Que rio é este, tão bonito, moço?

- É o Pará... Pois então?!... Mas, vam" passar p"ra o outro lado, que aqui tá braba a maleita!...

-Ah, isso não! Passar, não passo, que já atravessei dois e mais não quero, porque quem passa três rios grandes esquece o seu bem-querer... Mas, qual é o comércio

mais forte daqui por perto?

- É Sant"Ana-do-São-João-Acima...

- Vou lá, p"ra ver se mando uma cartinha p"r"a mulher!

Depois, uma turma de sujeitos alegres o interpelou. Iam para o sul, para as lavouras de café. Baianos são-pauleiros. E um deles:

- Eh, mano veélho! Baâmo pro São Paulo, tchente!... Ganhá munto denheêro... Tchente! Lá tchove denhero no tchão!...

Sentiu saudades da mulher. Mas, era só por uns tempos. Mandava buscá-la, depois. Foi também.

Cassiano Gomes, regressando ao arraial, proferiu:

- Negócio de vingança não paga a pena. Não quero saber mais! É melhor entregar p"ra Deus...

Mas, ao tempo em que ele falava, mansinho, sua mão, por descuido, atoinha, atoinha, alisava o cabo da lapiana, e por isso ninguém não acreditou.

E, enquanto pois, Cassiano continuava se encontrando com a mulher fatal da história, aquela mesma que tinha os olhos cada vez maiores, mais pretos e mais de cabra

tonta. E Dona Silivana lhe mostrara a carta enviada de Sant"Ana-do-São-João-Acima, e, depois, uma outra, também em papel quadriculado, capeando uma folhinha de malva

com o coração e a flecha desenhados, cheia de saudades e vinda do Guaxupé.

- Foi p"ra o São Paulo.

-Ah, foi... Bobagem! Não carecia de ter ido... Gastei minha raiva... Se ele voltasse, eu nem não fazia nada... Se você escrever a ele, pode botar...

312 Jono GUIMARAES Rosn / Ficçno C

Mas Dona Silivana, com um olhar muito lânguido, concluiu: - Deix"ele p"ra lá... Assim não é melhor?... Era, mesmo, e as mulheres têm sempre razão.

Não é à toa, porém, que um cavalheiro, excluído das armas por c

más válvulas e maus orifícios cardíacos, se extenua em raids tão pe

na trilha da guerra sem perdão. Cassiano sentiu que, agora, ao me

forço, nele montava a canseira. E, do meio-dia para a tarde, não pode

ficar calçado, porque os tornozelos começavam a inchar.

Foi ao boticário, e pediu franqueza.

- Franqueza mesmo, mesmo, seu Cassiano? O senhor... Bem

incha de tarde e não incha nos olhos, mas só nas pernas, é mau sinalt - P"ra morrer logo?

- Assim sem ser ligeiro... Lá p"ra o São-João do ano que vem... M indo empiorando um pouco, aí por volta do Natal...

- Bom, está direito. Saúde é de Deus, seu Raymundo...

- P"ra nós todos, seu Cassiano, se Deus quiser ajudar!...

E Cassiano Gomes pensou: vendo tudo o que tenho, apuro o dinh vou no Paredão-do-Urucuia, dar a despedida p"ra a minha mãe... D então, afundo por aí abaixo, e pego

o Turíbio lá no São Paulo, ou on que ele estiver. E despediu-se de todo o mundo, sabendo que nunca iria voltar.

Mas, no caminho, foi piorando, e teve de fazer alto no Mosquito-p do perdido num cafundó de entremorro, longe de toda a parte -, três dúzias de casebres enchiam

a grota amável, que cheirava a grã galo, muriti e gabiroba, com vacas lambendo as paredes das çasas, casuarinas para fazerem música com o vento, e grandes jatobás

diant portas, dando sombra. Um lugar, em suma, onde a gente não tinha de de parar, só de medo de ter de ficar para sempre vivendo ali.

Pois foi lá que Cassiano Gomes teve o seu desarranjo, com a insu cia mitral em franca descompensação. Desceram-no do cavalo e dera hospitalidade. E ele foi para

um jirau, com a barriga de hidrópico e a ração difícil de um cachorro veadeiro que volta da caça.

Melhorou. E rangia os dentes ao pensarem Turíbio Todo. Mas, gra Deus, tinha dinheiro. Indagou se por ali não haveria um homem val capaz de encarregar-se de um caso

assim, assim... Dava até um co réis...

Não havia. Cassiano escolhera mal o lugar onde se derrear: no Mo to era tudo gente miúda, amarelenta ou amaleitada, esmolambada, breada, que não conhecia o trem-de-ferro,

mui pacata e sem ação. N alembravam de crimes sangrentos, não tinham mortes nas costas: - nhor desculpe, mas, não vê que aqui ninguém não quer se desgraçar.:.

$AGARANA j13

. E não terá alguém para levar recado para vir cá algum valentão de aí por perto?...

-Aqui por estas bandas mais chegadas, também, desse jeito, p"ra esse serviço, não tem ninguém...

- Então eu vou-m"embora! Já e já!...

Mas não pôde dar mais de três passos: cambaleou e teve de sentar-se à porta da cafua; e foi ali sentado que passou a passar todo o tempo, dia pós dia, com o peito

encostado nos joelhos e, por via dos hábitos, com a vvinchester transversalmente no colo e a parabellum ao alcance da mão.

A paisagem era triste, e as cigarras tristíssimas, à tarde. Passavam uns porcos com as cabeças metidas em forquilhas, para não poderem varejar as cercas das roças.

Passavam galinhas, cloqueando, puxando ninhadas para debaixo do marmelinho. E almas-de-gato, voando para os ramos escarlates do mulungu.

E os groteiros também passavam - mulheres de saia arregaçada, de pote à cabeça, vindas da cacimba; meninos ventrudos, brincando de tanger pedradas nos bichos ou

de comer terra; e capiaus, com a enxada ou com a foice, mas muito contentes de si e fagueiros, num passinho requebrado, arrastando alpercatas, ou gingando, faz que

ajoelha mas não ajoelha, ou ainda na andadura anserina, - assim torto, pé-de-pato, tropeçante.

E passou um irmão do Timpim, dando pancada no Timpim. Dada a desproporção física, isso era uma grande covardia, e Cassiano chamou:

- Ô siô! Chega aqui!...

O irmão do Timpim veio chegando, pensando que era com ele, mas Cassiano o escaramuçou:

- Sai p"ra lá, diabo! Tu é valente demais. Tu é ferrabraz... Sai daqui, que o baralho ainda não bateu na tua porta... Quando eu fizer culé-culé, você pode acudir.

Então o Timpim pôde vir, muito ressabiado e bobó.

Cassiano perguntou:

- Cá mais p"ra perto, menino... Como é mesmo a sua graça?

- O senhor vai se rir de mim... Mas, se me chamar por meu nome direito, de Antônio, ninguém não fica sabendo quem é... Timpim é apelido que eu não gosto... Antes

mesmo me chamando de Vinte-e-Um.

Cassiano começou a rir, mas teve de parar, porque tossiu e botou sangue.

- Vinte-e-Um! Que graça!... Mas, que é que é isso, de uma pessoa se chamar Vinte-e-Um?

- É outro apelido que eles me chamam. É p"r"a-mor-de que nem que a minha mãe teve vinte e um filhos, e eu fui o derradeiro... E por via disso eles botaram esse nome

em mim.

dO arrangosm é aquele manguarão? Aquele grandalhão que estava te dan-

314 JoAO GviMaRAes Rosa / FicçAO C

- É meu irmão Izé, sim senhor.

- Por que é que ele estava te batendo?

- Por causa que ele queria tomar de mim estas mandioquinh

soadas... E eu não dou, porque estou levando p"ra minha mulher, q

criança, ant"ontem, e não tem nada lá em casa p"ra ela comer!... - Oh seu Vinte-e-Um! Pois então você é casado?... E é o p

filho?

- Nhor não, com esse é treis... O primeiro morreu de ano, e o que era mulher, nasceu morto de nascença.

- E por que é que você, que tem essa testa cabeluda de homem h essas sobrancelhas fechadas, juntando uma com a outra por cima do por que é que você ficou quieto

e não bateu nele também?...

- Não vê que a minha mãe sempre falava p"ra eu não levantar a p"ra irmão meu mais velho... E, como eles todos são de mais idade isso todos gostam de dar em mim.

Cassiano inspecionava o matuto, olhando-o de alto para baixo e de; xo para o alto outra vez.

- Oh ferro!... E, me diz uma coisa: você é sempre assim durinho pedra? Nunca murgueia o corpo nem abaixa os ombros p"ra diante?

- Nhor não... Ach" que não... Sei não...

- Pois então, toma este dinheiro, p"ra comprar umas galinhas p"r" patroa, e amanhã volta aqui...

Mas, no outro dia, o Timpim fez uma surpresa a Cassiano: tro bebê, para "tomar benção", todo enrolado em excesso de baetas e ~ boquinha entupida por uma boneca de

pano molhada em mel de a servindo de chupeta. O Timpim, muito ganjento, exibia o seu rebe quando alguém lhe gabava tão formosa prole, ele pedia, ansioso, que tentassem:

- Benza-o Deus! - para evitar quebranto.

E o menino, que era engraçadinho e esperto, abriu os olhos para siano, que, ante tanta fragilidade, se enterneceu:

- Será que nem minha mãe eu não vejo, em-antes de eu morrer?!: gaguejou, soluçando.

Pediu que o levassem para a cama; mas já era outro homem, p chorar sério faz bem.

E, no jirau, meio sentado, meio deitado, recostando-se numa p de molambos, travesseiros e até um selim velho - que mulheres ca lhe arranjavam, arfando com esforço

e tomando posições para pod ver algum ar, se esqueceu das armas de fogo e esperou a hora de m A calma e a tristeza do povoado eram imutáveis, com cantigas de rol

go-apagou e de gaturamos, e os mugidos soturnos dos bois. E a placid ambiente lhe ia adoçando a alma, enquanto que a cara ficava cada ver inchada, em volta dos lábios

laivos azulados, e a doença lhe esgarç

coração.

SA~A~NA 315

pegou a pedir às velhas que viessem rezar à beira da enxerga. Queria que os meninos, miúdos meninos, brincassem ali perto; e dava-lhes dinheiro. E ficava calado,

recortando os caibros, negros de picumã, e espiando a mexida das aranhas, que jogavam fios-a-prumo para subir e descer. E, pela primeira vez nesses meses, se lembrou

do irmão assassinado, realizando ser por causa da morte do mesmo que ele andara em busca de Turíbio Todo. E também pensou no Céu, coisa que nunca tivera tempo de

fazer até então.

E, pois, foi, um dia, quando ele estava pior e tinha mandado abrjr a janela para que entrasse um sol fiscal, muito ardente, entrou-lhe também pelo quarto, de olhos

vermelhos e nariz a escorrer, choramingante, o Timpim.

- Que foi que houve, Vinte-e-Um?

Era o filho, o neném, que estava doente, muito mal, mesmo, e, por míngua de recursos, quase a morrer. E o Timpim abriu o bué; mas as lágrimas corriam e ele não amolgava

o busto.

Cassiano perguntou:

- Me diz uma coisa, Vinte-e-Um: nas Abóboras tem doutor?

-Tem sim, mas em-antes não tivesse, meu Deus!... Como é que eu, qCe não sou dono de nada desta vida, hei de poder pagar seu doutor-médico a trinta mil réis a légua,

p"ra ele querer vir até cá?!... Já mandei buscar receita-de-informação, e, o resto do cobrinho que o senhor me deu, eu gastei tudo nas meizinhas de botica...

- Pois está aqui o dinheiro. Traz o doutor. Compra os remédios e tudo. Se precisar, ainda tem mais.

Timpim esbugalhava os olhos, achando difícil acreditar. De repente, chorou mais forte e se ajoelhou aos pés do benfeitor, querendo pegar-lhe da ruão para beijar

e proferindo agradecimentos e bênção, por entre uma montoeira de soluços.

-Não é nada... Bobagem!... - se esquivou Cassiano. - Eu estou querendo o médico é p"ra ele poder me olhar também... E aproveita p"ra trazer o padre junto, que eu

ainda quero me confessar...

Mas o Timpim teimava agora em beijar-lhe os pés, e, sempre se carpindo, exclamou:

- Deus há de lhe dar o pago, seu Cassiano Gomes! Eu sim que não posso, por causa que não tenho préstimo nenhum... O menino é porque foi batizado na horinha em que

nasceu, senão o senhor tinha de ser o padrinho!... Mas, assim mesmo, se o senhor deixar, eu fico sendo seu comPadre e o senhor fica sendo o meu compadre mais-de-todos,

que eu de tantas caridades nunca hei de me esquecer!...

Então, Cassiano, por sua vez muito bem comovido, porque é melhor a gente ser bondoso do que ser malvado, puxou-o para si, num abraço, di~ndo:

3r6 Jono GviMaanes Rosa / F~cçAO C

- Maior paga do que essa não tem, meu compadre Vinte-e-Um

E Cassiano Gomes não pôde esconder o consolo que isso tudo lhe

Veio o médico; veio o padre: Cassiano confessou-se, comungou{ beu os santos-óleos, rezou, rezou.

Mandava o dinheiro para a mãe? Não. Mandou vir o Timpim, pa rever a boa ação. Conversaram. Depois o moribundo disse:

- Esse dinheiro fica todo para você, meu compadre Vinte-e-Um.

Aí, tomou uma cara feliz, falou na mãe, apertou nos dedos a me nha de Nossa Senhora das Dores, morreu e foi para o Céu.

Turíbio Todo soube da boa notícia, por uma carta da mulher, que, a carinhosa, o invocava para o lar. Ele tinha ganho já bons cobres, e á acabou de o convencer: comprou

mala, comprou presentes, pôs um verde no pescoço, para disfarçar o papo; calçou botas vermelhas, de 1 e veio.

Saltou do trem também com uma piteira, um relógio de pulseira; roupas e uma nova concepção do universo. Mas tinha de fazer aind dia a cavalo e estava com pressa,

porque Dona Silivana tinha os olhos tos, sempre grandes olhos, de cabra tonta. Por isso, ele nem teve tem negociar um animal: arranjou um cavalo emprestado; almoçou

sem fd e deu à andadura.

Venceu a primeira légua. A alegria da liberdade larga nem o de" sentir as bátegas que de vez em quando desciam, porque estava ú incerto, de casamento de raposa ou

de viúva, com uma chuvinha d" oblíqua e apressada, correndo aqui e ali para disputar com o sol.

De repente, ouviu o tropel de um galope destemperado, que atrás. Chegou o cavalo para a beira da estrada, parando ã frente de sucupira, e espiou e esperou. Era um

cavalinho ou égua, magro, pa apequirado, de tornozelos escandalosamente espessos e cabeludos, um camarada meio-quilo de gente em cima.

O cavaleiro freou quase encostado em Turíbio, tal que, a um res da pileca, um floco de escuma branca voou-lhe no braço.

- Seu cavalo está com garrotilho, moço?

E Turíbio Todo apontou com o chicote as ventas do animal, que p vam, lambuzadas de uma clara de ovo batida.

- Nhor não... Folgou muito sem ser amontado... Por via disso é está cansando à toa.

O capiau, com um sorrisinho cheio de cacos de dentes, ficou olh para Turíbio, que também o examinava, cam uma vontade doida de

Porque o outro, à guisa de capote, trazia um saco de aniagem, costuras laterais desfizera, enfiada a cabeça por um buraco no fundo bizarra roupagem caía-lhe à frente

e às costas, como a casula de um

SpGARANA 3r]

a d¡zer missa. Estava descalço, mas com enormes esporas nos calcanhares, e, para bater, trazia um galho de uvatinga na mão.

p cavalinho pampa - era mesmo um cavalo - com o rabo amarrado e a crina cortada rente, funga-funga, magrelo, se afinava pela mesma petição-de-miséria: o freio era

de barbicacho; a sela um lombilho quase cangalha, faltando-lhe um estribo; e não tinha rabicho e nem peitoral.

O caguincho tirou a faca e o fumo, o que, na convenção das estradas sertanejas, indica o desejo de puxar conversa. Mas Turíbio Todo levava urgência:

- Se vai por este lado, vamos.. .

- Nhor sim...

E emparelharam os animais.

O capiauzinho deixou a rédeá cair para a tábua-do-pescoço do pampinha, que pelejava para acompanhar a andadura do outro cavalo; e foi picando o fumo, minuciosamente,

ajuntando-o na concha da mão.

Turíbio não lhe tirava os olhos de cima, achando-lhe uma graça imensa, na cara, no todo, na cavalgadura, na grenha piolhífera e no balandrau. Mas simpatizava com

o tipo. E ofereceu-lhe o maço de cigarros.

O rapaz fez menção de pegar, mas encolheu a mão, brusco.

- Muito agradecido... Eu pito é destes nossos, dos de palha... A gente está acostumado com grossaria só...

Que impagável! - pensou Turíbio Todo.

O outro bateu a binga e tirou uma fumaça comprida, com o que pareceu criar coragem:

- Ainda que mal pergunte, o senhor será mesmo o seu Turíbio Todo, seleiro lá na Vista-Alegre, que está chegando das estravas?...

- Sou, sim. Vim do São Paulo... Como é que você está sabendo? Cheguei hoje...

- Me contaram, lá no comércio...

Turíbio riu. Cada vez gostava mais do caipirinha.

- Por que é que uns como você não vão também trabalhar lá? Podiam ganhar dinheiro, aprender a viver. Isto, por aqui, não é vida, é uma miséria-magra de fazer dó!...

Se você quiser ir, eu explico tudo direito, te ajudo com dinheiro, até.

- Qual!... A gente nasceu aqui, vai ficando por aqui mesmo...

E atrapalhado, como quem quisesse mudar de assunto, o capiau mostrou;

- Vigia só!

Nos galhos mais altos do landi, um sagüim, mal penteado e careteiro, fazia gatimanhas, chiando e dando pinotes. Os cavaleiros estacaram. Turíbio Todo tirou o revólver

e apontou. Mas o macaquinho se escondia por detrás do pau, avançando, de vez em quando, só a carinha, para espiar. E Turíbio se enterneceu, e tornou a pôr a arma

na cintura.

31$ Jono GvtMnxnes Rosa / Ftcçno

Enquanto isso, o mico espiralava tronco abaixo e pulava para tico, e do vinhático para o sete-casacas, e do sete-casacas para o j desceu na corda quinada do cipó-cruz,

subiu pelo rastilho de flores do unha-de-gato, galgou as alturas de um angelim; sumiu-se nas e dali, vaiou.

-Deixa o coitado! Para que judiar dessas criaçãozinhas do

Eles também precisam de viver... Lá no São Paulo, um dia...

- O senhor, por quanto foi que comprou esse seu cavalo? Turíbio Todo voltou-se, surpreendido, inquieto, porque o ca

tão humilde e mofino, o interrompera pela segunda vez.

- É animal só emprestado... Vamos para diante. Isto aqui é

tinha?...

- Nhor não, é o Quilombo.

Aqui e ali, uma cafua de capim, à borda da estrada, no meio das neiras.

- Vamos mais depressa, moço, que eu estou aflito para chegar!...

Deram no vau de um córrego. Um velho, de saco nas costas, vinha passando a pinguela; quis cumprimentar e quase caiu, custando-lh justar o equilíbrio. Na lama lisa

da margem, borboletas amarelas p vam, imóveis, como pétalas num chão de festa.

Os cavalos, metidos até meia canela na correnteza, dobravam o pe em ângulo obtuso, para beber. Cardumes de piabinhas, chofrando co ou oscilando no mesmo lugar com

palpitações de aletas, rabeav transparência da água, que os animais sorviam num chorro copioso.

O ar era fresco. Do morro, vinha um cheiro bom de musgo, de de-pau, de verdura velha. E a sela estava tão macia, e tão embalador ô rulho, que Turíbio estirou uma

perna no estribo e ficou olhando, co to, para um cavalinho-de-judeu, que pairava faiscante e acabou pou no látego do cabresto.

O caguincho também ficara quieto, mesurando, vendo, a cada mento dos cavalos, a lama subir na água e turvar-lhe a face. E for próprios animais que, matada a sede,

retomaram a marcha.

- Eu estou bem alegre!... Vou ver minha mulher, que há muito t eu não vejo... Acho que amanhã de-tardinha eu estou chegando lá, no da mãe dela. Se ela quiser ir

comigo, nós voltamos para o São Pa Quero descansar um pouco e gozar a vida... - disse Turíbio Todo, um suspiro de satisfação.

- Qual, seu Turíbio Todo... Com perdão da palavra, mas este do é um monte de estrume! Não vale a pena a gente ficar alegre... Nã a pena, não.

- Ora, deixe de curtir mal sem paga... Que é isso!?... -Agente vive sofrendo... Todo o mundo é só padecer... Não pena!... E depois a gente tem de morrer mesmo um

dia...

319

SA~A~NA

. Sabe? Você precisa é de tratar da saúde, para não ficar com essas idéias... - Turíbio aconselhou.

Calou-se o outro. Muito abatido, lúgubre, dava o ar de quem estivesse carregando o peso do mundo.

Subiram um morro, desceram o morro; e o caminho entrou num mato fechado, onde tudo era silêncio e sombra. Um dos cavalos bufou e mastigou os ferros do freio. Das

ramadas, que açoitavam os rostos dos cavaleiros, caía chuva guardada. E, de repente, Turíbio Todo estremeceu, ao ouvir, firme e crescida, outra voz, que ainda não

tinha escutado ao çapiau:

- Seu Turíbio) Se apeie e reze, que agora eu vou lhe matar!

- Que é? Que é?... Tu está louco?!...

Mas o caguincho estava sério e pálido, e sua mão direita segurava uma garrucha velha, de dois canos, paralelos, sinistros. .

-Se apeie depressa, seu Turíbio!...

E o homenzinho dizia isso assim mole, mas sem deixar de estar terrivelmente atento.

Então Turíbio Todo, encarando-o, fez figura e fez voz.

-Deixa de unha, cachorro, que eu te retalho na taca!...

-Não grita, seu Turíbio, que não adianta... Peço perdão a Deus e ao senhor, mas não tem outro jeito, porque eu prometi ao meu compadre Cassiano lá no Mosquito,

na horinha mesma dele fechar os olhos...

Ao ouvir i1 nome do inimigo, Turíbio Todo teve um maior sobressalto. A mão da garrucha do capiauzinho tremia. Turíbio também pegou todo a tremer.

-Ah, quanto é que ele te pagou? Eu posso dar o dobro, te dou tudo Oque eu tiver!...

-Não tem jeito, não tem jeito, seu Turíbio... Abaixo de Deus, foi ele quem salvou a vida do meu menino... E eu prometi, quando ele já estava de vela na mão... É

uma tristeza! Mas jeito não tem... Tem remédio nenhum...

Atônito, Turíbio arregalava os olhos, e sentia o medonho que é a falta de tempo para a gente poder pensar.

- Escuta... Eu também tenho família... Tenho...

- Se apeie, seu Turíbio...

- Pelo amor da Virgem Santíssima! Pelo amor do teu filho! Não faz isso! Deus castiga!... Não me mata...

- Pois então reza, seu Turíbio, que eu não quero a sua perdição!

Aí Turíbio Todo teve um grande arranco de horror, e estendeu os braços.

- Espera! Espera! Não atira ainda não...

E levantou a mão à testa, se benzendo, com voz gritada, em que o choro já começava a tremer:

~Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, amém!... Padre nosso, , ,

32o JOAO GviMnRAES Rosn / F~cçAO C

Mas, não! Assim como um carneiro, não! Curvou de banda e p revólver, e foi um golpe de rédeas e outro de esporas, fazendo o c empinar.

Mas a garrucha não negou fogo. Turíbio Todo pendeu e se afun sela, com uma bala na cara esquerda e outra na testa. O cavalo corre do defunto se soltou do estribo.

O corpo prancheou, pronou, e fic telado.

Então, o caguincho Timpim Vinte-e-Um fez também o em-no padre, e abriu os joelhos, esporeando. E o cavalinho pampa se m galope, por um trilho entre os itapicurus

e os canudos-de-pito, fugirí estradão.

321

MINHA GENTE

"Tira a barca da barreira, deixa Maria passar: Maria é feiticeira, ela passa sem molhar."

(CANTIGA DE TREINAR PAPAGAIOS)

323

QUANDO VIM, NESSA VIAGEM, ficar uns tempos na fazenda do meu tio Emílio, não era a primeira vez. Já sabia que das moitas de beira de estrada trafegam para a roupa

da gente umas bolas de centenas de carrapatinhos, de dispersão rápida, picadas milmalditas e difícil catação; que a fruta mal madura da cagaiteira, comida com sol

quente, tonteia como cachaça; que não valia a pena pedir e nem querer tomar beijos às primas; que uma cilha bem apertada poupa dissabor na caminhada; que parar à

sombra da aroeirinha é ficar com o corpo empipocado de coceira vermelha; que, quando um cavalo começa a parecer mais comprido, é que o arreio está saindo para trás,

com o respectivo cavaleiro; e, assim, longe outras coisas. Mas muitas mais outras eu ainda tinha que aprender.

Por aí, logo ao descer do trem, no arraial, vi que me esquecera de prever e incluir o encontro com Santana. E tinha a obrigação de haver previsto, já que Santana

- que era também inspetor escolar, itinerante, com uma lista de dez ou doze municípios a percorrer- era o meu sempre-encontrável, o meu "até-as-pedras-se-encontram"

- espécie esta de pessoa que todos em sua vida têm.

- Vai para a fazenda? Vou aos Tucanos. Vamos juntos, então.

Santana jamais se espanta. Dez anos de separação ter-lhe-iam parecido a mesma coisa que dez dias. Não tem grandes expansões nem abraços. Tem apenas duas bossas frontais

poderosas, olhos bons, queixo forte, e riso bom em boca má. E, no mais, para ele a vida é viva, e com ele amasiada.

- Mas Santana, deixa ao menos ver se vejo algum camarada com a

condução...

- Deve ser aquele... Vou arranjar cavalo para mim. Temos boas quatro horas de caminho comum... Um match em três partidas!

Corri Santana, a gente tem sempre de reagir; contra a sua personalidade de alta voltagem e sua lacônica tirania. Já me preparo. Mas sei que, daqui a Pouco, ele estará

reaparecendo, cavalgando um eqüino ou um muar qualquer, arrebatado ao primeiro conhecido que encontrar. E sei também que, entrementes, terá mais funda a entrebossa:

problema em três lances, em

elaboração.

Por ue o seu fraco, e também o seu forte, é o "nobre jogo" de xadrez. Em tal grau, que ele sempre traz consigo, na mala de viagem: um tabuleiro lande; uma coleção

de peças grandes; outros trinta e dois trebelhos de

324

menor formato; mais outro jogo, de reserva, dos de bordo, com os ques perfurados para se atarraxarem os pinos das figuras; blocosmas, para composição de problemas;

números de "L"Échiquier" e Stratégie"; recortes de jornais, com partidas dos grandes mestres; e al roupa, também.

Mas o camarada constituía mesmo a comissão de recebimento, e valo - baio ruano calçado de preto - era o para mim.

- Padrim Emílio mandou dizer que ele vinha mas não veio, e p"ra o senhor ir...

Também já voltava Santana, montado num burro casmurro. E comandar, por minha vez:

- "Vamos! Partamos! Já Circe, a venerável, me advertiu!..."

Mas Santana, que é criatura do Caraça, retrucou:

- "Vinde, amigos, perguntai ao estrangeiro se sabe ou se aprende

gum dia, qualquer jogo..."

Esporeou o burro, e acrescentou:

- Você joga com as brancas. Toma...

E Santana estende-me a carteirinha, porque há também a carteir" xadrezinho de bolso, que eu me esquecia de mencionar; tão permanen algibeira do meu amigo como os

óculos de um míope na cara de um pe. Apenas, muito menos necessária: quem quisesse, de maldade, es teá-la, logrado ficaria; porque Santana, em encontrando parceiro,

~ cega: tem ainda um tabuleiro e outras peças, na cabeça, talvez no r dos dois murundus da testa - duas testas paralelas, como a viseira dé saúva.

A ladeira para a Rua de Cima ainda é a mesma. O guia entra pelo do Saraiva.

Imbrico C3BR e passo a Santana a carteira. Santana faz P4D e dev me a carteira. Enfio um peão no escaninho 4BD e estendo a carteira. bo outra vez a carteira, com

não me lembro mais que resposta. Movo P e estico braço e carteira. Mais idas e vindas da dita. E, pronto. Acabar os lances automáticos da abertura. Agora Santana

tem que pensar ant cada jogada, e eu gozo folga para apreciar a paisagem um pouco.

A casa do Juca Cintra ainda tem a mesma pintura, de barra azul. mos saindo da Rua de Cima, por onde as vacas de seu Antonico B transitam. Lá vem o zebu, branco-e-cinza,

de orelhas moles, tombada tendo a barbela pregueada e balançando a corcova a cada movimento. sante, quase um elefante. No meu tempo de menino, já era assim: de n

na rua muito escura, a gente queria evitar os cabritos, que dormiam reita, e tropeçava à esquerda, numa vaca sonolenta. Uma vez, o zeb deve ter sido o pai deste

- deu uma carreira em Dona Maria Alexand que voltava da reza. Dona Maria Alexandrina caiu numa valeta, e... tana entra em cena:

325

S~~AgpNA

. Pronto. Você podia jogar mais depressa. A partida está desinteressante.

. Não acho.

-Era melhor continuarmos aquela "Ruy López" que não acabamos, da ultima vez...

Fico rindo. Não do poder que tem Santana de conservar as partidas de memória, nem da sua capacidade de ignorar os grandes escoamentos de tempo, com o que, algum

dia, hei de vê-lo tirar do bolso a carteirinha, esta mesmíssima carteirinha, e propor-me a continuação daquela partida - subvariante K da variante belga do sistema

Sossegovitch-Sapatogoroff do contra-ataque semifrontal iugoslavo do peão do Bispo da Dama - interrompida, dez anos antes, precisamente no lance dezenove.

Não. Outro é o pai do meu riso: Santana, ledor de Homero e seguidor de Alhókhin, também, como um e outro, cochilou. Moveu uma jogada frouxa, e agora não tem o que

escolher. Ou compromete a posição do seu rei, ou perde uma peça, porque um bispo e um cavalo poderão ser atacados, em forquilha, por um peão branco. Referve a confusão,

nos paços de Ítaca.

Santana avermelhou-se todo; e então eu vejo que ele viu que eu tinha visto; e aí ele se zanga, por detrás das palavras:

-Não gosto de partidas fechadas. Avancei P4BR para levar o jogo a situações violentas, com possibilidade de alguma combinação. Se tivesse...

- Não adianta falar, porque.. .

- ... se tivesse mantido o desenvolvimento posicional puro...

- ... porque, como diz o capiau conterrâneo, "a minha parte de histórico eu prefiro em dinheiro!"...

Santana jamais retrocede do que afirma: é "pièce touchée pièce jouée". Para me obrigar a ouvir, atravessa o seu burrinho à frente do meu cavalo, barrando o T. Mas

reajo:

- Olha que beleza, ali!

Na serra, verde-malaquita, arquipélagos de reses, muito alvas, pastando, entre outras ilhas, vermelhas, do capim barba-de-bode. E, nos pontos mais ínvios da encosta,

tufos do catinga-de-bode florido, em largas manchas azuis.

Do lado esquerdo, não havia tapume: era mesmo o mato mau, reenchido e imprensado, numa escarpa de folhagens e troncos. À.direita, porém, a cerca de arame, meio quilômetro

de pasto plano, depois o morro. E, do alto do morro até à base do morro, e da base do morro até à beira da estrada, boi e mais boi. Até encostados na cerca, indiferentes

à nossa presença, havia. Alguns, de pé, estavam virados para cá, ruminando. Nós passávamos bem por debaixo do bafo. E o espesso cheiro bovino, morno, o bom boiurn

_ leite-sombra-capim-couro - melhor que o aroma de selva da outra margem, era um amor.

326 lOAO GUIMARÃES Rosa / FicçAO G

Mas já Santana rearrumara as peças e sumia no bolso a carteirr

- Adiemos esta partida. Vamos conversar.

Concordei, a bem da harmonia contemplativa.

E Santana fala: partidas fechadas... xadrez e memória... psico fantil... cidade e roça... escola ativa... devoção e nutrição... a me de do capiau... E quer dar xeque,

sendo eu o rei:

- Veja este que vai aqui à nossa frente: é um camarada ais mas, no seu campo e para o seu gasto, pensa esperto. Experimente

Gostei da idéia, e olhei ao redor, buscando um tema. Lá adiante uma assembléia, caudejante e ruminativa, de bois e vacas. Sobre el elegância decadente e complicada

pintura de roupagens, passeavam racarás. Interpelei o guia:

- Chega aqui, José. Aqueles gaviões ali nos bois são caracarás, nã - São sim senhor, seu doutor.

- Uma beleza, você não acha? Que é que você acha de mais b

neles?

José Malvino sorriu sem graça, pensando que eu estivesse quereis zê-lo de bobo. Mas disse:

- Se o senhor doutor está achando alguma boniteza nesses pá eu cá é que não vou dizer que eles são feios... Mas, p"ra mim, seu d não leve a mal, p"ra mim, coisa

que não presta não pode ter nenhum leza...

- Então, José, você não admira coisa alguma neles? Nem as perna çudas? Nem o topete preto? Nem a nucazinha pedrês? Nem as pe rabo, mal misturadas, claras e escuras,

como o penacho de uma pete E eles não são úteis? Não servem para comer os carrapatos?

- É, p"ra isso lá ele presta, sim senhor... Mas o senhor não vê qbica também o umbigo de bezerro novo, e mata o coitadinho... ali, sim, fazem a limpeza direito...

E José Malvino mostra os anus, transitantes, saltitantes, atarefados", tando de preto os costados de outros bois. Santana sorri. Vingo-me:

- José, você é um companheiro de primeira, porque não tem a de jogar xadrez...

- Bondade sua, seu doutor... Só que eu nem não sei que b esse...

- Você não reparou naquele trem, naquela coisinha, que, na sai

arraial, eu bulia nela e passava para o senhor Santana?

-An-han!... Reparei, sim senhor... Não era o livrinho verm

aquela cartilha de seu Santana ensinar seu doutor a aprender a ler? Santana ri, e eu tenho que rir junto.

Mas, sem que eu o tivesse percebido, nós e a estrada já nos afast

das pastagens. Agora é um caminho mais apertado, chão pedrento

Sncn~hn

327

do o cerradão. E a aragem traz o aroma evocativo do pau-santo, o cheiro açucarado das gabirobas, e o odor enjoativo dos muricis.

Santana se encaramujou: está ausente deste mundo, no departamento astral dos problemistas. E este deve ser um dos motivos da segurança com que ele enfrenta qualquer

roda ou ambiente: haja algum senão, sejam os outros hostis ou estúpidos, ou estúpidos e hostis a um tempo, e Santana se encosta em qualquer parte, poste ou árvore,

e problemiza, problemiza sem parar.

Cavalgamos. Subimos. Subir mais. Agora, um lançante contínuo, serra avante em lombo longo, escalando o espigão. E, pronto, o mundo ficou ainda mais claro: a subida

tinha terminado, e estávamos em notáveis altitudes.

Estalava em redor de nós uma brisa fria, sem direção e muito barulhenta, mas que era uma delícia deixar vir aos pulmões. E a vista se dilatara: léguas e léguas batidas,

de todos os lados: colinas redondas, circinadas, contornadas por fitas de caminhos e serpentinas de trilhas de gado; convales tufados de mato musgoso; cotilédones

de outeiros verde-crisoberilo; casas de arraiais, igrejinhas branquejando; desbarrancados vermelhos; restingas de córregos; píncaros azuis, marcando no horizonte

uma rosa-dosventos; e mais pedreiras, tabuleiros, canhões, Ganhadas, tremembés e itambés, chãs e rechãs.

Ali, até uma criança, só de olhar ficava sabendo que a Terra é redonda. E eu, que gosto de entusiasmar-me, proclamei:

- Minas Gerais... Minas principia de dentro para fora e do céu para o chão...

Santana ouviu, e corrigiu:

- Por que você não diz: o Brasil?

E era mesmo. Concordei.

Em vôo torto, abrindo sol e jogando sol para os lados, passou um gaviào-pinhé. Em dois minutos, com poucos golpes de asas, sobrecruzou a crista da cordilheira, mudando

de bacia: viera de rapinar no campo das aguas que buscam o ocidente, e agora se afundava nas matas marginais dos arroios que rojam para leste. Estava tosando ar

alto, mas nós olhávamos o vôo como quem se inclina para espiar um peixe num aquário.

Depois, o urubu. Pairou, orbitando giros amplos. Muito tempo. Mesmo para os seus olhos de alcance, era difícil localizar o alimento. Fechou, POUCO a pouco, os círculos.

Descaiu, de repente, para um saco em meialua, entre duas vértebras da serra. Adernou. E soçobrou no socavão.

E muitos outros urubus, vindos de todas as direções, convergiam para aquele buraco. De vez em quando, alguma coisa devia ir mal, lá por baixo, porque eles subiam

do cafundó, revoluteando, que nem, em tarde de quei~hada, restos de folhas num redemoinho de vento. Deslocavam-se, alternando de planos, avançando uns e crescendo,

enquanto outros fugiam

328 Jono GoiMnxAes Rosn / F~cçAo

fundo, em grãos minúsculos. Até que, de novo, desfaziam os p dominó, e, a um tempo, se abatiam para o brechão.

- Carniça de algum bicho do mato... raposa... - comen Malvino.

Não gostei do prosaísmo. Dei rédea ao cavalo, e proferi:

- Melhor um pássaro voando do que dois na mão!... Eis a v provérbio, para uso dos fortes, dos capazes de ideal...

- É a versão dos otários, também.

Mas, aí, começávamos a descer. Mau caminho, gretado, a pedia do. Fomos e falamos, sobre a paciência das montadas, muito tem pois, rota plana, uma hora afora. E grandes

campos, monótonos, sei lavam, sob o céu.

Topamos com um corguinho amável - um ribeiro filiforme, de

da cantada, entre marulho e arrulho, e água muito branca. Vinha da,

bra e atravessava a estrada. Sorria.

O camarada sustou o cavalo. Paramos.

- Se seu doutor mais seu Santana acharem que é a hora, a gen

comer aqui mesmo, que é o lugar melhor...

José Malvino tinha trazido boa matalotagem. Santana se munira

e latas de sardinha. Apeamos, para ajantarar. O riacho cantou,

Quando montamos de novo, entardecia. Apressamos a marcha. De repente, o José Malvino, estacando o animal, curvou-se para

nar qualquer coisa no chão.

- Que é que você está olhando, José?

- É o rastro, seu doutor... Estou vendo o sinal de passagem de arribado. A estrada-mestra corta aqui perto, aí mais adiante. Deve passado uma boiada. O boi fujão

espirrou, e os vaqueiros decerto ram fé... Vigia: aqui ele entrou no cerrado... Veio de carreira... ali ele trotou mais devagar...

- Mas, como é que você pode saber isso tudo, José? - indago tana,surpreso.

- Olha ali: o senhor não está vendo o lugarzinho da pata do: Pois é rastro de boi de arribada. Falta a marca da ponta. Boi viajada quina do casco... Eles vêm de

muito longe, vêm pisando pedra, p duro e tudo... Ficam com a frente da unha roída... É diferente do das reses descansadas que tem por aqui...

Não consigo dissociar alguma coisa nas pegadas. E continuam guindo o sol, quase em tramonto - um sol de recorte nítido, não Ote. Refrescou. E a estrada subia e

descia, mas, como as descidas erammenores, nós subíamos sempre. A tarde tinha recuado. Um resto de no alto, em alvas trabéculas rarefeitas; um empilhado de faixas,

tan rosa, no poente; no mais, o céu era lisa campânula de blau.

De brusco, no tope do outeiro que íamos galgando, surgiu um

SA~A~NA 329

ro, caído do sol. Ficou parado, um momento, sopesando a vara longa. E era bem um São Jorge, enrolado em claridade amarela e coroado de um resplendor carmesim.

Depois, frechou para nós. Trancou o trote, rente a José Malvino. O cavalo soprou, e aproveitou a pausa para arquejar. Era um baio de crina aparada, e o seu suor

cheirava a brisa marinha. O cavaleiro sacudia os ombros, sem poder acabar de rir. Cumprimentou e indagou:

- Não viram um boi magro, passeando por aí?

José Malvino informou:

- O rastro dele está quentinho. Aí adiante, no lugar adonde o senhor ver, desta banda de cá, bem na beira da estrada, um angico solteiro, em antes de um pé de araticum

emparelhado com dois barbatimãos abraçados, pois foi aí mesmo que ele embocou no mato... Mas, ainda que mal pergunte, de onde é que estão vindo com essa boiada,

amigo?

- De um mês quase de viagem... Da nascença do Roncador...

O vaqueiro riu outra vez, olhando para trás, para o cimo da colina.

-Seu cavalinho, amigo, é assim meio sambanga, mas tem jeito de ser correto... Mas, como é que o senhor, que devia de estar enjerizado com esse serviço ruim de arribada,

está assim tão safirento, rindo tanto sem a gente saber de quê?

- É por causa dos companheiros, que vêm aí atrás... Devem de estar danados, porque eu aticei marimbondo neles... Bem, vou indo. Deus lhe pague, amigo!

E afundou com o cavalo morro abaixo.

Então, José Malvino explicou:

- Brincadeira boba de vaqueiro. Eles vão indo diretinho, conversando... De longe, um enxerga uma casa de marimbondo, num galho... Se ele tiver cavalo bom, corredor,

bate com a vara ou com o chicote na caixa de marimbondo, e esgalopeia: a marimbondada sai toda, assanhada, desesperada de raiva, e ajunta nos outros, e nos cavalos,

ferroando... Os cavalos pegam a pular, e o pessoal xinga nome feio... Às vezes até cai algum no chão... O melhor de todos é o marimbondo-enxu, que é uma vespa danada,

que vem longe, voa até quase meia légua, escaramuçando povo... É um pagode!

Chegando ao alto do morrete, avistamos dois outros cavaleiros, que desciam a contra-encosta.

Cá embaixo, cruzamos. Estão furiosos; são campeiros do Saco-do-Sumidouro: não tinham nada com a boiada forasteira, nem conheciam o vaqueiro, que passara por eles

e pedira adjutório para desentocar o boi arribado; mal haviam cavalgado juntos meio quarto de légua, e fora a peça dos

marimbondos...

Que vão fazer, agora? - perguntei, receoso de um conflito no meio do cerradão.

Vamos ajudar o diabo do vaqueiro, uai!

33o JoAO GUIMARAES Rosn / Ftcçno C

- Mas vocês não estão com raiva dele?

- Que nada... À hora em que a gente puder, tira a forra! QuerOi arrumo um jeito de tafulhar esta pedrinha pontuda por debaixo do da sela do desgramado... O cavalinho

é niquento... Agaranto que;: mal vai tacar um joão no chão!...

E galoparam.

Prosseguimos.

Mas, havia uma cruz, e José Malvino contou:

-Aqui foi que enterraram o bexiguento... Isto já faz muito, n meu tempo...

O varioloso tinha caído com febre, muito mal, quando passa aqui. Ia para uma qualquer parte, vindo depressa para casa, de vo sertão. Levaram-no para uma cafua, lá

embaixo, num rabo-de-gro uma mulher velha, que já tivera a doença e pois estava imunizad quem cuidava dele. E o homem sofria e delirava, e tinha medo, tinha ror

de ficar sozinho. Pedia, chorando, que queria ver gente, outras pe muita gente junta, ainda que fossem estranhos. E então, quando a amainou, na melhora pré-agônica,

ele conheceu que ia morrer, e imp que o enterrassem bem à beira da estrada, onde o povo passasse, onde vesse sempre gente a passar...

- Lugar assombrado! - conclui José Malvino.

É a quarta ou quinta vez que ele indica lugares malassombrados. todo pau-d"óleo; todas as cruzes; todos os pontos onde os levadores funto, por qualquer causa, fizeram

estância, depondo o esquife no todas as encruzilhadas - mas somente à meia-noite; todos os cam na quaresma - com os lobisomens e as mulas-sem-cabeça, e o cr dongue,

que é um carro-de-bois que roda à disparada, sem precisar nenhum para puxar.

- Aqui, vamos descer, de uma vez. Estamos chegando, seu dout Santana emerge dos seus cálculos:

- Bem, aqui nos separamos. Antes das dez, estou nos Tucanos..: - Loucura, viajar de noite, sozinho, por essas serras... Venha co

Você janta e dorme na fazenda, e...

- Não posso. Fica para outra vez. Sobrou um resto da matula... d

ro é bom...

- Teimosia!

- Não posso, mesmo. Falta-me encontrar um meio de impedir a ro" pelo xeque de cavalo, sem modificar a posição do rei branco... H peão mal colocado, e não quero aumentar

o número de peças bran Isso tiraria toda a beleza do problema... Se...

- E quando você aparece? Por estes dias?

- Impossível. Tenho uma enfiada de escolas por visitar, e devo t o trem muito longe daqui. Até outra vez! ...

Sp~ARANA 33r

E Santana toca, na mesma andadura, sem se voltar. Mas tornarei a vêlo sei. E é graças aos encontros inesperados dos velhos amigos que eu fico reconhecendo que o

mundo é pequeno e, como sala-de-espera, ótimo, facílimo de se aturar...

Uma descida, íngreme e pedrosa. Funda. Mas, lá em cima, ainda está claro, porque lá em cima é o araxá.

Descemos ainda. Vadeamos um regato raso. De sombra em sombra, a estrada anoitece, entrando debaixo do mato, porque as árvores tecem teto. Os animais querem andar

mais ligeiro. E é a derradeira descida, pois a.casa da fazenda fica num umbigo de taça.

- Por que não fazem as casas em.lugar alto, José Malvino?

- Sim senhor, seu doutor, bem bom que era. Mas dava um trabalhão p"ra se carrear água lá p"ra riba... Nesses altos, a gente pode campear, que aguada não se acha

nenhuma, não senhor.

Uma porteira. Mais porteiras. Os currais. Vultos de vacas, debandando. A varanda grande. Luzes. Chegamos. Apear.

Já estou aqui há dois dias. Já revi tudo: pastos, algodão, pastos, milho, pastos, cana, pastos, pastos. E, dos chiqueiros às turbinas, do pomar ao engenho, tudo

encontro transformado e melhorado. Mas o mais transformado e melhorado é mesmo o meu grande e bondoso tio Emílio do Nascimento, que assina "do Nascimento" porque

nasceu em dia de Natal.

De seis anos arrás, lembrava-me do tio, e péssima figura fazia ele na minha recordação: mole para tudo, desajeitado, como um corujão caído de oco do pau em dia claro,

ou um tatu-peba passeando em terreiro de cimento.

A venda do bezerro, por exemplo, transação árdua e langorosa, que eu tivera o infortúnio de testemunhar. Havia um novilho em ponto de ser amansado para carro, e

meu tio Emílio, que queria vender o novilho, e ainda outro fazendeiro, tio de qualquer outra pessoa, que desejava e precisava de comprar o novilho duas vezes aludido.

E, pois, a coisa começou de manhã. O tal outro fazendeiro amigo chegou e disse que "ia passando, de caminho para o arraial, e não quis deixar de fazer uma visitinha,

para perguntar pela saúde de todos"... Sentaram-se os dois, no banco da varanda.

Tio Emílio sabia que o homem tinha vindo expresso para entabular negócio. E, como o novilho era mesmo bonito, ele saiu um pouco, "para encomendar um cafezinho lá

dentro"... e ordenou que campeassem o boieco e o trouxessem, discretamente, junto com outros, para o curral. Em seguida, voltou a atender o "visitante". E, mui molemente,

tal como sói fazer a natureza, levou o assunto para os touros, e dos touros para as vacas, e das vacas aos bezerros, e dos bezerros aos garraios. Aí, "por falar

em novilhos", se lembrou de que estava com falta dos ditos: tinha alguns, mas precisava

332 Jono GuiMnanes Rosa / Ficçno C

de reformar as juntas dos carros... E até sentia pena, porque os poú possuía eram muito bem enraçados, primeira cruza de zebu gir, melhor para reprodutor... Mentira

pura, porquanto ele tinha mas excesso de bezerros curraleiros, tão vagabundos quão abundantes.

Aí, o outro contramentiu, dizendo que, felizmente, na ocasião,= nha falta de bezerros.

Eu saí, andei, virei, mexi, e, quando voltei, duas horas depois, a dações estavam quase que no mesmo pé em que eu as deixara.

Depois do almoço, idem. Pouco antes do jantar, ainda. Iam e na conversa mole, com intervalos de silêncio tabaqueado e diversõ tégicas por temas mui outros. De vez

em quando, Tio Emílio se le de perguntar por mais um parente longínquo do seu amigo, e o seú perguntava por um célebre cavalo de Tio Emílio, falecido fazia três

E ambos corriam do assunto e voltavam ao assunto, e era bem co estória da onça e do veado, que, alternadamente e com muita confiais Deus, construíram uma casa, ignórando-se

mutuamente a colaborã

E o homem foi embora. E meu tio visitou o homem, dali a dois E o homem voltou à fazenda do meu tio. E, no fim do mês, o vite vendido e comprado, sendo que, por pouco

mais, teria chegado a boi.

Mas, agora, há-de-o! Quem te viu e quem te vê... Agora Tio E outro: rejuvenescido, transfigurado, de andar e olhar bem postos sustentados, se bem que sempre caimão,

fechadão. Logo depois do p ro abraço, fiquei sabendo porquê: Tio Emílio está, em cheio, de alma e o resto, embrenhado na política.

Política sutilíssima, pois ele faz oposição à Presidência da Câm seu Município (n~ 1), ao mesmo tempo que apóia, devotamente, o~ dente do Estado. Além disso, está

aliado ao Presidente da Câmara dd nicípio vizinho a leste (nem 2), cuja oposição trabalha coligada com a oficial do município n~ 1. Portanto, se é que bem o entendi,

tem duas enredadas correntes cívicas, que também disputam a amizade" tuacionismo do grande município ao norte (n~ 3). Dessa trapizo estabilíssimo equilíbrio, resultarão

vários deputados estaduais e ou derais, e, como as eleições estão próximas, tudo vai muito intenso e alegre, a maravilhas mil.

Agora, o que mais depressa aprendi foram os nomes dos diversos dos. Aqui, temos: João-de-Barro - que faz a casa - e Periquito - apodera da casa, no caso em apreço

o Governo municipal. No m n~ 2, hostilizam-se: Braúnas - porque o respectivo chefe é um neg te de pele assaz pigmentada - e Sucupiras- por mera antinomia Noutro

lugar, zumbem: Marimbondos versus Besouros. E, no mu n~ 3, há Soca-Fogo, Treme-Terra e Rompe-Racha - intitulações ten ras, com que cada um pretende intimidar os

dois outros.

SA~pgpNA 333

Mas, aqui neste nosso feudo, grande é o prestígio do meu grande Tio Emílio. Seu agrupamento domina a zona das fazendas de gado, e manda na metade da vila. Só o arraial

é que ainda está indeciso, porque obedece ao médico, um doutor moço e solteiro, pessoa portanto sem nenhuma urgência, que tarda a se definir.

Tio Emílio não cessa de receber gente. Expede portadores, e, até fora d"horas na noite, costumam chegar emissários. O número de camaradas e agregados aumentou: na

fazenda, atualmente, não se recusa trabalho, nem dinheiro, nem nada, a ninguém.

Há conciliábulos, longas conversas com sujeitos da vila, passeando na varanda. E daí eu esperar notáveis coisas para o depois.

Santana costuma dizer: - Raspe-se um pouco qualquer mineiro: por baixo, encontrar-se-á o político...

Para mim, não é bem isso. Tanto mais que ninguém raspou Tio Emílio. Mas, acontece que ele sempre gostou de caçar e de pescar. E, de tanto ver a paca apontar da espumarada

do poço, bigoduda e ensaboada como um chinês em cadeira de barbeiro... E de se emocionar com a ascensão esplêndida da perdiz, levantada pelo perdigueiro, indo ar

acima, quase numa reta, estridulante e volumosa, para se encastelar... E de descair o anzol iscado, e ficar caladinho, esperando o arranco irado da traíra ou os

puxões pesados do bagre... Bem, afinal, pode ser que seja Santana quem tenha razão.

Tio Emílio tem duas filhas. A mais velha, Helena, está casada e não mora aqui. A outra, Maria Irma, não deixa de ser bastante bonita. Em outros tempos, fomos namorados.

Desta vez me recebeu com ar de desconfiança. Mas é alarmantemente simpática. Principalmente graciosa. A própria pessoa da graça. Graciosíssima. O perfil é assim

meio romano: camafeu em cornalina... Depois, cintura fina, abrangível; corpo triangular de princesinha egípcia... Mas a sua maior beleza está nos olhos: olhos grandes,

pretíssimos, de fenda ampla e um tanto oblíqua, eletromagnéticos,. rasgados quasemente até às têmporas, um infinitesimalzinho irregulares; lindos! Tão lindos, que

só podem ser os tais olhos Ásia-na-América de uma pernambucana - pelo menos de uma filha de pernambucanos, quando nada de meia ascendência chegada do Recife...

Não entendi, e indaguei do Tio Emílio. Não, todos os avós de Maria lana são rigorosos mineiros, de ontem e de anteontem, da Monarquia, das Sesmarias.

Por igual, não me explico o fato de a minha deliciosa priminha sendo assim tão "tão", continuar solteira... Bem, preciso de levar em conta que ela passou alguns

anos no internato, de onde veio há apenas ano e meio, quando a minha santa Tia Eulália teve chegado o seu dia de morrer. Mesmo assira, sou capaz de jurar que Maria

Irma já recusou mais de um pretendente. E quase chego a sentir pena por esses entes infelizes.

Tio Emílio pediu-me que redigisse um telegrama ao Secretário do I solicitando a substituição do comandante do destacamento polia que, por sinal, já foi cambiado

duas vezes, nestes seis meses derr Porque, lá na Capital, sabem montar à cossaca, em dois ginetes, e facções são atendidas rotativa e relativamente. Enquanto isso,

O passa, o pau vai e vem, e folgam os filhos da sabedoria. Mas, às v tio bate com o rebenque na bota, e fala em "compressão e subo pois, suspira e comenta a degenerescência

dos usos e a sua necessá neração.

Mal meu tio saiu, e Maria Irma aparecia. Veio vindo, com o on pombo e o deslizar de bailarina, porque o dorso alto dos seus pez uma das dez mil belezas de Maria

Irma.

Tolamente, fui empunhando a conversa. E o pior foi que minha me deixou discorrer, muito tempo, e eu procurava abaixar o nível curso, porque punha pouco preço no

poder da sua compreensão. mui maldosa, com duas ou três respostas, deixou-me atônito. Tive" tos de gritar: - Priminha, o falado até aqui não vale! Vamos riscar versa

e principiar tudo de novo!...

Mas, parece que eu deixei transparecer entusiasmo excessivo, p Maria Irma, prestigiando o encanto radioativo dos olhos, com umá nação lateral da cabecinha, alteou

a voz, para dizer que está quase n

- Está mesmo? É sim? De quem?

- Não. Não sei. E depois? - e Maria Irma riu, com rimas dar

- É ou não é, Maria Irma? Não mude de assunto...

- E depois? E depois? E depois?...

Depois, parece que eu fiquei um pouco decepcionado, até à hora tar. E reparei que os olhos de Maria Irma são negros de verdade, ta para demarcar-lhes a pupila da

íris, só o deus dos muçulmanos, que formiga preta pernejar no mármore preto, ou o gavião indaié, lusco-fusco e em vôo beira nuvens, localiza um anu pousado im chão

de queimada.

Estará ela mesmo comprometida?

Ainda bem... Ainda bem. Não vim aqui para a roça para amar nin

Minha prima costurava no seu quarto. Tio Emílio fora à vila. Eu na ir. Também, não temos cerimônias. Choveu, com sossego, mole mas, de tarde, deu uma estiada firme,

de mostrar um mundo lindo: Porfirio me convidou para pescar. Fui.

O córrego, saindo da ipueira, é um rego fino e reto, dilatado aq em poços escuros, quase redondos, com o mato clássico a orlar margens: de cá de longe, do alto,

do ponto onde cavamos chão pro

335

S~~A¡¿pNA

do minhocas para isca, víamos as águas e as frondes, justinho como um ramal de grimpa de jabuticabeira, com frutas maduras enfiadas em série

comprida.

Os poços grandes são apenas três: o de cima serve de piscina para os

camaradas; no do meio, de água limosa, mora um jacaré ermitão, de vida profunda, que deve ser verde e talvez nem exista; o último, aonde vamos, é

o poção.

Ali, há uma gameleira, digna de druidas e bardos, e, na coisa água, passante, correm girinos, que comem larvas de mosquitos, piabas taludas, que devem comer os girinos,

timburés ruivos, que comem muitas piabinhas, e traíras e dourados, que brigam para poder comer tudo quanto é filhote de timburé. Boa sombra e bom pesqueiro. Descemos

para lá, colhendo goiabas bichadas, pisando o capim com cautela - para evitar o bote de algum "bicho mau sem pernas" - e erguendo as varas, com jeito, para livrar

os anzóis da ramaria baixa.

Bento Porfírio é um pescador diferente: conversa o tempo todo, sem receio de assustar os peixes. Tagarela de caniço em punho, e talvez tenha para isso poderosas

razões. E tem mesmo. Está amando. Uma paixão da brava, isto é: da comum. Mas coisa muito séria, porque é uma mulher casada, e Bento Porfírio também é casado, com

outra, já se vê.

A água vem ao poção por um túnel de verdura. Há um tronco velho, servindo de banco. Mas Bento Porfírio prefere sentar-se na raiz grossa da gameleira.

- Pode falar nela, Bento.

- P"ra quê?... Essas artes a gente guarda... "Quem fala muito, dá bomdia a cavalo"!...

Sabia: se o interpelo, susta logo as confidências. Mas, daí a minutos - mudei de assunto - ele vai falando, falando, sempre as mesmas coisas. E eu já estou cansado

de saber que ela é boazinha, bonitinha, moreninha, engraçadinha, toda assim-assim, bisuim...

Bento Porfírio examina a chumbada, isca o anzolão de dourado, liberta a linha e dá de vara, açoitando a água com violência, "p"ra chamar a diabada desses peixes!"...

Faço o mesmo, com o anzol pequeno, e Bento fica cora um meio-riso, me espiando de esconso. Já sei: aqui eu não pesco é sobra nenhuma; as piabas não virão, porque,

neste recôncavo escuro, sem correnteza, deve morar, numa loca, debaixo do tronco podre, uma traíra feroz. Como bom capiau, Bento Porfirio acha que ainda é cedo para

me avisar. Guardo o pulo-de-gato. Mas não me importo. As linhas se estiram, levadas. Passam águas. Passa o tempo.

A história de Bento Porfírio é triste, e ele põe toda a culpa no "maldito vício" de pescar. No Pau Preto, nunca que acontece nada; mas, um dia, o Agnpino, bom parente,

convidou:

Vamos ao arraial, para as missões, que é para você ficar conhecendo

336 Jono GUIMARÃES Rosn / F~cçAo

a minha filha, a de-Lourdes... Estou querendo ter vontade de casamento de vocês dois...

E Bento Porfrio tratou que ia, mas roeu a corda, porque u grande estava de saída para uma pescaria no Tou-no-Tombo, lher-da-vida, comeria, sanfona até. Companheirada

certa. Não r amadrinhou com eles, e ficaram uma semana por lá... O Agrip cundo, foi sozinho para o arraial. Ô tristeza!

Oh, tristeza! Da gameleira ou do ingazeiro, desce um canto, de triste, triste, que faz dó. É um sabiá. Tem quatro notas, sempre nd porque só ao fim da página é que

ele dobra o pio. Quatro notas, e a segunda e a última molhadas. Romântico.

Bento Porfirio se inquieta:

-Eu não gosto desse passarinho!... Não gosto de violão... "IS que põe saudades na gente.

- Inútil nos defendermos, Bento! A tristeza já veio, já caiu agia de nós. Eu estou pensando... Talvez, num lugar que não conheça,:. nunca irei, more alguém que está

à minha espera... E que jamais jamais...

Bento ficou sério. Até mais simpático. E suspirou:

- Estou me alembrando da minha mãe... Morreu longe daqui.

nha mãezinha, dando de comer às galinhas, na porta da cafua de

estrada, lá no Aporá!...

- E o resto da história, Bento?

- Pois o resto é que é o mais triste, o pior...

Quando Bento Porfirio veio a conhecer a prima de-Lourdes, ela

va casada com o Alexandre. Foi só ver e ficar gostando. E ela tamb -Ai, que mundo triste é este, que a gente está mesmo nele só p"

de errar!... E, quando a gente quer concertar, ainda erra mais...

vício de gostar de pescaria!

O "concerto" do Bento foi casar, por sua vez, com a Bilica, só p raça e falta do que fazer. Mas a Bilica agora para nada conta. T moestá-lo:

- Mas, você, casado como é, pai de família, não tem vergonha dar com outra mulher?

- Uê! Pois então burro maniatado não pasta?!

Na hora do jantar, Maria Irma foi muito amável. Depois do doce - gota de mangabas de-vez, em verde calda crassa -fitou-me com u novo, quase prometedor. Fiquei sério.

Tomei meu café e vim fu varanda. Havia um recadeiro de roupa amarela, com três cartas no disposto a esperar o regresso do meu tio. Puxei conversa. E falam sobre

porcos, e preços, e toucinhos, e formigas, formigueiros, form

SA~p~¿pNA

337

. até o escuro entrar e engrossar. Só então, fui dizer boa-noite a Maria Irma. Esquivo e seco. E, inesperadamente, ela me mirou, agora com um

sorriso séno, dizendo:

-Você faz tudo como devia fazer... Só, às vezes, isso me dá raiva... Mas eu gosto que você seja mesmo assim...

Fechei-me no quarto. Pela janela aberta entrava um cheiro de mato misantropo. Debrucei-me. Noite sem lua, concha sem pérola. Só silhuetas de árvores. E um vaga-lume

lanterneiro, que riscou um psiu de luz.

Por que será que Maria Irma mudou de maneira?... Não sei e nem quero saber. Uma mulher bonita, mesmo sendo prima, é uma ameaça. Tertuliano Tropeiro aconselha:

- Seu doutor, a gente não deve de ficar adiante de boi, nem atrás de burro, nem perto de mulher! Nunca que dá certo...

Vou dormir.

Em noite de roça, tudo é canto e recanto. E há sempre um cachorro latindo longe, no fundo do mundo.

Horrível! Horrível o que hoje aconteceu. E quem convidou fui eu! Bento Porfrio bem que não queria ir. Eu era quem estava com saudade dos estranhos sussurros do poço.

Porque todos os córregos aqui são misteriosos - somem-se solo adentro, de repente, em fendas de calcário, viajando, ora léguas, nos leitos subterrâneos, e apontando,

muito adiante, num arroto ou numa cascata de rasgão. Mas o mais enigmático de todos é este ribeirão, que às vezes sobe de nível, sem chuvas, sem motivo anunciado,

para minguar, de pronto, menos de uma hora depois. Há, contínuo, aqui ou acolá, um gluglu, um chupão líquido, água rolando n"água; lá embaixo, nas pedras, a corredeira

se apressa ou amaina; mas o som nunca é o mesmo de dois instantes atrás.

Os mangues da outra margem jogam folhas vermelhas na corrente. Descem como canoinhas. Param um momento ali naquele remanso, perto das frutinhas pretas do tarumã.

Olhos de Maria Irma... Bobagem, eu vou gostar mais de olhos castanhos, de olhos verdes... Suecas, húngaras, dinamarquesas... polonesas de olhos pardos...

O ribeirão mudou de tom. Você ouviu, Bento? Ronca. Está se enchendo outra vez, sem turvar a água... De repente, o sabiá! Veio molhar o pio no Poço, que é um bom

ressoador. E quer passar a sua tristeza para a gente.

Mas, agora, já sabemos nos defender. Podemos desmerecê-lo, quebrarlhe a potência de acumulador de mágoas e espalhador de saudades. E, sem nenhuma combinação:

Eu disse:

- Gênero turdus... Um flavipes ou rufiventris...

E Bento berrou:

"Ouvi um sabiá cantando na beira do ribeirão...

Ô pássaro que canta triste! Não me traz consolação..."

Então o sabiá calou o bico e foi-se embora, porque a cantiga do ainda era mais melancolizante.

Agora é o córrego que parece triste. Trocou outra vez de toada... ter uma lavadeira lavando roupa e chorando, lá longe, lá longe, lá para dos morros frios, onde

há outras roças, outra gente, outro sabiá...

- Afinal, quem é que é burro?! Que foi que nós viemos fazer aqui Os cigarros se acabaram. Vamos voltar para casa, Bento Porfírio?

- Já, já... É só o tempinho d"eu pegar aquele dourado dançante, prancheou ali agorinha mesmo... Queixo esperto! Tabarão! Já comeu iscas... Mas hoje é o dia dele!

Cada qual tem o seu dia... E peixe é b besta, que morre pela boca...

Bento Porfírio volta a falar na amante: o marido, o Alexandre, nãos que está sendo enganado... Mas aquilo não é pouca-vergonha, não: é a sério... A de-Lourdes não

tolera o marido, não dorme com ele, não b nem nada... Estão combinando fugir juntos... Braços morenos... Irma!)... lenço vermelho na cabeça... metade... agaranto...

anto... eu... é...

Não escuto mais. Estou namorando aquela praiazinha na sombra. T palmos de areia molhada... Um mundo!... Que é aquilo? Uma concha molusco. Uma valva lisa, quase vegetal.

Carbonífero... Siluriano... T bitas... Poesia... Mas este é um bicho vivo, uma itã. No córrego tem tos iguais...

Bento Porfirio suspira fundo. Continua falando alto:

- ... estava de branco... na vinda p"ra cá bateu a mão, saudand O Alexandre é um bobo a gente vai ser feliz de-Lourdes ... p"ra longe nem não

há...

Não há... Não há... Não ouço mais o Bento. Há qualquer coisa es nha aqui... Há mais alguém aqui! Alguém está escutando! Não tenho c© gem para voltar o rosto.

Fui testemunha. Pode lá a gente ser mesmo testemunha? Não sei co foi: um grito de raiva, uma pancada, o t"bum n"água de uma queda pesa como um pulo de anta.

Alexandre, o marido, de calças arregaçadas. Só as calças arregaçadas, pés enormes, descalços na lama... Um ramo verde-maçã, a se agitar, e

339

SpGARANA

rendilha... Daí, a foice, na mão do Alexandre... O Alexandre, primeiro de cara fechada, depois com um ar de palerma... A foice, com sangue, ficou no chão. A água

ensangüentada... O Alexandre vai indo embora. Já gastou a raiva. O morto não se vê. Está no fundo.

Agora me acalmo. Não me fizeram nada. Só estou é com a roupa molhada, do espirrão da água. Também, aqui não é de uso dar-se voz de prisão... E não posso pedir ao

assassino que me ajude a tirar o Bento do poço. Corro para casa. No caminho, recupero parte da compostura.

Tio Emílio acabava de chegar da vila, e, sentado no banco do alpendre, labutava para descalçar as botas.

Fui falando, esbaforido, insofrido. Mas meu tio, cortando o jacto das minhas informações, disse:

- Espera um pouco.

Trabucou mais dois minutos. Afinal, conseguiu desfazer-se das botas e calçou os chinelos. Perguntou:

- Você tem certeza de que o Bento já está morto?

- Mortíssimo. Morreu em flagrante...

-Ah!...

E levantou-se calmamente, e calmamente pegou a andar ria varanda, no vaivém de sempre, pensando, pensando. Nem me via. Sentei-me no banco, com raiva de tanta fleuma

e querendo ver o que ele iria resolver. Por fim, parou e rosnou:

- Como é que o Xandrão Cabaça, tão sem idéia, foi descobrir a história lá deles? Boi sonso, marrada certa!

Chamou o Norberto, o capataz, e mandou que fosse ver o corpo. E que corresse alguém ao arraial, para chamar o subdelegado.

O capataz saiu, convocando os camaradas. Meu tio se chegou para o parapeito, e tirou o fumo mais o canivete.

Não me contive:

- Mas, Tio Emílio, o senhor que é tão justiceiro e correto, e que gostava tanto do Bento Porfírio, vai deixar isto assim? Não vai mandar, depressa, gente atrás do

Alexandre, para ver se o prendem?

Tio Emílio, alisando a sua palha, e com o sorriso que um sábio teria para uma criança, olhou-me, e disse:

- Para os mortos... sepultura! Para os vivos... escapula!...

Humilhei meus pendões. Calei-me. Meu tio esfregava nas palmas das mãos o fumo picado. Enrolou o cigarro. De súbito, bateu na testa, e pulou...

- Não é que eu não sei onde é que eu estava mesmo com a cabeça?! Õ Gervásio, corre aqui!... Já perdi um voto, e, se o desgraçado fugir para longe, são dois que eu

perco...

Tirou dinheiro do bolso e entregou ao mulato.

Ajunta, depressa, uns homens, para campearem o Cabaça. Espera

338 Jono GutMnRnts Rosn / Ftcçno C

- Ô bicho enjoado! Vai chamar chuva noutra parte!... A modo que está botando ovo e veio comer minhoca de beira de corgo... Cru E cantou, alto, para abafar os lamentos

do outro:

34o Jono GUIMARAES Rosa / F~cçAo

aí... Ele para o lado da vila não ia, com medo dos soldados... Para" rimbo, também não, pois é onde que moram todos os parentes del sabe que a gente havia de querer

ir procurar lá... O Calambau era o lugar para um se esconder, mas o Xandrão Cabaça é burro, não ace ter pensado nisso, não. Para os lados do Piau?... Não, acho que

ta não ia, porque no Piau vive o irmão do Bento... Nem para as P nhas... Nem para os Tucanos... Ele foi mas é para o Bagre, com ten de lá, esquipar para o sertão!

Vocês cacem de ir atrás dele, passand® atalho das Moreiras. É segurar e trazer. Mas voltem por dentro, pela nho do mato, que é para ninguém ver e nem ficar sabendo...

Levem baça para a tapera do Retiro. Expliquem bem a ele, que ele vai ficar rantido, escondido das autoridades, até a gente arrumar as cois jurados e tal... O Cabaça

é muito jumento e ignorante, e é capaz d querer acreditar; se fizer barulho, vocês sojiguem, nem que seja peado tronco.. .

E Tio Emílio se sentou na cadeira-de-pano. Acendeu o cigarro. T uma fumaça e espiou para ela. De repente, se mobilizou em pé, com de susto para mim, e gritou pelo

Gervásio, que já ia longe. Falou só:

- Vão no Calambau! Foi para lá que o Cabaça foi.

E sentou-se outra vez, agora descansado, murmurando:

-É isso... Capivara, a primeira vez que bate um trilho, passa co to. Depois, vai-se acostumando com o caminho, e pega a relaxar... F sim que o Bento morreu. Agora

a gente tem é de ver os jurados, para cr do leso do Xandrão Cabaça...

Saí para os fundos da casa. Maria Irma estava dando água às la plantas: jurujuba, dinheiro-em-penca e beicinho-de-sinhá. Narreitragédia. Minha prima levantou os

supercílios, e seus olhos formos arredondaram, descobrindo o branco por cima da íris; e foi apenas isso que revelou algum espanto.

- Coitadinha da Bilica... e da mulher do Alexandre... - disse. causa da falta de vergonha de um, e da doideira do outro, quem vai agora são as duas pobrezinhas...

Pororoca! Será que ninguém aqui pensa como eu?!... Quero ir dormir, sem jantar, sem conversa de sede e siso.

Voltou a chover. O dia inteiro. Caiu um raio, na porteira do curral gr Rega miúda, aborrecida. Só às vezes, sem aviso, se despenca um d"água mal amarrada, ou zoa

uma chuva rajada, flechando o chão em diagonal. Depois, estia devagar: já se escutam as goteiras. Ao pé da janela, a enxurrada desce para o bueiro, numa efêmera

cascata suja, inconveniências de cochicho e bochecho. E, quase que o dia inteiro, sapo, sentado no barro, se perguntava como foi feito o mundo.

341

SA~A~NA

passei todo o tempo no quarto, lendo, pensando. Imaginei mesmo um romance do qual Bento Porfírio, bem vivo, seria o herói.

Mas, agora, estou com remorso, porque não acompanhei o enterro; malícia dum momento, o Bento indo por essas estradas, estúpidas de lama. Chovia, na verdade, porém,

a chuva não impediu Maria Irma de sair, para visitar e confortar a viúva e a outra. Meu tio também se mostrou assaz generoso para com as duas. Minha gente é boa.

Houve o arco-da-velha no céu, num abrir de sol, mostrando as cores, com um pilar no mato e o outro no monte.

Mas cataplasma! Já começa a chover outra vez.

Chove. Chuva. Moles massas. Tudo macio e escorregoso. Com o que proferiu Gotama Buddha, o pastor dos insones, sob outras bananeiras e mangueiras outras, longínquas:

Mas, do mudo fundo, despontam formas, se alongam. Anfitrites dormidas, na concha da minha mão, e anadiômenas a florirem da espuma.

Eu tinha cochilado na rede, depois de um almoço gostoso e pesado, enquanto Tio Emílio, na espreguiçadeira, lia sua pilha de jornais de uma semana. A varanda era

uma praia de ilha, ao mar da chuva. Meu espírito fumaceou, por ares de minha só posse - e fui, por inglas de Inglaterras, e marcas de Dinamarcas, e landas de Holanda

e Irlanda. Subi ã visão de deusas, lentas apsaras de sabor de pétalas, lindas todas: Dária, da Circássia; Ragna e Aase; e Gúdrum, a de olhos cor dos fiordes; e Vívian,

violeta; e Erika, sílfide loira; e Varvara, a de belos feros olhos verdes; e a princesa Vladislava, císnea e junoniana; e a princesinha Berengária, que vinha, sutil,

ao meu encontro, no alternar esvoaçante dos tornozelos preciosos...

Quem veio foi Maria Irma, num vestido azul-marinho, um tanto corada e risonha.

- Sonhei. Sonhei demais, prima... Que é do tio?

- Foi dormir na cama, que é lugar mais quente.

- E você?...

- Queria perguntar uma coisa...

- Pergunte, Maria Irma.

- Não. Não sou curiosa.

Então, eu sei o que é...

"Aprende do rolar dos rios,

dos regatos monteses, da queda das cascatas: tagarelante, ondeia o seu caudal - só Ooceano é silêncio."

Manhã maravilha. Muito cedo ainda, depois de gritos de galos e be bezerros, ouvi alguém cantar. Fui para a varanda, onde adensavam perfumes mais próximos, de vegetais

e couros vivos. Sob a roseira, de r carnudas e amarelas, encontrei Maria Irma. Perguntei se era ela a don tão lindo timbre. Respondeu-me:

- Que idéia! Se nem para falar direito eu não tenho voz...

- Diga, Maria Irma, você pensou em mim?

- Não tenho feito outra coisa.

- Então...

- Vamos tomar leite novo? - Vamos!

....................................................

- E agora?

- Vamos tomar café quente? - Vamos e venhamos...

.....................................................................

- Mas, Maria Irma...

- Vamos ver se a chuva estragou a horta?

Havia uma cachoeira no rego, com a bica de bambu para o tu borracha. Experimentei regar: uma delícia! Com um dedo, intercep jato, esparzindo-o na trouxa verde meio

aberta dos repolhos, nas flá couves oleosas, nos tufos arrepiados dos carurus, nos quebradiços t teiros, nos cachos da couve-flor, granulosos, e nas folhas cloríneas,

v aquarela, das alfaces, que davam um ruído gostoso de borrifo.

Maria Irma, ao meu lado, pés-me a mão no braço. Do cabelo p ondulado, soltou-se uma madeixa, que lhe rolou para o rosto.

Eu apertava com força o tubo da mangueira, e o jorro, numa traje triunfal e libertada, ia golpear os recessos das plantinhas distantes. pente, notei que estava com

um pensamento mau: por que não narro a minha prima? Que adoráveis não seriam os seus beijos... E as mão Ter entre as minhas aquelas mãos morenas, um pouquinho longas,

t em desacordo com a delicadeza do conjunto, mas que me atraíam per mente... Acariciar os seus braços bronzeados... Por que não?...

343

SAGARANA

Súbito, notei que Maria Irma se ruborizava. E arrebatou-me a borracha, com rudeza quase:

- Não faz isso, que você está tirando a terra toda de redor dos pés de couve!

E, com um meio sorriso, querendo atenuar a repentina aspereza:

-Além disso, tem chovido, e ainda não é preciso regar a horta hoje...

E, afinal, com um sorriso todo:

- ... e, depois, faz mal molhar as plantas com sol quente. Vamos ver as galinhas?

- Pois vamos ver as galinhas, Maria Irma.

E acompanhei-a, namorando-lhe os tornozelos e o donairoso andar de digitígrado.

Pelo rego desciam bolas de lã sulfurina: eram os patinhos novos, que decerto tinham matado o tempo, dentro dos ovos, estudando a teoria da natação. E, no pátio,

um turbilhão de asas e de bicos revoluteava e se embaralhava, rodeando a preta, que jogava os últimos punhados de milho, r-r-rolando e estalando com a língua...

- Prrr-tic-tic-tic!...

Um gordo galo pedrês, parecendo pintado de fresco com desenhos de labirinto de almanaque, sultaneava, dirigindo preferências a uma galinha ainda mais carijó e mais

gorda, vestida de fichas de impressão digital. E veio de lá, ciumento e briguento, outro galo, esse branco, com chanfraduras e pontas na crista caída de lado. Barulho.

E então a galinha choca, com cloqueios e passos graves, chamou os pintinhos para longe dali.

E havia suras, transilvânias, nanicas, topetudas, calçudas; e guinés convexas, aperuadas; e peruas acucadas; e um peru bronze-e-brasa, de brincos, carúnculas, boné

e guardanapo, todo paramentado de framboesas; e patos, esparramados, marrecos mascotes e pombas de casa.

Mas, de supetão, uma espécie de frango esquisito, meio carijó, meio marrom, pulou no chão do terreiro e correu atrás da garnizé branquinha, que, espaventada, fugiu.

O galo pedrês investiu, de porrete. Empavesado e batendo o monco, o peru grugulejou. A galinha choca saltou à frente das suas treze familiazinhas. E, aí, por causa

do bico adunco, da extrema elegância e do exagero das garras, notei que o tal frango era mesmo um gavião. Não fugiu: deitou-se de costas, apoiado na cauda dobrada,

e estendeu as patas, em guarda, grasnando ameaças com muitos erres. Para assustá-lo, ° galo separou as penas do pescoço das do corpo, fazendo uma garbosa gola; avançou

e saltou, como um combatente malaio e lascou duas cacetadas, de Banco e esporão. Aí o gavião fez mais barulho, com o que o galo retrocedeu. E o gavião aproveitou

a folga para voar para a cerca, enquanto ° Peru grugulejava outra vez, com vários engasgos.

Nunca pensei que um gavião pudesse ser tão covarde e idiota... - eu disse.

34z Iono GUIMARÃES Rosn / Ficçno Co

- Então?

- É a respeito... Bem, é sobre... Você quer saber se eu deixei amor, a esperar por mim?

- Se deixou, ou não, não me interessa...

- Então, por que você quis perguntar, prima?

- E por que foi que você adivinhou a pergunta, primo?

$~ lOAO GUIMARAES ROSA I FICÇAO

Maria Irma riu.

- Mas este não é gavião do campo! É manso. É dos meninos

berto... Vem aqui no galinheiro, só porque gosta de confusão e a

Nem come pinto, corre de qualquer galinha... - Claro! Gavião civilizado... - U"lalá... Perdeu duas penas...

O sorriso de Maria Irma era quase irônico. Não me zanguei, m

bém não gostei.

Ontem, esteve aqui na fazenda um rapaz da vila. Bem vestido, sim Mas, logo que eu soube que ele viera quase somente para ver Maria tive-lhe ódio. E tive também o

impulso de observar ao meu tio costumes da nossa terra estão progredindo demasiado depressa, e que dravam melhor à casa as austeridades de antanho.

O rapaz trouxe livros para minha prima. Penso mesmo que ele ó freqüentemente, porque ouvi Maria Irma falar-lhe em restituir outr vros em francês... Nunca pensei

que minha prima os lesse. També hoje está toda diferente, mais bonita; por ocasião da minha chegada enfeitou assim! Entre Maria Irma e esse moço há qualquer coisa.

Exas me. Detesto-os!

Ainda bem que um camarada veio dizer que estava passando, ao uma grande boiada, vinda do poente. Pedi um cavalo e fui para a estr mui me serviu galopar ao sol, metade

do dia, porque coisa mais bons que uma boiada não existe, a não ser o pio do patativo-borrageiro, q tristeza puntiforme, ou a Lapa do Maquiné, onde a beleza reside.

Cheguei de volta em casa à noitinha. O outro, graças a Deus, já se Maria Irma foi muito boazinha para mim. Incomodou-se por eu nãa rer jantar. Ofereceu-me compota

de toranjas, e isso me pareceu pei to. Com um esforço heróico, recusei: o doce tinha sido feito para rival.

Maria Irma estranha os meus modos. Pergunta se estou doente. bruscamente, a interpelo:

- Por que você nunca me disse que gostava de ler, Maria Irma?! - Pois você nunca me perguntou... - Esse rapaz é que é o seu noivo? -Não, não é este... E, também,

noiva eu não sou, você bem sa -Não fique zangada comigo, prima... - Não estou... Mas você não deve me olhar assim... Parece que

me fotografar...

Recuo. O que eu queria era só apertá-la nos meus braços. - Mas, quem é então aquele rapaz, Maria Irma? - O Ramiro? É o noivo de Armanda, amiga minha...

345

SA~ARpNA

_ E quem é Armanda, Maria Irma? É bonita? Filha de fazendeiro? Mo

ra aqui por perto?

- É muito bonita, foi educada com parentes no Rio, já esteve na Euro

pa, é filha de fazendeira, - porque o pai já morreu - mora no Cedro... e

você é que nem um padre, para especular!

- E que vem fazer aqui o noivo, se tem uma noiva assim?

- Vem visitar-nos, quando tem de passar por aqui... Há algum mal na

nossa amizade?

- E a outra sabe? Consente?

- Ela quer o que quer, e tem confiança em Ramiro, e em mim, qúe sou

sua amiga...

- Não sou bem dessa teoria... Quando é o casamento? -Armanda ainda não quis marcar a data... - Ela domina o teu amigo, pelo que vejo... - Não diga isso, primo, é

absurdo!

- Maria Irma, sabe de uma coisa? Você gosta do Ramiro e o Ramiro

gosta é de você. Apenas...

- Há outra coisa também, que você não sabe... - Que é prima?

- É que você é um imbecil, primo!

Chegou hoje cedo a máquina-de-escrever, encomenda de Tio Emílio, que a desencaixotou, pressuroso, promovendo-nos a seus secretários - Maria Irma e eu. É verdade

que, a mim, de começo, ele nada pediu. Creio até que haja sorrido com malícia, ao ver a boa-vontade com que me ofereci para ajudar.

Mas, assim, pude passar o dia inteiro ao lado da minha prima. E juntos confeccionamos quase duas dezenas de cartas, na grande maioria destinadas a insignes analfabetos.

No correr das horas, rascunhando "Prezado amigo e distinto correligionário" e "amo. obro. ato. ador.", bem que eu projetei mais de uma investida, mas a coragem me

faltou. Maria Irma agora não me fixava: espiava só por baixo, para o outro lado ou para a frente, se bem que eu às vezes lhe surpreendesse ligeiros olhares de viés.

À tarde, por fim, pus-me em brios, e me declarei, com veemência e transtorno.

Maria Irma escutou-me séria. A boquinha era quase linear; os olhos tinham fundo, fogo, luz e mistério; e tonteava-me ainda mais o negrume encapelado dos cabelos.

Quando eu ia repetir o meu amor pela terceira vez, ela, com voz tênue como cascata de orvalho, de folha em flor e flor em folha, respondeu-me:

346 Jono GuiMnxnes Rosa / Ficçno Co

- Em todos os outros que me disseram isso, eu acreditei... Só e

é que eu não posso, não consigo acreditar...

Protestei, perdendo o resto do aprumo, com larga gesticulação ~

pelo de argumentos. Maria Irma sorriu:

- Gosto de ouvir você assim... Fica perfeitamente infantil... Eu fora às cordas. Mas ainda reagi:

- Quem sabe você me torna por um bicho-papão, Mariairmazin E ela, empertigando a cabecinha quase num desafio: - Isso mesmo! Você disse bem.

Mas, nisso, o juiz entrou no ring, isto é, surgiu meu tio, entusiasm

situo:

- Vamos escrever à Don"Ana do Janjão, da Panela-Cheia! Carta de, palavreado escolhido. E outra para o bobo do marido... Mas não nada de que ele é bobo, aí, não,

hein!?...

- Carta simples, Tio Emílio? Só para cumprimentar?

- Não. É avisando que eu troquei duas imagens para a capelinha Retiro. Santa Ana e São João... E, como foi em honra deles dois, quer meus amigos, faço questão de

que eles sejam os padrinhos!... Põe, na ca que eu considero muita honra. Vou fazer festa: música, missa canta diabo!

Maria Irma, sem pestanejar, me explica: Don"Ana do Janjão e Janjão. Don"Ana são respectivamente esposo e esposa, e, pois, co-proprietários fazenda da Panela-Cheia.

Janjão da Don"Ana é um paspalhão, e não co Mas Don"Ana do Janjão é uma mulher-homem, que manda e desm amansa cavalos, fuma cachimbo, anda armada de garrucha, e chefia

eíe rado bem copioso, no município n~ 3.

- Mas, meu tio, essa graciosa homenagem vai render-lhe pouco se ço... Os eleitores de Don"Ana do Janjão sendo de outro município...

- Ora, que idéia, meu sobrinho! Então você pensa que é só por in se que a gente agrada as pessoas de quem a gente gosta?... E mesmo fosse... Mesmo que fosse, tem

muita gente, da banda de cá das divisas, morre para obedecer à minha comadre Don"Ana...

- Comadre?

- Uê! Pois não vai ser?... Ela mais o marido, que é muito boa pes não vão batizar as imagens que eu mandei vir para a capelinha? Pode crever, pode pôr na carta:

"Minha ilustríssima e prezada comadre..." e outra: "querido e estimado compadre Coronel Janjão". Ele não é coro nenhum, mas não faz mal... Muito distinta, a comadre

Don"Ana... E paz de querer fazer com a gente um trato por fora: Ela manda o pes dela por aqui votar comigo, e eu faço o mesmo com o povinho que te por lá, no Piau...

- Falo nisso, na carta, tio?

- Nada. Por enquanto, nada... Mas, capricha, mesmo... Pergunta c

347

SpGARi~NA

mo é que vai o Juquinha... Juquinha é o ai-Jesus dela, é um menino que a minha comadre Don"Ana está criando.

Dormi mal, acordei de saudades, corri para junto de Maria Irma. Antes não

o tivesse feito: quanto mais eu pelejava para assentar o idílio, mais minha

prima se mostrava incomovível, impassrvel, sentimentalmente distante. Não importa, no começo é assim mesmo - pensei. Devo mostrar-me

caído, enamorado. Ceder terreno, para depois recuperá-lo. É boa tática...

Um "gambito do peão da Dama", como Santana diria... Por onde andará

Santana?

- Você não teve saudades de mim, Maria Irma?

- Que pergunta! Nós estamos na mesma casa, estivemos separados só

nas horas de sono...

- Pois, para mim, já é demais, Maria Irma... Preciso da tua presença... -Me diz outra coisa: você é ambicioso? - Eu?

- Pois não é? Não é ambicioso?

-Não sei. Uma coisa, sim, eu ambiciono... - Um automóvel?

- Maria Irma!

- Que cor de automóvel você prefere? Talvez o papai compre um... Não ouvi o resto. Tudo saiu pior do que o pior que eu esperava! Maria

Irma despreza a minha submissão. Tenho de jogar um "gambito do peão

da Dama, recusado..."

No pastinho. Debaixo de um itapicuru, eu fumava, pensava, e apreciava a tropilha de cavalos, que retouçavam no gramado vasto. A cerca impedia que eles me vissem.

E alguns estavam muito perto.

No meio da rasa relva verde-água, uma poldra: deitada sobre a sua sombra. Arranjou um jeito de ajuntar bem as patas, e os olhos e a cabeça são tristes e velhos,

na elástica infantilidade do corpo. Mas, há uma longa sugestão de maciez, nos pêlos felpos do pescoço.

O regato, acolá, azul-claro, entre as margens de esmeralda, até parece abaulado. Para ele trota uma égua brilhantina - lisa e quente - que ao mover-se pega a desdobrar

toalhas de carne, só músculos. Mas o poldrinho recém-nascido, ainda tão pernalta, vem pulando, atrás, aflito para mamar. Ao sumir o focinho sob o ventre e as coxas

da mãe, todo o seu corpo é um alongar-se, de gula. A égua espera. Nunca ninguém soube dar com dignidade maior.

Aí, com o embornal e o cabresto, chegou o toquinho de gente preta de oito anos, que é o Moleque Nicanor.

34$ Jono GUIMARAES Rosn / F~cçno C

- Que é que você veio fazer?

- Vim pegar o Vira-Saia, sim senhor, que patrão seu Emílio man - E você sabe?

- Pego, até sem precisar de milho nem de cabresto! O senhor ver?

- Se fizer, ganha dois mil-réis.

Moleque Nicanor arregalou os olhos, e eu pensei que ia ouvir as das do seu coração. Deixou comigo a capanga e o sedenho; foi. acolá, tou um cipó, e ajuntou pedrinhas

no chapéu de palha.

- É prata mesmo que o senhor falou, ou é duzentorréis?

- Prata. Olha aqui...

A cem metros de nós, os cavalos pastavam calmamente. - Uh, Coringa! Ei! Ei!...

Fazendo declarações de amor, com vozinha blandiciosa, Moleque 1~ nor vai andando devagarinho, em ziguezagues, não diretamente pa animais, mas para um ponto imaginário,

vinte metros à esquerda do do. Agora assovia e sacode o chapéu com as pedras. Coringa relincha. Saia levanta a cabeça. Moleque Nicanor pára. Espera um pouco. Con

Os cavalos se afastam, mais metros para oeste. Moleque Nicanor alca o ponto visado, mas a distância inicial de pouco diminuiu.

Moleque Nicanor recomeça a manobra. Aí, de repente, nitrindo, os mais desembestam a correr pela campina, de crinas abertas, em galope cular.

Moleque Nicanor não se precipita. Parece ter previsto este alarma. ta-se no capim, e, bem no centro da circunferência, espera que os eq se cansem e desistam de correr.

Então, ele recomeça. Assoviando, an do, parando, falando, agitando as pedrinhas no chapéu. Ao fim de" quarto de hora, não sei bem o que ele fez, além de ter feito

o pelo mas a tropilha se fracionou. Os outros foram para longe, em dois para a borda da mata. Vira-Saia ficou sozinho.

O negrinho se endereça a ele, mas agora com requintes de suaviloq cia. Já estão a menos de vinte passos um do outro. E decerto que Viráestá pensando que as pedrinhas

do chapéu são mesmo milho debul porque ele não sabe se quer correr ou se prefere esperar.

- Eh, meu irmãozinho! Eta, beleza de cavalinho, só p"ra moça b montar!... Hiu! Hiu!... Vem cá, meu irmãozinho, chega p"r"aqui... Hiu!...

A voz do Moleque Nicanor é uma comprida carícia. As pedrinhas calham. O cipó está bem escondido, debaixo do braço. Parou.

-Meu irmãozinho cavalinho... Hiu! Hiu!... Irmãozinho... Hiu!:

A distância agora é mínima. Vira-Saia avançou, um quase nada. leque Nicanor já estava imóvel. Vira-Saia vem mais para perto... M" Pronto! Com viva rapidez e simulada

displicência, Moleque Nicano

$AGA~NA 349

gou o cipó no pescoço do animal. Vira-Saia estremeceu, mas queda quieto, porque pensa que já está mesmo prisioneiro. E, dócil, aceita que Moleque Nicanor lhe bata

a mão num punhado de crina, e lhe passe o cipó na boca, abotoando-o em barbicacho e deitando uma volta furtada ao redor do focinho. Pula no lombo nu do cavalo, dando-lhe

com os calcanhares nas costelas. E grita:

- Ei! Anda, égua magra! Piguancha! ... Irmãozinho que nada! Já se viu cavalo nenhum ser irmão de gente?!...

Tenho de pagar os dois mil-réis. E mesmo mais outros dois, porque Moleque Nicanor arranjou a estória de um chicote que ele teria perdido no meio do capim, e de um

dinheiro que prometeu às almas do Purgatório, a troco de que elas lhe ensinassem onde era que o chicote estava.

- E você é capaz de fazer isso com qualquer cavalo?

- Dos daqui, qualquer um, afora o Caraúna, por causa que ele é inteiro e vira fera, à toa, à toa: investe e amoita ~a gente a dente... Mas, se o senhor quiser mim

dar outros dois mil-réis, eu vou ver se caço jeito de campear ele p"ra o senhor ver...

Recuso a proposta. E Moleque Nicanor, sempre montado em pêlo, me torna a bênção e toca, a meio galope, sem nem ao menos fazer questão de substituir o cipó pelo cabresto.

E, nisto, fiquei sabendo, de repente, que tinha elaborado um plano. Tenho necessidade urgente de valorizar-me. Ah, Maria Irma!

Seo Juca Soares, da fazenda das Tranqueiras, a duas léguas daqui, sempre gostou de mim. "Periquito" fanático, portanto inimigo político de Tio Emílio. Mas tem a

Alda, que está muito bonita, dizem, e que, em outros tempos, tal qual Maria Irma, foi minha namorada de brinquedo. Pois vou passear lá. Hoje mesmo. Vou passar o

dia. Será que meu tio pode ficar zangado?

Nada, não se zangou; ao contrário:

- Eu acho até que não. há mal nenhum em você ir... Vai, vai! Você vai lá? Então, vamos juntos até no atalho da ponte, porque eu tenho de ir ver o Salvino, que vai

ser do júri do Xandrão Cabaça...

Não esperava que fosse essa a reação do meu tio. Ficou quase entusiasmado com o meu projeto.

Simulando excesso de interesse pelo passeio, vim ver Maria Irma, que ficou imperturbável. Pergunto:

- É verdade que a Aldinha do Juca está uma moça encantadora?

- É. Está muito engraçadinha... Sempre foi...

Silêncio. Sorriso ingênuo de Maria Irma. Assôo o nariz.

_ Então, para você, tanto faz que eu me interesse ou não por outra...

Nao ê?

- Ninguém manda em coração...

Me diz uma coisa, Maria Irma, você gosta um pouquinho de mim?

3So JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÀO C

- Por que não? Gosto de todos os meus parentes... E você nu fez mal nenhum...

- Maria Irma!

- Olha, os cavalos já estão arreados... Lá vem papai. E você nã

se atrasar... Vai gostar da Alda... Só que você gostaria mais de Arm - A noiva do teu Ramiro?

- Você é ridículo.

- Ele gosta de você. Você pensa que eu sou tolo?

- Eu, e só eu, sei quem gosta ou não de mim!

- Também pode ser que ele goste de vocês duas... Como é ela? - Não. Da minha altura. Mais cheia de corpo... É bonita... - Monta a cavalo?

- E guia automóvel, muito bem... É saída... - Perdão, Maria Irma?

- É muito desembaraçada... Independente... Moderna...

- Deixemos esta conversa tola, Maria Irma... - Deixemos. Até logo. Bom passeio!

Mordi os beiços e não gemi. Santana teria apenas classificado: p

empatada, por xeque perpétuo...

Vou passar o dia em casa do Juca Soares. E, conforme seja, aman

volto, e mais todos os dias, e ainda mais dias, se preciso for! E onde e

anda esse Moleque Nicanor, mestre em tretas, para ganhar, à toa, ã

mais dois mil-réis?!

Cavalgamos lado a lado, e Tio Emílio insiste no tema: que as coisa mal. Não tem confiança nos eleitores do São Tomé, nem nos do M bo... No Calambau tudo ainda está

pior... Mostra-se tão desfavor que só falta garantir a derrota do seu partido "João-de-Barro"...

Diz isso e repete, cinco, seis vezes, enquanto eu vou remoendo c os meus insignes pesares de amor. Passada a ponte, separamo-nos.

Juca Soares recebeu-me muito bem. A Alda é bonita. Mas, tem verdes... É clara demais, meio loura... Não se parece nada com Ma ma... Não é Maria Irma!

Juca Soares também só fala da política: que tudo está correndo bem para os "Periquitos". A vitória é certa... O Governo dará apoio vai mandar mais praças para o

destacamento... E eu fico convenci verdade de tudo isso.

Pouco demorei, conquanto muitos fossem os agrados. Em casa Emílio já me esperava, ansioso, via-se. Contei-lhe a conversa com o a Bário. Pergunta:

- Que foi que você disse a ele?

- Não me lembro... Ah, sim: acho que disse que o senhor esta

pouco desanimado, que talvez aceitasse um acordo... Fiz mal? Tio Emílio avança, de exultante:

$A~A~nA 351

. Fez muito bem, isto mesmo é que sapo queria! Eles agora vão pensar

que é verdade, e vão amolecer um pouco... Estou desanimado, qual na

da!.-- Mas você costurou certo. E agora é que tudo está mesmo bom, pois

se o Juca Futrica contou prosa é porque as coisas para ele estão ruins...

Você me rendeu um servição, meu sobrinho.

Oh, céus! Até a minha inocente ida ao Juca Soares foi explorada em

favor das manobras políticas do meu tio... Corro por Maria Irma, que,

frente ao espelho grande, acertava o comprimento de um vestido grená,

estendendo-lhe as mangas em asas de ave e prendendo a gola com o men

to. Sorriu, estendeu-me a mão, dobrou com cuidado o vestido.

- Que tal, a Aldinha? - perguntou. - Que tal você e eu, Maria Irma?

- Um pouco tolos... Um pouco primos. - Falo a sério, Maria Irma! - Por que não avisou?

- Por favor, um armistício... Quero parlamentar...

- Guarda a bandeirinha branca. Vou servir café a você... - Só depois.

-Então, senta e fuma...

- Escuta, Maria Irma: eu gosto de você... Eu te amo! - Você pensa que gosta... - Acredita que seja verdade. Por um momento, só... - Fiz de conta. E depois?

- Então...

- Solta a minha mão! ... Você já devia de me conhecer bem, para saber

que eu não gosto disso.

- Uma palavra, apenas, Maria Irma... Posso esperar? - Não.

- Diga, Maria Irma, por favor! - Não.

- Pelo menos, fica sabendo que eu adoro você, que... - Não sei...

- Então, devo ir-me embora? - Sim... Vai... - Vou, Maria Irma!

- Espera... Para onde você vai?

- Primeiro para as Três Barras, amanhã mesmo. De lá, à Vila, e às Ta

bocas, onde tomarei o trem...

- Espera... Não vá ainda... Fica mais uns dias... - Por que, Maria Irma? Para quê?

depois da eleição que eu convidei Armanda para vir passar uns dias aqui, Você é má, Maria Irma.

352 Jono GUIMARÃES Rosn / F~cçno

- Não sou. Fica... Você vai gostar...

- Que astúcia você tem na cabecinha, prima?

- Bem, é melhor que você vá. Você era capaz de pensar que e

nha causa que eu estou pedindo...

- Adeus, Maria Irma... Irma Maria...

- Tenho um retrato de Armanda... Você quer ver? - Mostra ao Ramiro!

- Teimoso!

-Adeus, Maria Irma! -Adeus, trapalhão!

E agora? Agora, vou-me embora para as Três Barras, onde mora o m Ludovico, que não tem filha bonita nenhuma e não cuida de política amanhã mesmo!

A Tio Emílio, aí que as eleições estavam beirando por pouco, custo cordas com a minha partida; falou em ingratidão, e amuou. Maria I clássica: não disse pau e nem

pedra. E eu, confesso, quase chorei, no nho. Mas estava em cima de um burro pardo, e, desse modo, chora falta de pudor.

Nas Três Barras, o mundo era outro: muitos vaqueiros cantores; violas; muitos passeiós; muito sofri por causa de Maria Irma.

Pensava: será que agora, com a minha ausência, Maria Irma não começando a gostar de mim? E penava com isso, que o amor, ao co de acontecer como a água em dois vasos

estanques, deva gangorras pesos em conchas de balança. E desesperava, ao sentir que eu ac comigo tanto amor que estava inútil, sem ter onde pousar.

Mais sofri, todavia, porque lua havia, uma lua onde cabiam t devaneios e em que podia beber qualquer imaginação. Da varandà piava um pedaço, dado ao luar, de ar

claro; as árvores ficavam tão que aquele campo parecia correr, como um vau de riacho raso, de t rência moveste. As vacas, àquela hora, mugiam imenso, apartadas zerros.

Os dias me cansavam muito, mas eu não conseguia dormif~ frinchas da janela, entrava o mato em insônia, com vozes que eu ti tendia. E, às vezes, tarde na noite, ouvia,

do curral, bruscos estré bufos, pisoteios, e um trafegar a esmo - excursões do gado sonarrt

E eu pensava, sempre em Maria Irma.

Mas o único acontecimento mesmo acabrunhaste foi produz um papagaio, geral e caduco, já revertido ao silêncio, que cochilava poleiro, mas que, um dia, lembrando-se

de outrora, entortou a cab olhou com um olho, e, esganiçado, cantou:

"Cadê Mariquinha? Foi passiá... Entrou no balão virou fogo do á!..."

- Gagá idiota! Deixa de cantar bobagens!

- Fogo... Fogo!... Prrr... Fogo!... Fogo do á!...

Mas, aí, a negrinha Carmelinda chegou e explicou:

- É por causa que essa-uma é a cantiga que a gente ensina p"ra todos os papagaios... E é a derradeira que eles esquecem, quando já estão velhinhos.. .

Ri e deixei o purrataco dormir. Melhorei.

E aí foi que tive notícia de que as eleições tinham corrido, com estrondoso triunfo do partido "João-de-Barro". E assim chegou também o dia em que apareceu nas Três

Barras um camarada do Tio Emílio, trazendo duas cartas para mim.

Abri o primeiro envelope, com excessiva pressa: continha um recado, à máquina, do meu tio, celebrando a vitória e insistindo para que eu voltasse. Aquela folha de

papel tinha passado pelas mãos, pelos dedos morenos de Maria Irma!

Mas, havia também o outro envelope, e eu abri, com preguiça, o outro envelope. Céus! Santana, outra vez!... Somente isto:

"Caríssimo, -

analisando a posição em que interrompemos aquela ZuckertorJRéti, na viagem a cavalo, verifiquei que o jogo não estava perdido para mim. Ao contrário!

Junto o diagrama, porque não confio muito na sua memória, desculpe. Mas, veja o avanço do cavalo preto a 5C, e, em seguida, B3D, e o outro bispo batendo a grande

diagonal, e... veja, oh ajuizado moço Telêmaco, na quarta jogada, o tremendo ataque frontal dos peões negros, contra o roque branco. Indefendível! Xequemate!

Continuemos, por correspondência. Escreva para Pará-de-Minas.

Seu,

SANTANA."

Pulei do banco, e gritei de alegria. Os novilhos, que enchiam o curral esperando a marcação, pareceram-me um exército, aguardando ordens minhas para arremeterem

em fileiras. O dia ficou, de repente, o mais bonito e bendito. Gritei mesmo:

Saltem um cálice da branquinha potabilíssima de januária que está com um naco de umburana macerando no fundo da garrafa!... E cavalo

354 loAO Gu~MnRnes Rosn / F~cçno Co

arreado, já, já, para eu voltar para o Saco-do-Sumidouro... Desistir,

de ser idiota não convém! Viva Santana, com os seus peões! Viva o x do-pastor! Viva qualquer coisa!... Volto! Vou lá.

E não adiantou a insistência do tio Ludovico:

- Amanhã cedo você vai... Espera ao menos a ferra dos garrotes, coisa bonita, de que você vai gostar...

E nem os sábios conselhos do Viriato, vaqueiro. campeão da "d do boi pela seda" e mateiro meu confidente em assuntos de amor:

- O senhor não deve de ir, porque torna a ficar gostando... Isso d rer-bem da gente é que nem avenca-peluda, que murcha e, depois de po, tendo água outra vez, fica

verde... E que nem galho grosso de tim que está seco, e, a gente fincando p"ra fazer cerca, brota logo e põe rai2

- Nada disso, Viriato! Eu tenho opinião. Não cedo!... Mas quero qu saiba que eu não gosto dela mais... - expliquei, já afivelando as espgr

E Viriato, curvando-se para me ajudar, abanou a cabeça e declame

- Flor de angico-verdadeiro, dura seis meses no pé...

Mas não era curta a viagem das Três Barras ao Saco-do-Sumidouro,.. que houve tempo para pensar e sentir. Amplos campos navegantes; de o mato montano, onde pia o

zabelê. Por aí, tive cansaço e vergonh tudo o que antes eu dissera e fizera, e foram notáveis os meus pensa tos. O pio do zabelê é escandido e gemido. A estrada

do amor, a gent está mesmo nela, desde que não pergunte por direção nem destino: casa do amor - em cuja porta não se chama e não se espera - fica pouco mais adiante.

- Eco! Eco! - gritavam os tucanos verdes.

- bco! bco! - ralhavam os tucano-açus.

Cheguei numa tarde assaz bonita e quente, porque era fim de janeir veranico.

Meu tio estava na varanda, deitado na rede, com um monte de c telegramas ao alcance da mão. Achei-o um pouco abatido. Mais magr

No alto da parede, os marimbondos tinham crescido novos co oblongos. E as rosas amarelas floriam.

Tio Emílio me reteve abraçado, falando-me ao ouvido, com voz gr e ronronante:

- Então, hein! Que arraso! Agora não há mais periquito para to

casa que joão-de-barro fez!...

E, desprendendo-me, por fim:

- Olha o que o Presidente do Estado me mandou: que telegrama!

pode haver mais periquito. É a-li! Tretou, relou, tijolo nas costas!...

Sn~^R^NA 355

Mas, justamente agora, que se afastara um pouco, era que Tio Emílio

abaixava a voz:

- O pior foi que eu tive um prejuízo grande... Gastei para mais de uns

oitenta contos... Um estrago!... Estou pensando em fazer um acordo na

política, em desde que eu fique sendo o chefe...

E numa onda brusca de carinho, Tio Emílio abraçou-me outra vez. - Onde está Maria Irma? - perguntei. Estava no jardim, e tinha mesmo de estar no jardim. Mas não

estava só.

Ruborizou-se. Ofegou. E apresentou-me à outra. - Meu primo... Armanda...

Armanda tinha uma expressão severa, e foi muito inóspito o seu olhar.

Quase uma zanga.

- Com cada um de vocês já falei muito do outro... - acrescentou

Maria Irma.

Hesitei. Armanda recuara um passo, e fingiu olhar o jasmineiro. Mur

murei:

- Então, Maria Irma, surpreendi você com a minha volta... - Fico alegre...

- De verdade?

- Não começa outra vez. Você não compreende...

Alguém riu. Era Armanda, a de maravilhosa boca e olhos esplêndidos. - Vou ver, papai chamou... Me esperem... - explicou Maria Irma,

abrindo vôo.

- Prefiro caminhar. Quer? - perguntou-me Armanda.

Quis. Andamos. Calados. Crescia em mim uma coisa definitiva, assim

com a impressão de já conhecê-la, desde muito, muito tempo. Nossas

mãos se encontraram, de repente, e eu senti que ela também estremeceu. - Você está querendo tomar-me o pêlo?! - Que é isso, Armanda?

-Nada. Vamos!

Uma lavadeira cantava, lá na beira do rego:

"De madrugada,

quando a lua se escondia... o sol raiava

na janela de Maria..."

Vinha um odor duro, das flores carminadas. Os aloendros, em fila, nos

separavam do mundo. Pensamentos me agitavam. Queria... - Você gosta de Maria Irma? _ Não...

r De quem?

356 JOAO GUIMARAES Rosa / FicçAO C

- De você... Sempre gostei. Sempre! Antes de saber que você e - É engraçado...

- É verdade.

- Não... Não é isso...

Armanda jogou fora o botão de bogari, e entrecruzou os dedos..$ - É com você que eu vou casar. - Comigo!?...

- Então, por que você não me beija? Porque aqui na roça não é

E foi assim que fiquei noivo de Armanda, com quem me casei, no maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma c moço Ramiro Gouveia, dos Gouveias da fazenda

da Brejaúba, no T Fim-É-Bom.

SÃO MARCOS

"Eu vi um homem lá na grimpa do coqueiro, ai-ai,

não era homem, era um coco bem

maduro, oi-oi,

Não era coco, era a creta de um macaco, ai-ai,

não era a creta, era o macaco todo inteiro, oi-oi."

(CANTIGA DE ESPANTAR MALES)

SA~A~NA

359

NAQUELE TEMPO EU MORAVA no Calango-Frito e não acreditava em feiticeiros.

E o contra-senso mais avultava, porque, já então - e excluída quanta coisa-e-sousa de nós todos lá, e outras cismas corriqueiras tais: sal derramado; padre viajando

com a gente no trem; não falar em raio: quando muito, e se o tempo está bom, "faísca"; nem dizer lepra; só o "mal"; passo de entrada com o pé esquerdo; ave do pescoço

pelado; risada renga de suindara; cachorro, bode e galo, pretos; e, no principal, mulher feiosa, encontro sobre todos fatídico; - porque, já então, como ia dizendo,

eu poderia confessar, num recenseio aproximado: doze tabus de não-uso próprio; oito regrinhas ortodoxas preventivas; vinte péssimos presságios; dezesseis casos de

batida obrigatória na madeira; dez outros exigindo a figa digital napolitana, mas da legítima, ocultando bem a cabeça do polegar; e cinco ou seis indicações de ritual

mais complicado; total: setenta e dois - noves fora, nada.

Além do falado, trazia comigo uma fórmula gráfica: treze consoantes alternadas com treze pontos, traslado feito em meia-noite de sexta-feira da Paixão, que garantia

invulnerabilidade a picadas de ofídios: mesmo de uma cascavel em jejum, pisada na ladeira da antecauda, ou de uma jararaca-papuda, a correr mato em caça urgente.

Dou de sério que não mandara confeccionar com o papelucho o escapulário em baeta vermelha, porque isso seria humilhante; usava-o dobrado, na carteira. Sem ele, porém,

não me aventuraria jamais sob os cipós ou entre as moitas. E só hoje é que reahzo que eu era assim o pior-de-todos, mesmo do que o Saturnino Pingapinga, capiau que

- a história é antiga - errou de porta, dormiu com uma mulher que não era a sua, e se curou de um mal-de-engasgo, trazendo a receita médica no bolso, só porque não

tinha dinheiro para a mandar aviar.

Mas, feiticeiros, não. E me ria dessa gente toda do mau milagre: de Nhá Tolentina, que estava ficando rica de vender no arraial pastéis de carne mexida com ossos

de mão de anjinho; dos vinténs enterrados juntamente com mechas de cabelo, em frente das casas; do sapo com uma hóstia consagrada na boca, e a boca costurada para-ele

não cuspir fora a partícula, e depois batizado em pia de igreja, e, mais, polvilhado de terra de cemitério, e, ainda, pancada nele sapo até meio-morrer, para ser

escondido finalmen-

36o Jono Gu~MnxAes Rosa / FicçAo C

te no telhado de um sujeito; e do João Mangolô velho-de-guerra, v rio do mato nos tempos do Paraguai, remanescente do "ano da fu liturgista ilegal e orixá-pai de

todos os metapsíquicos por-perto, da da grota, e mestre em artes de despacho, atraso, telequinese, vidro vuduísmo, amarramento e desamarração.

Bem... Bem que Sá Nhá Rita Preta cozinheira não cansava de me

- Se o senhor não aceita, é rei no seu; mas, abusar, não deve-de!

E eu abusava, todos os domingos, porque, para ir domingar no das Três Águas, o melhor atalho renteava o terreirinho de frente da do Mangolô, de quem eu zombava já

por prática. Com isso eu me çg mais mandando, e o preto até que se ria, acho que achando mesmo-. em mim.

Para escarmento, o melhor caso-exemplo de Sá Nhá Rita Preta criada era este:. "... e a lavadeira então veio entrando, para ajuntara r suja. De repente, deu um grito

horrorendo e caiu sentada no chão, ga com as duas mãos no pé (lá dela!)... A gente acudiu, mas não viu nad era topada, nem estrepe, nem sapecado de tatarana, nem

ferroada dg; rimbondo, nem bicho-de-pé apostemado, nem mijacão, nem coisa ver... Não tinha cissura nenhuma, mas a mulher não parava de grit qu"é de remédio?! Nem

angu quente, nem fomentação, nem bálsamo emplastro de folha de fumo com azeite-doce, nem arnica, nem alcanf Aí, ela se alembrou de desfeita que tinha feito para

a Cesária velha, e dou um portador às pressas, para pedir perdão. Pois foi o tempo do e xador chegar lá, para a dor sarar, assim de vôo... Porque a Cesária to tirar

fora a agulha do pé do calunga de cera, que tinha feito, aos pq nhos, em sete voltas de meia-noite: "Estou fazendo fulana!... Estou f fulana!...", e depois, com

a agulha: "Estou espetando fulana!... Estou. tando fulana!..."

Uma barbaridade! Até os meninos faziam feitiço, no CalangoO mestre dava muito coque, e batia de régua, também; Deolindi dez anos, inventou a revolta - e ele era

mesmo um gênio, porque o; ma foi original, peça por peça somente seu: "Cada um fecha os o apanha uma folha no bamburral!" Pronto. "Agora, cada um verte dentro da

lata com as folhas!" Feito. "Agora, algum vai esconder a debaixo da cama de Seu Professor!..."

E foi a lata ir para debaixo da cama, e o professor para cima da c da lata, e das folhas, e do resto, muito doente. Quase morreu: só conseguiu porque, não tendo

os garotos sabido escolher um veículq doro, o bizarro composto, ao fim de dia e meio, denunciou-se por si,

Bem, ainda na data do que vai vir, e já eu de chapéu posto, Sá N Preta minha cozinheira, enquanto me costurava um rasgado na ma paletó ("Coso a roupa e não coso

o corpo, coso um molambo que es to..."), recomendou-me que não enjerizasse o Mangolô.

SacaRaNa 361

Bobagens! No céu e na terra a manhã era espaçosa: alto azul, gláceo, emborcado; só na barra sul do horizonte estacionavam cúmulos, esfiapando sorvete de coco; e

a leste subia o sol, crescido, oferecido - um massamelamarelo, com favos brilhantes no meio a mexer.

E eu levava boa matalotagem, na capanga, e também o binóculo. Somente o trambolho da espingarda pesava e empalhava. Mas cumpria com a lista, porque eu não podia

deixar o povo saber que eu entrava no mato, e lá passava o dia inteiro, só para ver uma mudinha de cambuí a medrar da terra de-dentro de um buraco no tronco de um

camboatã; para assistir à carga frontal das formigas-cabaças contra a pelugem farpada e eletrificada de uma tatarana lança-chamas; para namorar o namoro dos guaxes,

pousados nos ramos compridos da aroeira; para saber ao certo se o meu xará joão-de-barro fecharia mesmo a sua olaria, guardando o descanso domingueiro; para apostar

sozinho, no concurso de salto-à-vara entre os gafanhotos verdes e os gafanhões cinzentos; para estudar o treino de concentração do jaburu acromegálico; e para rir-me,

à glória das aranhas-d"água, que vão corre-correndo, pernilongando sobre a casca de água do poço, pensando que aquilo é mesmo chão para se andar em cima.

Cachorro não é meu sócio. E nem! Com o programa, só iria servir para estorvar, puxando-me para o caminho de sua roça. Porque todos eles são mesureiros despóticos:

um cotó paqueiro pensa que no mundo só existem pacas, quando muito também tatus, cotias, capivaras, lontras; o veadeiro não sabe de coisa que não os esguios suaçus

das caatingas; e o perdigueiro desdenha o mundo implume, e mesmo tudo o que não for galináceo, fé do seu faro e gosto. Uma vez, no começo, trouxe comigo um desses

ativistas orelhudos, de nariz destamanho. Não dei nem tiro, e ele estranhava, subindo para mim longos olhares de censura. Desprezou-me, sei; e eu me vexei e quase

cedi. Nunca mais!

Mas, como eu contava ainda há pouco, eram sete horas, e eu ia indo pela estrada, com espingarda, matula, manhã bonita e tudo. Tão gostosos a claridade e o ar - morno

cá fora, fresco nas narinas e feliz lá dentro - que eu ia do mais esquecido, tropica-e-cai levanta-e-sai, e levei um choque, quando gritaram, bem por detrasinho

de mim:

-"Güenta o relance, Izé!...

Estremeci e me voltei, porque, nesta estória, eu também me chamarei José. Mas não era comigo. Era com outro Zé, Zé-Prequeté, que, trinta metros adiante, se equilibrava

em cima dos saltos arqueados de um pangaré

neurastênico.

Justo no momento, o cavalicoque cobreou com o lombo, e, com um jeito de rins e depois um desfeito, deu com o meu homônimo no chão.

as isso não tinha maior importância, porque, mais poucos passos, e eu adotava um trilho afluente, muito batido e de chão limpo, mas estreito, porque vinha numerosa

gente à consulta, mas sempre um só ou dois de

36z

cada vez. A casa do Mangolô ficava logo depois. Havia um relaxam aramado da cerca, bem ao lado da tranqueira de varas, porque o po feria se abaixar e passar entre

os fios; e a tranqueira deixara de te serventia, e os bons-dias trepavam-lhe os paus, neles se enroscando grando em campânulas variegadas, branco e púrpura.

A cafua - taipa e colmo, picumã e pau-a-pique - estava lá; linha de queda da macaúba. Linha teórica, virtual, mas, um dia... P" sombra do coqueiro, mesmo sem ser

na hora das sombras ficarem c das, divide ao meio o sapé do teto; e a árvore cresce um metro por feiticeiros sempre acabam mal; e um dia o pau cai, que não sempre

Hora de missa, não havia pessoa esperando audiência, e João Ma que estava à porta, como de sempre sorriu para mim. Preto; pixairri branco amarelado; banguela; horrendo.

- 6 Mangolô!

- Senh"us"Cristo, Sinhôi

- Pensei que você era uma cabiúna de queimada... - Isso é graça de Sinhô...

- ... Com um balaio de rama de mocó, por cima!... - Ixe!

- Você deve conhecer os mandamentos do negro... Não sabe? meiro: todo negro é cachaceiro..."

- Oi, oi...

- "Segundo: todo negro é vagabundo." - Virgem!

- "Terceiro: todo negro é feiticeiro..."

Aí, espetado em sua dor-de-dentes, ele passou do riso bobo à ca de ódio, resmungou, se encolheu para dentro, como um caramujo cléia, e ainda bateu com a porta.

- Ó Mangolô!: "Negro na festa, pau na testa!..."

E fui, passando perto do chiqueiro - mais uma manga, de tão com seis capadões superacolchoados, cegos de gordura, espapaçadó nhindo, comodistas e educados malissimamente.

Comer, comer, c de tudo: até cobra - pois nem presa de surucucu-tapete não é ca transfixar-lhes os toucinhos. Mas, à meia-noite, não convém à gente aqui porque todo

porco nessa hora vira fera, e até fica querendo sa estraçalhar o dono ou outro qualquer cidadão.

No final do feijoal, a variante se bifurca; tomo o carreador da Dos dois lados, abrem-se os gravatás, como aranhas de espinhentas ras; mas traçam arcos melodiosos

e se enfeitam de flores céu-azul.

Escuto o bater de alpercatas. É o Aurísio Manquitola.

- Você vem vindo do Mangolô, hein Aurísio?

- Tesconjuro!... "Tou vindo mas é da missa. Não gosto de urub gostasse, pegava de anzol, e andava com uma penca debaixo do sova

Sn~^R`"N`~ 363

Aurísio é um mameluco brancarano, cambota, anoso, asmático como um fole velho, e com supersenso de cor e casta.

. Mas você tem medo dele...

-Há-de-o!... Agora, abusar e arrastar mala, não faço. Não faço, porque não paga a pena... De primeiro, quando eu era moço, isso sim!... Já fui gente!, gente. Para

ganhar aposta, já fui, de noite, foras d"hora, em cemitério... Acontecer, nunca me aconteceu nada; mas essas coisas são assim para rapaz. Quando a gente é novo,

gosta de fazer bonito, gosta de se comparecer. Hoje, não: estou percurando é sossego... O senhor é servido em comer uma laranja-da-china?

E Aurísio Manquitola, que está com a capanga cheia delas, tira uma, corta a tampa, passando a fruta no gume da foice, aplica uma pranchada no fundo da sobredita,

"para amolecer e dar o caldo", e chupa, sem cascar.

- Boa coisa é uma foice, hein, Aurísio? Serve para tudo... Agora, para tirar bicho-de-pé, serve não. Ou será que serve?...

- Não caçoa! Boa mesmo!... Eu cá não largo a minha. Arma de fogo viaja a mão da gente longe, mas cada garrucha tem seu nome com sua moda... Faca já é mais melhor,

porque toda faca se chama catarina. Mas, foice?!: é arma de sustância - só faz conta de somar! Para foice não tem nem reza, moço...

- Nem as "sete ave-marfas retornadas"? Nem "São Marcos"?

E comecei a recitar a oração sesga, milagrosa e proibida: - "Em nome de São Marcos e de São Manços, e do Anjo-Mau, seu e meu companheiro..."

- Ui! - Aurísio Manquitola pulou para a beira da estrada, bem para longe de mim, se persignando, e gritou:

- Pára, creio-em-deus-padre! Isso é reza brava, e o senhor não sabe com o que é que está bulindo!... É melhor esquecer as palavras... Não benze pólvora com tição

de fogo! Não brinca de fazer cócega debaixo de saia de mulher séria!...

- Bem, Aurísio... Não sabia que era assim tão grave. Me ensinaram e eu guardei, porque achei engraçado...

- Engraçado?! É é um perigo!... Para fazer bom efeito, tem que ser regada à meia-noite, com um prato-fundo cheio de cachaça e uma faca nova em folha, que a gente

espeta em tábua de mesa...

- Na passagem em que se invoca o nome do caboclo Gonzazabim Índico?

- Não fala, seu moço!... Só por a gente saber de cor, ela já dá muita desordem. O senhor, que é homem estinctado, de alta categoria e alta fé, nào acredita em mão

sem dedos, mas... Diz-se que um homem... Bom, o senhor conheceu o Gestal da Gaita, não conheceu? Figa faço que ele sabia a tal e rezava quando queria... Um dia,

meu compadre Silivério, das Araras,

da sa]a P Compadre Silivério me ontou: galo ant ápassa hora, e nem que

364 JoAO GuiMnnAes Rosn / Ficçno

ele não podia segurar um sono mais explicado, por causa que o par mexia dormindo e falava enrolado, que meu compadre nem pela r entendeu coisa nenhuma.

- Eu sei, Aurísio:

"Da meia-noite p"r"o dia, meu chapéu virou bacia..."

- O senhor vá escutando: o que houve foi que o meu compadre rio, que já estava meio arisco, dormindo com um olho só e outro nã cabra vir para ele, de faca rompente,

rosnando conversa em língua ja... Foi o tempo de meu compadre Silivério destorcer da caxerengue pular fora do jirau: ainda viu o outro subindo parede arriba, de

pé Aí, o homem acordou, quando bateu com a cabeça nos caibros, p que, e despencou de lá, estrondando... Fez um galo na creta, por mas negou e negou que tinha subido

em parede, perguntando ao compadre se ele não era que não sofria de pesadelo... Ara! ara! Pa gente sonhar nesse esquerdo, ah eu fora de lá!...

- Medonho, Aurísio!

- Pois não foi?!... E o Tião Tranjão? Aquele meio leso, groteiro d" la-a-Boca, que vem vender peixe-de-rio no arraial, em véspera de se santa... Está lembrado? Ele

andou morando de-amigado com uma m zinha do Timbó, criatura feia e sem graça em si como nenhuma... Pq é que achou gente ainda mais boba do que o Tião, para querer

gostar na imoralidade?! O Cypriano, aquele carapina velho velhoso... Os d meçaram a desonrar o coió, e por amor de ficar sozinhos no bem inventaram um embondo -

eu acho que foram eles - que tinha Tião quem tinha ofendido o Filipe Turco, que tinha levado umas p das no escuro sem saber da mão de quem... O pobre do Tião não

sabi da falta de pouca-vergonha da mulher, nem de paulada em turco, n coisa nenhuma desta vida: só sabe até hoje é pescar, e nem isso ele capaz de fazer direito

por si sozinho: é homem só de cercar pari no estreito do rio, armar jiqui na saída de poço, e soltar catueira de oità na lagoa, para biscate de pegar os peixes mais

tolos de todos...

- Dou dado!

-É mesmo. E aí foi que o Gestal da Gaita, que é sem preceito e braz, mas tem bom coração, vendo que o coitado do Tião estava m filho sem pai, ficou com dó e quis

ensinar a reza, para ajuda de ele tér" ma valença nos apertos. Pois foi um custo. O Tião trocava as palavras; va, atrapalhava a brasa; nome entrava por aqui e saía

por aqui; tossia repetia.

... Então, primeiro, o Gestal da Gaita, que nesse dia estava de ven ter paciência, disse assim:

365

SA~pµpNA

. "Já sei como é que a gente põe escola para papagaio velho: bebe este copo de cachaça, todo!... Pronto. Vamos de-banda..." - E foi cantando a lição a eito, começada

do começo. Mas melhor não foi, com a burrice do Tião.

,. Aí o Gestal da Gaita assoou o nariz e xingou a mãe de alguém: - "Pois então, eu, só por fazer uma caridade, estou pelejando para te escorar em cima dos dois pés,

e tu ou tem cera nos ouvidos ou essa cabeça é de galinha?!... Ao desta viagem, ou tu guarda o milho no paiol ou eu te soletro uma coça mestra, com sola de anta;

e aí tu aprende ou fala por que é que não aprende!"

... E foi mesmo: por fim o Gestal da Gaita deu ar ao chicote, com mão dona, e o pobre do Tião Tranjão corria no contrapasso, seguro pela fralda da camisa, gritando

mesa com teresa e querendo até enfiar a cabeça em cano de calça dos passantes... E foi o que prestou para clarear a idéia lá dele, paz que ele aí decorou tudo, num

átimo, tintim por tintim!...

... E deu na conta: na hora em que o soldado chegou, Tião Tranjão, que sempre tinha tido um medo magro dos praças, foi perguntando, de pé atrás e fàzendo ventania

com o porrete:

- "Com ordem de quem?!"...

- "Com ordem de autoridade de seu Sebastião do Adriano, subdelegado de polícia lá no arraial e aqui também!"

- "Já sei, já sei! Volta p"ra trás! Volta p"ra trás, que eu vou sozinho, e é amanhã que eu vou. Falando manso, eu entendo; mas, por mal, vocês não me levam, e com

soldado apertado é que eu não ando mesmo não!..."

Coisa que ele tinha quebrado o chapéu-de-palha na testa, e cuspiu para uma banda, porque estava mesmo dando para maludo, com as farrombas todas, mascarado de valentão.

Mas o soldado logo viu que o assunto melhor era encabrestar e puxar o bobo pela ponta da bobice mesma. E falou assim:

- "Seu Tião Tranjão, o senhor tem sua razão particular, toda, porque é homem de brio; mas eu também tenho a minha, porque estou cumprindo dever de lei. Mas, onde

está o homem, não morre homem!... E gente valente como nós dois devemos de ser amigos!... O mais certo é a gente ir pedir opinião ao seu Antonino, que é seu patrão

e seu padrinho, e o que ele aconselhar nós vamos fazer."

-. Tião Tranjão ficou batendo com o pé na poeira, até que encheu e respondeu:

- "Pois se o senhor acha mesmo que eu sou par p"ra outro, vamos lá. ~ qUe Padrinho Antonino disser,"ta dissido!..."

-. Aí seu Antonino falou na fé do falado, pelo direito, e mandou o Tião se entregar preso... - Aurísio interrompe a história, para colher e mastigar uma folha cheirã

da erva-cidreira, que sobe em tufos na beira da estrada. ~~ Para desinfetar! - diz.) Depois continua:

366 Jono Gu~MnxAes Rosn / FicçAo

- Diz-se que, lá na cadeia do arraial, os soldados fizeram gr se que, não! me arrependo: eles fazem mesmo, eu sei, porque t estive lá, sem ter culpa de crime nenhum,

bem entendido; e eleá", em que eu cheguei, foram me perguntando: - "Você matou? matou não? Que pena!... Se tivesse matado, ia ficar morando aq gente!..."

... Bom, eles trancaram o Tião. Decerto qúe eles bateram Tião. Mas, e depois? seu moço?!...

... Ele deve de ter rezado a reza ã meia-noite, da feição que o di

o senhor não acha? Pois do contrário, me conte: quem foi que de preso, das grades, e carregou o cujo de volta para casa-quatro lé que, de-madrugadinha, estava ele

chegando lá, e depois na casa do entrando guerreiro e fazendo o pau desdar, na mulher, no carap trastes, nas panelas, em tudo quanto há...?! Entrou até embaixo dé

para quebrar a vasilha!... E: olhe aqui: quando ele tinha chegado,., uma alavanca para abrir a porta, com cautela de economia, por nãa gar... Pois, no fim da festa,

acabou desmanchando a casa quaséao que era de recheio...

... Foi precisão de umas dez pessoas, para sujeitar o Tião, é se a não tonteasse o pobre... Bem, seu moço, se o senhor vai torar déss"á de lá, nós temos de se desapartar,

que o meu rumo é este aqui. B"d outro dia. Deus adiante, paz na guia!...

E o Aurísio Manquitola, se entranhando no mata-pasto e na m ta, some.

O meu caminho desce, contornando as moitas de assa-peixe e de-boi - esplêndido, com flores de imensas pétalas brancas, e fó sutas, refulgindo. No chão, o joá-bravo

defende, com excesso de e seus reles amarelos frutos. E, de vez em quando, há uma sumàu puberdade, arvoreta de esteio fino e cobertura convexa, pintalgada res rubras,

como um pára-sol de praia.

Entro na capoeira baixa... Saio do capoeirão alto. E acolá, em p compactas, formando arruamentos, arborescem os bambus.

Os bambus! Belos, como um mar suspenso, ondulado e parado: até nas folhas lanceoladas, nas espiguetas peludas, nas oblongas Muito poéticos e muito asiáticos, rumorejantes

aos vôos do venfd,

Bem perto que está o bosquete, e eu me entorto de curiosidadér ser a última etapa: apenas na hora de ir-me embora é que passarei os meus bambus. Meus? Nossos...

Porque eles são a base de uma su ainda incompleta.

Foi quase logo que eu cheguei no Calango-Frito, foi logo qu cheguei aos bambus. Os grandes colmos jaldes, envernizados, llil pediam autógrafo; e alguém já gravara,

a canivete ou ponta dé fa` enormes, enchendo um entrenó:

367

"Teus olho tão singular Dessas trancinhas tão preta Qero morei eim teus braço Ai fermosa marieta".

E eu que vinha vivendo o visto mas vivando estrelas, e tinha um lápis na algibeira, escrevi também, logo abaixo:

Saigon

Assarhaddon Assurbanipal Teglattphalasar, Salmanassar

Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor Belsazar

Sanekherib.

E era para mim um poema esse rol de reis leoninos, agora despojados da vontade sanhuda e só representados na poesia. Não pelos cilindros de ouro e pedras, postos

sobre as reais comas riçadas, nem pelas alargadas barbas, entremeadas de fios de ouro. Só, só por causa dos nomes.

Sim, que, à parte o sentido prisco, valia o ileso gume do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fora se jamais usado. Porque, diante

de um gravatá, selva moldada em jarro jônico, dizer-se apenas drimirim ou amormeuzinho é justo; e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima

cinqüenta metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo - 6 colossalidade! - na direção da altura?

E não é sem assim que as palavras têm canto e plumagem. E que o capiauzinho analfabeto Matutino Solferino Roberto da Silva existe, e, quando chega na bitácula, impõe:

- "Me dá dez "tões de biscoito de talxóts!" - porque deseja mercadoria fina e pensa que "caixote" pelo jeitão plebeu deve ser termo deturpado. E que a gíria pede

sempre roupa nova e escova. E que o meu parceiro Josué Cornetas conseguiu ampliar um tanto os limites mentais de um sujeito só bi-dimensional, por meio de ensinar-lhe

estes nornes: intimismo, paralaxe, palimpsesto sinclinal, palingenesia, prosopopese, amnemosínia, subliminal. E que a população do Calango-Frito não se edifica

com os sermões do novel pároco Padre Geraldo ("Ara, todo Omundo entende...") e clama saudades das lengas arengas do defunto Padre Ierônimo, " ue tinham muito mais

latim"... E que a frase "Sub lege libertasr proferida em comício de cidade grande, pôde abafar um motim potente,iminente. E que o menino Francisquinho levou susto

e chorou, um

com medo da toada "patranha" - que ele repetira, alto, quinze ou aze vezes, por brincadeira boba, e, pois, se desusara por esse uso e voltara

368 JOÃO GUIMARAES ROSA / FICÇeZO

a ser selvagem. E que o comando "Abre-te Sésamo etc" fazia c escancarasse a porta da gruta-cofre... E que, como ia contando, bambu.

Até aí, tudo em paz. Deu de ser, porém, que, no domingo

quando retornei ao bambual, vi que o outro (Quem será? -= que o outro poeta antes de mim lá voltara. Cataplasma! E ga sob o meu poema dos velhos reis de alabastro:

Língua de turco rabatacho dos infernos.

Mas também aceitara o floral desafio, já usando certeza e lá igual, dessa feita:

O trovador se esmerara. Ou seria outro, um terceiro? Pouca mim, fica sendo um só: "Quem-Será". E "Quem -Será" ficou sé" melhor amigo, aqui no Calango-Frito. Mas,

não tive dúvida; ó- um menino dador de brinquedos; e fiz:

Tempo de festa no céu, Deus pintor o surucuá: com tinta azul e vermelha, verde, cinzenta e lilá. Porta de céu não se fecha: surucuá fugiu pra cá.

E mais, por haver lugar:

Tem o teu e tem o meu tem canhota e tem direita, tem a terra e tem o céu - escolha deve ser feita!

Eu mesmo não gostei. Mas a minha poesia viajara muito e á bem depois do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Isso bou; escrevi:

Ou a perfeição, ou a pândega!

E esperei. No domingo imediato, encontrei, no bambu c no primeiro não mais havia internódio útil, a matéria-prima dé

Chegando na encruzilhada eu tive de resolver.

para a esquerda fui, contigo. Coração soube escolher!

p tema se esgotara, com derrota minha e o triunfo de "Quem-Será". Me vinguei, lapisando outra qualquer quadra, começo de outro assunto. E nesse caminho estamos.

Não mais avisto os bambus. Agora apanho outra vez a estrada-mestra, que, enquanto isto tudo, contornou o saco-de-serra, esbanjahdo chão numa volta quilometrosa,

somente para aproveitar a ponte grande e para passar no pé da porta da casa da fazenda do Seu Coronel Modestino Siqueira. Aqui ela é largo e longo socalco, talhado

em tabatinga. E, do lado da encosta e do lado do vale, temos a mata: marmelinho, canela, jacarandá, jequitibá-rosa; a barriguda, armada de espinhos, de copa redonda;

a mamica-de-porca - também de coluna bojuda, com outros espinhos; o sangue-de-andrade, que é "pau dereito"; o esqueleto de um deixa-falar, sem uma folha, guardada

apenas a grade resseca; e os jacarés novos, absurdos, de folhinhas finas, em espiguilha, que nem folhas de sensitiva, enquanto a casca se eriça em tarjas, cristas,

listéis e caneluras, como a crusta do dorso de um caimão.

E, nas ramas, rindo, cheirosos epidéndros, com longos labelos marchetados de cores, com pétalas desconformes, franzidas, todas inimigas, encrespadas, torturadas,

que lembram bichos do mar róseo-maculados, e roxos, e ambarinos - ou máscaras careteantes, esticando línguas de ametista.

Mas, as imbaúbas! As queridas imbaúbas jovens, que são toda uma paisagem!... Depuradas, esguias, femininas, sempre suportando o cipó-braçadeira, que lhes galga o

corpo com espirais constritas. De perto, na tectura sóbria - só três ou quatro esgalhos - as folhas são estrelas verdes, mãos verdes espalmadas; mais lorige, levantam-se

das grotas, como chaminés alvacentas; longe-longe, porém, pelo morro, estão moças cor de madrugada, encantadas, presas, no labirinto do mato.

Pelas frinchas, entre festões e franças, descortino, lá embaixo, as águas

bo dóg córregos, enquantoaenremete or fino~da dauda na floresta. Mam, ao redor, há o brejo, imensa esponja onde tudo se confunde: trabéculas de canais, pontilhado

de poços, e uma finlândia de lagoazinhas sem ~Pa.

E as superficies cintilam, com raros jogos de espelho, com raios de sol, ~Phrando asterismos. E, nas ilhas, penínsulas, istmos e cabos, multicres~ taboqueiras, tabuas,

taquaris, taquaras, taquariúbas, taquaratingas ,~quaruçus. Outras imbaúbas, mui tupis. E o buritizal: renques, aléias,

369

Na viola do urubu

o sapo chegou no céu Quando pego na viola o céu fica sendo meu.

37o Jono GorMnxnes Rosn / Frcçno C

arruados de buritis, que avançam pelo atoleiro, frondosos, flexuoso nando flabelos, espontando espiques; de todas as alturas e de todas des, famílias inteiras, muito

unidas: buritis velhuscos, de palmas c cionadas, buritis-senhoras, e, tocando ventarolas, buritis-meninos.

Agora, outro trilho, e desço, pisando a humilde guaxima. Duas adiantadas, sentinelas: um cangalheiro, de copa trapezoidal, retaça cajazeira que oscila os brônquios

verdes no alto das forquilhas supe Transponho um tracto de pântano. Conheço três sendas dedalin atravessam o tremedal, ora em lingüetas no chão mole, ora em lar

ças aterradas. Escolhi a trilha B.

Porque não é a esmo que se vem fazer uma visita: aqui, onde cada tem indicação e nome, conforme o tempo que faz e o estado de crente.

Hoje, vamos, primeiro, às Rendas da Yara, para escutar de pró sete rumores do riacho, que desliza em ebulição. Perto, no fresco dana sombra da selva, no úmido dos

minadouros que cantam, dorme avencas de folhagem minuciosa: a avenca-dourada, recurvando em ao espique as folhas-centopéias; e o avencão-peludo, que jamais se mesmo

sob os respingos. Muitos musgos cloríneos. A delicadeza mambaias. E os velhos samambaiaçus.

Aqui, convém: meditar sobre as belezas dá castidade, reconhecer a cariedade dos gozos da matéria, e ler a história dos Cavaleiros da Mes donda e da mágica espada

Excalibur. Mas não posso demorar. A frial do recanto é de gripar um cristão facilmente, e também paira no ar situa poeira de lapidação de esmeraldas, que deve ser

asmatizante.

Agora vamos retroceder, para as três clareiras, com suas respecti vores tutelares; porque, em cada aberta do mato, há uma dona desta creio mesmo que é por falta

de sua licença que os outros paus ali n sam medrar.

Primeiro, o "Venusberg" - onde impera a perpendicularidade siva de um jequitibá-vermelho, empenujado de liquens e roliço de que vai liso até vinte metros de altitude,

para então reunir, em r melhor que em guarda-chuva, os seu quadrangulares ramos. Tuda manda pecar e peca - desde a cigana-do-mato e a mucuna, cipós nosos, de flores

poliandras, até os cogumelos cinzentos, de aspiraçõ terrenas, e a erótica catuaba, cujas folhas, por mais amarrotadas q jam, sempre voltam, bruscas, a se retesar.

Vou indo, vou indo, porq nho pressa, mas ainda hei de mandar levantar aqui uma estatueta. altar a Pã.

Um claro mais vasto, presidido pelo monumento perfumoso da de-vaqueiro, faraônica, que mantém à distância cinco cambarás magros escravos, obcônicos, e outro cambará,

maior, que também afinando de cima para baixo. Puro Egito. Passo adiante.

SA~pRpNA

371

Agora, sim! Chegamos ao santo-dos-santos das Três-Águas. A suinã, grossa, com poucos espinhos, marca o meio da clareira. Muito mel, muita bojuí, jati, uruçu, e toda

raça de abelhas e vespas, esvoaçando; e formigas, muitas formigas marinhando tronco acima. A sombra é farta. E há os ramos, que trepam por outros ramos. E as flores

rubras, em cachos extremos -vermelhíssimas, ofuscantes, queimando os olhos, escaldantes de vermelhas, cor de guelras de traíra, de sangue de ave, de boca e bâton.

Todos aqui são bons ou maus, mas tão estáveis e não-humanos, tão repousantes! Mesmo o cipó-quebrador, que aperta e faz estalarem- os galhos de uma árvore anônima;

mesmo o imbê-de-folha-rota, que vai pelas altas ramadas, rastilhando de copa em copa, por léguas, levando suas folhas perfuradas, picotadas, e sempre desprendendo

raízes que irrompem de junto às folhas e descem como fios de aranha para segurar outros troncos ou afundar no chão. Mas a grande eritrina, além de bela, calma e

não-humana, é boa, mui bondosa - com ninhos e cores, açúcares e flores, e cantos e amores - e é uma deusa, portanto.

-Uf! Aqui, posso descansar.

Tiro o paletó e me recosto na coraleira. Estou entre o começo do mato e um braço da lagoa, onde, além do retrato invertido de todas as plantas tomando um banho verde

no fundo, já há muita movimentação. A face da lagoa em que bate o sol, toda esfarinhenta, com uma dança de pétalas d"água, vê-se que vem avançando para a outra,

a da sombra. E a lagoa parece dobrada em duas, e o diedro é perfeito.

- Chuá...

É a amerissagem de um pato bravo, que deve ter vindo de longe: tatalou e caiu, com onda espirrada e fragor de entrudo. O marrequinho de gravata é muito mais gentil:

coincha no alto, escolhe o ponto, e aquatiza meigamente. Agora singra, rápido, puxando um enfivelamento de círculos e um triângulo. Bordejando, desvia-se para não

abalroar as cairinas pesadas, que vão ondulando, de peito, e fazendo chapeleta grossa e esteira de espuma, como a mareta de um peixe. O marrequinho pousa tão próprio,

aninhado e rodado, que a lagoa é que parece uma palma de mão, lisa e maternal, a conduzi-lo. Orabo é leme ótimo: só com um jeito lateral, e o bichinho trunca a

rota. Pára. Balou a. Sacode a cabeça n"água. Espicha um pezinho, para alimpar o pescoço. E vai juntar-se aos outros marrecos, que chegaram primeiro e derivam à bolina,

ao gosto do vaivém da água, redondos, tersos, com uma pata preta sob a asa e a cabeça aninhada nas plumas, bico para trás cada qual.

lá os irerês descem primeiro na margem, e ficam algum tempo no meio dos caniços. Devem ter ovos lá. Os do frango-d"água eu sei onde estão, muito bem ocultos, entre

as tabuas.

As narcejas, há tempo que vieram, e se foram. Os paturis ainda estão por chegar. Vou esperá-los. Também pode ser que apareça alguma garça

37z Jono GUIMARÃES Rosa / Ftcçno C

ou um jaburu, cegonhão seu compadre, ou que volte a vir aquele verde-mar com pintas brancas, do qual ninguém sabe o nome por

Agora, outra desconhecida, verde-escura esta, parecendo uma andorinha. Vem sempre. Tem vôo largo, mas é má nadadora. E in tável: toma seu banho de lagoa, vai lá

ãdiante no brejo, e ainda tenta imersão no riacho.

E aquele? Ah, é o joão-grande. Não o tinha visto. Tão quieto... veznha - i-tchungs! - tchungou uma piabinha. E daqui a pouco pegar a descer e a subir o bico, uma

porção de vezes, veloz como a de uma máquina de costura, liquidando o cardume inteiro de piabas

Corre o tempo.

A lagoa está toda florida e nevada de penugens usadas que os põem fora. E lá está o joão-grande, contemplativo, ao modo em q aqui estou, sob a minha corticeira de

flores de crista de galo e coral. S eu acendo outro cigarro, por causa dos mil mosquitos, que são corja d mônios mirins.

Do mais do povinho miúdo, por enquanto, apenas o eterno corte saúvas, que vão sob as folhas secas, levando bandeiras de pedaci folhas verdes, e já resolveram todos

os problemas do trânsito. Ligeira, teira, zanza também, de vez em quando, uma dessas formigas pretas: doras amarimbondadas, que dão ferroadas de doer três gritos.

Mas< está outra, pior do que a preta corredora: esta formiga-onça raja vem subindo pela minha polaina. Está com fome. Quer das provisões... ço-a e ponho-lhe diante

um grumo de geléia e alguns grãos de farinh quis. Fugiu. Quem vai comer do meu farnel é todo o clã das quem-q esses trenzinhos serelepes, que têm ali perto a boca

do seu form Uma por uma, se atrevem; largam os glóbulos de terra, trocam sin antenas, circulam adoidadas e voltam para a cratera vermelha. Vou lhar no chão mais

comida, pois elas são sempre simpáticas: ora um que brinca, ora uma velhinha a rezar.

Como será o deus das formigas? Suponho-o terrível. Terrível co que o louvam... E isto é também com o louva-a-deus, que, acolá, eret vergar a folha do junquilho.

Ele está sempre rezando, rezando de postas, com punhais cruzados. Mas, no domingo passado, este mes um qualquer louva-a-deus outro, comeu o companheiro em oito justos,

medidos no relógio - deixou de lado apenas as rijas pernas-d serrilhadas da vítima, e o seu respectivo colete... Foi-se.

E assim também o tempo foi indo - nada de novo no rabo da la aqui em terra firme muito menos - e chegou um momento sonolent que me encostei para domir.

Fiquei meio deitado, de lado. Passou ainda uma borboleta de pa ilustradas, oscilando no vôo puladinho e entrecortado das borboletas; se sumiu, logo, na orla das

tarumãs prosternantes. Então, eu só podia

Snc^~~A 373

chão, os tufos de grama e o sem-sol dos galhos. Mas a brisa arageava, movendo mesmo aqui embaixo as carapinhas dos capins e as mãos de sombra. E o mulungu rei derribava

flores suas na relva, como se atirám fichas ao feltro numa mesa de jogo.

Paz.

g, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau - um ponto, um grão, um besouro, um anu, um

urubu, um golpe de noite... E escureceu tudo.

Nem houve a qualquer cóisa que de regra se conserva sob as pálpebras, quando uma pessoa fecha os _olhos: poento obumbramento róseo, de dia; tênue tecido alaranjado,

passando em fundo preto, de noite, à luz. Mesmo no escuro de um foco que se apaga, remanescem seus vestígios, uma vaga via-láctea a escorrer; mas, no meu caso, nada

havia. Era a treva, pesando e comprimindo, absoluta. Como se eu estivesse preso no compacto de uma montanha, ou se muralha de fuligem prolongasse o meu corpo. Pior

do que uma câmara-escura. Ainda pior do que o último salão de uma gruta, com os archotes mortos.

Devo ter perdido mais de um minuto, estuporado. Soergui-me. Tonteei. Apalpei o chão. Passei os dedos pelos olhos; repuxei a pele - para cima, para baixo, nas comissuras

- e nada! Então, pensei em um eclipse totalitário, em cataclismos, no fim do mundo.

Continuava, porém, a débulha de trilos dos pássaros: o patativo, cantando clássico na borda da mata; mais longe, as pombas cinzentas, guaiando soluços; e, aqui ao

lado, um araçari, que não musica: ensaia e reensaia discursos irônicos, que vai taquigrafando com esmero, de ponta de bico na casca da árvore, o pica-pau-chanchã.

E esse eu estava adivinhando: rubroverde, vertical, topetudo, grimpando pelo tronco da imbaúba, escorandose na ponta do rabo também. Taquigrafa, sim, mas, para tempo

não perder, vai comendo outrossim as formiguinhas tarus, que saem dos entrenós da imbaúba, aturdidas pelo rataplã.

E, pois, se todos continuavam trabalhando, bichinho nenhum tivera o seu susto. Portanto... Estaria eu... Cego?!... Assim de súbito, sem dor, sem causa, sem préviós

sinais?... "

Bem, até há pouco, estava uma pedra solta ali. Tateio. Ei-la. Bato com a mão, à procura do tronco da minha coraleira. Sim: a ponta da lagoa fica mesmo à minha frente.

Tangi a pedra, é logo senti que pusera no ato notável excesso de força muscular. O projétil bateu musical na água, e deve ter caído bem no meio da flotilha de marrecos,

que grasnaram: - Quaquaracuac! O casal de patos nada disse, pois a voz das ipecas é só um sopro. Mas espadanaram, ruflaram e voaram embora.

Então, eu compreendi que á tragédia era negócio meu particular, e que,

374 Jono GUIMARÃES Rosn / Fx:çno CoM

no meio de tantos olhos, só os meus tinham cegado; e, pois, só para m coisas estavam pretas. Horror!...

Não é sonho, não é; pesadelo não pode ser. Mas, quem diz que nãp coisa passageira, e que daqui a instante eu não irei tornar a enxergar? vado seja Deus, mais a minha

boa Santa Luzia, que cuida dos olhos da te!... "Santa Luzia passou por aqui, com o seu cavalinho comendo pim!..." Santa Luzia passou por... Não, não passa coisa

nenhuma. E mesmo é envolvido e acuado pela má treva, por um escurão de transm do, e sem atinar com o que fazer. Maldita hora! Mais momento, e vou rar, me arrepelando,

gritando e rolando no chão.

Mas, calma... calma... Um minuto só, por esforço. Esperar um po sem nervoso, que para tudo há solução. E, com duas engatinhadas, b maneira de encostar-me à árvore:

cobrir bem a retaguarda, primeira a organizar.

Tiro o relógio. Só o tique-taque, claro. Experimento um cigarropresta, não tem gosto, porque não posso ver a fumaça. Espera, há alg coisa... Passos? Não. Vozes?

Nem. Alguma coisa é; sinto. Mas longe, l ge... O coração está-me batendo forte. Chamado de ameaça, vaga na ma, mas sérta: perigo premente. Capto-o. Sinto-o direto,

pessoal. Vert1 mato? Vem do sul. Todo o sul é o perigo. Abraço-me com a suinã. O cq ção ribomba. Quero correr.

Não adianta. Longe, no sul. Que será? "Quem será?"... É meu amig poeta. Os bambus. Os reis, os velhos reis assírio-caldaicos, belos barba como reis de baralho, que

gostavam de vazar os olhos de milhares de ve dos cativos? São meros mansos fantasmas, agora; são meus. Mas, ent qual será a realidade, perigosa, no sul? Não, não

é perigosa. É amiga. O chamado. Uma ordem. Enérgica e aliada, profunda, aconselhando r tência:

- "Güenta o relance, Izé!

Respiro. Dilato-me. E grito:

- E agüento mesmo!...

Eco não houve, porque a minha clareira tem boa acústica. Mas o t combativo da minha voz derramou em mim nova coragem. E, imedi mente, abri a tomar ar fundo, movendo

as costelas todas, sem pedir lice a ninguém. Vamos ver!

Vamos ver o faz-não-faz. Estou aqui num lugar aonde ninguém costuma vir. Se tento regressar tateando e tropeçando, posso cair fácil brejo e atolar-me até dois ou

cinco palmos para cima do couro-cabelu posso pisar perto de uma jararacuçu matadora; posso entranhar-me mais pelo esconso, e ficar perdido de todo. Onças de-verdade

não há aqui; mas um maracajá faminto, ou uma maracajá mãe, notando-me ass mal-seguro, não darão dois prazos para me extinguir. Mau! Só agora é vejo o ruim de se

estar no mato sem cachorro.

375

SpGARAV~

De bom aviso é puxar a espingarda mais para perto de mim. Bem. E se eu der uns tiros? Inútil. Quem ouvir pensará que estou atirando aos nhambus, claro. Pois não

vim caçar?... Agora, se eu não voltar a casa à hora normal, haverá alarme, virá gente à minha procura, acabarão por encontrar

17e, É isto. Devo esperar, quieto.

Tempo assim estive, que deve ter sido longo. Ouvindo. Passara toda a minha atenção para os ouvidos. E então descobri que me era possível distinguir o guincho do

paturi do coincho do ariri, e até dissociar as corridas das preás dos pulos das cotias, todas brincando nas folhas secas:

Escuto, tão longe, tão bem, que consigo perceber o pio labial do joãopinto - que se empoleira sempre na sucupira grande. Agora, uma galinhola cloqueou, mais perto

de mim, como uma franga no primeiro choco. Deve ter assestado o rostro por entre os juncos. Mas o joão-pinto, no posto, continua a dar o seu assovio de açúcar.

Tão claro e inteiro me falava o mundo, que, por um momento, pensei em poder sair dali, orientando-me pela escuta. Mas, mal que não sendo fixos os passarinhos, como

pontos-de-referência prestavam muito pouco. E, além disso, os sóns aumentavam, multiplicavam-se, chegando a assustar. Jamais tivera eu notícia de tanto silvo e chilro,

e o mato cochichava, cheio de palavras polacas e de mil bichinhos tocando viola no oco do pau.

E - nisso, nisso - mexeu-se, sem meu querer, algum rodei, algum botão em minha cabeça, e, voltei a apanhar a emissora da ameaça. Perigo! Grande perigo! Não devo,

não posso ficar parado aqui. Tenho, já, já, de correr, de me atirar pelo mato, seja como for!

Vamos! E por que não? Eu conheço o meu mato, não conheço? Seus pontos, seus troncos, cantos e recantos, e suas benditas árvores todas - como as palmas das minhas

mãos. A ele vim por querer, é certo, mas agora vou precisar dos meus direitos, para defender o barato, e posso falar fala cheia, fora de devaneios, evasões, lembranças.

Mesmo sem os olhos. Vamos!

Ando. Ando. Será que andei? Uma cigarra sissibila, para dizer que estou cômico. Fez-me bem. Mas, onde estarei eu, aonde foi que vim parar? Pior, pior, perdi o amparo

da grande suinã. Perdi os croticos das criações de pena da lagoa. E aqui? Este lugar é caminho de vento, e dos rumores que o vento traz: o sabrasil, à brisa, atrita

as rendilhas das grimpas; as frondes do cangalheiro farfalham; as palmas da palmeira-leque afiam em papelada; e - pá-pá-pá-pá - o pau-bate-caixa, golpeado nas folhas

elásticas, funciona eloqüente.

Tomo nota: está soprando do sudoeste; mas, mal vale: daqui a um nadinha, mudará, sem explicar a razão.

E agora? Como chegar até à estrada? Quem sabe: se eu gritar, talvez alguém me escute, por milagre que seja. Grito. Grito. Grito. Nada. Que pos-

376 Jono Goinrtnanrs Rosn / Ficçno Cp

so? Nada. E daí? Por mim mesmo, não sou homem para acertar co mo. Tomo fôlego. Rezo. Me enfezo. Lembro-me de "Quem-Será". $,

"para a esquerda fui, contigo. Coração soube escolher."

Sim. Mas, e as aves, e os grilos? Os pombos de arribada, trans regiões estranhas, e os patos-do-mato, de lagoa em lagoa, e os m fêmeas de uma porção de amorosos,

solitários bichinhos, todos se tando tão bem, sem mapas, quando estão em seca e precisam de ir ca?... O instinto. Posso experimentar. Posso. Vou experimentar, ir.

tomar direção, sem saber do caminho. Pé por pé, pé por si. Deixarer caminho me escolha. Vamos!

Vamos. Os primeiros passos são os piores. Mãos esticadas para a: em escudo e reconhecimento. Não. Pé por pé, pé por si. Um cipó mg rosto, com mão de homem. Pulo

para trás, pulso um murro no Caio de nariz na serapilheira. Um trem qualquer tombou da cap O binóculo. Limpo-me das folhinhas secas. Para quê? Rio-me, de Sigo. Pé

por pé, pé por si. A folhagem vai-se espessando. Há, de rep gorjeio de um bicudo. Meus olhos o ouvem, também: cordel suspe que se vão dando laços. Uma coisa me arranca,

de puxão no ombro. vem-cá, ou um tripa-de-porco. À estrada! Pé por pé, pé por si. Uma c se esfrega e perfura. Cicia duas espirais doiradas. Ai! Uma testada em co.

O choque foi rijo. Mas, a árvore? Casca enrugada, escamosa... U de-morcego? Um angicp? Pé por pé... Vem alguém atrás de mim, pessoa chocalhando as folhas? Paro.

Não é ninguém. Vamos. Outra radela, agora contra um tamboril, garanto. Cipós espinhentos, cipós nas, cipós cobras, cipós chicotes, cipós braços humanos, cipós serpepy

- uma cordoalha que não se acaba mais. Pé por p... Outra árvore

me vê, ai! É a colher-de-vaqueiro: este aroma, estes ramos densos, esta ca enverrugada de resinas - sei, como se estivesse vendo vista a sua. são de flores rosadas.

Vamos. Cheiro de musgo. Cheiro de húmus. de água podre. Um largo, sem obstáculos. Lama no chão. Pés no fo novo, as árvores. O reco-reco de um roedor qualquer. Estou

indo ligeiro. Um canto arapongado, desconhecido: cai de muito alto, pe prumo. De metal. Canso-me. Vou. Pé por pé, pé por si... Peporpe, si... Pepp or pepp, epp or

see... Pepe orpepe, heppe Orcy...

Mas, estremeço, praguejo, me horrorizo. O alhum! O odor doce-ardido, do pau-d"alho! Reconheço o tronco. Deve haver uma nova, aqui ao lado. Está. Acerto com as folhas:

esmagadas nos dedos, ram a manga. É ela, a aroeira. Sei desta aberta fria: tem sido o ponto; mo das minhas tentativas de penetração; além daqui, nunca me ave,}

nos passeios de mato adentro. "

$.4GA~NA 377

Então, e por caminhos tantas vezes trilhados, o instinto soube guiar-me apenas na direção pior - para os fundões da mata, cheia de paludes de águas tapadas e de

alçapões do barro comedor de pesos?!...

Ferido, moído, contuso de pancadas e picado de espinhos, aqui estou, ainda mais longe do meu destino, mais desamparado que nunca. Angustiome, e chego a pique de

chorar alto. Deus de todos! Oh... Diabos e diabos... Oh...

Nisso calei-me.

Mas aí, outra vez, chegou a ordem, o brado companheiro:

- "Güenta o relance, Izé"...

E, justo, não sei por que artes e partes, Aurísio Manquitola, um longínquo Aurísio Manquitola, brandindo enorme foice, gritou também:

- "Tesconjuro! Tesconjuro!"...

Dá desordem... Dá desordem... E, pronto, sem pensar, entrei a bramir a reza-brava de São Marcos. Minha voz mudou de som, lembro-me, ao proferir as palavras, as blasfêmias,

que eu sabia de cor. Subiu-me uma vontade louca de derrubar, de esmagar, destruir... E então foi só a doideira e a zoeira, unidas a um pavor crescente. Corri.

Às vezes, eu sabia que estava correndo. Às vezes, parava - e o meu ofego me parecia o arquejar de uma grande fera, que houvesse estacado ao lado de mim.

E horror estranho riçava-me pele e pêlos. A ameaça, o perigo, eu os apalpava, quase. Havia olhos maus, me espiando. Árvores saindo de detrás de outras árvores e

tomando-me a dianteira. E eu corria.

Mas, num momento, cessou o mato. Um cavaleiro galopou, acolá, e o tinir das ferraduras nas pedras foi um tom de alívio.

Grunhos de porcos. Os porcos do João Mangolô. João Mangolô!

- Apanha, diabo! - esmurrei o ar, com formidável intenção.

Porque a ameaça vinha da casa do Mangolô. Minha fúria me empurrava para a casa do Mangolô. Eu queria, precisava de exterminar o João Mangolô!...

Pulei, sem que tivesse necessidade de ver o caminho. Dei, esbarrei no portal. Entrei. Mulheres consulentes havia, e gritaram. E ouvi logo o feiticeiro, que gemeu,

choramingando:

- Espera, pelo amor de Deus, Sinhô! Não me mata!

Fui em cima da voz. Ele correu. Rolamos juntos, para o fundo da chouPa°a- Mas, quando eu já o ia esganando, clareou tudo, de chofre. Luz! Luz tào forte, que cabeceei,

e afrouxei a pegada.

Precipitei-me, porém, para ver o que o negro queria esconder atrás do l~rau; um boneco, bruxa de pano, espécie de ex-voto, grosseiro mani

PançO.

Conte direito o que você fez, demônio! - gritei, aplicando-lhe um

~OmPaço.

379

378 Jono GUIMARÃES Rosn / F~cçAO Co

- Pelo amor de Deus, Sinhô... Foi brincadeira... Eu costurei o r p"ra explicar ao Sinhô...

- E que mais?! - Outro safanão, e Mangolô foi à parede e vol viagem, com movimentos de rotação e translação ao redor do sol, recebe luz e calor.

- Não quis matar, não quis ofender... Amarrei só esta tirinha de preto nas vistas do retrato, p"ra Sinhô passar uns tempos sem poder gar... Olho que deve de ficar

fechado, p"ra não precisar de ver negro"

Havia muita ruindade mansa no pajé espancado, e a minha raiva ra, quase por completo, tão glorioso eu estava. Assim, achei magnão entrar em acordo, e, com decência,

estendi a bandeira branca: uma n dez mil-réis.

- Olha, Mangolô: você viu que não arranja nada contra mim, pca eu tenho anjo bom, santo bom e reza-brava... Em todo o caso, mais não termos briga... Guarda a pelega.

Pronto!

Saí. As mulheres, que haviam debandado para longe, me espreita espantadas, porque eu trazia a roupa em trapos, e sangue e esfoladura todos os possíveis pontos.

Mas recobrara a vista. E como era bom ver!

Na baixada, mato e campo eram concolores. No alto da colina, o luz andava à roda, debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um branco, de cauda branca. E, ao longe,

nas prateleiras dos morros cav vam-se três qualidades de azul.

CORPO FECHADO

"A barata diz que tem

sete saias de filó...

É mentira da barata:

ela tem é uma só."

(CANTIGA DE RODA)

losÉ Boi CAIU DE UM barranco de vinte metros; ficou com a cabeleira enterrada no chão e quebrou o pescoço. Mas, meio minuto antes, estava completamentè bêbado e

também no apogeu da carreira: era o "espantapraças", porque tinha escaramuçado, uma vez, um cabo e dois soldados, que não puderam reagir, por serem apenas três.

- Você o conheceu, Manuel Fulô?

- Mas muito!... Bom homem... Muito amigo meu. Só que ele andava sempre coçando a cabeça, e eu tenho um medo danado de piolho...

- Podia ser sinal de indecisão...

- Eu acompanhei até o enterro. Nunca vi defunto tão esticado de comprido... Caixão especial no tamanho: acho que levou mais de peça e meia de galão...

- E quem tomou o lugar dele?

- Lugar? O sujeito não tinha cobre nem p"ra um bom animal de sela... o que ganhava ia na pinga... Mão aberta...

- Mas, quem ficou sendo o valentão, depois que ele morreu?

-Ah, isso teve muitos: o Desidério...

- Cuera?

- Cabaça... Só que era bruto como ele só, e os outros tinham medo dele, Cavalo coiceiro... Comigo nunca se engraçou!

- Como acabou?

- Acabou em casa de grades. Foi romper aleluia na cidade, e os soldados abotoaram o filho da mãe dele... Não voltou aqui, nunca mais...

- E o tal Dejo?

- Esse foi depois... Antes teve o Miligido... E o nome daquele era Adejalma, nome bobo, que nem é de santo... Um peste. Muita prosa, muita farroma, mas eu virei

o cujo do avesso! Me respeitou! Me respeitou, seu doutor!

- Briga, Manuel?

Lhe conto, seu doutor. Foi na venda: eu estava comprando cadarço de roupa, coisa de paz... O homem já veio chegando enjoado, me olhando c°rn cara de herege... Negaceou.

Depois, virou p"ra o Pércio, que era caixeiro nesse tempo, e perguntou: "O senhor tem aí dessa raça de faca que entra na barriga e murgueia?" E olhou p"ra mim, outra

vez, p"ra ver se eu

estaca com receio...

JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇAO

- E você, Manuel Fulô?

- Eu ia serrar de cima, mas nem não tive tempo, porque nes

nha vinha entrando um tropeiro da Soledade, que era homem

pensou que a ofensa era p"ra ele... E aquilo foi o tropeiro dando u ro no balcão, e tossindo, e perguntando também p"ra o Pércio: "P nisso, o senhor não terá também

dessa raça de bala que bate na chateia?!" Pois aí o Adejalma se riu de medo, e disse que estava era

cando...

- Mas, então, Manuel, como foi que você virou o Dejo pelo av - Ara, ara, seu doutor! Se o tropeiro não tivesse entrado, eu f

sordem, e fazia mesmo... Porque, depois, o cachorro do Adejalma"

me perguntou, só por deboche, porque ele estava cansado de sabei"

eu era: "Como é que você chama, rapaz?"... - E você?

- Eu pus a mão na coronha da garrucha, e respondi: "Só eu pe tando p"r"a minha mãe"...

- E ele?

- Um desgraçado! Era só ele bulir, e eu mais o tropeiro mandává corpo dele p"ra o quincumbim... Aquele sujo! Assassino! Tralhal

- Que raiva é essa, fora de hora, Manuel?

- Pois o senhor não imagina que, ao dépois, o miserável desse jalma, só por medo da minha macheza, me convidou, mais o tropeiro beber com ele e fazer companhia?...

O tropeiro agradeceu e não a mas eu fui, porque não sou soberbo... Pois o senhor não acredita; o canalha foi encomendando despesas, e me elogiando e respeitand que

eu fiquei assim meio escurecido, e aí ele foi-s"embora e me deixo zinho p"ra eu ter de pagar tudo, por perto de uns quatro mil-réis?... não é p ra uma pessoa correta

ter raiva? É ou não é?!... Cachorro! IVÍ

de erisipela na cara...

- E o Miligido?

- Esse era bom... Homem justo. O que ele era era preto... Mais do que os outros pretos, engomado de preto... Eu acho que ele era to até por dentro! Mas foi meu amigo.

Valentão valente, mesmo. U ele me deu uma escova de dente, quase nova... Eu acho que ele enco a tal nalgum lugar e não sabia que serventia aquilo tinha...

-Matou muita gente, o Miligido?

- Quase nenhum, que eu esteja lembrado... Também, todo o m tinha medo dele... Cada um dizia amém antes de ele rezar o fim da r Está vivo, mas não é valentão mais.

Muito velho... Deve de andar beir uns setenta... Agora...

- Agora, o valentão é o Targino...

- Nem fala, seu doutor. Esse é ruim mesmo inteirado... Não reS nem a honra das famílias! É um flagelo...

5+~ ~~ wA

. Mas não parece...

pop quê?! Aquilo é cobra que pisca olho... Quando ele embirra, briga até com quem não quer brigar com ele... Nenhum dos outros não fazia essa maldade... O senhor

acha que isso é regra de ser valentão? Eu sei que, r causa de uns assim, até o Governo devia era de mandar um quartel de soldados p"ra aqur p ra a Laginha...

. Você tem raiva desse, também, Manuel?

- Não é raiva, não seu doutor: é gastura... Esse-um é maligno e está até excomungado... Ele é de uma turma de gente sem-que-fazer, que comeram carne e beberam cachaça

na frente da igreja, em sexta-feira da Paixão, só p"ra pirraçar o padre e experimentar a paciência de Deus... Eles todos já foram castigados: o Roque se afogou numa

água rasinha de enxurrada... ele estava de chifre cheio... Gervásio sumiu no mundo, sem deixar rasto... Laurindo, a mulher mesma torou a cabeça dele com um machado,

uma noite... foi em janeiro do ano passado... Camilo Matias acabou com mal-de-lázaro... Só quem está sobrando mesmo é o Targino. E o castigo demora, mas não falta...

- Mas, nesta sobrança, ele é quem vai castigando os outros, por conta própria, Manuel Fulô...

- Deixa ele, seu doutor... P"ra cavalo ruim, Deus bambeia a rédea... Um dia ele encontra outro mais grosso... Eu já estou vendo o diabo, com defunto na cacunda!...

Esse sujeitinho ainda vai ter de dançar de ceroula, seu doutor! Isto aqui é terra de gente brava...

- Verdade, Manuel?

- Pode aprovar, seu doutor. Até João Brandão, que foi patente no clavinote, deu volta, quando passou por aqui... Meu pai viu isso... João Brandão vinha vindo p"ra

o norte, com os seus homens, diz-se que ia levando armas p"ra o povo de Antônio Conselheiro, mais de uns vinte burros, com as cangalhas encalcadas... Na passagem

de onde hoje é a ponte da Quininha, tiveram um tiroteio com os soldados... Isto aqui é uma terra terrível, seu doutor... Eu mesmo... O senhor me vê mansinho deste

jeito, mas eu fui batizado com água quente...

E assim falou Manuel Fulô.

José Boi, Desidério, Miligido, Dejo... Só podia haver um valentão de cada vez. Mas o último, o Targino, tardava em ceder o lugar. O challenger nào aparecia: rareavam

os nascidos sob o signo de Marte, e Laginha estava, na ocasião, mal provida de bate-paus.

Havia, sim, os subvalentões, sedentários de mão pronta e mau gênio, a quem, por garantia, todos gostavam de dar os filhos para batizar.

Os do-Quintiliano, por exemplo. Eram dois ou três irmãos, que mandavam na Vargem, espécie de arrabalde que prolongava o arraial para lá da linha férrea. Um dia,

apareceu - papel pregado em árvore - um "pasquim", sátira anônima, desabafo de algum oprimido:

382

384 Jono GUIMARAES Rosn / Ftcçno

"A Sofia mais os filho é o lastro.

A Guilir é o trem.

João do Quintiliano prosa com o que não tem. Cala a boca gente, que o Quintiliano envêm! Sebastiana mais a Lina passam bem. Agora vira da outra banda. Viva o povo

da rua da Avenida, Quem fez isto foi o Tonico da Rabada."

Antonico da Rabada protestou: por todos os santos e mais deusa luz que alumia, esta cruz, e a alma da sua mãe, que não tinha escnt E se escondeu.

João do Quintiliano saiu furioso, recendendo a cachaça, brand" armas, gritando desaforos a esmo; esbarrou no moirão da portela, cara encruada de dor-de-dente, deu

tiros para cima, levava uma flo rela no peito, e, junto com os parentes, conflagrou a Vargem. Mdi retada, algumas facadas, e foi um dia-de-domingo no meio da se

porque ninguém trabalhou. Os do-Quintiliano andavam, casa pór procurando o editor responsável. Então, alguém pensou, náturalme Manuel Baptista, o Aretino do arraial.

Foram atrás dele, para a satisfâ encontraram-no no paiol do João Italiano, dando escola para os rri do negociante. t

Mas Manuel Baptista ficou bravo: vissem lá se ele era homem pá dar pregando em árvore bobagens sem assinatura! E com tantos etr entendia de gramática, e seus pasquins,

muito bem caprichados, numa meia folha de papel almaço, só eram lidos por pessoas cap apreciá-los, e, mesmo assim, tendo cada um de solicitar a sua veia, muito empenho!

E, como prova, exibiu e leu, muito digno e neurast a sua última produção, que debochava de muitas atualidades, termi como sempre, com o seu nome, bem rimado, no

verso final:

João do Quintiliano ouviu, respeitoso, humilhado pelo poder da da ciência. Pediu desculpas e veio reproduzindo, em sentido cont peregrinação suburbana, dando pancada

em todo o pessoal com qu tipatizava. E só de tardinha, esfalfado, suado, foi que achou de bom pôr uma pedra em cima da questão.

Pois foi nesse tempo calamitoso que eu vim para Laginha, de mor fui tomando de tudo a devida nota.

$AGARAN~1 3gS

p arraial era o mais monótono possível. Logo na chegada, ansioso por conversas à beira do fogo, desafios com viola, batuques e cavalhadas, procurei, procurei, e

quebrei a foice. As noites, principalmente, impressionavam. Casas no escuro, rua deserta. Raro, o pataleio de um cavalo no cascalho. O responso pluralíssimo dos

sapos. Um só latido, mágico, feito por muitos cachorros remotos. Grilos finfininhos e bezerros fonfonando. E pronto.

- Mas, gente, que é que vocês fazem de-noite?

- De noite, a gente lava os pés, come leite e dorme.

Agora, aos domingos, só aos domingos, gente como enchente. Cavalos, burros e ainda outros cavalos, amarrados em frente às casas - e aí foi que fiquei conhecendo

o préstimo dáqueles postes de guarantã ou de aroeira, cheios de argolas e plantados por toda a parte. Vinha povo extraído e exumado de tudo quanto era grota e biboca,

num raio de légua e meia. Tocava o sino, reinava o divino. E, depois da missa, derramava-se pelas duas ruas a balbúrdia sarapintada das comadres, com o cortejo dos

homens: olhando muito para as pontas das botinas, assim joão-gouveia-sapato-sem-meia, ou de meias e chinelos - mas só os que estavam de purgante.

Fastio. Há, neste mundo, muito tamanho de papo: pequi, pêra, laranja, coco da Bahia. Um boi que tenha um chifre mais baixo que o outro é bisco, e o de cabeça negra

com uma pinta branca na testa é silveiro. E os pretos vendem a vida pela festa do Congado, que, por sinal, leva três dias, mas exige ensaios que devem durar o ano

inteiro.

Então foi que me mostraram o valentão Targino. Era magro, feio, de cara esverdeada. Usava botinas e meias, e ligas que prendiam as meias por cima dos canos das calças.

E não ria, nunca. Era uma pessoa excedente. Não me interessou.

Agora, o Manuel Fulô, este, sim! Um sujeito pingadinho, quase menino - "pepino que encorujou desde pequeno" - cara de bobo de fazenda, do segundo tipo ; porque toda

fazenda tem o seu bobo, que é, ou um velhote baixote, de barba rara no queixo, ou um eterno rapazola, meio surdo, gago, glabro e alvar. Mas gostava de fechar a cara

e roncar voz, todo enfarruscado, para mostrar brabeza, e só por descuido sorria, um sorriso manhoso de dono de hotel. E, em suas feições de caburé insalubre, amigavam-se

as marcas do sangue aimoré e do gálico herdado: cabelo preto, corrido, que boi lambeu; dentes de fio em meia-lua; malares pontudos; lobo da orelha aderente; testa

curta, fugidia; olhinhos de viés e nariz peba, mongol.

Era de uma apócrifa e abundante família Véiga, de uma veiguíssima veigaria molambo-mazelenta, tribo de trapeiros fracassados, que se mexiam

h°rnuens que trotavam leguas albordo de ma égua magraltempilhados ns utn na garupa, um na sela, mais um meninote no arção - para virem ven-

"Essa história de phonetica eu nunca pude entendê! É tão feio se assigná Manuel Batista, sem P!..."

386 Jono Gu~Mnxnes ROSA / FicçAo

der no arraial um cacho de banana-ouro, meio saco de polvilho p uma pele de raposão.

Mas, com o Manuel Véiga - vulgo Manuel Flor, melhormente Fulô, às vezes Mané das Moças, ou ainda, quando xingado, Manéégua, - outros eram os acontecimentos e definitiva

a ojeriza: não lhava mesmo, de jeito nenhum, e gostaria de saber quem foi que in o trabalho, para poder tirar vingança. Por isso, ou por qualquer outr tivo, acostumei-me

a tratá-lo de Manuel Fulô, que não deixava de sér boa variante.

Começou por falar-me de um irmão seu, que tinha uma galinha gola domesticada e ensinada, que dormia debaixo do jirau. Não acre Mas pessoas respeitáveis afiançaram

o fato, ajuntando que, além da mansinha, o rapaz conservava um rato enjaulado, pretendendo obt ele e um gato de rafas se fizessem amigos de infância. Tive de pedir

d pas ao Manuel. E, aí, ficamos ótimos amigos. Mais o admirei, contud saber que ele era o único no arraial a comer cogumelos, com carne, à de quiabos. Não um urupê

qualquer do mato, nem esses fungos de f to obsceno, nem as orelhas-de-pau, nem os chapéus-de-sol-de-sapo,"~ os micetos que crescem na espuma seca dos regos de enxurrada,

n nhor! Só o tortulho amarelo do chão das queimadas, "champignon" toso, o simpático carapicum. Provei. Exultei. E a nossa amizade crese

O meu amigo gostava de moças, de cachaça, e de conversar fiado. tinha a Beija-Flor. Ah, essa era mesmo um motivo! Uma besta ruan cruz preta no dorso, lisa, vistosa

e lustrosa, sábia e mansa - mas só dono. Tinha apenas um defeito: era nhata; e as maxilas erradas impe na de tosar os talos, já rentes à terra, da última relva da

seca, e não d vam que ela rasoirasse os brotos do primeiro capim das águas. Mas custado mais de conto de réis, num tempo em que os animais não v quase nada, e era

o orgulho do Manuel Fulô. Mais do que isso, era complemento: juntos, centaurizavam gloriosamente.

Aos domingos, Manuel Fulô era infalível: - Vim p"r"a missa... zia. Mas chegava sempre atrasado, com o povo saindo da igreja; e e corria, um por um, todos os botequins

e bitáculas, reclamador, difícil, encarado, importante. Gostava, principal e fatalmente, de afirmar qu filho natural do Nhô Peixoto, o maior negociante do arraial;

e isso, de da posse da Beija-Flor, constituía a razão da sua importância.

De tardinha, na hora de pegar a estrada, tocavam, tardos: ele, tonto jamais outro, perdia logo a perpendicularidade, e se abraçava ao pes da mula, que se extremava

em cuidados e atenções. Se a barrigueira e frouxa e o arreio meio caindo, Beija-Flor estacava e ficava muito q Sabia também abrir porteiras - e era por causa dessa

e de mais oti habilidades que Manuel Fulô conseguia chegar em casa. "Nem minha não cuidava melhor de mim, assim!"...

387

$ aG,gR~~ ~

Mas, quando era para se mostrar no comércio, antes dos descalabros alcoólicos, o meu amigo caprichava em forçar a andadura da burra, fornecendo-lhe pouca rédea e

fazendo-a pedalar, garbosa, crânio alto, bate crina, como um cavalo de esquadrão.

_ Quando eu entro no arraial, amontado na minha mulinha formosa, que custou conto e trezentos na baixa, todos ficam gemendo de raiva de inveja, mas falam baixinho

uns p"ra os outros. - La vem Mane Fulo, na sua Beija-Fulô, aferrada dos quatro pés e das mãos também!"...

- E você, Manuel?

-Tenho pena deles...

- E as moças?

- Não falo nisso. Começa em olho e acaba em honra... E negócio de honra é na faca!...

Pois bem, Manuel Fulô dera parà visitar-me, mais que diariamente. E, como a Beija-Fulô depressa aprendia as coisas, assustei-me bastante, numa tarde em que ela veio

escoucear minha porta, com o seu proprietário escornado em cima do arreio, na mais concreta abstração. Beija-Fulô queria entrar, por força, talvez para despejar

o Manuel em cima de algum catre. Então, eu esvaziei um jarro d"água na cabeça do cavaleiro, e depois perguntei aonde ele pretendia ir. Perene e solene, respondeu:

-Eu?!... Eu: Tões, Militões, Canindéis, Maquinéis!

Loucura, porque nem nunca que ele havia de poder chegar à fazenda do Tão, nem na do Militão, pior ainda no Canindé, nem nunca que nunca no Maquiné, principalmente

com a Beija-Fulô assim disposta a arrombar portas e ir embocando no domicílio de gente importante.

Ora pois, um dia, um meio-dia de mormaço e modorra, gritaram "Ó de casa!" e eu gritei "Ó de fora!", e aí foi que a história começou. Bom, fui ver. Era uma rapariguinha

risonha e redonda, peituda como uma perdiz. Bonita mesmo, e diversa, com sua pele muito clara e os olhos cor de chuchu. Pasmou parada, e virou pitanga, pois não

contava decerto encontrar gente de cidade e gravata. Animei-a:

- Hã?

Então ela me disse que ia casar, e que por isso estava percorrendo Oarraial, pedindo "adjutório". Dei, com prazer, o "adjutório", mas perguntei quem era o noivo.

Era o Manuel!

- Fulô?

- Sim, senhor...

E lá se foi embora a noivinha ditosa, mais a dona idosa que a acompanhava. A bem dizer, eram cor de abóbora-d"água os seus olhos. Tinha até °m respingo de sardas,

eu vi.

- Com que, hein, seu Manuel Fulô, Mané das Moças, que vai casar!

Manuel Fulô viera ver-me, nessa mesma tarde, chamando-me de flor dos doutores e pedindo para beber cerveja p"ra eu pagar.

388 JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO

- Caso mesmo. É este sangue de Peixoto! Não tem outro jeito

- Que você casa, já sei, e bem que podia, antes, ter-me parti E você não é Peixoto, é Véiga, dos Véigas do São Thomé...

- Vou lhe contar, seu doutor: sou filho natural do Nhô Peixot nhor não reparou que eu não sou branqueo nem perrengue com Véigas?... Meu pai é meu pai por cortesia,

e eu respeito... Mas sott é Peixoto. Raça de gente trata! Eu cá sou assim: estou quieto, n lo com ninguém... Mas, não venham mexer comigo! porque de não levo p"ra

casa, e p"ra desaforo grosso a minha Beija-Fulô não dução...

- Bom, Manuel Fulô Peixoto, sua noiva é bonita...

- Não caçoa, seu doutor. Isto eu sei que ela não é, por causa ainda não estou cego. Mas, sacudidona, boazinha e trabalhadeira, e O senhor não acha?

-Acho. Bem, Manuel, vamos tomar cerveja, para festejar o noiv

Preferi fôssemos para a venda, porque sabia que Manuel Fulô g de exibir a nossa amizade. E, mal nos sentamos nas cadeiras dobradiç perguntando:

- Me conta, Manuel, você gosta mesmo dela?

- Amo! Isso, lá, amo mesmo, seu doutor... - Faz bem, Manuel, faz bem...

Então nos desolhamos, e pegamos a pensar, cada um para o seu"

até que Manuel suspirou e explicou:

-É o jeito. Eu só queria treis coisas só: ter uma sela mexicana

arrear a Beija-Fulô... E ser boticário ou chefe de trem-de-ferro, farda

boné! Mas isso mesmo é que ainda é mais impossível... A pois, es

vendo que não arranjo nem trem-de-ferro, nem farmácia, nem a sel

caso... Me caso! seu doutor...

E Manuel Fulô babou cerveja queixo abaixo, mas seus olhos fi sérios.

- Mas você não gosta da moça, Manuel Fulô?

- Gosto sim. Já estamos criando amor. Ela é boazinha... Pobre c eu... Mas eu queria uma sela mexicana, um arreio de gaúcho, graúdo; bordados no couro dos estribos,

com topete adiante e cabide de prego" o laço, no santantônio... Aí é que era! Aí é que era, seu doutorzinho amigo! ...

- Chega de beber, Manuel Fulô Peixoto meu amigo...

- Eu ca não estou bêb"do nenhuns-nada! Estou é com raiva. Sangu Peixoto não é brinquedo, esquenta à toa, à toa... Estou com ódio não é< mim, é por causa da minha

Beija-Fulô...

- Boa mula...

-Boa?! Uma santa de beleza de besta é que ela é!... Aquilo nem. me... Nunca vi a Beija-Fulô deitada, por Deus do céu!... Montaria as

SA~~12AN~

3g9

supimpa, assim desse jeito, nunca me disseram que houve... E olha que isso de animal é minha comida: entendo disso direito, sei puxar uma matéria!

. Claro que você sabe, Manuel Fulô...

. E sei mesmo! Então, p"ra que foi que eu havia de andar dois anos amadrinhado com os ciganos, acompanhando aquele povo p"ra baixo e p"ra riba? Então?!...

- Você viveu com os ciganos, Manuel Fulô? Me conta como foi que foi...

- Foi por causa que eu estava sem gosto p"ra caçar serviço bruto, naquele tempo... Garrei a maginar: o que eu nasci mesmo p"ra saber fazer é negócio de negociar

com animal. Mas eu queria ser o melhor de todos... E quem é que é mestre nessa mexida? Não é cigano? Pois então eu quis viajar no meio da ciganada, por amor de aprender

as mamparras lá deles. Me ajustei com um bando...

- Boa vida, Manuel?

-Assim-assim... Que me importa!? Eu só queria era estudar as tretas todas dos calões... Dormia em barraca, comia quase que só repolho com cebola e carne de cabrito

cozida... E tomei assunto, ligeiro, de um ror de coisas na língua disgramada que eles falam... Mas olha aqui: sou besta?... Fazia mas era de conta que não entendia

nada! Ficava marombando... P"ra negócio de consertar fundo de tacho e de gramar no cabo do martelo p"ra fazer caldeirão, não vê que eu dava confiança! ... Mas, opa!

Que beleza de gente p"ra ser esperta!...

- Roubavam muito cavalo, hein?

-Ah, isso era só ter jeito de roubar, que estava roubado mesmo! E, ao depois, trabalhavam com os animais, p"ra botar eles bonitos, que nem cavalgadura de lei...

Até pintar, p"ra ficar de cor diferente, eles pintavam... Muita vez nem o dono não era capaz de arreconhecer o bicho!... Pegavam num pangaré pelado, mexiam com ele

daqui p"r"ali, repassavam, acertavam no freio, e depois era só chegar p"ra o ganjão e passar a perna nele, na barganha... E volta boa, em dinheiro, porque cigano

só faz baldroca recebendo volta... Senão, também, como é que eles haviam de poder viver? Como é?!...

- - . Eles gostavam muito de mim, porque pensavam que eu era bobo de deveras... Mesmo, por fim, por eu dar jeito assim de bobo, eles mandavam que eu fosse negociar

os animais com os pessoais... E falavam comigo em antes: "Tu pode conversar o que quiser, mas não deixa eles te empulharem, e só aceita negócio a troco da besta

preta do padeiro, com volta de cem, ou por aquele cavalo bragado da mulher do homem do beco, com volta de

sessentão...

- - - Ô beleza! ... Eu saía com a cavalhada, e era que nem artista de circode-cavalinho! Primeiro, fazia bonito na rua, repassando... Aquilo, eu caprichava comigo:

p"ra animal murzelo, eu punha roupa preta, p"ra malha-

39o JOÃO GUIMARÃES RASA / FICÇÃO C

do, paletó duma cor, calça doutra... E fazia um negocião, porque mundo pensavam que estavam me cinzando..."

- E você gostou de alguma ciganinha, Manuel?

- É baixo! Não vê! Negócio é só negócio. E eu estava ali era feita no de escola, só p"ra mor de aprender. Quando vi que tinha sabida vim m"embora... Bem que eles

pediram p"ra eu ficar. Mas eu lá pr mais de ciganada velhaca?!... Uma osga! P"r"aqui mais p"r"aqui que. quei!... (E Manuel Fulô toca os cotovelos.)

... Já entendia de tudo quanto era manha de lidar com cavalo. mão num bicho de anca chata, cesto-de-urso, cambeta, de galope vido, rasga-tapete, baixo de quartela,

transcurvo ou boletado... R com ele, fazia ele comer bastante milho, dava sal com enxofre, da sênico, dava outras coisas, que depois se o senhor quiser aprender

conto... Ajeitava um freio de-propósito, com bridão ou bocal de sojigando ou afrouxando a barbela, aconforme os casos... Acostum bruto, e aquilo ele ficava prontinho

uma montada luxenta, de g manteúdo p"ra troca, de galope espertado, batido do lado esquerdo.` vendo!

... P"ra conhecer, então, não tinha mais ninguém p"ra poder c era só deixar eu empurrar a mão fechada no peito de um macho, piar gritando: - Passa p"ra cá, que este

é dos meus!...

... Ou então, findas que ele fosse vistoso e sacudido, de estam Arrenego, que não presta! Não presta nem p"ra puxar pedra, por cau é aberto de frente!...

... Passava o dedo na boca aberta de outra azêmula, e já sabia: - com calo... queixudo... Aparta esse p"ra lá, que nem de graça que ele serve p"ra mim não!...

... Agora, canjica, niquento, debruçado ou ajoelhado, pesado de que nem jumento, isso então era coisa corriqueira: eu chamava nas tr cas, e, em menos de uma semana,

punha o tal num preceito, que qu saía comigo p"r"a rua o diabo vinha rebolando, todo repinicado, peg andorinha no ar!

... Quando eu larguei a ciganagem, vim p"r"aqui p"r"o arraial, neg por minha conta. Aí foi que eu ganhei um dinheirão! Merenguém bom

- Lesando os outros, Manuel?

- Não vê! A modo e coisa que, p"ra se fazer tratantagem, só me quando a gente é andejo, porque não pára em lugar nenhum, e, quais crente dá fé de que levou manta,

a gente já está longe, e custa muita voltar. Aí, enquanto isso, é o tempinho certo do tal-um esfriar a raiva, ficar querendo cobrar o logro... E, quando a gente

volta, o freguês porque quer fazer outra berganha, p"ra tirar a forra... E aí a gente tor jogar cinza nos olhos dele outra vez...

... Mas, morando aqui de sempre, eu não podia fazer esperteza, tinh

391

SACARAM

negociar direito... Ah, mas, também, isso eu garanto: p"ra ser honesto e honrado feito eu naquele tempo, não teve outro! Não havia!...

_ Mas, Manuel, por que foi então que você deixou esse ramo?

- Ah, pois aí é que está! Isso mesmo é que eu ia condizendo... Foi tudo por causa do raio de uma bestagem que eu fiz... Calcule o senhor que, de vez em quando, eu

pegava a pensar e tinha uma raiva danada dos ciganos terem me abusado, achando que eu era coió... E eu nunca fiquei por baixo! Não deixo rasto mal firmado! Tou de

calça até dormindo!

.,. Cada vez, cada mês, a minha raiva era mais muita, e então eu árresolviamostrar p"ra eles o que que é gente que tem sangue de Peixoto! Imaginei, imaginei, e daí

cacei dois sujeitinhos ordinários de cavalos, que eram mesmo o restolho da porcaria maior de tudo quanto é cavalo ruim que não presta...

- Que dois eram esses, Manuel?

- Um se chamava Furta-Moça. Só mesmo por graça, que nem velha coroca ele não era gente p"ra furtar! Era um alazão sopa-de-leite, com uma . perna torta de defeito

de nascença... Gázeo, remelento, que nem negroaço, que não podia abrir os olhos p"r"a banda do sol... Sem-andar, manco, orador de cabresto... Tinha p"ra mais de

uns vinte anos de idade... E estirava, quando a gente prendia o tal na estaca...

... O outro ainda era ainda mais pior, porque era doido, mesmo, doido feito gente doida! Estava com as canelas que eram isto, de sobrecapas... Se a gente punha o

pobre num galope, era só alcançando, arregaçando, ou arrastando os pés... No picado, arpejava e acalentava... Na andadura, era aquela feieza: interrompia o andar,

com a gente escutando quatro batidas em vez de duas, em cada passada... Pois aquela sombração era um baiolavado, chamado Ventarola.... Cabeça chata... Até de travagem

ele estava, e não podia mastigar!...

- Tanta coisa junta, Manuel?

- Verdade pura! Rico de rabo é que ele era, seu doutor!

- E, então...

- Então eu pus um perto do outro, e dei risada: pois há-de ser mesmo com estes mais mambembes que eu vou tochar uma certa naquela cambada!... Isso foi que eu falei

sozinho, p"ra eu mesmo sozinho escutar e ficar ainda mais enjerizado com os ciganos. Porque, só de pensarem cigano, eu ficava tinindo de tiririca!...

-. Foi uma campanha! Levei quase treis meses. Mas caprichei, porque eu estava todo determinado p"ra etcétera... E como eu sou mesmo opiniúdO" e quando entesto de

fazer alguma coisa faço mesmo, nem comia nem dormia direito, só inventando outras papiatas p"ra compor com a minha Junta de mulas-sem-cabeças de tirar vingança de

cigano... Passei banha de Jibóia no aleijão da perna do Furta-Moça, trabalhei de dentista, p"r"a mor de retocar os dentes dos dois... Pelejei, pelejei!... Pintando

de preto, só um

392

pouco, ao redor dos olhos, Furta-Moça agüentava o sol... E, p"ra a ensinei postiço, que nem com bicho de circo: eu estando perto, curtas distâncias, eles faziam

força e caminhavam correto... Quan riam voltar outra vez p"r"as suas desordens, eu assobiava, e torna mar jeito de gente, com medo de entrar no couro, que se não

eu mesmo o pau! E eles concordaram com a minha regra, e cruzara comigo, de andar direito o principiado dos minutos, eu acho que par que eles tinham bom coração...

.. Eu sabia que na Semana-Santa os tais tinham de vir no E vieram mesmo. Mas aí Ventarola e Furta-Moça já estavam no Limpei as orelhas, tosei direito, escovei, lavei,

pus bom freio, fan visagem deles... Fiz tudo!...

... A derradeira coisa, que eu aprontei, foi fazer - Deus que m doe sendo maldade - foi fazer um machucado nos beiços do Ven porque, quando eles vissem que o pobre

não podia comer direito, vam que era por via daquilo, e não iam espiar o céu-da-boca, p"ra descobrir a travagem, não... E, aí então, chegou o dia!

... Tinha muita gente no largo de em frente da igreja, quando eu com os animais, no sábado-da-aleluia, de manhã. Vim passando, tado no Furta-Moça, com Ventarola

adestro, e fiz de conta que não de nada de cigano ali, e que nem não estava campeando negócio. M Pachencho, que tinha sido meu patrão cigano, foi me vendo e esgoe

- "Eh, ganjão! Esses granéis são seus? Quer bater uma baldroca?u

- Deus me livre, chefe! - arrespondi. - Tenho medo de levar ta... P"ra eu ficar molhando minhas costas, é? Eu não... Eu é que meu respeito!

... Mas, aí por aí, o Cuntrino, um outro disgramado de cigano vergonha, já estava examinando o Ventarola, e gritando:

- "Deixa de doença, amigo! Você não é nenhum ganjão... Você é é patrício, calão como nós... Vamos barganhar esses grais!"... - G cavalo...

- Eu sei. E depois?

- Depois, então, eu fui deixando... Eles estudaram tudo, olh cheiraram, cansaram de olhar, montaram, desamontaram, tornar olhar, apalpando, passando a unha, abrindo

a boca dos dois égua-ve puxando pelas cambas do freio, fazendo andarem de-fasto, tudo...

... Aí, tinha chegado também o Bertolameu, outro lá deles, que espiando de longe, porque tem uns defeitos de cavalo que só mesm longe é que a gente pode ver... E

aí foi que eu fiquei com uma des no estômago, porque eu estava cansado de saber que: um cigano soz mesmo estando com os olhos fechados, já acerta com a metade dos

d tos de um animal; dois ciganos, juntos, são capazes de adivinhar o é que o bicho comeu e está dentro da barriga dele; mas, treis ciganos,.

Snc^N^^"~`~ 393 tão, seu doutor, eles falam p"ra o senhor até qual é que foi o nome da égua mãe.

,. E o Bertolameu juntou com seu Pachencho mais com o Cuntrino, e futricaram, um tempo todo, falando depressa na língua atrapalhada lá deles. Depois, vieram p"ra

mim, e me ofereceram dois cavalinhos: um picapau assim héctico, tordilho, e um matungo ruço, passarinheiro e de duas crinas.. .

,,. Eu fui vendo logo que os animais deles não prestavam. O matungo, p"ra se deitar, ajoelhava que nem vaca, e a modo e coisa que era çego de um olho. Mas eu entendi

que ele não era cego nenhuns-nada: era uma pelinha que tinha crescido tapando a vista - que, até, depois, seu Raymundo boticário tirou p"ra mim... O pica-pau parecia

que não ia durar mais muito tempo vivo... Tinha sinal de duas sangraduras... Mau, mau! Mas depois eu farejei que o que ele precisava era só de descanso, porque os

ciganos tinham viajado demais naqueles dois meses, e tinham vindo tocando muito ligeiro e maltratando a tropa deles, p"ra poderem chegar no arraial na SemanaSanta...

Isso eu vi, porque as ferraduras dos cavalos estavam todas gastadas, e os cascos dos desferrados estavam desiguais de roídos, também...

... E tinham mais outros desmandos, mas eram muito mais p"ra o desconto do que os defeitos da parelha minha... Por isso eu fiz cara de quem não estava conhecendo

as miserinhas dos deles... Ah, porque eu tinha de fazer de capim, p"ra comer o burro!... E até peguei a gabar: - Eta! Bonitinhos eles são... Mas, dinheiro p"ra volta

é que eu não tenho, e até estou triste por não ter!...

... Aí, eles riram um p"ra o outro, e eu cá quieto, fazendo de conta que não estava vendo... Queriam-porque-queriam que eu chegasse vinte milréis. Mas eu sabia que

cigano tem uma esganação medonha, mesmo que doença, p"ra baldrocar cavalos, e fiz fincapé, suspirando, mentindo que nem um botão de calça eu não podia voltar. Ai,

seu doutor meu amigo, a cacunda do bobo é o poleiro do esperto!... Eles tinham que dar o beiço e cair o cacho!... E eu fiquei mesurando...

- .. Por fim, quando eu relanceei que eles já estavam meio querendo me aceitar entrei de zápede, espadilha e treis: - Bom, mas vocês têm de me voltar dez"tões de

lambugem, que é p"ra uma cachacinha, porque o dinheiro aqui na minha terra anda vasqueiro...

- - - Mentira pura! Eu queria volta era só por a-mor de desonrar a raça toda de ciganos, p"ra uma vez!...

- - . Seu Pachencho fechou a cara, mas o tal Cuntrino veio comigo:

- "Dez"tões é nada... Eu dou..."

- - - Ai, meu pai! Não sei como é que eu não morri de alegria naquela hora!-„ Foi só a gente fechar o negócio, e eu peguei a dar viva, gritando que tinha embrulhado

os ciganos, e chamando o povo p"ra escutar, e o povo querendo saber por que, e eu mostrando os defeitos todos que eles

394 Jono GUIMARÀES Rosa / F~cçAO Co

não tinham sido gente p"ra descobrir! E até deitei no chão, com os p cima, e gritei:

- Rach" ou parta ô melodência!, que por mim o mundo agora já p acabar! .. .

- E os ciganos, Manuel?

- Ficaram danados, eles, e me rogaram muita praga, e até q desmanchar a troca. Mas aí eu me alembrei do sangue que tenho, minhas ordens. Mostrei só o biquinho da

garrucha e dei um eco nel Ti-ó frade, Tió fro!... Fiquem sabendo que eu sou filho natural d Peixoto, e, já, já, vocês têm que desaparecer esses cavalos daqui!...

... E eles não fizeram nada, e foram-s"embora, porque, em qu parte em que cigano briga, seja lá com quem for, o povo todo do lu ajunta e todo o mundo aproveita p"ra

dar pancada neles... Até eu não que seja direito...

... Mas, oi, diabo! Até hoje eu ainda gosto mais de me alembrar di que de comer doce!...

- Foi bonito, Manuel...

- Pois não foi? Eu acho que a gente deve de fazer umas coisas p"ra se consolar, mais tarde, com qualquer tristeza que tiver... - Mais cerveja, Manuel?

- Eu cá nunca enjeito, seu doutor. Mas, lhe conto: o ruim foi d ninguém não queria fazer mais negócio comigo... Perdi a fregue E, eles, era ingratidão, porque eu

nunca tinha feito velhacaria nen com pessoa nenhuma do arraial. Não carrego rabo de palha... Mas, q quê! Eles diziam: - "Qual, com você, não. Nunca mais! Sai p"ra

lá, embroma até cigano"...

... De formas que foi só por via disso mesmo que eu não fiquei que agora estou me coçando com um dedo só. E isso de se querer bonito, seu doutor, é a pior coisa

que tem. Nunca que dá certo!... Bas usar penacho uma vez, p"ra uma pessoa se emporcalhar toda ao des Um coice mal dado chega p"ra desmanchar a igrejinha da gente...

- Razão você tem, Manuel Fulô... Mas, vê se bebe mais devagar...

- Não estou bêb"do, nada. Estou é com raiva, já falei! Fico que" posso, de jeriza, quando magino que o Toniquinho das Pedras tem sela mexicana boa, encostada, porque

ele não tem cavalo nenhum, besta!... Podia me vender aquela, barato, porque ele não precisa de reio... Precisa algum? Só se for p"ra botar nas costas dele-lá-mes

Mas não vende, nem por nada, e eu já peguei qual é a manha dele: é po ele quer apanhar a minha Beija-Fulô! Desaforo!... Não pega a minha linha, nem a troco de uma

mina de brilhante!... Nem se ela, Deus a guarde, morresse, o que não é bom falar, eu nem o couro não ha vender p"r"aquele judeu!...

- Sossega, Manuel.

SrcAa`~~`~ 395

. Tenho ódio dele, tenho mesmo! É um sujeito sem préstimo, sem aquela-coisa na cara... É o pior pedreiro do arraial, não sabe nem plantar uma parede. Só sabe é fazer

feitiço, vender garrafada de raiz do mato, e rezar reza brava. Tem partes com o porco-sujo... Não presta! Gente assim não devia de ter! .. .

-Mas tem muita, Manuelzinho Fulô.

-Não brinca, seu doutor! O senhor também devia mas é me ajudar a ter ódio do cachorro do Toniquinho das Águas... Ele vive desencaminhando o povo de ir se consultar

com o senhor. Dizendo que doutor-médico não cura nada, que ele sara os outros muito mais em-conta, baratinho... Ele quer plantar mato na sua roça e frigir ovo no

seu fogão! O senhor não vê? Ele não faz receita no papel, só porque não conhece os símplices, e acho que não sabe escrever, e isso que nem o boticário não aviava

nenhuns-nada... Mas benze, trata de tudo, e aconselha que a gente não deve de tomar remédio de botica, que deve de tomar é só cordial... Qualquer dia ele arruma

uma coisa-feita, p"ra modo de fazer o senhor ir-s"embora daqui...

- Feitiço em mim não pega, Manuel...

- É, mas o senhor devia era de fazer medo nele, falando em mandar vir um tenente com os soldados, se ele não parar com esses embondos de feitiço, e se não quiser

vender a sela mexicana p"ra mim! ... O senhor porque é bom demais, e não vê que ele está mas é roubando o de-comer de seus filhos.. .

- Mas eu não tenho filhos, Manuel!

-Ara, que idéia! Não tem, mas podia ter, e é a mesma coisa que ter!... Não tem mas vai ter!... E, olha aqui, seu doutor, falando sério, o senhor agora vai me responder

uma pergunta: se uma pessoa tem uma sela guardada, sem serventia... E outra pessoa tem uma besta de-primeira, mas mesmo, de que não há outra igual, manteúda e talentosa,

andadeira e esperta que nem gente... E se o que tem a sela quer comprar a mula, e o da mula quer comprar a sela, e ainda por riba falou primeiro no negócio... Quem

é que o senhor acha que deve de ter direito? Não é o da besta, o da Beija-Fulô?!...

- Mas, Manuel...

- Pois "tá"í! ... Qualquer um vê logo que eu estou com o certo. Mas o tralha não tem crisma, só senta perto do cacifre... E eu até fico com medo, porque a sela,

com tanto tempo que passa, pode querer se estragar. E já Pensei também que ele, sabendo que gente dos Peixotos é gente mesmo °Piniúda, e que eu não vendo - nã-o

ven-do! -,que ele queira pôr algum quebranto na minha Beija-Fulozinha, benza-a Deus!

_ Benza-a Deus, Manuel!

- É, mas se ele fizer algum caborje, morre no meu pinguelo! Seis tiros! , _ .

- Chega de beber, Manuel Fulô. Você já está ficando vesgo.

396 Jono GUIMARÃES Rosn / F~cçAO C

- Bom, vamos mesmo parar, que a despesa já está alta, com taci

rafa aberta... Só queria lhe explicar ainda, seu doutor, que, eu...

E Manuel Fulô desceu cachoeira, narrando alicantinas, praga e

ponto e praga, até que... Até que assomou à porta da venda - feio

um defunto vivo, gasturento como faca em nervo, esfriante como u

- Sua Excelência o Valentão dos Valentões, Targino e Tal. E foi en

de fato a história começou.

O tigrão derreou o ombro esquerdo, limpou os pés, e riscou ret

nós, com o ar de um criado que vem entregar qualquer coisa.

Manuel Fulô se escorregara para a beira da cadeira, meio quere~í levantar, meio curvado em mesura, visivelmente desorganizado. E imobilizei, bastante digno mas com

um susto por dentro, porque do fulano era mau mesmo mau.

Manuel Fulô nem esperou que o outro chegasse perto; foi cant

- Boa noite, seu Targino, compassou?

- ... noite!... noite, seu doutor...

E eu impei, com o tom respeitoso e com a completa tirada de c Mas o homem foi lacônico:

- Mané Fulô, tenho um particular, com licença de seu doutor...

Pura formalidade, a convocação: Targino falou alto, ali à porta d da, a três passos da minha pessoa. Manuel Fulô tremia nas perna ouvi tudo. Peremptório e horrível:

- Escuta, Mané Fulô: a coisa é que eu gostei da das Dor, e venho sua noiva, amanhã... Já mandei recado, avisando a ela... É um dia pois vocês podem se casar... Se

você ficar quieto, não te faço nada:. não... - E Targino, com o indicador da mão direita, deu um tiro m no meu pobre amigo, rindo, rindo, com a gelidez de um carrasco

m chu. Então, sem mais cortesias, virou-se e foi-se.

Eu perdi o peso do corpo, e estava frio. Me mexia todo, sem qd Manuel Fulô oscilou para o balcão, mas não pôde segurar o copo; pa mão no suor da testa:

- Eu... eu... eu...

Aí eu vi que já se ajuntara gente, todos falando por metades só: - Coitado do Mané... Coitadinha dessa moça... Coitado do Mané F Peguei-lhe do braço. Arrastei-o.

A rua já estava escura, e tropeçávamos na buraqueira. Subiu do

solerte, uma cabrita alvacenta. E, se o Manuel quisesse falar, cortava á"

gua, porque os seus dentes se mastigavam sem pausa.

Pus o amigo para dentro da minha casa:

- Você dorme aqui, Manuel. Eu vou agir...

Mas o infeliz, desmesurando os olhos, e numa vozinha aflita, que

de lá de mais baixo do que a cachaça, do que o gálico, do que a taba

que vinha de tempo fundo - suplicou:

Sn~AR^"A 397

. Não faz nada não, seu doutor... Ele é o demônio... Não respeita nada e não tem medo de ninguém...

. Mas Manuel! É até uma vergonha você dizer isso...

- Eu... Eu?

- Não fazer nada seria uma infâmia... Temos de defender a das Dor! Há momentos em que qualquer um é obrigado a ser herói...

-Uma osga!

- E o amor, Manuel? Ela é a tua noiva! Esta história...

- Que história, que mané-história! O senhor está é caçoando comigo...

- Não, porque...

- Porque-isquê!

- A minha...

- Que-inha?

- Cala a boca!

- Que-oca?

- Manuel, se você não dominar um pouco essa bebedeira, eu jogo um josé na rua! ... Ah, melhorou, não é? Precisamos de pensar... Por que você não vai pedir proteção

ao Nhô Peixoto?

- Ele é pirrônico... Não amarro cavalo com ele...

- Bem, mas se o sangue de Peixoto é bom mesmo para ferver, você vai preparar as armas, para enfrentar o Targino amanhã, na hora da baderna, não vai?

- Pois será que nem o senhor não é mais meu amigo? Está querendo ver a minha morte? Qualquer um outro eu escorava mesmo, mas o senhor não sabe que esse Targino é

o valentão?!...

- Bom, Manuel Fulô, não iremos pela força... Mas, você, que logrou até os ciganos, vai me ajudar agora a inventar um estratagema, um modo de fintarmos o Targino?

Manuel Fulô abriu um riso feio - avançando os dentes amarelos e grandes, como fieiras de grãos numa espiga de milho - tal e qual um cavalo; depois disse:

- Ah, não tem jeito... Não tem prazo, seu doutor! Assim, de hoje P"r"amanhã, não adianta... Mal-e-mal eu estou podendo pensar o trivial...

Face ao inajeitável, me alvitrei que o melhor seria reforçar a anestesia, dar-lhe mais bebida. E dei.

Bebeu, arrotou, e suplicou:

- O senhor não esquece de mandar cuidar da minha Beija-Fulô?

- Oh, Manuel! Você gosta mais é da das Dor ou da Beija-Fulô?

- Me desculpe, seu doutor, mas isto é pergunta que se faça? Gosto das duas por igual, mas primeiro da das Dor!...

E dormiu.

De manhã, acordei cedo. Manuel Fulô curtia o epílogo da cachaceira. Pul providenciar.

39g Jono GutMnaAes Rosa / F~cçAO C

Quando ia saindo, encontrei o meu amigo Vicente Sorrente sa com olhos amplos, me avisando:

- Não faça isso, doutor. Mande o Manuel embora. O Targino pensar que o senhor esteja se metendo...

Até chegar à casa do Coronel Melguério, ouvi, mais ou menós mesmas palavras, umas quinze vezes. Porque a rua estava cheia dos" tantes de Laginha, assanhados que

nem correição de saca-saia em de mau tempo. Havia meses que o Targino não cometia alguma bar de, e forte era a sensação.

- Hoje é dia... É hoje!

O Coronel era boa pessoa, só que o chamavam de berda-M Ouviu, deu de ombros, e indeferiu:

- Se o senhor quiser, pode arranjar quem pegue o Targino à unh a autoridade aprova. Agora, gente p"ra isso é que não há por aqui... guém não tem sopro p"ra esse

homem...

Então, fui ao Vigário. O reverendo olhou para cima, com um jei virgem nua rojada à arena, e prometeu rezar; o que não recusei, po dinheiro, carinho e reza, nunca

se despreza.

E, aí, eu comecei a temer por minha pele própria, e voltei, frouxo, por que passasse o dia, tudo acabasse, e a gente pudesse ver o resto co ser. Manuel Fulô não

tivera coragem de pôr o pé fora da porta. E a V toda, que, não sei como, tivera ciência do ultimatum e acorrera, en minha morada.

Uma mulher Véiga se ajoelhou, de mãos postas:

- Não deixa acontecer nada com o Manezinho, que ele gosta mut senhor!...

E um Véiga barbaçudo, com um pouquinho mais de reserva, expl

- Nós viemos aconselhar o Mané, p"ra ele não fazer nenhuma dd ra... O senhor não acha que ele deve de entregar p"ra Deus e ficar qu A moça gosta dele... A gente

esquece o que se deu, e eles casam... F conta que foi coisa que nem doença... É que nem a gente se casar mulher viúva...

E aqueles parentes não viam que o Manuel estava mesmo o mais V de todos, pedindo a Deus que o pusesse entrevado num momento, o abrisse o chão, em grota fofa, para

ele se enfiar e afundar.

Mas, com a barafunda, não se sabia o que fazer, e mais, ainda, com ta gente curiosa, querendo consulta ou fazendo visita, em hora tão ma E, logo, de cochicho em

cochicho, formou-se uma corrente informa ... o subdelegado saíra do arraial, de madrugadinha, para assunto urg de capturar, a duas léguas do comércio, um ladrão

de cavalos... Ma Dores, na cafua, adoecera de pavor, e estava sozinha com a mãe, cham pelo noivo... Targino ainda não saíra de casa.

- Quem sabe se ele não esqueceu ou desistiu?

SAG.aItANA

-Ara, ara! Que esperança!

g, a que horas a Bela seria procurada pela Fera, não se podia saber.

Mas, de fato, cartas dadas, a história começa mesmo é aqui. Porque: era uma vez um pedreiro Antonico das Pedras ou Antonico das Águas, que tinha alma de pajé; e

tinha também uma sela mexicana, encostada por falta de animal, e cobiçava ainda a Beija-Fulô, a qual, mesmo sendo nhata, custara um conto e trezentos, na baixa,

e era o grande amor do meu amigo Manuel Fulô. Pois o Antônio curandeiro-feiticeiro, apesar de meu concorrente, lá me entrou de repente em casa, exigindo o Manuel

Fulô a um canto - para assunto secretíssimo.

Nem eu pude ouvir. Isto é, escutava pouca coisa: Manuel Fulô dizia que não, gaguejava e relutava. E o outro falava pompeado, com grã viveza de gestos e calor para

convencer.

O tempo passava. O povaréu falava, todo a uma vez, depois silenciava. Pesava demais a espera; e já era insuportável a situação.

Aí, de chofre, se abriu a porta do quarto-da-sala, onde os dois davam suas vozes, e o Antonico das Pedras surgiu, muito cínico e sacerdotal, requisitando agulha-e-linha,

um prato fundo, cachaça e uma lata com brasas. E Manuel Fulô reapareceu também, muito mais amarelo do que antes, dizendo ao povo Véiga, funebremente:

-Podem entregar a minha Beija-Fulô p"ra o seu Toniquinho das Águas, que ela agora é dele...

Então eu me sobressaltei, e umas mulheres choramingaram, porque o dito equivalia a um perfeito legado testamentário. Mas os dois donos da Beija-Fulô tornaram a fechar-se

no quarto, com o prato fundo, as brasas, a agulha-e-linha e a cachaça, e ainda outros aviamentos.

Houve um parado de próxima tempestade. Uma voz fina rezou o credo. Correram, na rua. E alguém, esbofado, entrou:

- Fechem as portas e as janelas, que seu Targino já vem vindo, e vai passar mesmo por aqui por frente da casa!...

O povo se mexeu, como água em assoalho.

- Entra p"ra dentro, Tibitiu! - gritou-se.

- Aí vem o homem! ... - gritaram.

E nisso, abriram outra vez a porta do quarto-da-sala, e Manuel Fulô saiu primeiro. Surgiu como uma surpresa, transmudado, teso, sonambúlico. Abrimos caminho, e

ele passou, para a rua. Ia do jeito com que os carneiros investem para a ponta da faca do matador. Vi-lhe um brilho estrito, nos olhos. E só depois que ele saiu

foi que a Véiga mãe de todos os ~éigas se desapalermou e pôde gritar:

- Me valei-me agora, minha Nossa Senhora!

E vi também o Antonico das Pedras, lampeiro e fagueiro, perguntando pela Beija-Fulô. Mas ninguém lhe deu atenção. Só perguntaram:

O-quê que o senhor foi fazer com o meu irmão, seu Toniquinho?

399

4Oo Jono GuimnaArs ROSA / FicçAO C

- Fechei o corpo dele. Não careçam de ter medo, que para a fogo eu garanto!...

- Jesus! Targino mata o Manezinho... Não levou nem garruch nada, o pobre!

- Corre atrás dele, gente! Seu Toniquinho botou meu filho doid

Mas ninguém transpôs a porta. O Targino já aparecera lá adi nha lento, mas com passadas largas. E decerto se admirou de ver Fulô caminhar. Naquela hora, a rua, ancha

e comprida, só estava ca os dois. E eu pensei no trem-de-ferro colhendo e triturando um be na passagem de um corte.

Pronto! A dez metros do inimigo, Manuel Fulô parou, e rompeu voz, que de tão enérgica eu desconhecia, gritando uma inconve acerca da mãe do valentão.

Targino puxou o revólver. Eu me desdebrucei um pouco da Cruzaram-se os insultos:

-Arreda daí, piolho! Sujeito idiota!...

-Atira, cachorro, carantonho! Filho sem pai! Cedo será, que eu rezado fechado, e a tua hora já chegou!...

E só aí foi que o Manuel mexeu na cintura. Tirou a faquinha, uma quase canivete, e cresceu. Targino parara, desconhecendo o adue Hesitava? Hesitou.

Eu tirei a cara da janela, e só ouvi as balas, que assoviaram, cinco rua afora, de enfiada, com o zunido de arames esticados que se solta

E, quando espiei outra vez, vi exato: Targino, fixo, como um m quim, e Manuel Fulô pulando nele e o esfaqueando, pela altura do pe tudo com rara elegância e suma

precisão. Targino girou na perna esqu ceifando o ar com a direita; capotou; e desviveu, num átimo. Seu guardou um ar de temor salutar.

- Conheceu, diabo, o que é raça de Peixoto?!

E eis que isso foi ingratidão, em vista da lealdade dos Véigas, que enchiam o pedaço de rua. Pouco sério, também, foi ele ter dado mais porção de facadas no defunto,

num assomo de raiva supérflua. E cuspia e pontapeava, sujando-se todo de sangue. Mas grande era a sua culpa, já que não é coisa vulgar a gente topar com um valentão

na es da guerra, e extingui-lo a ferro frio.

Manuel Fulô fez festa um mês inteiro, e até adiou, por via disso, o mento, porque o padre teimou que não matrimoniava gente bêbe fui o padrinho.

E o melhor foi que meu afilhado conservou o título, porque, pouc pois, um destacamento policial veio para Laginha, e desapareceram bras possantes, com vocação para

o disputar. Mas Manuel Fulô ficou do um valentão manso e decorativo, como mantença da tradição e p glória do arraial. Só, de vez em longe, quando conseguia burlar

a vigil

S~(,TRANA

4or

da esposa, ingeria um excesso de meia garrafa da branquinha, pedia a Beija-Fulô emprestada ao Antonico das Pedras-Águas, e dava trabalho ao povo, bloqueando a rua

Direita, galopando e disparando, para cima, tiros de mentira ou de verdade, e gritando, até adormecer, abraçado à tábua-dopescoço da mula:

- Conheceu, gente, o que é sangue de Peixoto?!...

4O3

CONVERSA DE BOIS

-Lá vai! Lá vai! Lá vai!...

- Queremos ver... Queremos ver... - Lá vai o boi Cala-a-Boca fazendo a terra tremer!..."

(CORO DO BOI-BUMBA)

4O5

QUE JÁ HOUVE UM TEMPO em que eles conversavam, entre si e com os

homens, é certo e indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas. Mas, hoje-em-dia, agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali, e em toda a parte,

poderão os bichos falar e serem entendidos, por você, por mim, por todo o mundo, por qualquer um filho de Deus?!

-Falam, sim senhor, falam!... - afirma o Manuel Timborna, das Porteirinhas, - filho do Timborna velho, pegador de passarinhos, e pai dessa infinidade de Timborninhas

barrigudos, que arrastam calças compridas e simulam todos o mesmo tamanho, a mesma idade e o mesmo bom-parecer; - Manuel Timborna, que, em vez de caçar serviço para

fazer, vive falando invenções só lá dele mesmo, coisas que as outras pessoas nào sabem e nem querem escutar.

-Pode que seja, Timborna. Isso não é de hoje:... "Visa sub obscurum noctis pecudesque locutae. Infandum!..."Mas, e os bois? Os bois também?...

-Ora, ora!... Esses é que são os mais!... Boi fala o tempo todo. Eu até posso contar um caso acontecido que se deu.

- Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco...

- Feito! Eu acho que assim até fica mais merecido, que não seja.

E começou o caso, na encruzilhada da Ibiúva, logo após a cava do MataQuatro, onde, com a palhada de milho e o algodoal de pompons frouxos, se truncam as derradeiras

roças da Fazenda dos Caetanos e o mato de terra ruim começa dos dois lados; ali, uma irara rolava e rodopiava, acabando de tomar banho de sol e poeira - o primeiro

dos quatro ou cinco que ela saracoteia cada manhã.

Seriam bem dez horas, e, de repente, começou a chegar - nhein... nheinhein... renheinhein... - do caminho da esquerda, a cantiga de um urro-de-bois.

O cachorrinho-do-mato, que agora lambia, uma a uma, as patinhas, entreparou. Solevou o focinho bigodudo e comprido, com os caninos de cirna desbordando, e, de beiços

cerrados, roncou o seu crepitar constante, ralado contra o céu-da-boca.

Mas o outro som foi aumentando, e o carro já estava muito perto.

Corra um rabeio final, o papa-mel empoou-se e espoou-se nas costas, e andou à roda, muito ligeiro, porque é bem assim que fazem as iraras, para

4O6 JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO CO

aclarar as idéias, quando apressa tomar qualquer resolução. Girou, c piou, pensou, acabou de pensar, e aí correu para a margem direita, se arrastando no solo os

quartos traseiros, que pesam demais. E, urge, antes de pegar toca, parou, e trouxe até à nuca, bem atrás de uma or uma das patas de trás, para se coçar.

O rechinar, arranhento e fanhoso, enchia agora a estrada, estriden

O bichinho mediu, com viva olhada, um arco de círculo, escolh o melhor esconderijo: ao pé do pé de farinha-seca, num emaranhad curuás, balieiras e sangues-de-cristo.

Com dois saltos e meio, e mais volta, aninhou o corpo cor de hulha, demasiado indiscreto para a p gem. Deixava apontar a cabeça e o pescoço, meio ruivos, mas as

flor curuá, em hissopes alaranjados, estavam camaradissimamente murch folhas baixas da balieira eram rubras, e o resto a poeira fazia bistre, havana, siena, sujo

e sépia. Somente os olhos poderosos de um ga pombo poderiam localizar a irarinha, e, mesmo assim, caso o gavião se mergulhado o vôo, em trajetória rasante.

Sim e mais, mascarava-se o perfume, sobrado de forte e coisa nenh agradável, inseparável do cãozinho silvestre: porque as frutas da trepa cheiravam maduramente a

maçãs.

Por aí se vê que a irara era genial, às vezes; mas, no fundo, não pãs de uma mulherzinha teimosa, sempre a suplicar: - Me deixem espiar pouquinho, que depois eu

vou-me embora...

Mal se amoitara, porém, e via surgir, na curva de trás da restinga, o nino guia, o Tiãozinho - um pedaço de gente, com a comprida varâ ombro, com o chapéu de palha

furado, as calças arregaçadas, e a c grossa de riscado, aberta no peito e excedendo atrás em fraldas esvoaç

Vinha triste, mas batia ligeiro as alpercatinhas, porque, a dois p da sua cabeça, avançavam os belfos babosos dos bois da guia - Bus biamarelo, desdescendo entre

mãos a grossa barbela plissada, e Namor caracu sapiranga, castanho vinagre tocado a vermelho - que, a cada mento, armavam modo de querer chifrar e pisar.

Segue-seguindo, a ativa junta do pé-da-guia: Capitão, salmilhado, em branco que em amarelo, dando a direita a Brabagato, mirim-mal de branco e de preto: meio chitado,

meio chumbado, assim cardim. bos maiores do que os da junta da guia.

Passo após, a junta, mestra, do pé-do-coice: Dançador, todo bra zebuno cambraia, fazendo o cavalheiro; e, servindo-lhe de dama, Br" te, de pelagem braúna, retinto,

liso, concolor. Ainda maiores do que seus dianteiros da contraguia.

E, atrás - ladeando o cabeçalho - conformes, enormes, tão t nhões o quanto bois podem ser, os sisudos sócios da junta do coice: Re jo, laranjo-botineiro, com polainas

lã de brancas, e Canindé, bochechd de chifres semilunares, e, na cor, jaguanês.

S,ac~`~~`~ 4O7

Escangalhando o chão com as cintas ferradas das rodeiras, gemendo no eixo a sua cantilena, rolava, por último, a bárbara viatura, arrastada aos solavancos. E a irara

virava a carinha para todas as bandas, tão séria e moça e graciosa, que se fosse mulher só se chamaria Risoleta.

Mas, aí, o carreiro, o Agenor Soronho, homenzão ruivo, de mãos sardentas, muito mal-encarado, passou rente ao papa-mel, que estremeceu, ao ver-se ao alcance do ferrão

temperado da vara de carrear. Felizmente, o carro chiava e guinchava como nunca. Porque a cachorrinha-do-mato é sestrosa e não pode parar um instante de rosnear;

e, além disso, estava como que hipnotizada, pela contemplação do bicho-homem e pelos estalidos chlape-chlape das alpercatas de couro cru.

Distanciava-se a complicada caravana. Então, a irara Risoleta fez o cálculo do tempo de que dispunha. Olhou para cima, espiou para o caminho da direita, a ver se

também dali não surgia alguma coisa digna de observarse, e, depois, numa coragem, correu empós a comitiva, vai que avançando espevitada, vem que desenxabida recuando,

sumindo-se nas moitas, indo até lá adiante, namorar o guieiro, mas gostando maismente de se emparelhar com o churrião; não podia, nem jeito, admitir que os grandes

buracos das rodas fossem os óculos de tirar barro, de dar passagem à lama nos atoladiços: eram, isso sim, ótimas janelas, por onde uma irara espreitar.

Maneira seja, pôde instruir-se de tudo, bem e bem. E, tempo mais tarde, quando Manuel Timborna a apanhou, - Manuel Timborna dormia à sombra do jatobá, e o bichinho

veio bisbilhotar, de demasiado perto, acerca do bentinho azul que ele usa no pescoço, - ela só pôde recobrar a liberdade a troco da minuciosa narração.

Como aquele trecho da estrada fosse largo e nivelado, todos iam descuidosos, em sóbria satisfação: Agenor Soronho chupando o cigarro de palha; o carro com petulância,

arengando; a poeira dançando no ar, entre as patas dos bois, entre as rodas do carro e em volta da altura e da feiúra do Soronho; e os oito bovinos, sempre abanando

as caudas para espantar a mosquitada, cabeceantes, remoendo e tresmoendo o capim comido demanhã.

Só Tiãozinho era quem ia triste. Puxando a vanguarda, fungando o fio duplo que lhe escorria das narinas, e dando a direção e tenteando os bois.

E por tudo assim sem história, caminharam um quilômetro ou mais.

Começou, porém, a esquentar fora de conta. Nem uma nuvem no céu, para adoçar o sol, que era, com pouco maio, quase um sol de setembro em começo: despalpebrado, em

relevo, vermelho e fumegante.

Então, Brilhante - junta do contracoice, lado direito - coçou calor, e aí teve certeza da sua própria existência. Fez descer à pança a última bola de massa verde,

sempre vezes repassada, ampliou as ventas, e tugiu:

"Boi... Boi... Boi..."

Mas os outros não respondem: continuam a vassourar com as caudas e

4O$ JOÃO GUIMARÃES ROSA / PICÇAO

a projetar de um para o outro lado as mandíbulas, rilhando m muito bons atritos.

Dando-se que Brilhante fala dormindo, repisonga e se repet nho de boi infeliz. Assim por assim, o pelame preto compacto p` baixas vantagens, qual e tal, em quente

de verão, comborço que ea fraque, entre povos no linho e brim branco. Que por isso, ele qu vez, no pasto, a sombra das árvores, à borda da mata, zona perig mil muruanhas

- tavãs e tavoas - tão moscas, voejam, cam mole e quente em que desovar. Também que lá, medo ao veneno , tem de pastar com completa cautela: Tubarão, irmão de Brilhatl

antigo par de junta, morreu, faz mês e meio, ervado de timbó. por tristes lembranças, decerto, bem faz que Brilhante já carregue sempre. Mas, perpetuamente às voltas

com bernes, bichos, carrap morcegos, rodoleiros, bicheiras, só no avesso da vida, boas ma não pode ter.

Todavia, ninguém boi tem culpa de tanta má-sorte, e lá vai ele afrontado pela soalheira, com o frontispício abaixado, meio guil pela canga-de-cabeçada, gangorrando

no cós da brocha de coara do, que lhe corta em duas a barbela; pesando de-quina contra as os dentes dos tamis biselados; batendo os vazios; arfando ao ritmo telame,

que se abre e fecha como um fole; e com o focinho, glabro, engraxado, vazando baba e pingando gotas de suor. Rebufa e sop

"Nós somos bois... Bois-de-carro... Os outros, que vêm em para ficarem um tempo-das-águas pastando na invernada, sem só vivendo e pastando, e vão-se embora para

deixar lugar aos no chegam magros, esses todos não são como nós..."

- Eles não sabem que são bois... - apóia enfim Brabagato, ac a Capitão com um esticão da orelha esquerda. - Há também o h

- É, tem também o homem-do-pau-comprido-com-o-marimbo ponta... - ajunta Dançador, que vem lerdo, mole-mole, negando O- O homem me chifrou agora mesmo com o pau...

- O homem é um bicho esmochado, que não devia haver. N vém espiar muito para o homem. É o único vulto que faz ficar zo olhar muito. É comprido demais, para cima,

e não cabe todo de dentro dos olhos da gente.

- Mas eu já vi o homem-do-pau-comprido correr de uma va uma vaca. Eu vi.

- Quieto, Buscapé!... Sossega, meu boizinho bom... - clam nino guia.

Não é à toa que Buscapé é um boi china, espantadiço e pois pe que avança distanciando muito as patas e costuma relar com os ca tos os calcanhares do guia. Mais ao

jeito que ele é mogão e malque, se tivesse bons estrepes, na parelha de testa um perigo seria.

S~GA~N~

Mias Agenor Soronho estranhou qualquer lance:

. Vigia aí, Tiãozinho! Vi um bicho raboso mexer no matinho... Alguma bisca de lobo, ou um jaguapé. Isso são criaturas p"ra vagarem de-noite, não sei o-quê que andam

querendo a esta hora em beira de estrada, p"ra assustar os bois!

Brabagato curvou-se, chegando o focinho, com veneta de lamber o entrechifres de Capitão:

- Um homem não é mais forte do que um boi... E nem todos os bois obedecem sempre ao homem...

- Eu já vi o boi-grande pegar um homem, uma vez... O homem tinha também um pau-comprido, e não correu... Mas ficou amassado no chão, todo chifrado e pisado... Eu

vi!... Foi o boi-grande-que-berra-feio-e-carrega-uma-cabaça-na-cacunda.. .

- Ele é bonito, esse um... - profere Dançador, que por sinal dá retrato de zebuíno-nelorino: na cabeçorra quase de iaque - testa lomba, grãos de olhos, cara boba,

mais focinho - e na meia giba da cruz; mas ajunta outro tanto de sangue sertanejo, e a mistura põe-lhe um pré-corpo entroncado, dilatado e corcovado, de bisão.

Acolá, longe adiante, onde as árvores dos dois lados se encontram e encartucham e o caminho se fecha aos olhos da gente, apontaram de repente uns cavaleiros. Vêm

chegando. Para que eles possam passar, mesmo tendo de contornar o barranco, Tiãozinho detém os bois.

- Boas tarde, seu Agenor! Que é que vão carreando?

- Umas rapadurinhas pretas, mais um defunto... É o pai do meu guia, que morreu p"r"amanhecer hoje...

- Virgem Santa, seu Agenor! Imagina, só, que coisa triste... - Os homens se descobrem. - E de que foi mesmo que o pobre morreu, seu Agenor, ele que era tão amigo

do senhor...?

- Agente não sabe... Da doença antiga lá dele... O coitado andava penando.

- Pobrezinho do menino! ... - exclama a moça do silhão. E, a tais palavras, Tiãozinho, que já estava meio quase consolado, recebe inteira, de volta, sua grande tristeza

outra vez.

Brabagato aproveitou a parada para se deitar. Desce o corpo, dobrando as quatro pernas, tudo muito complicado, e os joelhos como que se quebrara completamente -

parece que os Barrões vão ao sovaco, cai a quartela na canela e bate o braço no boleto. Amontoa-se no fundo sulco da beira da estrada; e Capitão não reclama: sustenta

a canga, inclinando o cogote, e descai as orelhas, enviesando olhos mornos. Mas Brabagato camba para o outro lado, depois de extrair a cauda, que, por afã e por

engano, lhe ficara imprensada embaixo, e enxota as moscas passeantes pelo lombo e pelas ancas de montanha branca-e-preta.

~s cavaleiros se despedem. Mas, agora, a moça do silhão joga uma es-

Oro lOAO GUIMARAES Rosn 1 F~cçAO Co

piadela e murmura, enojada, qualquer coisa a respeito da falta de esc los de se acondicionarem cadáveres em cima de rapaduras. - Vamos"embora, vamos"embora.

Tiãozinho quase não tem fala, mas Soronho brande a vara e brad mau-humor. Brabagato se reajoelha e acaba de aprumar-se, em dois pos e três ferroadas. Os outros rompem

adiante, com pronta pressai tiradeiras se retesam, de argola a argola. E os bois todos batem cascos, tando a normal locomoção.

- Oung.~Moung.~-bufa Canindé, monótono, arrepiando o fio br do dorso, e repuxando, dos filhais às primeiras costelas, a pelagem gada - de cada lado uma risca preta

e uma risca vermelha, muito la salpicadas de branco, na descida do flanco e na corda do flanco, pois q muito bonito um boi jaguanês. Bufa e fala, pé por pé para

caminhar:

- Os bois soltos não pensam como o homem. Só nós, bois-de-ca sabemos pensar como o homem!...

Mas Realejo, pendulando devagar fronte e chifres, entre os canzi madeira esculpida, que lhe comprimem o pescoço como um colarinh ro, resmunga:

- Podemos pensar como o homem e como os bois. Mas é melhor pensar como o homem...

- É porque temos de viver perto do homem, temos de trabalhar.:. mo os homens... Por que é que tivemos de aprender a pensar?...

- É engraçado: podemos espiar os homens, os bois outros...

- Pior, pior... Começamos a olhar o medo... o medo grande... e a p sa... O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa semminho... É ruim ser boi-de-carro.

É ruim viver perto dos homens... As sas ruins são do homem: tristeza, fome, calor - tudo, pensado, é pior:

- Mas, pensar no capinzal, na água fresca, no sono à sombra, é bo É melhor do que comer sem pensar. Quando voltarmos, de noite, no to, ainda haverá boas touceiras

do roxo-miúdo, que não secaram... E mo o catingueiro-branco está com as moitas só comidas a meia al É bonito poder pensar, mas só nas coisas bonitas...

"É isso mesmo... Só o que é bonito... O que é manso e bonito... Eu queria contar uma coisa... Sabia de uma coisa... Sabia, mas não sei ma As orelhas de Brilhante

murcharam, e a cabeça sobe e desce. "Não en tro mais aquilo que eu sabia... Coisa velha... Também, vem tanta coisa a gente pensar!... Vem, como os mosquitos maus,

da beira do mato... P do homem, só tem confusão..."

- Boi oa, boi!... Dianho!... - grita seu Soronho.

Mais não foi que Brabagato, o chamurro pintado, que de-manhã tou algum talo de capim-roseta, e agora talvez esteja sentindo dor q quer, no terceiro ou no quarto

estômago seu, e quer ruminar de foc

Sac ~K,w.~ 4u

alto; e acontecido que Capitão é um couro-grosso mal mestiçado de franqueiro, que anda pesa-pendendo e cheirando chão, foi quebrado de desfeito, quando o companheiro

de trela sungou a cabeça de repente. - Moung?! - Hmoung-hum!... - E badala o cincerro, do pescoço, porque Capitão vem de guampa afoita, oblíquo, querendo mesmo ferir.

E então, calmo, rediz Dançador, voz tão rouca, de azebuado, com tristeza no tutano:

- Não podemos mais deixar de pensar como o homem... Estamos todos pensando como o homem pensa...

Péssima dupla, esta da contra-guia: Brabagato, mal-castrado, tem muito brio e é fogoso; e Capitão é um boi sonso, e pois mau como uma vaca na menopausa. Por isso,

e porque um e outro têm chifres verdes - se a gente furar, para pôr as argolas, darão sangue - prende-lhes os cangotes a soga rija, em vez das chifradeiras dos outros

cingéis. Divergem as cabeças, e a junta se bifurca, o quanto permite o ajoujo, que essa é a única maneira de se darem as costas. Logo Brabagato recua o corpo, trazendo

a canga até à base das hastes. Mas o cornil resiste. E já o carreiro, que vinha quase que só determinando coice e contra-coice, chega de lá, balanceando a vara.

- Capitão!... Brabagato!... - O ferrão cata lombos, palhetas e espáduas, e os bois dois se aquietam, com os flancos em marmelada, a sangrar.

Mas o caminho vai. E alongam-se para diante, na paisagem luminosa, as sombras songas dos bois.

- Estamos todos pensando que nem o homem?... Você, o-que-gostade-pastar-à-beira-da-cerca-do-pasto-das-vacas?!...

- Sou o boi Brabagato.

- E o-que-deita-para-se-esconder-no-meio-do-meloso-alto?

- Sou o boi Namorado.

- E o boi-da-noite-que-saiu-do-mato? Boi Brilhante, boi Brilhante?!... Que foi que ele disse?...

"Estou caçando e não acho... Mas não vamos pensar como o homem... Esperem... Ainda não encontrei aquilo..."

- O-quê?...

"Só o que for manso e o que for bonito... Também, assim, não posso... Nào sei o que é que o carro diz, gritando tanto... Só os cavalos é que podem entender o carro..."

O sol agora está dois degraus mais alto. A poeira deixou de ser vermelha: e parda, arecendo cinza fina. Estão num baixadão de campo, de semi-arbustos, flechinha

e capim-lanceta, todo encalombado de surujes de cupins.

Vem a voz de outro carreiro, gritando. Fazem a volta, acolá, outras Juntas: seis parelhas, puxando um carretão, que arrasta imenso toro acorrentado - um tronco de

tamboril, tal de metros de diâmetro, lavrado no mato.

Tiãozinho sorri para o menino-guia. Soronho saúda os carreiros. E os

bois de cá espiam os bois do carretão: com outros, mal conhecidos: T rão, Marechal, Cantagalo e Murici. Também deitam olhares, mas vã nados, que o peso é pesado:

debruçando os perfis cuneiformes; col nas jugulares das brochas; bijungidos, dois a dois paralelos, - anca a" chifre a chifre, pá a pá.

Passam. Passaram. Sumiram. O carro aqui rechina mais forte, ou - Esperta, boi!...

Agora, o carreiro, sim, que é homem maligno. O dia, para ele, am ceu feliz, muito feliz. Mas, mesmo assim por assim, só porque está su não deixa de implicar:

- Tu Tião, diabo! Tu apertou demais o cocão!... Não vê que a carreando defunto-morto, com essa cantoria, até Deus castiga, siô?!.: r vê que é teu pai, demoninho?!...

Fasta! Fasta, Canindé!... Oa!... O-oa!... da, fica novo, bocó-sem-sorte, cara de pari sem peixe!... Vai botar azei chumaço, que senão agorinha mesmo pega fogo no

eixo, pega fogo e do, com o diabo p"r"ajudar!...

Tiãozinho veio no grito, mas se mexendo encolhido, com medo o homem desse nele com a vara-de-ferrão. Falta de justiça, ruinda Foi o carreiro mesmo quem apertou a

chaveta da cantadeira, hoje ce até estava enjerizádo, na hora, falando que Tiãozinho era um pregu" que não prestava nem para ajeitar o carro nem para encangar os

bois:

Clamando, xingando, Agenor Soronho vem para a traseira, ond pendurado o chifre de unto. Estende-o ao menino, e dá uma espi para dentro. Atrás, o carro estava sem

tampo: só com uns sedenhos, es dos a diferentes alturas, entre os muitos fueiros, para impedir que, a tranco, a carga se fosse derramando.

Em cima das rapaduras, o defunto.

Com os balanços, ele havia rolado para fora do esquife, e estava chado, horrendo. O lenço de amparar o queixo, atado no alto da ca não tinha valido de nada: da boca,

dessorava um mingau pardo, q babujando e empestando tudo. E um ror de moscas, encantadas com o regamento duplamente precioso, tinham vindo também.

Soronho volve depressa a cara e vai encostar-se à cheda do lado dir onde a esteira de caniço, alta, o isola do fúnebre viajante.

Mas, acolá, nos encangamentos, prorrompe novo reboliço.

- Olha esses bois, aí, diabo!... Capitão! Brabagato!...

Treta e teima. Alguma mutuca voandeja passou a pinicou a orei Brabagato, que estava de olhos fechados e atribuiu a ofensa a Capitão rou, raivado. Entestam. Reentestam.

E estralam as chifrancas.

Soronho fincou a aguilhada, e Tiãozinho correu, atarantado, sem se oleava o cocão ou se acalmava os dois da guia, que, ouvindo bu atrás, pensavam que havia ordem

para caminhar.

- Oa!... - Dá de-prancha, com a vara, nos topetes dos bois, que

5~~, ~R,~ti ~ 413

viam para fora os nós dos joelhos, e travam pausa, imóveis perfeitamente. Então o candeeiro volta para azeitar o eixo, depois de deixar a vara apoiada no peito da

canga - obstáculo esse que Buscapé e Namorado resguardam com respeito.

Mas Agenor Soronho olhou para o sol, enrugando a cara. Pisca, pisca, e mais se enfeza.

- Que martírio!... De vez que não acaba mais com isso, ou tu pensa que os outros vão ficar no arraial com o cemitério aberto, esperando a gente?!...

- Já vou, seu Soronho... Já vai...

- É, nheinhein?!... Ai, que sina, esta minha, trabalhando em sol e chuva, e inda tendo de agüentar este mamão-macho sem preceito!... Tu fala macio, mas p"ra trabalhar

comigo tu não presta... Mais em antes eu queria, um rapazinho carapuçudo e arapuado, que fosse mal-criado mas com sustância que nem eu, p"ra trabucar... Que me importa,

se a gente chega de noite no arraial?! O pai não é meu, não... O pai é seu mesmo... Só que tu não tem aquela-coisa na cara... Mas, agora, tu vai ver... Acabou-se

a boa vida... Acabou-se o pagode!...

Chora-não-chora, Tiãozinho retoma seu posto. "O pai não é meu, não... O pai é seu mesmo..." Decerto. Ele bem que sabe, não precisa de dizer. É o seu pai quem está

ali, morto, jogado para cima das rapaduras... Deixou de sofrer... Cego e entrevado, já de anos, no jirau... Tiãozinho nem se lembrava dele de outro jeito, nem enxergando

nem andando... Às vezes ele chorava, de-noite, quando pensava que ninguém não estava escutando. Mas Tiãozinho, que dormia ali no chão, no mesmo cômodo da cafua,

ouvia, e ficava querendo pegar no sono, depressa, para não escutar mais... Muitas vezes chegava a tapar os ouvidos, com as mãos. Malfeito! Devia de ter, nessas horas,

puxado conversa com o pai, para consolar... Mas aquilo era penoso... Fazia medo, tristeza e vergonha, uma vergonha que ele não sabia bem por que, mas que dava vontade

na gente de querer pensar em outras coisas... E que impunha, até, ter raiva da mãe...

- Oa!... pa, boi teimoso... Buscapé, demônio!

Ah, da mãe não gostava!... Era nova e bonita, mas antes não fosse... Mãe da gente devia de ser velha, rezando e sendo séria, de outro jeito... Que não tivesse mexida

com outro homem nenhum... Como é que ele ia poder gostar direito da mãe?... Ela deixava até que o Agenor carreiro mandasse nele, xingasse, tomasse conta, batesse...

Mandava que ele obedecesse ao SoronhO porque o homem era quem estava sustentando a família toda. Mas o carreiro não gostava de Tiãozinho... E era melhor, mesmo,

porque ele tambem tinha ojeriza daquele capeta!... Ruço!... Entrão!... Malvado!... O demônio devia de ser assim, sem tirar e nem pôr... Vivia dentro da cafua...

SO não embocava era no quartinho escuro, onde o pai ficava gemendo; mas não gemia enquanto o Soronho estava lá, sempre perto da mãe, cochichando os dois, fazendo

dengos... Que ódio!...

4i4 lOAO GuiMnaAes Rosn / Ficçno C

O caminho, descurvo, vai liso para a frente. E, lá léguas, meão ro Morro Selado, onde mora um sujeito maluco, que tem ouro enterr chão.

Pobre do pai!... Tiãozinho tinha de levar a cuia com feijão, para junto com ele, porque nem que a mãe não tinha paciência de pôr da na boca do paralítico... E ela,

com seu Soronho, tinham, para outras coisas, melhores... Deviam de ter... Mas, com isso, Tiãozinho" importava... O que doía era o choro engasgado do pai, que não

falav se nunca... Mas Deus havia de castigar aquilo tudo. Não estava direit estava não!...

- Cristo! Cris-pim-cris-pim-cris-pim-crispim!

Um par de joãos-de-barro arruou no caminho, pouco que aos Tiãozinho. Ganhando aos pulos, abrem bico e papo, num esganiço rido, mesmo de propósito, com rompante.

Arrepicam e voam embo a prando penas. Marido e mulher.

- Oa, Namorado!... - E Tiãozinho faz meia-volta e dá uma co de-costas, pelejando para conter os da guia, golpeando-lhes as testo picando-os com o ferrão. Foi Namorado,

o boi vermelhengo, que to um repente e chegou a`catucar o candeeiro, com uma cornada de-tr Mas, agora, está pondo olhos mansos, em fito desconsolado, enq Buscapé

se socorna.

Boi urubu é boi Brilhante, que afunda cachaço e cara, angular, p chão da frente. Preto e movente, assombra, que nem estranho enorme cho d"água, com óleo e lustro

no pêlo, esgueirando-se a custo, quase pante. E boi Brilhante pensa falado:

"Estou andando e procurando... As coisas pequenas vêm vindo, h trás, na cabeça minha, mas não encontro as coisas grandes, não topo aquilo, não..."

Ora caminhando de frente, ora aos recuões, Tiãozinho tem de fic pertado, porque os bois agora deram para se agitar. Se o guia pega a demais, se descuidando, logo

se alerta com o bafo quente nas orelh baba lhe respingando na nuca.

- Oa, Namorado!...

Também, quem tem a culpa deles ficarem assim desinquietos é o refiro, que vem picando os bois, à toa, à toa, sem precisão. É mau me "Mas, agora, tu vai ver!... Acabou-se

a boa vida... Acabou-se o pagode!".. que falar isso?!... Seu Soronho sempre não xingou, não bateu, de cabres vara-de-marmelo, de pau?!... E sem ter caso para mão

brava, nem hora pelo que ele lidava direito, o dia inteiro, capinando, tirando leite, bu do os bois no pasto, guiando, tudo... Mas Tiãozinho espera... Há-de gar

o dia!... Quando crescer, quando ficar homem, vai ensinar ao seu A Soronho... Ah, isso vai!... Há-de tirar desforra boa, que Deus é grande!

Um mandiocal. O cafezal: de cimo a chão, moita e folha. As banan

S~c,~HT~~ 4r5

"Bhu! Muff"... De repente, boi Brilhante projetou a cabeça, que sai do enquadramento - canga, canzis e brocha - como o pescoço de um jabuti que se desencaixa para

beber chuva. E fanha, e funga:

"Achei a coisa, aquilo!... Foi o boi que pensava de homem, o-que-comede-olho-aberto..."

- Era o boi Rodapião...

"Era o boi Rodapião. E foi. Chegou, um dia, não se sabe..."

- Veio de-manhã...

"Pequeno ele, pouco chifre, vermelho café de-vez... Era quase como nós aquele boi Rodapião... Só que espiava p"ra tudo, tudo queria ver... E nunca parava quieto,

andava p"ra lá e p"ra cá..."

-Eu também pastei junto, com esse boi Rodapião...

Estão passando agora em frente à Fazenda do seu Gervásio. Os cachorros vêm fazer algazarra cá embaixo na estrada, só para assustar os bois. Agenor Soronho manda

no que é seu: - Canindé, Realejo!... Oa, Brabagato! Õ"r" vai!... ; e grita mais pelo Diabo, que "diabo" é o seu refrão.

A casa está aberta, mas não se vê ninguém. Todos foram ao canavial, pois é o começo do tempo de corte, marcar a cana caiana que vão moer amanhã de-manhã.

- Vamos, Buscapé!... Va-amos!...

O casarão avarandado já ficou para trás, com a latomia dos cachorros e as frondes do laranjal. Tiãozinho começa a cansar. Que calor!... E a poeira seca a goela da

gente. Estará sentindo dor-por-dentro no pescoço? São Brás! São Brás!... Não quer penar como o Didíco da Extrema, que caiu morto, na frente de seus bois...

Tinha só dez anos o Didico, menor do que Tiãozinho. Mas trabalhava muito, também. Foi num dia assim quente, de tanta poeira assim... Ele teve de ir carrear sozinho,

porque era o carro pequeno, só com duas juntas e carga pouca, de balaios de algodão. Na hora de sair, se queixou: - "Estou corn uma coisa me sufocando... Não posso

tomar fôlego direito, nem engolir... E tenho uma dor aqui..." (Lá nele, Didico...)

Ninguém se importou; falaram até de ser manha, porque o Didico era gordinho e corado, parecendo um anjo de estampa, de olhinhos gaiteiros e anuis.

Mas estava custando muito a voltar. Nunca mais aparecia com o carro. E foram encontrá-lo, lá longe, na covanca da Abóbora-d"Água, já frio. Os bois haviam parado,

para não pisarem cima, e estavam muito quietos, pois às vezes eles gostam de ficar assim. Menos os da guia, que tinham mascado e comido quase toda a roupinha do

pobre do Didico... - São Brás!...

Vào por um tracto de campo ondulado, com pastagem áspera de cap~m-guiné verde-azul Só aqui ou ali uma árvore: ou pau-doce ou pau

um g lho,a omo enorme coador de~aféum ninho de guaxe pendurado de

4i6 loAO GUIMARAES Rosn / FiCçAO C

E aí, que todos estugam as passadas, boi Brilhante desdorme, em vezo de conversação:

... "Comigo, na mesma canga, prenderam o boi Rodapião... Ch quis espiar tudo, farejar e conhecer... Era tão esperto e tão estúrdi ninguém não podia com ele... Acho

que tinha vivido muito tempo dos homens, longe de nós, outros bois... E ele não era capaz de fee olhos p"ra caminhar... Olhava e olhava, sem sossego. Um dia só,

conta de se ver que ninguém achava jeito nele. Só falava artes com idéia de homem, coisas que boi nunca conversou. Disse, logo: - não sabem o que é importante...

Se vocês puserem atenção no que eus no que eu falo, vocês vão aprendendo o que é que é importante... - por essas palavras mesmas, nós já começamos a ver que ele

tinha quase como um homem, meio maluco, pois não..."

- Oa!

Estacam todos, bois e carro, no meio do chapadão. Foi o guia T nho, que teve de parar para segurar as calças, que lhe tinham caído d pente até aos pés. Depôs a vara

no chão, depressa, porque estava até v lho, só em camisão e perninhas magrelas, que vergonha. E agora es custando para amarrar a tira de pano na cintura e ficar

composto ou

Com o céu todo, vista longe e ar claro - da estrada suspensa no p to - grandes horas do dia e horizonte: campo e terras, várzea, vale, res, lajeados, verde e cores,

rotas sinuosas e manchas extensas de mat sem-fim da paisagem dentro do globo de um olho gigante, azul-espr te, que esmiúça: posto no dorso da mão da serrania, um

brinquedo pequeno, pequeno: engenhoca minúscula de carro, recortado; e u to de vara segura no corpo de um boneco homem-polegar, em pé, sol de-chumbo com lança, plantado,

de um lado; e os boizinhos-de-ca presépio, de caixa de festa. E o menino Tiãozinho, que cresce, na frente mágica. Pronto. As calças não vão cair mais!

Arre! que nunca foi tão penosa uma ida ao arraial. Também, com tão triste, carreando o pai para a cova, coitado do pai... Mas, deve subido para o Céu, direito, na

mesma da hora... Na véspera de morr noite, ele ainda pedira para Tiãozinho tirar reza junto... E Tiãozinho ra o terço, cochilando... Estava com muito sono, porque

tinha ido, a Marçal Velho, levar um recado... Depois da salve-rainha, o pai pôs bênção, e ele deitou no enxergão, para dormir logo, esquentando os lambos... Também

não adiantou nada estar dormindo no mesmo can deu fé daquela tristeza toda foi quando viu a mãe, chorando, sacudiu para levantar. Aí, Tiãozinho tinha chorado também...

Mas, a mãe, por que é que ela havia de chorar?! por quê? Ela não g do pai... Tiãozinho pouco pudera ver, pelos buracos da parede de pique, quando eles estavam lavando

o corpo... A cafua se enchera, nã bendo, de gente... E seu Agenor Soronho estava muito galante com t

SpGARANA 41~

Estava mesmo alegre, torcendo as pontas do bigode vermelho, mas fazendo de estar triste, as vezes, de repente... E até, quando Tiãozinho, zonzo de tanta confusão,

se sentara na pedra que faz degrau na porta da cozinha, o carreiro tinha vindo consolar sua tristeza, dizendo que daí em diante ia tomar conta dele de verdade, ia

ser que nem seu pai...

Os vizinhos bem que estavam às ordens, para carregar cristão defunto. Mas eram seis léguas apuradas, e, como seu Agenor estava mesmo para levar uma carga de rapadura

do Major Frexes, dispensou os préstimos para o cortejo, e atrelou quatro juntas, porque na volta ia trazer o carro cheio, com os rolos de arame farpado que estavam

esperando por ele, na estação do arraial...

Não havia caixão: só o esquife tosco, entre padiola e escada, com as barras atadas com embira e cipó. Ajeitaram o morto em cima do ladrilhado das rapaduras. Tiãozinho,

já pronto, esperava no seu lugar com muita pressa de sair, porque aquilo tudo estava sendo ruim demais... A mãe ficara na porta, chorando sempre, exclamando bobagens,

escorada nas outras mulheres todas, que ajudavam a chorar... E o resto do povo tinham feito Opelo-sinal e virado as costas, porque faz mal a gente ficar espiando

um enterro até ele se sumir.

O caminho-fundo corta uma floresta de terra boa, onde cansa à gente olhar para cima: árvores velhas, de todas as alturas - braçudas braúnas, jequitibás esmoitados,

a colher-de-vaqueiro em pirâmides verdes, o lanço gigante de um angico-verdadeiro, timbaúbas de copas noturnas, e o paredào dos açoita-cavalos, escuros. Cheiro bom

de baunilha, sombra muito fresca, cantos de juritis, gorjear de bicudos, o trilo batido da pomba-mineira, e, mais longe, mais dentro, na casa do mato, o pio tristoriho

do nhambu-chororó.

Tiãozinho atrasa o passo, para aproveitar. Mas ainda está triste. Não quer pensar no pai depois - tem medo de pôr a idéia no corpo que vem em-riba da pilha das rapaduras.

Só agüenta pensar nele de-em-antes, na cafua... Pega a imaginar outras coisas. Fala os bois, sem precisão: - BuscaPé!-.. Brabagato!... - Depois, faz força para se

lembrar dos nomes das vacas todas do seu Major Gervásio: Espadilha... Bolívia... Azeitona... Mexerica é a turina. Porcelana é a toda branca, desmochada. Guiamina

é a preta, de cinturão branco no cilhador...

Mas, o chapéu na cabeça? Não pode... Tira o chapeuzinho de palha, que também não tapa o sol e nem nada. Vai levar na mão. Também... Não quer Pensar mais no pai em-antes.

Mas não tem idéia para poder deixar de pensar--- O pai gemendo... Rezando com ele... E se rezasse também agora?... DeVia...

E começa a rezar, meio alto, só como sabe, enquanto a estrada sai do mato para o calorão do cerrado, com enfezadas arvorezinhas: muricis de Pernas tortas, manqüebas;

mangabeiras pedidoras-de-esmola; barbatimãos

q18 lOAO GuiMnaAes Rosn / FicçAO C

de casca rugosa e ramos de ferrugem; e, no raro, um araticum teimo conseguiu enfolhar e engordar.

Da garupa de Brabagato a cauda cai como uma cobra grossa, os e o pincel zurze o ar, quase nos chifres de Brilhante, que fechou de t olhos e vergou o toutiço.

.. "Cada dia o boi Rodapião falava uma coisa mais difícil p"ra nó Deste jeito: - Todo boi é bicho. Nós todos somos bois. Então, nós somos bichos!... Estúrdio...

"Quando a gente não saía com o carro, e ficava o dia no pasto, ele mais em-mais. Uma vez, ele disse: - Nós temos de pastar o capim, e beber água... Invês de ficar

pastando o capim num lugar só em volt ge do córrego, p"ra depois ir beber e voltar, é melhor a gente com longe, e ir pastando e caminhando, devagar, sempre em frente...

Qu gente tiver sede, já chegou bem na beira d"água, no lugar de beber; e a gente não cansa e tem folga p"ra se poder comer mais! - E ele fo" fazendo assim, do jeito

como tinha falado; mas nós nem podíamos p em fazer que nem ele. Porque a gente come o capim cada vez, onde pinzal leva as patas e a boca da gente...

"Outra vez, boi Rodapião disse: - Quando o boi Carinhoso ficou do, na beirada do valo do pasto, e não quis comer de jeito nenhum, mem veio e levou o boi Carinhoso

no curral, e pôs p"ra ele muito s cocho... Se nós ficarmos também sem comer, todos, parados na beis valo, o homem nos dará milho e sal, no curral, no cocho grande...

fez assim mesmo, e aquilo deu certo; e boi Rodapião comeu sal m ficou alegre. Nós, não."

O rangido do carro de novo se reforça. Brilhante dormiu. Veio u lêncio. E todos, de olhos quase fechados, ficam vivendo na cabeça e mais fundas que o pensamento

e o sonho, e, assim, sem pressa, che vau do ribeirão.

Está um mormaço pesado, mas o ribeirão corre debaixo de árvor bem-bom. Tiãozinho entra, até os joelhos, na água, fria que faz có Molha os pulsos. O chapeuzinho furado

é peneira para vazar. Entã abaixa as mãozinhas juntas, e bebe.

A junta da guia, com simetria perfeita, baixa os três arcos da canga, trazer as belfas ao rés da correnteza; e, abrindo as fuças em conchas os bois sorvem, demoradamente.

De eis, Buscapé, e depois Namorado, acabaram; sacodem o m das caras, lambem os beiços, devagar, e ficam espiando, à espera. Que tos de grandes, e cheirando forte

a bondade, bois companheiros, quer fazem mal a ninguém; criação certa de Deus, olhando com os olhos q de pessoa amiga da gente!... E Tiãozinho corre os dedos pelo

cenho de capé, e passa também mão de mimo no pescoço de Namorado - im

os dois.

Todos já beberam; mesmo Realejo não tem mais sede: mantém o focinho abaixado, só porque, no limo que se esfiapa das pedras do fundo, supõe talvez uma raça de capim

de luxo, que deve de ser macio...

Aí é que Agenor Soronho está mesmo com o demo:

- Vam"bora, lerdeza! Tu é bobo e mole; tu é boi?!... Carece de ficar aí a vida inteira, feito estaca de dentro d"água, feito esteio de moinho?!... Vamos, Canindé!...

Dançador! Vamos!...

Quando as rodas entram no córrego, Agenor Soronho não se molha, porque já está trepado, entre o pigarro e a chavelha, no cabeçalho, que avança como um talhamar.

E fez bem, porque, depois da passagem, por metros, há um alagadiço perene: um tremembé atapetado de alvas florinhas de bem-casados e de longos botões fusiformes

de lírios.

- Entra p"ra o lado de lá, que aí está embrejado fundo... Mais, dianho!... Mas não precisa de correr, que não é sangria desatada... Tu não vai tirar o pai da forca,

vai?... Teu pai já está morto, tu não pode pôr vida nele outra vez!... Deus que me perdoe de falar isso, pelo mal de meus pecados, mas também a gente .cansa de ter

paciência com um guia assim, que não aprende a trabalhar... Oi, seu mocinho, tu agora mesmo cai de nariz na lama!... - E Soronho ri, com estrépito e satisfação.

Tiãozinho olhou, assim meio torto. "Teu pai já morreu, tu não pode pôr vida nele outra vez..." Por que é que não foi seu Agenor Carreiro quem a morte veio buscar?!

Havia de ter sido tão bom!...

Os bois tafulham as munhecas, com cloques sonoros; quando desatolam, para outra passada, a água suja escorre, chorrilhando, para encher os moldes dos cascos, e,

no mais mole, as bainhas - as fundas cisternas cavadas pelos mocotós.

Enlameado até à cintura, Tiãozinho cresce de ódio. Se pudesse matar o carreiro.,. Deixa eu crescer!... Deixa eu ficar grande!... Hei de dar conta deste danisco...

Se uma cobra picasse seu Soronho... Tem tanta cascavel nos pastos... Tanta urutu, perto de casa... Se uma onça comesse o carreiro, de noite... Um opção grande, da

pintada... Que raiva!...

Mas os bois estão caminhando diferente. Começaram a prestar atenção, escutando a conversa de boi Brilhante.

-- "Então, boi Rodapião ainda ficou mais engraçado de-todo. Falava: - A gente deve de pensar tudo certo, antes de fazer qualquer coisa. É preciso andar e olhar,

p"ra conhecer o pasto bem. Eu conheço todos os lugares, sei °nde o capim é mais verde, onde os talos ficam quase o dia inteiro molhados de orvalho, p"r"a gente poder

pastar mais tempo sem ter sede. Sei onde e Sue não dá tanto mosquito, onde que a sombra, e o limpo do chão; e, pelo jeito do homem, sei muitas vezes o que é que

ele vai fazer... Olho p"ra tudo, e sei., toda hora, o que é melhor... Não tenho nunca dor-de-barriga, porque não pasto por engano capim navalha-de-mico, no meio

do jara8uá--- Vocês não fazem como eu, só porque são bois bobos, que vivem no

419

42O JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO

escuro e nunca sabem porque é que estão fazendo coisa e coisa. vezes quantas são as nossas patas, mais nossos chifres todos juntos, orelhas nossas, e mais: é preciso

pensar cada pedaço de cada coisa, cada começo de cada dia...

"E nós não respondíamos nada, porque não sabemos falar desse j mesmo porque, cada horinha, as coisas pensam p"r"a gente...

"Mas boi Rodapião ia ficando sempre mais favorecido com suas era em longe o mais bonito e o mais gordo de nós todos. Até que um dia..."

- Firme, Realejo!... Canindé, boi bom!...

Vão descer uma rampa de grande declive, e os bufalões destaman

junta do coice agüentam o peso do carro, fazendo freio e firmando n

os cascos, fendidos como enormes grãos de café. - Vamos!...

A traquitana continua a se afundar morro abaixo, agora uma 1 mais calma, com as juntas da frente apressadas, as ferragens tinindo a apeiragem fazendo balbúrdia,

nas chapas e nos ganchos.

Mal o caminho se deita, Canindé solta uma interjeição bovina amável: sim de orelhas, sopro frouxo e três oitavos de mugido; e Real qualquer monossílabo, com ironia

também soprosa, de ventas dila contraídas as falsas-ventas. Mas, lá na guia, obliquando a caranton menta Buscapé:

- As coisas corriam lisas, como um córrego... Passavam as tou do bengo, ligeiras... Passavam as moitas, subindo o morro... Corrias pim-angola, ainda em mais correnteza...

Eu estou com fome. Não g puxar o carro... Queria ficar pastando na malhada, sozinho... Sem mens.

- Eu acho que nós, bois, - Dançador diz, com baba - assim c cachorros, as pedras, as árvores, somos pessoas soltas, com beiradas, c ço e fim. O homem, não: o homem

pode se ajuntar com as coisas, se e tar nelas, crescer, mudar de forma e de jeito... O homem tem partes cas... São as mãos... Eu sei...

Mas já Brilhante endureceu as orelhas, soslaiando Dançador:

... "Chegou um dia, nós reparamos que já estava trecho demaís- chover. Tempo e tempo. Coisa como nunca em antes tinha sido. que nem capim seco não tinha mais, e

a gente comia gravetos, c árvores, e desenterrava raiz funda, p"ra pastar. Foi ruim...

"Então, os homens vieram, e chamaram todos os bois p"ra fora dorapado, e foram levando a gente p"ra longe. Muitos dias, muito long pois, chegamos... E puseram os

bois nós todos num pasto diferente, gual de todos os pastos, e que era todo num morro frio, serra a-pique, capim conhecido de nenhum de nós... Aí a gente pegou a

comer, sem levantar as cabeças... Mas, o boi Rodapião..."

SAG,4RAN.A 421

Lés a lés, de mato para mato, cruzou uma borboleta grande, uma panãpanã de céu e brilho, que, a cada vez redonda de abrir asas, parecia tornar a se recortar e desdobrar

de um papel azul.

,. - "O bebedouro fica longe - disse o boi Rodapião. - Cansa muito ir até lá, p"ra beber... Vou pensar um jeito qualquer, mais fácil... Pensando, eu acho...

"Aí, nós nem respondemos. Aquilo era mesmo do boi Rodapião. Porque eu não tinha precisado de pensar, p"ra achar onde era que estava o bebedouro, lá embaixo, mais

longe."

- Brilhante, vaca diabo!...

Lá vem seu Soronho, que nem um demônio, pernas e pernas, caminhando nas tiradeiras esticadas, pulando entremeio às juntas, e achando jeito para meter o aguilhão

na cruz espessa de Realejo e na cernelha pontuda de Dançador.

Tiãozinho baixa a cabeça, e aperta a vara na mão, com mais força. 6 raio!... Bem que ele podia cair... Mas não cai. Agenor Soronho, na sua terra, é o melhor carreiro

do mundo. Pisando nos paus e correntes, vai de cambão em cambão, como um imenso macaco; chega até cá na guia, para fazer colo, e então salta no chão, que nem um

artista de circo-de-cavalinhos, mas zangando com Tiãozinho e caçoando dos bois.

- O que tu "tá tretando aí, não me fala!...

Agora é preciso cuidado e lentidão de passo, pois a estrada tora entre despenhadeiro e barranco. - Oa, boizinho, oa! - avisou já Tiãozinho, olhando para cada um

deles, assustado, quase que pedindo para passarem com modos, pelo-amor-de-deus: Buscapé, Namorado; Capitão, Brabagato. E Brilhante:

-. "Mas boi Rodapião foi espiando tudo, sério, e falando: - Em todo lugar onde tem árvores juntas, mato comprido, tem água. Lá, lá em-riba, quase no topo do morro,

estou vendo árvores, um comprido de mato. Naquele ponto tem água! - E ficou todo imponente, e falou grosso: - Vou pastar é lá, onde tem aguada perto do capim, na

grota fresca!...

"Eu também olhei p"r"a ladeira, mas não precisei nem de pensar, p"ra saber que, dali de onde eu estava, tudo era lugar aonde boi não ir. Mas boi Rodapião falou como

o homem: - Eu já sei que posso ir por lá, sem medo nenhum: a terra desses barrancos é dura, porque em ladeira assim parede, no tempo das águas, correu muita enxurrada,

que levou a terra mole toda.,, Não tem perigo, o caminho é feio, mas é firme. Lá vou...

"Eu não disse nada, porque o sol estava esquentando demais. E boi Rodapião foi trepando degrau no barranco: deu uma andada e ficou grande; caminhou mais, ficou maior.

Depois, foi subindo, e começou a ficar pequeno já indo por lá, bem longe de mim..."

E daí? E foi?

"Escutei o barulho dele: boi Rodapião vinha lá de cima, rolando poeira

Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a

intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma

manifestação do pensamento humano..

424 JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICçÃO Comp

que são bois-mestres de coice, iam sentando, e a canga jogando ajunta

p riba! Por mesmo que as outras relaxassem, estava tudo firme em casa...

... Agora, o material é que não prestou paga: nem Um apeiro p"ra valia. Só essas tiradeiras de pau, sem um palmo de corrente p"ra refor .,# Tinha de dar no que deu!

O que é que eu podia fazer, seu Angenor,i- melhor?!

- Ah, pois, decerto, seu João Bala! Até, se alguém me perguntar, dizer isto mesmo, p"ra todo-o-mundo... Mas, por falar nisso, olhe a, que eu me vou indo, em-desde

que não posso ajudar em nada, porque tou levando ali defunto-morto p"ra se enterrar no arraial...

- Virgem!... Quem é o tal, seu Angenor?... Ah, é o pobre do seu Jen rio?!... Pois vá com Deus, companheiro, que por ora eu não preciso me- de adjutório, porque mandei

o meu guia ir buscar gente no Monjolo, graça-a-deus não é longe... Até, enquanto isso, eu vou ficar rezando padre-nosso e umas três ave-coarias, por alma do pobre

do faleci-, A gente deve de se consolar é com uns assim, no pior do que nós, o se não acha? Agora, vou ver algum resto daquela cachacinha, só p"ra não xar desperdiçar.

O senhor não quer? Bom, p"ra o fígado e p"ra estôm:.. ruim, não é mesmo muito bom, não. Té outro dia, seu Angenor!...

Agenor Soronho volta para o seu carro, abanando o corpo de sorri.. te. Foi tapar a traseira.

-Bestagem!... Patranha de violeiro ruim, que põe a culpa na vis Tião, esperta, que eu quero mostrar p"ra esse João Bala como é que a ge sobe o Morro-do-Sabão!...

E vou em pé no cabeçalho, que é só p"ra ele como é que carreiro de verdade não conhece medo, não!... Vamos, B gato!... Namorado!... Realejo!... Vamos!...

Vai Tiãozinho, vão os bois, vai o carro, que empina para entrar na s da, rangendo a cantoria rezinguenta.

- Va-amos!... - As jugadas avançam, dançando as cangas nos can; tes, e Soronho grita e se mexe, curvando e levantando o busto, com os b ços abertos e segurando com

as duas mãos a vara, na horizontal: -O aí, Tiãozinho, tu que é também um guia brioso, conversa por mim co esses bois!... Vamos bonito, Dançador! Brabagato, boi meu!...

- Ôô-a!...

A subida brava acabou, com fadiga para todos e glória para Agenor ronho.

- Uf Pfu... - sopra Brilhante.

- Muh! Muung.I... - tuge Brabagato. - Oon! Oung.C.. - bufa Buscapé.

E desde que o carro acaba de virar para trás das rodas a dobra do e

gão, até alcançar a chapada de terra vermelha, são trezentos e cingü

metros de silêncio, antes de Dançador voltar a cara, espiando, e de Ca

perguntar:

NA

425

,r- Que é que está fazendo o carro?

O carro vem andando, sempre atrás de nós.

Onde está o homem-do-pau-comprido?

O homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta está o no chifre do carro...

E o bezerro-de-homem-que-caminha-sempre-na-frente-dos-bois?

O bezerro-de-homem-que-caminha-adiante vai caminhando deva- y Ele está babando água dos olhos...

qui, no tabuleiro, o caminho está ainda pior que ruim; com o facão

escorregoso, no meio, separando as regueiras feitas pelas enxurradas

rodeiras de outros carros e carretões. Os bois avançam de sobre(Calados. Só tilinta o cincerro, quando Brabagato cabeceia. Aí, de coi

ia, por via cruzada, vem outra informação:

.O homem está dormindo, assentado bem na ponta do carro... u-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta também está dormiuor isso é que ele parou de picar a gente.

mesma rota - Namorado a Capitão, Brabagato a Dançador, Bria Realejo - viaja a conversa dos bois dianteiros:

O bezerro-de-homem está andando mais devagar ainda. Ele tam

está dormindo. Dorme caminhando, como nós sabemos fazer. Daqui o ele vai deixar cair o seu pau-comprido, que nem um pedaço que,de canga... já babou muita água dos

olhos... Muita... guardas do cabeçalho devolvem a fala:

O homem está escorregando do chifre-do-carro!... Vai muito pouco vez, mas nós temos a certeza: o homem está pendendo para fora do ,do-carro... Se ele cair, morre...

a vez, pelo itinerário alternado, de focinho a focinho, é transmitida da guia:

P bezerro-de-homem quase cai nos buracos... Ele está mesmo dor.. Daqui a pouco, ele cai... se ele cair, morre...

o meio no sono está Tiãozinho. Mais de meio: tão-só uma peque

o dele vigie, talvez. O resto flutua em lugares estranhos. Em outra

", E a pequenina porção alerta em Tiãozinho está alegre, muito alegre Não sente mais raiva... O dia desesquentou, refrescou, mesmo. uh oi Canindé sacudiu

o perigalho, e engrolou: - Que é o

dizendo o boi Dançador?

Que nós, os bois-de-carro, temos de obedecer ao homem, às vezes... e homem não sabe.

O bezerro-de-homem não sabe... O nosso pensamento de bois é e quieto... Tem o céu e o canto do carro... O homem caminha por o nosso mato-escuro não há dentro e nem

fora... -t como o dia e a noite... Odia é barulhento, apressado... A noite é

i

426

- O bezerro- de- JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COM

homem sabe mais à

,s vezes... Ele vive muito pert

nós, e ainda é bezerro... Tem horas em que ele fica ainda mais perto de n Quando está meio dormindo, pensa quase comó b

o nsois;,, Ele es

adiante, e de repente vem até aqui... Se encosta em nós, no, escuro... mato-escuro-de-todos-os-bois.. Tenh

o med d

. conversa...oe que ele entenda a n

- É como o dia e a noite. A noite é en

..orme.

- Olha! Escuta!... Escuta, boi Brabagato; escuta, boi Dançador! - Que foi? Que há, boi R1 scapé?

- É o boi Capitão! É o boi Capitão! Que é que está dizendo o boi pifão?!

- Mhu! Hmoung.I... Boi... Bezerro-de-homem... Mas, eu sou o boi pitão!... Moung!.. Não 1

nenhum bi Ci -oaptão... Mas, todos os bois... há bezerro-dehomem!... Todos... Tudo... Tudo é enorme... Eu sou en

me!... Sou grande e forte... Mais do que seu Ag S

enororonho!... posso

gar meu pai... Meu pai era bom. Ele está morto dentro do carro... Seu A

nor Soronho é o diabo grande... Bate em tod

os os meninos do mund Mas eu sou enorme... Hmou! HungI Mas nã há Ti

.....oãozinho! Sou aqu

que-tem-um-anel-branco-ao-redor-das-ventas!... Não, não, sou o bez ro-de-homem!... Sou maior do que todos os bi h os eomens juntos.

Tudo... odos...Mu-uhL.. Sim, sou forte... Somos fortes... Não há bo A noite e enorme N o na bd

... nenhum boi Namorado dois-e-carro... Não há

...

- Boi Brabagato, boi Brabagato!... Escuta o que os outros bois es falando. Estão doidos?!...

- Bhuhl... Não me chamem, não sou mais... Não existe boi Braba to!... Tudo é forte. Grande e forte Escuro e b

....norme erilhante... Escu brilhante... Posso mais do que seu... Soh!

rono...

-Que estão falando, todos? Estão loucos ?l... Eu sou o boi Dançad Boi Dançador... Mas, não há nenhum boi Dançador! Nã h

...oá o-que-t cabeça-grande-e-murundu-nas-costas Sou mais ft d Não há bi

...oreo que tod

os, não há homem S

...omos fortes... Sou muito forte...

ter para todos os lados... Bato no seu Agenor Soronho! Posso

... Bato no seu So nho, de cabresto, de vara de marmelo de pa Aéi

,u...t trar sangue... E ai

fico mais forte... Sou Tião... Tiãozinho!... Matei seu Agenor Soronh

Torno a matar!... Está morto esse carreiro do dib!

ao... Morto matado...

cago... Não pode entrar mais na nossa cafua. Não deixo!... Sou Tiãozinh Se ele quiser embocar, mato outra vez Mil!

... vezes... Se a minha mãe qu

chorar por causa dele, eu também não deixo... Ralho com a minha ma

Ela só pode chorar é pela morte do meu ai

...

nho morto... Tem de ajoelhar e rezar o ter Tem cuspir no seu S

ço comigo, pai... Quem manda agora na nossa caf g por alma do ua sou grande, sou dono de muitas terras, com muitos carros de bois, c morou,

427

SAGARANA

juntas -" Ninguém o mais forte de todos... Ninguém pode mandar em mim! deixo. .-- Sou

Tiãozão... Tiãozão!... Oung... Hmong... MAhl...

Tranco... tranco... Bate o carro, em traquetreio e solavanco. Mas, no

caminho escabroso, com brocotós e buracos por todos os lados, Tiãozinho

não cai nem escorrega, porque não está de-todo adormecido nem de-todo

vigilante. Dormir é com o Seu Soronho, escanchado beato, logo atrás do

pigarro.

De lá do coice, voz nasal, cavernosa, rosna Realejo. E todos falam. - Se o carro desse um abalo maior... - Se nós todos corrêssemos, ao mesmo tempo... - O homem-do-pau-comprido

rolaria para o chão. - Ele está na beirada...

- Está cai-não-cai, na beiradinha...

- Se o bezerro, lá na frente, de repente gritasse, nós teríamos de correr,

sem pensar, de supetão...

- E o homem cairia...

- Daqui a pouco... Daqui a pouco... - Cairia... Cairia... - Agora! Agora!

- Múung! Múng!

- .." rolaria para o chão.

- Namorado, vamos!!!... - Tiãozinho deu um grito e um salto para o

lado, e a vara assobiou no ar... E os oito bois das quatro juntas se jogaram

para diante, de uma vez... E o carro pulou forte, e traquejou, estrambe

lhado, com um guincho do cotão.

- Virgem, minha Nossa Senhora!... Oa, oa, boi!... Oa, meu Deus do

céu!...

Agenor Soronho tinha o sono sereno, a roda esquerda lhe colhera mes

mo o pescoço, e a algazarra não deixou que se ouvisse xingo ou praga -

assim não se pôde saber ao certo se o carreiro despertou ou não, antes de

desencarnar. Tanto mais que, do cabeçalho ao chão, a distância é pequena;

e uma rodeira de carro, bem ferrada, chapeada nas bandejas e com o aro

ondulado de gomos metálicos, pesa no mínimo setenta quilos, mormente

se, para cantar direito, foi feita de madeira de jacaré ou de peroba-da-miú

da, tirada no espigão...

- Mô-oung!... Que é que estão falando os bois de trás?

- Que tudo o que se ajunta espalha...

- Que tudo o que se ajunta espalha.

- Mú-A?... Que é que estão dizendo os bois da guia?

- Nenhum não sabe.

Arrepelando-se todo. Chorando. Como um doido. Tiãozinho. - "Meu

Deus! Como é que foi isto?!... Minha Nossa Senhora!..." - Sentado na bei-

42$

ra dum buraco. Com os pés dentro do buraco. - "Eu tive a culpa... eu estava meio cochilando... Sonhei... Sonhei e gritei... Nem sei o q que me assustou..." - Com

os bois olhando. Olhando e esperando, mos. Bons. Mansos. Bois de paz. E sem atinar com o que fazer. - "M Virgem Santíssima que me perdoe!... Meus boizinhos bonitos

que me doem!... Coitado do seu Agenor! Quem sabe se ele ainda pode esta vo?l..." - Fazer promessa. Todos os santos. Rezar depressa. E gente gando. Os dois cavaleiros.

- Sossega, meu filho! Nem um gole d"água, dar a este menino. Sem água para a goela seca. Ajuda aqui, Nhô Al " Goela seca. Tremor. Já é de-tardinha. Desentala o corpo!...

Quase d do, o pobre do carreiro. Não quero ver. Chorando outra vez. - "Co" do seu Agenor!... Era brabo, mas não era mesmo mau-de-todo, não... nha coração bom...

Mas, não foi por meu querer... Juro, meu Nosso nhor!..." - Com jeito, seu Quirino! Credo, Nhô Alcides, já tinha ou defunto aqui dentro!... Meu pai. Não tem culpa.

Tristeza. Frio. O sol f s"embora. Mas é preciso ajudar. Estou bem, não tive nada. Negócio ur te de Nhô Alcides. Seu Quirino carreia. A cavalo mesmo. Os bois qu caminhar.

- "Vamos, Buscapé! Namorado, va-amos!...

E logo agora, que a irara Risoleta se lembrou de que tem um sério contro marcado, duas horas e duas léguas para trás, é que o caminho lhorou. Tiãozinho - nunca houve

melhor menino candeeiro - vo corridinha, maneiro, porque os bois, com a fresca, aceleram. E talvez d defuntos dêem mais para a viagem, pois até o carro está contente

renhein... nhein... - e abre a goela do chumaço, numa toada triunfal.

A HORA E VEZ

DE AUGUSTO MATRACA

"Eu sou pobre, pobre, pobre, vou-me embora, vou-me embora... ........................................................

Eu sou rica, rica, rica, vou-me embora, daqui!..."

(CANTIGA ANTIGA)

"Sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão."

(PROVÉRBIO CAPIAU)

SAGARANA

431

MATRACA NÃO É MATRACA, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto - o homem

- nessa noitinha de novena, num leilão de atrás de igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici.

Procissão entrou, reza acabou. E o leilão andou depressa e se extinguiu, sem graça, porque a gente direita foi saindo embora, quase toda de uma vez.

Mas o leiloeiro ficara na barraca, comendo amêndoas de cartucho e pigarreando de rouco, bloqueado por uma multidão encachaçada de fim de festa.

E, na primeira fila, apertadas contra o balcãozinho, bem iluminadas pelas candeias de meia-laranja, as duas mulheres-à-toa estavam achando em tudo um espírito enorme,

porque eram só duas e pois muito disputadas, todo-o-mundo com elas querendo ficar.

Beleza não tinham: Angélica era preta e mais ou menos capenga, e só a outra servia. Mas, perto, encostado nela outra, um capiau de cara romântica subia todo no sem-jeito;

eles estavam se gostando, e, por isso, aquele povo encapetado não tinha - pelo menos para o pobre namorado - nenhuma razão de existir. E a cada momento as coisas

para eles pioravam, com o pessoal aos gritos:

- Quem vai arrematar a Sariema? Anda, Tião! Bota a Sariema no leilão!...

- Bota no leilão! Bota no leilão...

A das duas raparigas que era branca - e que tinha pescoço fino e pernas finas, e passou a chamar-se, imediatamente, Sariema - pareceu se assustar. O capiau apaixonado

deixou fuxicar, de cansaço, o meio-riso que trazia pendurado. E o leiloeiro pedia que houvesse juízo; mas ninguém queria atender.

- Dou cinco mil-réis!...

- Sariema! Sariema!

E, aí, de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto, alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com os braços eM tenso, angulando

os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a Sariema, e pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o leiloeiro Tião:

432

- Cinqüenta mil-réis!...

Ficou de mãos na cintura, sem dar rosto ao povo, mas pausando p aplausos.

- Nhô Augusto! Nhô Augusto! E insistiu fala mais forte:

- Cinqüenta mil-réis, já disse! Dou-lhe uma! dou-lhe duas! Douduas - dou-lhe três!...

Mas, nisso, puxaram para trás a outra - a Angélica preta se rindo,

vergonha e dengosa - que se soverteu na montoeira, de braço em b

de rolo em rolo, pegada, manuseada, beliscada e cacarejante: - Virgem Maria Puríssima! Ui, pessoal! E só então o Tião leiloeiro achou coragem para se impor: - Respeito,

gente, que o leilão é de santo!... - Bau-bau!

- Me desprezo! Me desprezo desse herege!... Vão coçar suas costas parede!... Coisa de igreja tem castigo, não é brinquedo... Deix"passar!.,. enxame, gente! Dá enxame!...

Alguns quiseram continuar vaia, mas o próprio Nhô Augusto abafou arrelia:

- Sino e santo não é pagode, povo! Vou no certo... Abre, abre, deixa

Tião passar!

Então, surpresos, deram caminho, e o capiau amoroso quis ir també - Vamos embora, Tomázia, aproveitando a confusão...

E sua voz baixava, humilde, porque para ele ela não era a Sariema. P

três dedos no seu braço, e bem que ela o quis acompanhar. Mas Nhô A

gusto separou-os, com uma pranchada de mão:

- Não vai, não!

E, atrás, deram apoio os quatro guarda-costas: - Tem areia! Tem areia! Não vai, não!

- É do Nhô Augusto... Nhô Augusto leva a rapariga! - gritava o pov

por ser barato. E uma voz bem entoada cantou de lá, por cantar:

Aí o povaréu aclamou, com disciplina e cadência:

- Nhô Augusto leva a Sariema! Nhô Augusto leva a Sariema!

O capiauzinho ficou mais amarelo. A Sariema começou a querer cho

rar. Mas Nhô Augusto, rompente, alargou no tal três pescoções: - Toma! Toma! E toma!... Está querendo?... Ferveram faces.

SAGARANA 433

- Que foi? Que foi?...

- Deix"eu ver!...

- Não me esbarra, filho-da-mãe!

E a agitação partiu povos, porque a maioria tinha perdido a cena, apreciando, como estavam, uma falta-de-lugar, que se dera entre um velho - "Cai n"água, barbado!"

- e o sacristão, no quadrante noroeste da massa. E também no setor sul estalara, pouco antes, um mal-entendido, de um sujeito com a correia desafivelada - lept!...

lept! com um outro pedindo espaço, para poder fazer sarilho com o pau.

- Que foi, hein?... Que foi?

Foi o capiauzinho apanhando, estapeado pelos quatro cacundeiros de Nhô Augusto, e empurrado para o denso do povo, que também queria estapear.

- Viva Nhô Augusto!...

- Te apessoa para cá, do meu lado! - e Nhô Augusto deu o braço à rapariga, que parou de lacrimejar.

- Vamos andando.

Passaram entre alas e aclamações dos outros, que, aí, como não havia mais mulheres, nem brigas, pegaram a debandar ou a cantar:

"Ei, compadre, chegadinho, chegou

Ei, compadre, chega mais um bocadinho!..."

Nhô Augusto apertava o braço da Sariema, como quem não tivesse tido prazo para utilizar no capiau todos os seus ímpetos:

- E é, hein?... A senhora dona queria ficar com aquele, hein?!

- Foi, mas agora eu gosto é de você... O outro eu mal-e-mal conheci...

Caminharam para casa. Mas para a casa do Beco do Sem-Ceroula, onde só há três prédios - cada um deles com gramofone tocando, de cornetão à janela - e onde gente

séria entra mas não passa.

Nisso, porém, transpunham o adro, e Nhô Augusto parou, tirando o chapéu e fazendo o em-nome-do-padre, para saudar a porta da igreja. Mas o lugar estava bem alumiado,

com lanterninhas e muita luz de azeite, pendentes dos arcos de bambu. E Nhô Augusto olhou a mulher.

- Que é?!... Você tem perna de manuel-fonseca, uma fina e outra seca! E está que é só osso, peixe cozido sem tempero... Capim p"ra mim, com uma sombração dessas!...

Vá-se embora, frango-d"água! Some daqui!

E, empurrando a rapariga, que abriu a chorar o choro mais sentido da sua vida, Nhô Augusto desceu a ladeira sozinho - uma ladeira que a gente tinha de descer quase

correndo, porque era só cristal e pedra solta.

Lá embaixo, esbarrou com o camarada, que trazia recado de Dona Dionora: que Nhô Augusto voltasse, ou ao menos desse um pulo até lá - à casa dele, de verdade, na

Rua de Cima, -porque ainda havia muito arran-

Mariquinha é como a chuva: boa é, p"ra quem quer bem! Ela vem sempre de graça, só não sei quando ela vem...

434

jo a ultimar para a viagem, e ela - a mulher, a esposa - tinha uma duas coisas por perguntar...

Mas Nhô Augusto nem deixou o mensageiro acabar de acabar:

- Desvira, Quim, e dá o recado pelo avesso: eu lá não vou!... V apronta os animais, para voltar amanhã com Siá Dionora mais a men para o Morro Azul. Mas, em antes,

você sobe por aqui, e vai avisar meus homens que eu hoje não preciso deles, não.

E o Quim Recadeiro correu, com o recado, enquanto Nhô Augus indo em busca de qualquer luz em porta aberta, aonde houvesse ass bros de homens, para entrar no meio

ou desapartar.

Era fim de outubro, em ano resseco. Um cachorro soletrava, longe, mesmo nome, sem sentido. E ia, no alto do mato, a lentidão da lua.

Dona Dionora, que tinha belos cabelos e olhos sérios, escutou aq resposta, e não deu ar de seus pensamentos ao pobre camarada Quim. muitos que eles eram, a rodar

por lados contrários e a atormentar-lh cabeça, e ela estava cansada, pelo que, dali a pouco, teve vontade de chor E até a Mimita, que tinha só dez anos e já estava

na cama, sorriu para di

- Eu gosto, minha mãe, de voltar para o Morro Azul...

E então Dona Dionora enxugou os olhos e também sorriu, sem pala para dizer. De voltar para o retiro, sem a companhia do marido, só ri por que se alegrar. Sentia,

pelo desdeixo. Mas até era bom sair do com cio, onde todo o mundo devia estar falando da desdita sua e do pou caso, que não merecia.

E ela conhecia e temia os repentes de Nhô Augusto. Duro, doido e detença, como um bicho grande do mato. E, em casa, sempre fechado si. Nem com a menina se importava.

Dela, Dionora, gostava, às vezes, sua boca, das suas carnes. Só. No mais, sempre com os capangas, com lheres perdidas, com o que houvesse de pior. Na fazenda - no

Saco Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro Azul - ele tinha ou prazeres, outras mulheres, o jogo do truque e as caçadas. E sem efeito e sempre as orações

e promessas, com que ela o pretendera trazer, pelo nos, até a meio caminho direito.

Fora assim desde menino, uma meninice à louca e à larga, de filho co de pai pancrácio. E ela, Dionora, tivera culpa, por haver contraria desafiado a família toda,

para se casar.

Agora, com a morte do Coronel Afonsão, tudo piorara, ainda Nem pensar. Mais estúrdio, estouvado e sem regra, estava ficando Augusto. E com dívidas enormes, política

do lado que perde, falta de cr to, as terras no desmando, as fazendas escritas por paga, e tudo de ânsia por diante, sem portas, como parede branca.

Dionora amara-o três anos, dois anos dera-os às dúvidas, e o supo os demais. Agora, porém, tinha aparecido outro. Não, só de pôr aquil idéia, já sentia medo... Por

si e pela filha... Um medo imenso.

Sa~AR^~A 435

Se fosse, se aceitasse de ir com o outro, Nhô Augusto era capaz de matála. Para isso, sim, ele prestava muito. Matava, mesmo, como dera conta do homem da foice,

pago por vingança de algum ofendido. Mas, quem sabe se não era melhor se entregar à sina, com a proteção de Deus, se não fosse pecado... Fechar os olhos.

E o outro era diferente! Gostava dela, muito... Mais do que ele mesmo dizia, mais do que ele mesmo sabia, da maneira de que a gente deve gostar. E tinha uma força

grande, de amor calado, e uma paciência quente, cantada, para chamar pelo seu nome:... Dionora... "Dionora, vem comigo, vem comigo e traz a menina, que ninguém não

toma vocês de mim!..." Bom... Como um sonho... Como um sono...

Dormiu.

E, assim, mal madrugadinha escassa, partiram as duas - Dona Dionora, no cavalo de Bilhão, e a Mimita, mofina e franzina, carregada à frente da sela do camarada Quim.

Pernoitaram no Pau Alto, no sítio de um tio nervoso, que riscava a mesa com as unhas e não se cansava de resmungar:

- Fosse eu, fosse eu...-Uma filha custa sangue, filha é o que tem de mais valia...

- Sorte minha, meu tio...

- Sorte nunca é de um só, é de dois, é de todos... Sorte nasce cada manhã, e já está velha ao meio-diá...

- Culpa eu tive, meu tio...

- Quem não tem, quem não teve? Culpa muita, minha filha... Mãe do Nhô Augusto morreu, com ele ainda pequeno... Teu sogro era um leso, não era p"ra chefe de família...

Pai era como que Nhô Augusto não tivesse... Um tio era criminoso, de mais de uma morte, que vivia escondido, lá no Saco-da-Embira... Quem criou Nhô Augusto foi a

avó... Queria o menino p"ra padre... Rezar, rezar, o tempo todo, santimônia e ladainha...

De manhã, com o sol nascendo, retomaram a andadura. E, quando Osol esteve mais dono de tudo, e a poeira era mais seca, Mimita começou a gemer, com uma dor de pontada,

e pedia água. E, depois, com um sorriso tristinho, perguntava:

- Por que é que o pai não gosta de nós, mãe?

E o Quim Recadeiro ficava a bater a cabeça, vez e vez, com muita circunspecção tola, em universal assentimento.

Mas, na passagem do brechão do Bugre, lá estava seu Ovídio Moura, que tinha sabido, decerto, dessa viagem de regresso.

- Dionora, você vem comigo... Ou eu saio sozinho por esse mundo, e nunca mais você há-de me ver!...

Mas Dona Dionora foi tão pronta, que ele mesmo se espantou.

- Nhô Augusto é capaz de matar a gente, seu Ovídio... Mas eu vou com o senhor, e fico, enquanto Deus nos proteger...

436

JOÃO GUIMAAAES ROSA I FICÇÃO COM

Seu Ovídio pegou a menina do colo do Quim, que nada escuta entendera e passou a cavalgar bem atrás. E, quando chegaram no d"água do Mendonça, onde tem uma encruzilhada,

e o camarada viu os outros iam tomando o caminho da direita, estugou o cavalo e ainda tou, para corrigir:

- Volta para trás, minha patroa, que o caminho por aí é outro! Mas seu Ovídio se virou, positivo:

- Volta você, e fala com o seu patrão que Siá Dona Dionora não

viver mais com ele, e que ela de agora por diante vai viver comigo, c

querer dos meus parentes todos e com a bênção de Deus!

Quim Recadeiro, no primeiro passo, ainda levou a mão ao chapé

palha, cumprimentando:

- Pois sim, seu Ovídio... Eu dou o recado...

Ficou parado, limpando suor dos cabelos, sem se resolver. Mas, fim fim, num achamento, se retesou nos estribos, e gritou:

- Homem sujo!... Tomara que uma coruja ache graça na tua porta

Jogou fora, e cuspiu em cima. E tocou para trás, em galope doido, do poeira ao vento. Ia dizer a Nhô Augusto que a casa estava caindo.

Quando chega o dia da casa cair - que, com ou sem terremotos, e dia de chegada infalível, - o dono pode estar: de dentro, ou de f© E melhor de fora. E é a só coisa

que um qualquer-um está no poder fazer. Mesmo estando de dentro, mais vale todo vestido e perto da porta rua. Mas, Nhô Augusto, não: estava deitado na cama - o

pior lugar que para se receber uma surpresa má.

E o camarada Quim sabia disso, tanto que foi se encostando de m que ele entrou. Tinha poeira até na boca. Tossiu.

- Levanta e veste a roupa, meu patrão Nhô Augusto, que eu te uma novidade meia ruim, p"ra lhe contar.

E tremeu mais, porque Nhô Augusto se erguia de um pulo e num á se vestia. Só depois de meter na cintura o revólver, foi que interpelou, te em dente:

- Fala tudo!

Quim Recadeiro gaguejou suas palavras poucas, e ainda pôde ac centar:

- ... Eu podia ter arresistido, mas era negócio de honra, com sangue p"ra o dono, e pensei que o senhor podia não gostar...

- Fez na regra, e feito! Chama os meus homens!

Dali a pouco, porém, tornava o Quim, com nova desolação: os b paus não vinham... Não queriam ficar mais com Nhô Augusto... O M Consilva tinha ajustado, um e mais

um, os quatro, para seus capangas, gando bem. Não vinham, mesmo. O mais merecido, o cabeça, até man dizer, faltando ao respeito: - Fala com Nhô Augusto que sol de

ci dinheiro!... P"ra ele pagar o que está nos devendo... E é mandar por po

Sp(,pRANA 437

dor calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que seu Major disse que não quer.

- Cachorrada!... Só de pique... Onde é que eles estão?

- Indo de mudados, p"ra a chácara do Major...

- Major de borra! Só de pique, porque era inimigo do meu pai!... Vou lá!

- Mal em mim não veja, meu patrão Nhô Augusto, mas todos no lugar estão falando que o senhor não possui mais nada, que perdeu suas fazendas e riquezas, e que vai

ficar pobre, no já-já... E estão conversando, o Major mais outros grandes, querendo pegar o senhor à traição. Estão espalhando... - o senhor dê o perdão p"r"a minha

boca que eu só falo o que é preciso - estão dizendo que o senhor nunca respeitou filha dos outros nem mulher casada, e mais que é que nem cobra má, que quem vê tem

de matar por obrigação... Estou lhe contando p"ra modo de o senhor não querer facilitar. Carece de achar outros companheiros bons, p"ra o senhor não ir sozinho...

Eu, não, porque sou medroso. Eu cá pouco presto... Mas, se o senhor mandar, também vou junto.

Mas Nhô Augusto se mordia, já no meio da sua missa, vermelho e feroz. Montou e galopou, teso para trás, rei na sela, enquanto o Quim Recadeiro ia lá dentro, caçar

um gole d"água para beber. Assim.

Assim, quase qualquer um capiau outro, sem ser Augusto Esteves, naqueles dois contratempos teria percebido a chegada do azar, da unhaca, e passaria umas rodadas

sem jogar, fazendo umas férias na vida: viagem, mudança, ou qualquer coisa insossa, para esperar o cumprimento do ditado: "Cada um tem seus seis meses..."

Mas Nhô Augusto era couro ainda por curtir, e para quem não sai, em tempo, de cima da linha, até apito de trem é mau agouro. Demais, quando um tem que pagar o gasto,

desembesta até ao fim. E, desse jeito, achou que não era hora para ponderados pensamentos.

Nele, mal-e-mal, por debaixo da raiva, uma idéia resolveu por si: que antes de ir à Mombuca, para matar o Ovídio e a Dionora, precisava de cair com o Major Consilva

e os capangas. Se não, se deixasse rasto por acertar, perdia a força. E foi.

Cresceu poeira, de peneira. A estrada ficou reta, cheia de gente com cautela. Chegou à chácara do Major.

Mas nem descavalgou, sem tempo. Do tope da escada, o dono da casa foi falando alto, risonho de ruim:

- Tempo do bem-bom se acabou, cachorro de Esteves!...

O cavalo de Nhô Augusto obedeceu para diante; as ferraduras tiniram e deram fogo no lajedo; e o cavaleiro, em pé nos estribos, trouxe a taca no ar, querendo a figura

do velho. Mas o Major piscou, apenas, e encolheu a cabeça, porque mais não era preciso, e os capangas pulavam de cada beirada, e eram só pernas e braços.

- Frecha, povo! Desmancha!

43$

Já os porretes caíam em cima do cavaleiro, que nem pinotes de matr chãs na rede. Pauladas na cabeça, nos ombros, nas coxas. Nhô Augu desdeu o corpo e caiu. Ainda

se ajoelhou em terra, querendo firmar-se n mãos, mas isso só lhe serviu para poder ver as caras horríveis dos seus pr prios bate-paus, e, no meio deles, o capiauzinho

mongo que amava a m

lher-à-toa Sariema.

E Nhô Augusto fechou os olhos, de gastura, porque ele sabia que capa

de testa peluda, com o cabelo quase nos olhos, é uma raça de homem cap de guardar o passado em casa, em lugar fresco perto do pote, e ir buscar

rua outras raivas pequenas, tudo para ajuntar à massa-mãe do ódio gra de, até chegar o dia de tirar vingança.

Mas, aí, pachorrenta e cuspida, ressoou a voz do Major:

- Arrastem p"ra longe, para fora das minhas terras... Marquem a ferr depois matem.

Nhô Augusto se alteou e estendeu o braço direito, agarrando o ar co os cinco dedos:

- Cá p"ra perto, carrasco!... Só mesmo assim desse jeito, p"ra soja Nhô Augusto Esteves!...

E, seguro por mãos e pés, torcido aos pulsos dos capangas, urrava e b

rava, e estrebuchava tanto, que a roupa se estraçalhava, e o corpo parec querer partir-se em dois, pela metade da barriga. Desprendeu-se, por u vez. Mas outros dos

homens desceram os porretes. Nhô Augusto ficou tendido, de-bruços, com a cara encostada no chão.

- Traz água fria, companheiro!

O capiauzinho da testa peluda cantou, mal-entoado:

S,ac;~RAN~ 439

- É aqui mesmo, companheiros. Depois, é só jogar lá para baixo, p"ra nem a alma se salvar...

Os jagunços veteranos da chácara do Major Consilva acenderam seus cigarros, com descanso, mal interessados na execução. Mas os quatro que tinham sido bate-paus de

Nhô Augusto mostravam maior entusiasmo, enquanto o capiauzinho sem testa, diligente e contente, ia ajuntar lenha para fazer fogo.

E, aí, quando tudo esteve a ponto, abrasaram o ferro com a marca do gado do Major - que soía ser um triângulo inscrito numa circunferência -, e imprimiram-na, com

chiado, chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto. Mas recuaram todos, num susto, porque Nhô Augusto viveu-se, com um berro e um salto, medonhos.

- Segura!

Mas já ele alcançara a borda do barranco, e pulara no espaço. Era uma altura. O corpo rolou, lá embaixo, nas moitas, se sumindo.

- Por onde é que a gente passa, p"ra poder ir ver se ele morreu?

Mas um dos capangas mais velhos disse melhor:

- Arma uma cruz aqui mesmo, Orósio, para de noite ele não vir puxar teus pés...

E deram as costas, regressando, sob um sol mais próximo e maior.

Mas o preto que morava na boca do brejo, quando calculou que os outros já teriam ido embora, saiu do seu esconso, entre as taboas, e subiu aos degraus de mato do

pé do barranco. Chegou-se. Encontrou vida funda no corpo tão maltratado do homem branco; chamou a preta, mulher do preto que morava na boca do brejo, e juntos carregaram

Nhô Augusto para o casebre dos dois, que era um cofo de barro seco, sob um tufo de capim podre, mal erguido e mal avistado, no meio das árvores, como um ninho de

maranhões.

E o preto foi cortar padieiras e travessas, para um esquife, enquanto a preta procurava um coto de vela benta, para ser posta na mão do homem, na hora do "Diga Jesus

comigo, irmão"...

Mas, nessa espera, por surpresa, deu-se que Nhô Augusto pôs sua pessoa nos olhos, e gemeu:

- Me matem de uma vez, por caridade, pelas chagas de Nosso Senhor...

Depois, falou coisas sem juízo, para gente ausente, pois estava lavorando de quente e tinha mesmo de delirar.

- Deus que me perdoe, - resmungou a preta, - mas este homem deve de ser ruim feito cascavel barreada em buraco, porque está variando que faz e acontece, e é só braveza

de matar e sangrar... E ele chama por Deus, na hora da dor forte, e Deus não atende, nem para um fôlego, assim num desamparo como eu nunca vi!

Mas o negro só disse:

- Os outros não vão vir aqui, para campear defunto, porque a piram-

Sou como a ema,

Que tem penas e não voa...

Os outros começaram a ficar de cócoras.

Mas, quando Nhô Augusto estremeceu e tornou a solevar a cabeça

Major, lá da varanda, apertando muito os olhos, para espiar, e se abanan com o chapéu, tirou ladainha:

- Não tem mais nenhum Nhô Augusto Esteves, das Pindaíbas, mi gente?!...

E os cacundeiros, em coro:

- Não tem não! Tem mais não!...

Puxaram e arrastaram Nhô Augusto, pelo atalho do rancho do Barr co, que ficou sendo um caminho de pragas e judiação.

E, quando chegaram ao rancho do Barranco, ao fim de légua, o Augusto já vinha quase que só carregado, meio nu, todo picado de fa quebrado de pancadas e enlameado

grosso, poeira com sangue. Empur ram-no para o chão, e ele nem se moveu.

44°

beira não tem descida, só dando muita volta por longe. E, como tem bezerro morto, na biboca, lá de cima vão pensar que os urubus vieram causa do que eles estão pensando...

Deitado na esteira, no meio de molambos, no canto escuro da choça chão de terra, Nhô Augusto, dias depois, quando voltou a ter noção coisas, viu que tinha as pernas

metidas em toscas talas de taboca e acom dadas em regos de telhas, porque a esquerda estava partida em dois lugare e a direita num só, mas com ferida aberta. As

moscas esvoaçavam e pousa vam, e o corpo todo lhe doía, com costelas também partidas, e mais u braço, e um sofrimento de machucaduras e cortes, e a queimadura da

ma ca de ferro, como se o seu pobre corpo tivesse ficado imenso.

Mesmo assim, com isso tudo, ele disse a si que era melhor viver. Be mingau ralo de fubá, e a preta enrolou para ele um cigarro de palha. Em sua procura não aparecera

ninguém. Podia sarar. Podia pensar.

Mas, de tardinha, chegou a hora da tristeza; com grunhidos de porcosa ouvidos através das fendas da parede, e os ruflos das galinhas, procurando. poleiro nos galhos,

e a negra, lá fora, lavando as panelas e a cantar:

As árvores do Mato Bento deitam no chão p"ra dormir...

E havia também, quando a preta parava, as cantigas miúdas dos bich" nhos mateiros e os sons dos primeiros sapos.

Esfriou o tempo, antes do anoitecer. As dores melhoraram. E, aí, Nh Augusto se lembrou da mulher e da filha. Sem raiva, sem sofrimento, mes mo, só com uma falta

de ar enorme, sufocando. Respirava aos arrancos,- teve até medo, porque não podia ter tento nessa desordem toda, e era c mo se o corpo não fosse mais seu. Até que

pôde chorar, e chorou muit um choro solto, sem vergonha nenhuma, de menino ao abandono. E, se saber e sem poder, chamou alto soluçando:

- Mãe... Mãe...

O preto, que estava sentado, pondo chumbada no anzol, no pé da po de casa, ouviu e ficou atrapalhado; chamou a preta, que veio ligeira e enterneceu:

- Não faz assim, seu moço, não desespera. Reza, que Deus endire tudo... P"ra tudo Deus dá o jeito!

E a preta acendeu a candeia, e trouxe uma estampa de Nossa Senho do Rosário, e o terço.

Agora, parado o pranto, a tristeza tomou conta de Nhô Augusto. U tristeza mansa, com muita saudade da mulher e da filha, e com um imenso de si mesmo. Tudo perdido!

O resto, ainda podia... Mas, ter a s família, direito, outra vez, nunca. Nem a filha... Para sempre... E era co mo se tivesse caído num fundo de abismo, em outro

mundo distante.

Sn~A~N^ 44r

E ele teve uma vontade virgem, uma precisão de contar a sua desgraça, de repassar as misérias da sua vida. Mas mordeu a fala e não desabafou. Também não rezou. Porém

a luzinha da candeia era o pavio, a tremer, com brilhos bonitos no poço de azeite, contando histórias da infância de Nhô Augusto, histórias mal lembradas, mas todas

de bom e bonito final. Fechou os olhos. Suas mãos, uma na outra, estavam frias. Deu-se ao cansaço. Dormiu.

E desse modo ele se doeu no enxergão, muitos meses, porque os ossos tomavam tempo para se ajuntar, e a fratura exposta criara bicheira. Mas os pretos cuidavam muito

dele, não arrefecendo na dedicação.

- Se eu pudesse ao menos ter absolvição dos meus pecados!...

Então eles trouxeram, uma noite, muito à escondida, o padre, que o confessou e conversou com ele, muito tempo, dando-lhe conselhos que o faziam chorar.

- Mas, será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz, e tendo nas costas tanto pecado mortal?!

- Tem, meu filho. Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do pé de arrependido nenhum...

E por aí afora foi, com um sermão comprido, que acabou depondo Odoente num desvencido torpor.

- Eu acho boa essa idéia de se mudar para longe, meu filho. Você não deve pensar mais na mulher, nem em vinganças. Entregue para Deus, e faça penitência. Sua vida

foi entortada no verde, mas não fique triste, de modo nenhum, porque a tristeza é aboio de chamar o demônio, e o Reino do Céu, que é o que vale; ninguém tira de

sua algibeira, desde que você esteja com a graça de Deus, que ele não regateia a nenhum coração contrito!

- Fé eu tenho, fé eu peço, Padre...

- Você nunca trabalhou, não é? Pois, agora, por diante, cada dia de Deus você deve trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder. Modere esse mau gênio:

faça de conta que ele é um poldro bravo, e que você é mais mandante do que ele... Peça a Deus assim, com esta jaculatória: "Jesus, manso e humilde de coração, fazei

meu coração semelhante ao vosso..."

E, páginas adiante, o padre se portou ainda mais excelentemente, porque era mesmo uma brava criatura. Tanto assim, que, na despedida, insistiu:

- Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina cora sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter

muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua.

E, lá fora, ainda achou de ensinar à preta um enxofre e tal para o gogo dOS frangos, e aconselhou o preto a pincelar água de cal no limoeiro, e a plantar tomateiros

e pés de mamão.

442 lOAO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COMP

Meses não são dias, e a vida era aquela, no chão da choupana. Nhô Busto comia, fumava, pensava e dormia. E tinha pequenas esperanças: amanhã em diante, o lado de

cá vai doer menos, se Deus quiser... E voltou a recordar todas as rezas aprendidas na meninice, com a avó. das e muitas mais, mesmo as mais bobas de tanta deformação

e mistura que o preto engrolava, ao lavar-lhe com creolina a ferida da perna, e as a preta murmurava, benzendo a cuia d"água, ao lhe dar de beber.

E somente essas coisas o ocupavam, porque para ele, féria feita, a vid se acabara, e só esperava era a salvação da sua alma e a misericórdi Deus Nosso Senhor. Nunca

mais seria gente! O corpo estava estragado, dentro, e mais ainda a idéia. E tomara um tão grande horror às suas ma des e aos seus malfeitos passados, que nem podia

se lembrar; e só mes rezando.

Espantava as idéias tristes, e, com o passar do tempo, tudo isso lhe dando uma espécie nova e mui serena de alegria. Esteve resignado, e fa compridos progressos

na senda da conversão.

Quando ficou bom para andar, escorando-se nas muletas que o pre fabricara, já tinha os seus planos, menos maus, cujo ponto de início con tia em ir para longe, para

o sitiozinho perdido no sertão mais longínquo uma data de dez alqueires, que ele não conhecia nem pensara jamais teria de ver, mas que era agora a única coisa que

possuía de seu. Antes partir, teve com o padre uma derradeira conversa, muito edificante e va E, junto com o casal de pretos samaritanos, que, ao hábito de se desvê

rem, agora não o podiam deixar nem por nada, pegou chão, sem paixa

Largaram à noite, porque o começo da viagem teria de ser uma ver defira escapada. E, ao sair, Nhô Augusto se ajoelhou, no meio da estra abriu os braços em cruz,

e jurou:

-Eu vou p"ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... - minha vez há de chegar... P"ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!... negros aplaudiram, e a turminha

pegou o passo, a caminho do sertão.

Foram norte afora, na derrota dos criminosos fugidos, dormindo de e viajando de noite, como cativos amocambados, de quilombo a quil bo. Para além do Bacupari, do

Boqueirão, da Broa, da Vaca e da Vac do Peixe-Bravo, dos Tachos, do Tamanduá, da Serra-Fria, e de todos muitos arraiais jazentes na reta das léguas, ao pé dos verdes

morros e morros de cristais brilhantes, entre as varjarias e os cordões-de-m E deixavam de lado moendas e fazendas, e as estradas com cancelas, e r rias e sítios

de monjolos, e os currais do Fonseca, e a pedra quadrada irmãos Trancoso; e mesmo as grandes casas velhas, sem gente mais m do, vazias como os seus currais. E dormiam

nas brenhas, ou sob as á de sombra das caatingas, ou em ranchos de que todos são donos, à ra das lagoas com patos e das lagoas cobertas de mato. Atravessaram o das

Rãs e o Rio do Sapo. E vieram, por picadas penhascosas e send

S~~A~NA 443

pedregulho, contra as serras azuis e as serras amarelas, sempre. Depois, por baixadas, com outeiros, terras mansas. E em paragens ripuárias, mas evitando a linha

dos vaus, sob o vôo das garças, - os caminhos por onde as boiadas vêm, beirando os rios.

E assim se deu que, lá no povoado do Tombador, - onde, às vezes, pouco às vezes e somente quando transviados da boa rota, passavam uns bruaqueiros tangendo tropa,

ou uns baianos corajosos migrando rumo sul, - apareceu, um dia, um homem esquisito, que ninguém não podia entender.

Mas todos gostaram logo dele, porque era meio doido e meio santo; e compreender deixaram para depois.

Trabalhava que nem um afadigado por dinheiro, mas, no feito, não tinha nenhuma ganãoncia e nem se importava com acrescentes: o que vivia era querendo ajudar os outros.

Capinava para si e para os vizinhos do seu fogo, no querer de repartir, dando de amor o que possuísse. E só pedia, pois, serviço para fazer, e pouca ou nenhuma conversa.

O casal de pretos, que moravam junto com ele, era quem mandava e desmandava na casa, não trabalhando um nada e vivendo no estadão. Mas, ele, tinham-no visto mourejar

até dentro da noite de Deus, quando havia luar claro.

Nos domingos, tinha o seu gosto de tomar descanso: batendo mato, o dia inteiro, sem sossego, sem espingarda nenhuma e nem nenhuma arma para caçar; e, de tardinha,

fazendo parte com as velhas corocas que rezavam o terço ou os meses dos santos. Mas fugia às léguas de viola ou sanfona, ou de qualquer outra qualidade de música

que escuma tristezas no coração.

Quase sempre estava conversando sozinho, e isso também era de maluco, diziam; porque eles ignoravam que o que fazia era apenas repetir, sempre que achava preciso,

a fala final do padre: - "Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há-de ter a sua". - E era só.

E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada,

e não é um caso acontecido, não senhor.

Quem quisesse, porém, durante esse tempo, ter dó de Nhô Augusto, faria grossa bobagem, porquanto ele não tinha tentações, nada desejava, cansava o corpo no pesado

e dava rezas para a sua alma, tudo isso sem esforço nenhum, como os cupins que levantam no pasto murundus vermelhos, ou çomo os tico-ticos, que penam sem cessar

para levar comida ao filhote de pássaro-preto - bico aberto, no alto do mamoeiro, a pedir mais.

Esta última lembrança era do povo do Tombador, já que em toda a parte os outros implicam com os que deles se desinteressam, e que o pessoal nada sabia das alheias

águas passadas, e nem que o negro e a negra eram agora pai e mãe de Nhô Augusto.

444

Também, não fumava mais, não bebia, não olhava para o bom-pare das mulheres, não falava junto em discussão. Só o que ele não podia era lembrar da sua vergonha; mas,

ali, naquela biboca perdida, fim-de-m do, cada dia que descia ajudava a esquecer.

Mas, como tudo é mesmo muito pequeno, e o sertão ainda é men houve que passou por lá um conhecido velho de Nhô Augusto - o Tião Thereza - à procura de trezentas

reses de uma boiada brava, que se d manchara nos gerais do alto Urucuia, estourando pelos cem caminhos s fim do chapadão.

Tião da Thereza ficou bobo de ver Nhô Augusto. E, como era cas grossa, foi logo dando as notícias que ninguém não tinha pedido: a m lher, Dona Dionora, continuava

amigada com seu Ovídio, muito de-be os dois, com tenção até em casamento de igreja, por pensarem que ela es va desimpedida de marido; com a filha, sim, é que fora

uma tristeza: cre cera sã e se encorpara uma mocinha muito linda, mas tinha caído na vid seduzida por um cometa, que a levara do arraial, para onde não se sabia.

O Major Consilva prosseguia mandando no Murici, e arrematara as du fazendas de Nhô Augusto... Mas o mais mal-arrumado tinha sido com Quim, seu antigo camarada, o

pobre do Quim Recadeiro - "Se alembr - Pois o Quim tinha morrido de morte-matada, com mais de vinte bal no corpo, por causa dele, Nhô Augusto: quando soube que seu

patrão nha sido assassinado, de mando do Major, não tivera dúvida:... jurou de forra, beijando a garrucha, e não esperou café coado! Foi cuspir no ca guçu detrás

da moita, e ficou morto, mas já dentro da sala-de-jantar Major, e depois de matar dois capangas e ferir mais um...

- Pára, chega, Tião!... Não quero saber de mais coisa nenhuma! Só peço é para fazer de conta que não me viu, e não contar p"ra ninguém, pel amor de Deus, por amor

de sua mulher, de seus filhos e de tudo o que pa você tem valor!... Não é mentira muita, porque é a mesma coisa em co se eu tivesse morrido mesmo... Não tem mais

nenhum Nhô Augusto teves, das Pindaíbas, Tião...

- Estou vendo, mesmo. Estou vendo...

E Tião da Thereza pôs, nos olhos, na voz e no meio-aberto da bo tanto nojo e desprezo, que Nhô Augusto abaixou o queixo; e nem adianto repetir para si mesmo a jaculatória

do coração manso e humilde: teve de sair, para trás das bananeiras, onde se ajoelhou e rejurou: - P"ra o eu vou, nem que seja a porrete!...

E foi bom passo que nesse dia um homem chamado Romualdo, mor dor à beira da cava, precisou de ajuda para tirar uma égua do atoleiro, Nhô Augusto teve trabalho até

tarde da noite, com fogueira acesa e toch na mão.

Mas, daí em seguida, ele não guardou mais poder para espantar a tris za. E, com a tristeza, uma vontade doente de fazer coisas malfeitas, um

$AGARANA 445

vontade sem calor no corpo, só pensada: como que, se bebesse e cigarrasse, e ficasse sem trabalhar nem rezar, haveria de recuperar sua força de homem e seu acerto

de outro tempo, junto com a pressa das coisas, como os outros sabiam viver.

Mas, a vergonheira atrasada? E o castigo? O padre bem que tinha falado:

- "Você, em toda sua vida, não tem feito senão pecados muito graves, e Deus mandou estes sofrimentos só para um pecador poder ter a idéia do que o fogo do inferno

é!..."

Sim, era melhor rezar mais, trabalhar mais e escorar firme, para poder alcançar o reino-do-céu. Mas o mais terrível era que o desmazelo de alma em que se achava

não lhe deixava esperança nenhuma do jeito de que o Céu podia ser.

- Desonrado, desmerecido, marcado a ferro feito rês, mãe Quitéria, e assim tão mole, tão sem homência, será que eu posso mesmo entrar no céu?! ...

-Não fala fácil, meu filho!... Dei"stá: debaixo do angu tem molho, e atrás de morro tem morro.

- Isso sim... Cada um tem a sua vez, e a minha hora há-de chegar!...

E, enquanto isso tudo, Nhô Augusto estava no escuro e sozinho, cercado de capiaus descalços, vestidos de riscado e seriguilha tinta, sem padre nenhum com quem falar.

E essa era a conseqüência de um estouro de boiada na vastidão do planalto, por motivo de uma picada de vespa na orelha de um marruaz bravio, combinada com a existência,

neste mundo, do Tião da Thereza. E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi.

Apenas, Nhô Augusto se confessou aos seus pretos tutelares, longamente, humanamente, e foi essa a primeira vez. E, no fim, desabafou: que era demais o que estava

purgando pelos seus pecados, e que Nosso Senhor se tinha esquecido dele! A mulher, feliz, morando com outro... A filha, tão nova, e já na mão de todos, rolando por

este mundo, ao deus-dará... E o Quim, o Quim Recadeiro - um rapazinho miúdo, tão no desamparo - e morrendo como homem, por causa do patrão... um patrão de borra,

que estava p"r"ali no escondido, encostado, que nem como se tivesse virado mulher!...

- O resto é peso p"ra dia, mãe Quitéria... Mas, como é? Como é que eu vou me encontrar com o Quim lá com Deus, com que cara?!... E eu já fui zápede, já pus fama

em feira, mãe Quitéria! Na festa do Rosário, na Tapera... E um dia em que enfrentei uns dez, fazendo todo-o-mundo correr... Desarmei e dei pancada, no Sergipão Congo,

mãe Quitéria, que era mão que desce, mesmo monstro matador!... E a briga, com a família inteira, pai, irmão, tio da moça que eu tirei de casa, semana em antes de

se casar?!...

- Vira o demônio de costas, meu filho... Faz o que o seu padre mandou!

446 JoAo GUIMARÀES Rosn / FtcçAo Coma

- E é o diabo mesmo, mãe Quitéria... Eu sei... Ou então é cas porque eu vou me lembrar dessas coisas logo agora, que o meu corpo está valendo, nem que eu queira,

nem p"ra brigar com homem e nem gostar de mulher...

- Rezo o credo!

Mas Nhô Augusto, que estava de cócoras, sentou-se no chão e c nuou:

- Tem horas em que fico pensando que, ao menos por honrar o Q

que morreu por minha causa, eu tinha ordem de fazer alguma vantage

Mas eu tenho medo... Já sei como é que o inferno é, mãe Quitéria... P

ir procurar a coitadinha da minha filha, que talvez esteja sofrendo, pr

sando de mim... Mas eu sei que isso não é eito meu, não é não. Tenho é

ficar pagando minhas culpas, penando aqui mesmo, no sozinho. Já fiz

nitência estes anos todos, e não posso ter prejuízo deles! Se eu quisesse

perdiçar essa penitência feita, ficava sem uma coisa e sem outra... Sou

desgraçado, mãe Quitéria, mas o meu dia há-de chegar!... A minha vez.

E assim nesse parado Nhô Augusto foi indo muito tempo, se acos

mando com os novos sofrimentos, mais meses. Mas sempre saía para se

aos outros, quando precisavam, ajudava a carregar defuntos, visitava e

sistia gente doente, e fazia tudo com uma tristeza bondosa, a mais não s

Até que, pouco a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma coisa

gou a querer voltar para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrate

como a chegada do tempo das águas, que vinha vindo paralela: com o cal

dos dias aumentando, e os dias cada vez maiores, e o João-de-barro con truindo casa nova, e as sementinhas, que hibernavam na poeira, esperan na poeira, em misteriosas

incubações. Nhô Augusto agora tinha muita me e muito sono. O trabalho entusiasmava e era leve. Não tinha precis de enxotar as tristezas. Não pensava nada... E as

mariposas e os cupins-d asas vinham voar ao redor da lamparina... Círculo rodeando a lua ch " sem se encostar... E começaram os cantos. Primeiro, os sapos: - "Sapo

seca coaxando, chuva beirando", mãe Quitéria!... -Apareceu uma na horta, e pererecas dentro de casa, pelas paredes... E os escorpiões e minhocas pulavam no terreiro,

perseguidos pela correição das lava-p em préstitos atarefados e compridos... No céu sul, houve nuvens maiore mais escuras. Aí, o peixe-frito pegou a cantar de noite.

A casca de lua, bico para baixo, "despejando"... Um vento frio, no fim do calor do dia. Na orilha do atoleiro, a saracura fêmea gritou, pedindo três potes, três

tes, três potes para apanhar água... Choveu.

Então, tudo estava mesmo muito mudado, e Nhô Augusto, de repent pensou com a idéia muito fácil, e o corpo muito bom. Quis se assustar, m se riu:

- Deus está tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria! Agora eu.

sei que ele está se lembrando de mim...

Sai^ANA 447

- Louvor ao Divino, meu filho!

E, uma vez, manhã, Nhô Augusto acordou sem saber por que era que ele estava com muita vontade de ficar o dia inteiro deitado, e achando, ao mesmo tempo, muito bom

se levantar. Então, depois do café, saiu para a horta cheirosa, cheia de passarinhos e de verdes, e fez uma descoberta: por que não pitava?!... Não era pecado...

Devia ficar alegre, sempre alegre, e esse era um gosto inocente, que ajudava a gente a se alegrar...

E isso foi pensado muito ligeiro, porque já ele enrolava a palha, com uma pressa medonha, como se não tivesse curtido tantos anos de abstenção. Tirou tragadas, soltou

muitas fumaças, e sentiu o corpo se desmanchar, dando na fraqueza, mas com uma tremura gostosa, que vinha até ao mais dentro, parecendo que a gente ia virar uma

chuvinha fina.

Não, não era pecado!... E agora rezava até muito melhor e podia esperar melhor, mais sem pressa, a hora da libertação.

E, pois, foi aí por aí, dias depois, que aconteceu uma coisa até então jamais vista, e té hoje mui lembrada pelo povinho do Tombador.

Vindos do norte, da fronteira velha-de-guerra, bem montados, bem enroupados, bem apessoados, chegaram uns oito homens, que de longe se via que eram valentões: primeiro

surgiu um, dianteiro, escoteiro, que percorreu, de ponta a ponta, o povoado, pedindo água à porta de uma casa, pedindo pousada em outra, espiando muito para tudo

e fazendo pergunta e pergunta; depois, então, apareceram os outros, equipados com um despropósito de armas - carabinas, novinhas quase; garruchas, de um e de dois

canos; revólveres de boas marcas; facas, punhais, quicés de cabos esculpidos; porretes e facões, - e transportando um excesso de breves nos pescoços.

O bando desfilou em formação espaçada, o chefe no meio. E o chefe - o mais forte e o mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu de couro, com dentes

brancos limados em acume, de olhar dominador e tosse rosnada, mas sorriso bonito e mansinho de moça - era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do

Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à barra do Verde Grande, do Rio Gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha até Paracatu; maior do que Antônio

Dó ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho

Bem-Bem.

O povo não se mexia, apavorado, com medo de fechar as portas, com medo de ficar na rua, com medo de falar e de ficar calado, com medo de existir. Mas Nhô Augusto,

que vinha de vir do mato, carregando um feixe de lenha para um homem chamado Tobias da Venda, quando soube do que havia, jogou a carga no chão e correu ao encontro

dos recém-chegados.

Então o bandido Flosino Capeta, um sujeito cabeça-de-canoa, que nunca se apartava do chefe, caçoou:

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- Que suplicante mais estúrdio será esse, que vem vindo ali, feito so bração?!

Mas seu Joãozinho Bem-Bem fez o cavalo avançar duas passadas, e di - Não debocha, companheiro, que eu estou gostando do jeito d te homem caminhar!

E Flosino Capeta pasmou deveras, porque era a coisa mais custosa de mundo seu Joãozinho Bem-Bem se agradar de alguém ao primeiro olh

Mas Nhô Augusto, parecendo não ver os demais, veio direito ao che encarando-o firme e perguntando:

- O senhor, de sua graça, é que é mesmo o seu Joãozinho Bem-Be pois não é?

- P"ra lhe servir, meu senhor.

- Apois, se o senhor não se acanha de entrar em casa de pobre, eu lh convido para passar mal e se arranchar comigo, enquanto for o tempo querer ficar por aqui...

E de armar sua rede debaixo do meu telhado, qu vai me dar muita satisfação!

- Eu aceito sua bondade, mano velho. Agora, preciso é de ver que é mais, desse povinho assustado, que quer agasalhar o resto da min gente...

- Pois eu gostava era que viessem todos juntos para o meu rancho.. - Não será abuso, mano velho?

- É não... É de coração.

- Pois então, vamos, que Deus lhe pagará!

E seu Joãozinho Bem-Bem, que, com o rabo-do-olho, não deixava vigiar tudo em volta, virou-se, rápido, para o Epifãnio, que mexia com winchester:

- Guarda a arma, companheiro, que eu já disse que não quero ess moda de brincar de dar tiro à toa, à toa, só por amor de espantar os mo dores do lugar!... Vamos

chegando! Guia a gente, mano velho.

E aí o casal de pretos, em grande susto, teve de se afanar, num corr corre de depenar galinhas, matar leitoa, procurar ovos e fazer doces. E Nh Augusto, depois de

buscar ajuda para tratar dos cavalos, andou de casa e casa, arrecadando aluá, frutas, quitandas, fumo cheiroso, muita cachaça, tudo o mais que de fino houvesse,

para os convidados. E os seus convid dos achavam imensa graça naquele homem, que se atarefava em servi-lo cheio de atenções, quase de carinhos, com cujo motivo eles

não topav atinar. Tinham armado as redes de fibra nas árvores do quintal, e repousa vam, cada qual com o complicado arsenal bem ao alcance da mão. Entã seu Joãozinho

Bem-Bem contou a Nhô Augusto: estava de passagem, co uma pequena parte do seu bando, para o sul, para o arraial das Taquar na nascença do Manduri, a chamado do seu

amigo Nicolau Cardoso, ataca do por um mandão fazendeiro, de injustiça. E Flosino Capeta acrescentou.

- Diz"que o tal tomou reforço, com três tropas de serranos, mas é só a

gente chegar lá, para não se ver ninguém mais... Eles têm que "dar o beiço e cair o cacho", seu moço! ... Mas a gente nem pode mais ter o gosto de brigar, porque

o pessoal não aparece, no falar de entrar no meio o seu Joãozinho Bem-Bem...

Mas seu Joãozinho Bem-Bem interrompeu o outro:

- Prosa minha não carece de contar, companheiro, que todo o mundo já sabe.

Nhô Augusto passeava com os olhos, que nunca ninguém tinha visto tão grandes nem tão redondos, mostrando todo o branco ao xedor. Seu Joãozinho Bem-Bem ria um riso

descansado, e os outros riam também, circundando-o, obedientes.

- Agente não ia passar, porque eu nem sabia que aqui tinha este comercinho... Nosso caminho era outro. Mas de uma banda do rio tinha a maleita, e da outra está reinando

bexiga da brava... E falaram também numa soldadesca, que vem lá da Diamantina... Por isso a gente deu tanta volta.

Os pretos trouxeram a janta, para o meio do pátio. Era um banquete. E quando a turma se pôs em roda, para começar a comer, o anfitrião fez o sinal da cruz e rezou

alto; e os outros o acompanharam, com o que Nhô Augusto deu mostras de exultar.

- O senhor, que é o dono da casa, venha comer aqui perto de mim, mano velho... - pediu seu Joãozinho Bem-Bem. - Mas, que é que o senhor está gostando tanto assim

de apreciar? Ah, é o Tim?... Isso é morrinha de quartel... Ele é reiúno...

Nhô Augusto namorava o Tim Tatu-tá-te-vendo, desertor do Exército e de três milícias estaduais, e que, por isso mesmo e sem querer, caminhava marchando, e, para

falar com alguém, se botava de sentido, em estrita posição.

- Esta guarda guerreira acompanha o senhor há muito tempo, seu Joãozinho Bem-Bem?

O chefe acertou a sujigola e tossiu, para responder:

- Alguns. É tudo gente limpa... Mocorongo eu não aceito comigo! Homem que atira de trás do toco não me serve... Gente minha só mata as mortes que eu mando, e morte

que eu mando é só morte legal!

-Epa, ferro!... - exclamou Nhô Augusto, balançando o corpo. Seu Joãozinho Bem-Bem continuou-

- Povo sarado e escovado... Mas eles todos me dão trabalho... Este aqui é baiano, fala mestre... Cabeça-chata é outro, porque eles avançam antes da hora... Não é

gente fácil... Nem goiano, porque não é andejo... E nem mineiro, porque eles andam sempre com a raiva fora-de-hora, e não gostam de parar mais, quando começam a

brigar... Mas, pessoal igual ao meu, não tem!

- E o senhor também não é mineiro, seu Joãozinho Bem-Bem?

45O

- Isso sim, que sou... Sou da beira do rio... Sei lá de onde é sou?! ... Mas, por me lembrar, mano velho, não leve a mal o que eu vou pedir: sua janta está de primeira,

está boa até de regalo... mas eu a muito escandecido e meu estômago não presta p"ra mais... Se for coisa pouco incômodo, o que eu queria era que o senhor mandasse

apron para mim uma jacuba quente, com a rapadura bem preta e a farinha b fina, e com umas folhinhas de laranja-da-terra no meio... Será que po

- Já, já... Vou ver.

- Deus lhe ajude, mano velho.

Enquanto isso, os outros devoravam, com muita esganação e lamba E, quando Nhô Augusto chegou com a jacuba, interpelou-o o Zeferi que multiplicava as sílabas, com

esforço, e, como tartamudo teimoso, ~ gava, a cada sílaba, a cabeça para trás:

- Pois eu... eu est-t-tou m"me-espan-t-tando é de uma c"coisa, senhor: é de, neste jantar, com t-t-tantas c"comerias finas, não haver d duas delas, das mais principais!

- Que é que está fazendo falta, amigo?

- É o m"molho da sa-mam-baia e a so-p-p"pa da c"c"anjiquinha! Nhô Augusto sorriu:

- Eu agaranto que, na hora da zoeira, tu no pinguelo não gagueja!

- Que nada! - apoiou seu Joãozinho Bem-Bem. - Isto é cabra m cho e remacheado, que dá pulo em-cruz...

Já Nhô Augusto, incansável, sem querer esperdiçar detalhe, apalpava braços do Epifânio, mulato enorme, de musculatura embatumada, de bi pitalidade maciça. E se voltava

para o Juruminho, caboclo franzino, vi no menor movimento, ágil até no manejo do garfo, que em sua mão vinha como agulha de coser:

- Você, compadre, está-se vendo que deve de ser um corisco de c gador! ...

E o Juruminho, gostando.

- Chego até em porco-espinho e em tatarana-rata, e em homem vinte braços, com vinte foices para sarilhar!... Deito em ponta de chi durmo em ponta de faca, e amanheço

em riba do meu colchão!... Es nosso chefe, que diga... E mais isto aqui...

E mostrou a palma da mão direita, lanhada de cicatrizes, de pegar nhais pelo pico, para desarmar gente em agressão.

Nhô Augusto se levantara, excitado:

- Opa! Oi-ai!... A gente botar você, mais você, de longe, com as vinas... E você outro, aí, mais este compadre de cara séria,, p"ra vo rem... E este companheirinho

chegador, para chegar na frente; e não até-logo!... E depois chover sem chuva, com o pau escrevendo e lend arma-de-fogo debulhando, e homem mudo gritando, e os do-lado-d

correndo e pedindo perdão!...

SncAK^~^ 45i

Mas, aí, Nhô Augusto calou, com o peito cheio; tomou um ar de acanhamento; suspirou e perguntou:

- Mais galinha, um pedaço, amigo?

-"Tou feito.

- E você, seu barra?

- Agradecido... "Tou encalcado... "Tou cheio até à tampa!

Enquanto isso, seu Joãozinho Bem-Bem, de cabeça entornada, não tirava os olhos de cima de Nhô Augusto. E Nhô Augusto, depois de servir a cachaça, bebeu também, dois

goles, e pediu uma das papo-amarelo, para ver:

- Não faz conta de balas, amigo? Isto é arma que cursa longe...

- Pode gastar as oito. Experimenta naquele pássaro ali, na pitangueira...

- Deixa a criaçãozinha de Deus. Vou ver só se corto o galho... Se errar, vocês não reparem, porque faz tempo que eu não puxo dedo em gatilho...

Fez fogo.

- Mão mandona, mano velho. Errou o primeiro, mas acertou um em dois... Ferrugem em bom ferro!

Mas, nesse tento, Nhô Augusto tornou a fazer o pelo-sinal e entrou num desânimo, que o não largou mais. Continuou, porém, a cuidar bem dos seus hóspedes, e, como

o pessoal se acomodara ali mesmo, nas redes, ao relento, com uma fogueira acesa no meio do terreiro, ele só foi dormir tarde da noite, quando não houve mais nem

um para contar histórias de conflitos, assaltos e duelos de exterminação.

Cedinho na manhã seguinte, o grupo se despediu. Joãozinho Bem-Bem agradeceu muito o agasalho, e terminou:

- O senhor, mano velho, a modo e coisa que é assim meio diferente, mas eu estou lhe prestando atenção, este tempo todo, e agora eu acho, pesado e pago, que o senhor

é mas é pessoa boa mesmo, por ser. Nossos anjos-da-guarda combinaram, e isso para mim é o sinal que serve. A pois, se precisar de alguma coisa, se tem um recado

ruim para mandar para alguém... Tiver algum inimigo alegre, por aí, é só dizer o nome e onde mora. Tem não? Pois, "tá bom. Deus lhe pague suas bondades.

- Vão com Deus! Até à volta, vocês todos. "Té a volta, seu Joãozinho Bem-Bem!

Mas, depois de montado, o chefe ainda chamou Nhô Augusto, para dizer:

- Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo que não viveu sempre aqui nesta grota, capinando roça e cortando lenha... Não quero especular coisa

de sua vida p"ra trás, nem se está se escondendo de algum crime. Mas, comigo é que o senhor havia de dar sorte! Quer se amadrinhar com meu povo? Quer vir junto?

- Ah, não posso! Não me tenta, que eu não posso, seu Joãozinho BemBem...

45z

- Pois então, mano velho, paciência.

- Mas nunca que eu hei de me esquecer dessa sua bizarria, meu amr meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem!

Aí, o Juruminho, que tinha ficado mais para trás, de propósito, se c vou para Nhô Augusto e pediu, num cochicho ligeiro, para que os outr não escutassem:

- Amigo, reza por uma irmãzinha que eu tenho, que sofre de dóen com muitas dores e vive na cama entrevada, lá no arraial do Urubu...

E o bando. entrou na estrada, com o Tim Tatu-tá-te-vendo puxan uma cantiga brava, de tempo de revolução:

Nhô Augusto não tirou os olhos, até que desapàiecessem. E depois esparramou em si, pensando forte. Aqueles, sim, que estavam no bo porque não tinham de pensar em

coisa nenhuma de salvação de alma; podiam andar no mundo, de cabeça em-pé... Só ele, Nhô Augusto, e quem estava de todo desonrado, porque, mesmo lá, na sua terra,

se alguó se lembrava ainda do seu nome, havia de ser para arrastá-lo pela rua-d amargura...

O convite de seu Joãozinho Bem-Bem, isso, tinha de dizer, é que e cachaça em copo grande! Ah, que vontade de aceitar é ir também...

E o oferecimento? Era só falar! Era só bulir com a boca, que seu Joã zinho Bem-Bem, e o Tim, e o Juruminho, e o Epífânio - e todos - rebe tavam com o Major Consilva,

com o Ovídio, com a mulher, com todo mundo que tivesse tido mão ou fala na sua desgarração. Eh, mundo ve de bambaruê e bambaruá!... Eh, ferragem!...

E Nhô Augusto cuspiu e riu, cerrando os dentes.

Mas, qual, aí era que se perdia, mesmo, que Deus o castigava com m mais dura...

E só então foi que ele soube de que jeito estava pegado à sua penitênc e entendeu que essa história de se navegar com religião, e de querer t sua alma da boca do

demônio, era a mesma coisa que entrar num brejã que, para a frente, para trás e para os lados, é sempre dificultoso e ato sempre mais.

Recorreu ao rompante:

- Agora que eu principiei e já andei üm caminho tão grande, ningu não me faz virar e nem andar de-fasto!

E, à noite, tomou um trago sem ser por regra, o que foi bem bom, po que ele já viajou, do acordado para o sono, montado num sonho bonit

$AGARANA 453

no qual havia um Deus valentão, o mais solerte de todos os valentões, assim parecido com seu Joãozinho Bem-Bem, e que o mandava ir brigar, só para lhe experimentar

a força, pois que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindo tudo.

E, assim, dormiram as coisas.

Deu uma invernada brava, mas para Nhô Augusto não foi nada: passava os dias debaixo da chuva, limpando o terreiro, sem precisão nenhuma. Depois, entestou de pôr

abaixo o mato, que conduzia até à beira do córrego os angicos de casca encoscorada e os jacarandás anosos, da primeira geração. E era cada machadada bruta, com ele

golpeando os troncos, e gritando. E os pretos, que se estavam dando muito bem com o sistema, traziam-lhe de vez em quando um Bolinho, para que ele não apanhasse

resfriado; e, como para chegarem até lá também se molhavam, tomavam cuidado de se defender, igualmente, contra os seus resfriados possíveis.

E ainda outras coisas tinham acontecido, e a primeira delas era que, agora, Nhô Augusto sentia saudades de mulheres. E a força da vida nele latejava, em ondas largas,

numa tensão confortante, que era um regresso e um ressurgimento. Assim, sim, que era bom fazer penitência, com a tentação estimulando, com o rasto no terreno conquistado,

com o perigo e tudo. Nem pensou mais em morte, nem em ir para o céu; e mesmo a lembrança de sua desdita e reveses parou de atormentá-lo, como a fome depois de um

almoço cheio. Bastava-lhe rezar e agüentar firme, com o diabo ali perto, subjugado e apanhando de rijo, que era um prazer. E somente por hábito, quase, era que ia

repetindo:

- Cada um tem a sua hora, e há-de chegar a minha vez!

Tanto assim, que nem escolhia, para dizer isso, as horas certas, as três horas fortes do dia, em que os anjos escutam e dizem amém...

Mas, afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo do

pote, marinhava céu acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um para o outro lado, e um desperdício de verdes cá embaixo - amanhã mais bonita que ele

já pudera ver.

Estava capinando, na beira do rego.

De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda outro,

mais baixo, com as maitacas verdinhas, gralhantes, gralhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um coro.

Depois, um grupo verde-azulado, mais sóbrio de gritos e em fileiras reais juntas.

- Uai! Até as maracanãs!

E mais maitacas. E outra vez as maracanãs fanhosas. E não se acabavam rrrais. Quase sem folga: era uma revoada estrilando bem por cima da gente,

"O terreiro lá de casa

não se varre com vassoura: Varre com ponta de sabre, bala de metralhadora..."

454 Tono GUiMnRnes Rosn / Ficçno COMP

e outra brotando ao norte, como pontozinho preto, e outra - grão de v dura - se sumindo no sul.

- Levou o diabo, que eu nunca pensei que tinha tantos!

E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, esquadrilha sobrevoando outra... E mesmo; de vez em quando, disc do, brigando, um casal de papagaios

ciumentos. Todos tinham muita p sa: os únicos que interromperam, por momentos, a viagem, foram os gres tuins, os minúsculos tuins de cabecinhas amarelas, que não

le nada a sério, e que choveram nos pés de mamão e fizeram recreio, aos res, sem sustar o alarido - rrrl-rrril! rrrl-rrril!...

Mas o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. bando grazinava alto, risonho, para o que ia na frente: -Me espera!.. espera!... - E o grito tremia

e ficava nos ares, para o outro escalão, avançava lá atrás.

- Virgem! Estão todas assanhadas, pensando que já tem milho nas ças... Mas, também, como é que podia haver um de-manhã mesmo bo to, sem as maitacas?!...

O sol ia subindo, por cima do vôo verde das aves itinerantes. Do Olado da cerca, passou uma rapariga. Bonita! Todas as mulheres eram b tas. Todo anjo do céu devia

de ser mulher.

E Nhô Augusto pegou a cantar a cantiga, muito velha, do capiau exila

Snc~R^N^ 455

-Adeus, minha gente, que aqui é que mais não fico, porque a minha vez vai chegar, e eu tenho que estar por ela em outras partes!

- Espera o fim das chuvas, meu filho! Espera a vazante...

- Não posso, mãe Quitéria. Quando çoração está mandando, todo tempo é tempo!... E, se eu não voltar mais, tudo o que era de meu fica sendo para vocês.

Rodolpho Merêncio quis emprestar-lhe um jegue.

- Que nada! Lhe agradeço o bom desejo, mas não preciso de montada, porque eu vou é mesmo a pé...

Mas, depois, aceitou, porque mãe Quitéria lhe recordou ser o jumento um animalzinho assim meio sagrado, muito misturado às passagens da vida de Jesus.

E todos sentiram muito a sua partida. Mas ele estava madurinho de não ficar mais, e, quando chegou no sozinho, espiou só para a frente, e logo entoou uma das letras

que ouvira aos guerreiros de seu Joãozinho BemBem:

"A roupa lá de casa

não se lava com sabão: lava com ponta de sabre e com bala de canhão..."

"Eu quero ver a moreninha tabaroa, arregaçada, enchendo o pote na lagoa..."

Cantou, longo tempo. Até que todas as asas saíssem do céu.

- Não passam mais... d papagaiada vagabunda! Já devem de e longe daqui...

Longe, onde?

"Como corisca, como ronca a trovoada,

no meu sertão, na minha terra abençoada..."

Longe, onde?

"Quero ir namorar com as pequenas, com as morenas do Norte de Minas..."

Mas, ali mesmo, no sertão do Norte, Nhô Augusto estava. Longe-b então?

Quando ele encostou a enxada e veio andando para a porta da co ainda não possuía idéia alguma do que ia fazer. Mas, dali a pouco, adiantavam, para retê-lo, os rogos

reunidos de mãe preta Quitéria e d preto Serapião.

Cantar, só, não fazia mal, não era pecado. As estradas cantavam. E ele achava muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas, nos caminhos

do sertão.

Parou, para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar um ananás selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para tirar mel da caixa comprida

da abelha borá; para rezar perto de um paud"arco florido e de um solene pau-d"óleo, que ambos conservavam, muito de-fresco, os sinais da mão de Deus. E, uma vez,

teve de se escapar, depressa, para a meia-encosta, e ficou a contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel de uma boiada de duas mil cabeças,

que rolava para o Itacambira, com a vaqueirama encourada - piquete de cinco na testa, em cada talão sete ou oito, e, atrás, todo um esquadrão de ufanos morenos,

cantando cantigas do alto sertão.

E também fez, um dia, o jerico avançar atrás de um urubu reumático, que claudicava estrada afora, um pedaço, antes de querer voar. E bebia, aparada nas mãos, a água

das frias cascatas véus-de-noivas dos morros, que caem com tom de abundância e abandono. Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as pinturas do poente, com

os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo. E viu voar, do mulungu,

vermelho, um tié-piranga, ainda mais vermelho - e o tié-piranga pousou

4Só JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COMP

num ramo do barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu que o b batimão todo se alegrava, porque tinha agora um ramo que era de lungu.

Viajou nas paragens dos mangabeiros, que lhe davam dormida nas locas, de teto e paredes de palmas de buriti. Retornou à beira do rio, o os barranqueiros lhe davam

comida, de pirão com pimenta e peixe. pois, seguiu.

Uma tarde, cruzou, em pleno chapadão, com um bode amarelo e p preso por uma corda e puxando, na ponta da corda, um cego, esgu meio maluco. Parou, e o cego foi declamando

lenta e mole melopéia:

- Eh, zoeira! "Tou também! ... - aplaudiu Nhô Augusto.

Já o cego estendia a mão, com a sacóla:

- "Estou misturando aqui o dinheirinho de todos"...

Mas mudou de projeto, enquanto Nhô Augusto caçava qualquer ed

na algibeira:

- Tem algum de-comer, aí, irmão? Dinheiro quero menos, que aqui por estes trechos a gente custa muito a encontrar qualquer povo até as cafuas mesmo vão vasqueiras...

E explicou: tinha um menino-guia, mas esse-um havia mais de utri~ que escapulira; e teria roubado também o bode, se o bode não tivesse rado e ele não investisse

de porrete. Agora, era aquele bicho de duas quem escolhia o caminho... Sabia, sim, sabia tudo! Ótimo para gut Companheiro de lei, que nem gente, que nem pessoa de

sua família.:::

Se despediu. Achava a vida muito boa, e ia para a Bahia, de volta Caitité, porque quando era menino tinha nascido lá.

- Pois eu estou indo para a banda de onde você veio... Em todo so, meu compadre cego por destino de Deus, em todo o caso, dá lemb minha a todos do povo da sua terra,

toda essa gente certa, que eu não t ocasião de conhecer!

E aí o jumento andou, e Nhô Augusto ainda deu um eco, para o e ouvir:

SAGpRANA 457

- "Qualquer paixão me adiverte..." Oh coisa boa a gente andar solto, sem obrigação nenhuma e bem com Deus!...

E quando o jegue empacava-porque, como todo jumento, ele era terrível de queixo-duro, e tanto tinha de orelhas quanto de preconceitos, - Nhô Augusto ficava em cima,

mui concorde, rezando o terço, até que o jerico se decidisse a caminhar outra vez. E também; nas encruzilhadas, deixava que o bendito asno escolhesse o caminho,

bulindo com as conchas dos ouvidos e ornejando. E bastava batesse no campo o pio de uma perdiz magoada, ou viesse do mato a lália lamúria dos tucanos, para.o jumento

mudar de rota, pendendo à esquerda ou se empescoçando para a direita; e, por via de um gavião casaco-de-couro cruzar-lhe à frente, já ele estacava, em concentrado

prazo de irresolução.

Mas, somadas as léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o sul, na direção das maitacas viajoras. Agora, amiudava-se o aparecimento de pessoas - mais

ranchos, mais casas, povoados, fazendas; depois, arraiais, brotando do chão. E então, de repente, estiveram a muito pouca distância do arraial do Murici.

- Não me importo! Aonde o jegue quiser me levar, nós vamos, porque estamos indo é com Deus!...

E assim entraram os dois no arraial do Rala-Coco, onde havia, no momento,uma agitação assustada no povo.

Mas, quando responderam a Nhô Augusto: - "É a jagunçada de seu Joãozinho Bem-Bem, que está descendo para a Bahia..." - ele, de alegre, não se pôde conter:

-Agora sim! Cantou p"ra mim, passarim!... Mas, onde é que eles estão?

Estavam aboletados, bem no centro do arraial, numa casa de fazendeiro, onde seu Joãozinho Bem-Bem recebeu Nhô Augusto, com muita satisfação.

Nhô Augusto caçoou:

- "Boi andando no pasto, p"ra lá e p"ra cá, capim que acabou ou está para acabar..."

- É isso, mano velho... Livrei meu compadre Nicolau Cardoso, bom homem... E agora vou ajuntar o resto do meu pessoal, porque tive recado de que a política se apostemou,

do lado de lá das divisas, e estou indo de rota batida para o Pilão Arcado, que o meu amigo Franquilim de Albuquerque é capaz de precisar de mim...

Fitava Nhô Augusto com olhos alegres, e tinha no rosto um ar paternal. Mas, na testa, havia o resto de uma ruga.

- Está vendo, mano velho? Quem é que não se encontra, neste mundo?,,, Fico prazido, por lhe ver. E agora o senhor é quem está em minha casa... Vai se arranchar comigo.

Se abanque, mano velho, se abanque!... Arranja um café aqui p"ra o parente, Flosino!

"Eu já vi um gato ler

e um grilo sentar escola, nas asas de uma ema jogar-se o jogo da bola, dar louvores ao macaco. Só me falta ver agora acender vela sem pavio,

correr p"ra cima a água do rio, o sol a tremer com frio e a lua tomar tabaco!..."

458

- Não queria empalhar... O senhor está com pouco prazo...

- Que nada, mano velho! Nós estamos de saída, mas ainda falta ajus um devido, para não se deixar rabo para trás... Depois lhe conto. O senh mesmo vai ver, daqui

a pouco... Come com gosto, mano velho.

Nhô Augusto mordia o pão de broa, e espiava, inocente, para ver se vinha o café.

- Tem chá de congonha, requentado, mano velho...

-Aceito também, amigo. Estou com fome de tropeiro... Mas, qu"é o Juruminho?

-Ah, o senhor guardou o nome, e, a"pois, gostou dele, do menino. Pois foi logo com o pobre do Juruminho, que era um dos mais melho que .eu tinha...

- Não diga.. .

O rosto de seu Joãozinho Bem-Bem foi ficando sombrio.

- O matador - foi à traição - caiu no mundo, campou no pé... M a família vai pagar tudo, direito!

Seu Joãozinho Bem-Bem, sentado em cima da beirada da mesa, brin va com os três bentinhos do pescoço, e batia, muito ligeiro, os calcanhare um no outro. Nhô Augusto,

parando de limpar os dentes com o dedo, la timou:

- Coitado do Juruminho, tão destorcido e de tão bom parecer... D xa eu rezar por alma dele...

Seu Joãozinho Bem-Bem desceu da mesa e caminhou pela sala, calad Nhô Augusto, cabeça baixa, sempre sentado num selim velho, dava o ar quem estivesse com a mente

muito longe.

- Escuta, mano velho...

Seu Joãozinho Bem-Bem parou em frente de Nhô Augusto, e conte nuou:

- ... eu gostei da sua pessoa, em-desde a primeira hora, quando Onhor caminhou para mim, na rua daquele lugarejo... Já lhe disse, da out vez, na sua casa: o senhor

não me contou coisa nenhuma de sua vida, m eu sei que já deve de ter sido brigador de ofício. Olha: eu, até de longe, co os olhos fechados, o senhor não me engana:

juro como não há outro h mem p"ra ser mais sem medo e disposto para tudo. É só o senhor mes querer...

- Sou um pobre pecador, seu Joãozinho Bem-Bem...

- Que-o-quê! Essa mania de rezar é que está lhe perdendo... O senh não é padre nem frade, p"ra isso; é algum?... Cantoria de igreja, dando e cabeça fraca, desgoverna

qualquer valente... Bobajada!...

- Bate na boca, seu Joãozinho Bem-Bem meu amigo, que Deus po castigar!

- Não se ofenda, mano velho, deixe eu dizer: eu havia de gostar, se senhor quisesse vir comigo, para o norte... Já lhe falei e torno a falar:

$AGARANA 459

convite como nunca fiz a outro, e o senhor não vai se arrepender! Olha: as armas do Juruminho estão aí, querendo dono novo...

- Deixa eu ver...

Nhô Augusto bateu a mão na winchester, do jeito com que um gato poria a pata num passarinho. Alisou coronha e cano. E os seus dedos tremiam, porque essa estava sendo

a maior das suas tentações.

Fazer parte do bando de seu Joãozinho Bem-Bem! Mas os lábios se moviam - talvez ele estivesse proferindo entre dentes o creio-em-deus-padre - e, por fim, negou com

a cabeça, muitas vezes:

- Não posso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem!... Depois de tantos anos... Fico muito agradecido, mas não posso, não me fale nisso mais...

E ria para o chefe dos guerreiros, e também por dentro se ria, e era o riso do capiau ao passar a perna em alguém, no fazer qualquer negócio.

-Está direito, lhe obrigar não posso... Mas, pena é...

Nisso, fizeram um estardalhaço, à entrada.

- Quem é?

- É o tal velho caduco, chefe.

- Deixa ele entrar. Vem cá, velho.

O velhote chorava e tremia, e se desacertou, frente às pessoas. Afinal, conseguiu ajoelhar-se aos pés de seu Joãozinho Bem-Bem.

- Ai, meu senhor que manda em todos... Ai, seu Joãozinho BemBem,tem pena!... Tem pena do meu povinho miúdo... Não corta o coração de um pobre pai...

- Levanta, velho.. .

- O senhor é poderoso, é dono do choro dos outros... Mas a Virgem Santíssima lhe dará o pago por não pisar em formiguinha do chão... Tem piedade de nós todos, seu

Joãozinho Bem-Bem!...

- Levanta, velho! Quem é que teve piedade do Juruminho, baleado por detrás?

- Ai, seu Joãozinho Bem-Bem, então lhe peço, pelo amor da senhora sua mãe, que o teve e lhe deu de mamar, eu lhe peço que dê ordem de matarem só este velho, que

não presta para mais nada... Mas que não mande judiar com os pobrezinhos dos meus filhos e minhas filhas, que estão lá em casa sofrendo, adoecendo de medo, e que

não têm culpa nenhuma do que fez o irmão... Pelo sangue de Jesus Cristo e pelas lágrimas da Virgem Maria!...

E o velho tapou a cara com as mãos, sempre ajoelhado, curvado, soluçando e arquejando.

Seu Joãozinho Bem-Bem pigarreou, e falou:

- Lhe atender não posso, e com o senhor não quero nada, velho. É a regra... Senão, até quem é mais que havia de querer obedecer a um homem que não vinga gente sua,

morta de traição?... É a regra. Posso até livrar de sebaça, às vezes, mas não posso perdoar isto não... Um dos dois

46a JOÃO GUIMARAES ROSA / FICÇÀO COMPLE

rapazinhos seus filhos tem de morrer, de tiro ou à faca, e o senhor pode escolher qual deles é que deve de pagar pelo crime do irmão. E as moças. Para mim não quero

nenhuma, que mulher não me enfraquece: as moc nhas são para os meus homens...

- Perdão, para nós todos, seu Joãozinho Bem-Bem... Pelo corpo Cristo na Sexta-Feira da Paixão!

- Cala a boca, velho. Vamos logo cumprir a nossa obrigação...

Mas, aí, o velho, sem se levantar, inteiriçou-se, distendeu o busto pa cima, como uma caninana enfuriada, e pareceu que ia chegar com a ca até em frente à de seu

Joãozinho Bem-Bem. Hirto, cordoveias retesas, mas tigando os dentes e cuspindo baba, urrou:

- Pois então, satanás, eu chamo a força de Deus p"ra ajudar a minh fraqueza no ferro da tua força maldita!...

Houve um silêncio. E, aí:

- Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçad do velho está pedindo em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria! E que vocês estão querendo fazer

em casa dele é coisa que nem Deus na manda e nem o diabo não faz!

Nhô Augusto tinha falado; e a sua mão esquerda acariciava a lâmina lapiana, enquanto a direita pousava, despreocupada, no pescoço da carabi na. Dera tom calmo às

palavras, mas puxava forte respiração soprosa, qu quase o levantava do selim e o punha no assento outra vez. Os olhos cres ciam, todo ele crescia, como um touro

que acha os vaqueiros excessiva. mente abundantes e cisma de ficar sozinho no meio do curral.

- Você está caçoando com a gente, mano velho?

- Estou não. Estou pedindo como amigo, mas a conversa é no séri meu amigo, meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem.

- Pois pedido nenhum desse atrevimento eu até hoje nunca que ou nem atendi!...

O velho engatinhou, ligeiro, para se encostar na parede. No calor sala, uma mosca esvoaçou.

- Pois então... - e Nhô Augusto riu, como quem vai contar u grande anedota - ... Pois então, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, fácil... Mas tem que passar primeiro

por riba de eu defunto...

Joãozinho Bem-Bem se sentia preso a Nhô Augusto por uma simpa poderosa, e ele nesse ponto era bem-assistido, sabendo prever a virag dos climas e conhecendo por instinto

as grandes coisas. Mas Teófilo Sus suarana era bronco excessivamente bronco, e caminhou para cima de N Augusta Na sua voz:

- Epa! Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filho da-mãe, que chegou minha vez!...

E a casa matraqueou que nem panela de assar pipocas, escurecida fumaça dos tiros, com os cabras saltando e miando de maracajás, e N"h

SAGARANA 461

Augusto gritando qual um demônio preso e pulando como dez demônios soltos.

- Ô gostosura de fim-de-mundo!...

E garrou a gritar as palavras feias todas e os nomes imorais que aprendera em sua farta existência, e que havia muitos anos não proferia. E atroava, também, a voz

de seu Joãozinho Bem-Bem:

- Sai, Canguçu! Foge, daí, Epifânio! Deixa nós dois brigar sozinhos!

A coronha do rifle, no pé-do-ouvido... Outro pulo... Outro tiro...

Três dos cabras correram, porque outros três estavam mortos, ou quase, ou fingindo.

E aí o povo encheu a rua, à distância, para ver. Porque não havia mais balas, e seu Joãozinho Bem-Bem mais o Homem do Jumento tinham rodado cá para fora da casa,

só em sangue e em molambos de roupas pendentes. E eles negaceavam e pulavam, numa dança ligeira, de sorriso na boca e de faca na mão.

- Se entregue, mano velho, que eu não quero lhe matar...

- Joga a faca fora, dá viva a Deus, e corre, seu Joãozinho Bem-Bem...

- Mano velho! Agora é que tu vai dizer: quantos palmos é que tem, do calcanhar ao cotovelo!...

- Se arrepende dos pecados, que senão vai sem contrição, e vai direitinho p"ra o inferno, meu parente seu Joãozinho Bem-Bem!...

- Ui, estou morto...

A lâmina de Nhô Augusto talhara de baixo para cima, do púbis à bocado-estômago, e um mundo de cobras sangrentas saltou para o ar livre, enquanto seu Joãozinho Bem-Bem

caía ajoelhado, recolhendo os seus recheios nas mãos.

Aí, o povo quis amparar Nhô Augusto, que punha sangue por todas as partes, até do nariz e da boca, e que devia de estar pesando demais, de tanto chumbo e bala. Mas

tinha fogo nos olhos de gato-do-mato, e o busto, especado, não vergava para o chão.

- Espera aí, minha gente, ajudem o meu parente ali, que vai morrer mais primeiro... Depois, então, eu posso me deitar.

- Estou no quase, mano velho... Morro, mas morro na faca do homem mais maneiro de junta e de mais coragem que eu já conheci!... Eu sempre lhe disse quem era bom

mesmo, mano velho... É só assim que gente como eu tem licença de morrer... Quero acabar sendo amigos...

- Feito, meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem. Mas, agora, se arrepende dos pecados, e morre logo como um cristão, que é para a gente poder ir juntos...

Mas, seu Joãozinho Bem-Bem, quando respirava, as rodilhas dos intestinos subiam e desciam. Pegou a gemer. Estava no estorcer do fim. E, como teimava em conversar,

apressou ainda mais a despedida. E foi mesmo.

Alguém gritou: - "Eh, seu Joãozinho Bem-Bem já bateu com o rabo na

462 JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COMPLET

cerca! Não tem mais!"... - E então Nhô Augusto se bambeou nas perna e deixou que o carregassem.

- P"ra dentro de casa, não, minha gente. Quero me acabar no solt olhando o céu, e no claro... Quero é que um de vocês chame um padre.. Pede para ele vir me abençoando

pelo caminho, que senão é capaz de n me achar mais...

E riu. MANUELZÃO E MIGUILIM

E o povo, enquanto isso, dizia: - "Foi Deus quem mandou esse ho

mem no jumento, por mor de salvar as famílias da gente!..." E a tur

começou a querer desfeitear o cadáver de seu Joãozinho Bem-Bem, tod CORPO DE BAILE cantando uma cantiga que qualquer-um estava inventando na horinha:

Não me mata, não me mata seu Joãozinho Bem-Bem!

Você não presta mais pra nada, seu Joãozinho Bem-Bem!...

Nhô Augusto falou, enérgico:

-Pára com essa matinada, cambada de gente herege!... E depois en terrem bem direitinho o corpo, com muito respeito e em chão sagrado, que esse aí é o meu parente

seu Joãozinho Bem-Bem!

E o velho choroso exclamava:

- Traz meus filhos, para agradecerem a ele, para beijarem os pés de le!... Não deixem este santo morrer assim... P"ra que foi que foram inven~ tar arma de fogo,

meu Deus?!...

Mas Nhô Augusto tinha o rosto radiante, e falou:

- Perguntem quem é aí que algum dia já ouviu falar no nome de Nh Augusto Esteves, das Pindaíbas!

- Virgem Santa! Eu logo vi que só podia ser você, meu primo Nhô A gusto...

Era o João Lomba, conhecido velho e meio parente. Nhô Augusto riu: - E hein, hein João?!

- P"ra ver.. .

Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com sorriso inten so nos lábios lambuzados de sangue, e de seu rosto subia um sério conte tamento.

Daí, mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora sussurrado sumido:

- Põe a bênção na minha filha... seja lá onde for que ela esteja: E, Dionora... Fala com a Dionora que está tudo em ordem! Depois, morreu.

FIM DE"SAGARANA"

N¿pNUEL7.ÃO E MIGUILIM

465

CAMPO GERAL

UM CERTO MIGUILIM morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d"Agua e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas,

em ponto remoto, no Mutum. No meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra. Miguilim tinha oito anos. Quando completara sete,

havia saído dali, pela primeira vez: o tio Terez levou-o a cavalo, à frente da sela, para ser crismado no Sucuriju, por onde o bispo passava. Da viagem, que durou

dias, ele guardara aturdidas lembranças,. embaraçadas em sua cabecinha. De uma, nunca pôde se esquecer: alguém, que já estivera no Mutum, tinha dito: - "É um lugar

bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre..."

Mas sua mãe, que era linda e com os cabelos pretos e compridos, se doía de tristeza de ter de viver ali. Queixava-se, principalmente nos demorados meses chuvosos,

quando carregava o tempo, tudo tão sozinho, tão escuro, o ar ali era mais escuro; ou, mesmo na estiagem, qualquer dia, de tardinha, na hora do sol entrar. - "Oê,

ah, o triste recanto... "- ela exclamava. Mesmo assim, enquanto esteve fora, só com o tio Terez, Miguilim padeceu tanta saudade, de todos e de tudo, que às vezes

nem conseguia chorar, e ficava sufocado. E foi descobriu,. por si, que, umedecendo as ventas com um tico de cuspe, aquela aflição um pouco aliviava. Daí, pedia ao

tio Terez que molhasse para ele o lenço; e tio Terez, quando davam com um riacho, um minadouro ou um poço de grota, sem se apear do cavalo abaixava o copo de chifre,

na ponta de uma correntinha, e subia um punhado d"água. Mas quase sempre eram secos os caminhos, nas chapadas, então tio Terez tinha uma cabacinha que vinha cheia,

essa dava para quatro sedes; uma cabacinha entrelaçada com cipós, que era tão formosa. - "É para beber, Miguilim,,," - tio Terez dizia, caçoando. Mas Miguilim ria

também e preferia não beber a sua parte, deixava-a para empapar o lenço e refrescar o nariz, na hora do arrocho. Gostava do tio Terez, irmão de seu pai.

Quando voltou para casa, seu maior pensamento era que tinha a boa notícia para dar à mãe: o que o homem tinha falado - que o Mutum era lugar bonito... A mãe, quando

ouvisse essa certeza, havia de se alegrar, ficava consolada. Era um presente; e a idéia de poder trazê-lo desse jeito de cor, como uma salvação, deixava-o febril

até nas pernas. Tão grave, grande, que nem o quis dizer à mãe na presença dos outros, mas insofria por ter de es-

466

perar; e, assim que pôde estar com ela só, abraçou-se a seu pescoço e c tou-lhe, estremecido, aquela revelação. A mãe não lhe deu valor nenh mas mirou triste e apontou

o morro; dizia: - "Estou sempre pensando lá por detrás dele acontecem outras coisas, que o morro está tapando mim, e que eu nunca hei de poder ver..." Era a primeira

vez que a mãe fal com ele um assunto todo sério. No fundo de seu coração, ele não po porém, concordar, por mais que gostasse dela: e achava que o moço tinha falado

aquilo era que estava com a razão. Não porque ele mes Miguilim visse beleza no Mutum - nem ele sabia distinguir o que era lugar bonito e um lugar feio. Mas só pela

maneira como o moço tinha do: de longe, de leve, sem interesse nenhum; e pelo modo contrário de mãe - agravada de calundu e espalhando suspiros, lastimosa. No com

de tudo, tinha um erro - Miguilim conhecia, pouco entendendo. Ent tanto, a mata, ali perto, quase preta, verde-escura, punha-lhe medo.

Com a aflição em que estivera, de poder depressa ficar só com a m para lhe dar a notícia, Miguilim devia de ter procedido mal e desgostad pai, coisa que não queria,

de forma nenhuma, e que mesmo agora larga o num atordoado arrependimento de perdão. De nada, que o pai se cr cia, raivava: - "Este menino é um mal-agradecido. Passeou,

passeou, dos os dias esteve fora de cá, foi no Sucuriju, e, quando retorna, parece q nem tem estima por mim, não quer saber da gente..." A mãe puniu por e~ - "Deixa

de cisma, Bero. O menino está nervoso..." Mas o pai ainda lhou mais, e, como no outro dia era de domingo, levou o bando dos firma zinhos para pescaria no córrego;

e Miguilim teve de ficarem casa, de ca go. Mas tio Terez, de bom coração, ensinou-o a armar urupuca para pe passarinhos. Pegavam muitos sanhaços, aqueles pássaros

macios, azul dos, que depois soltavam outra vez, porque sanhaço não é pássaro de gãi la. - "Que é que você está pensando, Miguilim?" - tio Terez pergunta - "Pensando

em pai..." - respondeu. Tio Terez não perguntou mais Miguilim se entristeceu, porque tinha mentido: ele não estava pensa em nada, estava pensando só no que deviam

de sentir os sanhaços, quan viam que já estavam presos, separados dos companheiros, tinha dó dele só no instante em que tio Terez perguntou foi que aquela resposta

lhe s da boca. Mas os sanhaços prosseguiam de cantar, voavam e pousavam mamoeiro, sempre caíam presos na urupuca e tornavam a ser soltos, tu continuava. Relembrável

era o Bispo - rei para ser bom, tão rico nas co daqueles trajes, até as meias dele eram vermelhas, com fivelas nos sapat e o anel, milagroso, que a gente não tinha

tempo de ver, mas que de joelh se beijava.

- Tio Terez, o senhor acha que o Mutum é lugar bonito ou feioso? - Muito bonito, Miguilim; uai. Eu gosto de morar aqui... Entretanto, Miguilim não era do Mutum.

Tinha nascido ainda m

longe, também em buraco de mato, lugar chamado Pau-Roxo, na beira

LVÍANUELZÃO E IVtIGUILIM 467

Saririnhém. De lá, separadamente, se recordava de sumidas coisas, lembranças que ainda hoje o assustavam. Estava numa beira de cerca, dum quintal, de onde um menino-grande

lhe fazia caretas. Naquele quintal estava um peru, que gruziava brabo e abria roda, se passeando, pufo-pufo - o peru era a coisa mais vistosa do mundo, importante

de repente, como uma estória - e o meninão grande dizia: - "É meu!..." E: - "É meu..." - Miguilim repetia, só para agradar ao ménino-grande. E aí o Menino Grande

levantava com as duas mãos uma pedra, fazia uma careta pior: - "Aãã!..." Depois, era só uma confusão, ele carregado, a mãe chorando: - "Acabaram com o meu filho!..."

- e Miguilim não podia enxergar, uma coisa quente e peguenta escorria-lhe da testa, tapando-lhe os olhos. Mas a lembrança se misturava com outra, de uma vez em que

ele estava nu, dentro da bacia, e seu pai, sua mãe, Vovó Izidra e Vó Benvinda em volta; o pai mandava: - "Traz o trem..." Traziam o tatu, que guinchava, e com a

faca matavam o tatu, para o sangue escorrer por cima do corpo dele para dentro da bacia. - "Foi de verdade, Mamãe?" - ele indagara, muito tempo depois; e a mãe confirmava:

dizia que ele tinha estado muito fraco, saído de doença, e que o banho no sangue vivo do tatu fora para ele poder vingar. Do Pau-Roxo conservava outras recordações,

tão fugidas, tão afastadas, que até formavam sonho. Umas moças, cheirosas, limpas, os claros risos bonitos, pegavam nele, o levavam para a beira duma mesa, ajudavam-no

a provar, de uma xícara grande, goles de um de-beber quente, que cheirava à claridade. Depois, na alegria num jardim, deixavam-no engatinhar no chão, meio àquele

fresco das folhas, ele apreciava o cheiro da terra, das folhas, mas o mais lindo era o das frutinhas vermelhas escondidas por entre as folhas - cheiro pingado, respingado,

risonho, cheiro de alegriazinha. As frutas que a gente comia. Mas a mãe explicava que aquilo não havia sido no Pau-Roxo, e bem nas Pindaíbas-de-Baixo-e-de-Cima,

a fazenda grande dos Barbóz, aonde tinham ido de passeio.

Da viagem, em que vieram para o Mutum, muitos quadros cabiam certos na memória. A mãe, ele e os irmãozinhos, num carro-de-bois com toldo de couro e esteira de buriti,

cheio de trouxas, sacos, tanta coisa - ali a gente brincava de esconder. Vez em quando, comiam, de sal, ou cocadas de buriti, doce de leite, queijo descascado. Um

dos irmãos, mal lembrava qual, tomava leite de cabra, por isso a cabrita branca vinha, caminhando, presa por um cambão à traseira do carro. Os cabritinhos viajavam

dentro, junto com a gente, berravam pela mãe deles, toda a vida. A coitada da cabrita - então ela por fim não ficava cansada? - "A bem, está com os peitos cheios,

de derramar..." - alguém falava. Mas, então, pobrezinhos de todos, queriam deixar o leite dela ir judiado derramando no caminho, nas pedras, nas poeiras? O pai estava

a cavalo, ladeante. Tio Terez devia de ter vindo também, mas disso Miguilim não se lembrava. Cruzaram com um ror de bois, embrabecidos: a boiada! E passaram por

muitos lugares.

468

- Que é que você trouxe para mim, do S"rucuiú? - a Chica p guntou.

- Trouxe este santinho...

Era uma figura de moça, recortada de um jornal. - É bonito. Foi ó Bispo que deu? - Foi.

- E p"ra mim? E p"ra mim?! - reclamavam o Dito e Tomezinho. Mas Miguilim não tinha mais nadá. Punha a mãozinha na algibeira:

encontrava um pedaço de barbante e as bolinhas de resina de almêc

que unhara da casca da árvore, beira de um ribeirão.

- Estava tudo num embrulho, muitas coisas... Caiu dentro do corg

água afundou... Dentro do corgo tinha um jacaré, grande...

- Mentira. Você mente, você vai para o inferno! - dizia Drelina;

mais velha, que nada pedira e tinha ficado de parte.

- Não vou, eu já fui crismado. Vocês não estão crismados! - Você foi crismado, então como é que você chama? - Miguilim...

- Bobo! Eu chamo Maria Andrelina Cessim Caz. Papai é Nhô Bern do Caz! Maria Francisca Cessim Caz, Expedito José Cessim Caz, Tomé Jesus Cessim Caz... Você é Miguilim

Bobo...

Mas Tomezinho, que tinha só quatro anos, menino neno, pedia que contasse mais do jacaré grande dentro do córrego. E o Dito cuspia para lado de Drelina:

- Você é ruim, você está judiando com Miguilim!

A Chica, que correra para dentro de casa a mostrar o que tinha ganh voltava agora, soluçada.

- Mamãe tomou meu santinho e rasgou... Disse que não era santo, que era pecado...

Drelina se empertigava para Miguilim:

- Não falei que você ia para o inferno?1

Drelina era bonita: tinha cabelos compridos, louros. O Dito e Tom nho eram ruivados. Só Miguilim e a Chica é que tinham cabelo preto, ao da mãe. O Dito se parecia

muito com o pai, Miguilim era o retrato" mãe. Mas havia ainda um irmão, o mais velho de todos, Liovaldo, que n morava no Mutum. Ninguém se lembrava mais de que ele

fosse de q feições.

- "Mamãe está fazendo creme de buriti, a Rosa está limpando trip_ de porco, pra se assar..." Tomezinho, que tinha ido à cozinha espiar, ago vinha, olhos desconfiados,

escondendo na mão alguma coisa. - "Qu isso que você furtou, Tomezinho?!" Eram os restos do retalho de jornal. " "Tu joga fora! Não ouviu falar que é pecado?" - "E

eu não vou ficar c ele... Vou guardarem algum lugar." Tomezinho escondia tudo, fazia ig como os cachorros.

jyL4NUEL7.ÃO E IVtIGUILIM 469

Tantos, os cachorros. Gigão - o maior, maior, todo preto: diziam o capaz que caçava até onça; gostava de brincar com os meninos, defendia-os de tudo. Os três veadeiros

brancos: Seu-Nome, Zé-Rocha e Julinho-daTúlia - José Rocha e Julinho da Túlia sendo nomes de pessoas, ainda do Pau-Roxo, e de quem o pai de Miguilim tivera ódio;

mas, com o tempo, o ódio se exalara, ninguém falava mais o antigo, os dois cachorros eram só Zerró e Julim. Os quatro paqueiros de trela, rafados com diferenças,

três machos e uma fêmea, que nunca se separavam, pequenos e reboludos: Caráter, Catita, Soprado e Floresto. E o perdigueiro Rio-Belo, que tresdoidado tinha morrido,

de comer algum bicho venenoso.

Mas, para o sentir de Miguilim, mais primeiro havia a Pingo-de-Ouro, uma cachorra bondosa e pertencida de ninguém, mas que gostava mais era dele mesmo. Quando ele

se escondia no fundo da horta, para brincar sozinho, ela aparecia, sem atrapalhar, sem latir, ficava perto, parece que compreendia. Estava toda sempre magra, doente

da saúde, diziam que ia ficando cega. Mas teve cachorrinhos. Todos morreram, menos um, que era tão lindo. Brincava com a mãe, nunca se tinha visto a Pingo-de-Ouro

tão alegre. O cachorrinho era com-cor com a Pingo: os dois em amarelo e nhalvo, chovidinhos. Ele se esticava, rapava, com as patinhas para diante, arrancando terra

mole preta e jogando longe, para trás, no pé da roseira, que nem quisesse tirar de dentro do chão aquele cheiro bom de chuva, de fundo. Depois, virava cambalhotas,

rolava de costas, sentava-se para se sacudir, seus dentinhos brilhavam para muitas distâncias. Mordia a cara da mãe, e Pingo-de-Ouro se empinava - o filho ficava

pendurado no ar. Daí, corria, boquinha aberta, revinha, pulava na mãe, vinte vezes. Pingo-deOuro abocava um galho, ele corria, para tomar, latia bravinho, se ela

o mordia forte. Alegrinho, e sem vexames, não tinha vergonha de nada, quase nunca fechava a boca, até ria. Logo então, passaram pelo Mutum uns tropeiros, dias que

demoraram, porque os burros quase todos deles estavam mancados. Quando tornaram a seguir, o pai de Miguilim deu para eles a cachorra, que puxaram amarrada numa corda,

o cachorrinho foi choramingando dentro dum balaio. Iam para onde iam. Miguilim chorou de bruços, cumpriu tristeza, soluçou muitas vezes. Alguém disse que aconteciam

casos, de cachorros dados, que levados para longes léguas, e que voltavam sempre em casa. Então ele tomou esperança: a Pingo-de-Ouro ia voltar. Esperou, esperou,

sensato. Até de noite, pensava fosse ela, quando um cão repuxava latidos. Quem ia abrir a porta para ela entrar? Devia de estar cansada, com sede, com fome. - "Essa

não sabe retornar, ela já estava quase cega..." Então, se ela já estava quase cega, por que o pai a tinha dado para estranhos? Não iam judiar da Pingo-de-Ouro? Miguilim

era tão Pequeno, com poucas semanas se consolava. Mas um dia contaram a ele a estória do Menino que achou no mato uma cuca, cuca cuja depois os outros tomaram dele

e mataram. O Menino Triste cantava, chorando:

JOÃO GUIMARÃES ROSA ~ FICÇÃO COMPL

"Minha Cuca, cadê minha Cuca? Minha Cuca, cadê minha Cuca?! Ai, minha Cuca que o mato me deu!..."

jVSANUELZÃO E IVtIGUILtM

471

Ele nem sabia, ninguém sabia o que era uma cuca. Mas, então, foi que lembrou mais de Pingo-de-Ouro: e chorou tanto, que de repente pôs Pingo-de-Ouro esse nome também,

de Cuca. E desde então dela nun mais se esqueceu.

- Pai está brigando com Mâe. Está xingando ofensa, muito, muito. tou com medo, ele queira dar em Mamãe...

Era o Dito, tirando-o por um braço. O Dito era menor mas sabia o rio, pensava ligeiro as coisas, Deus tinha dado a ele todo juízo. E gosta muito, de Miguilim. Quando

foi a estória da Cuca, o Dito um dia pergu tou: - "Quem sabe é pecado a gente ter saudade de cachorro?..." O Di queria que ele não chorasse mais por Pingo-de-Ouro,

porque sempre q ele chorava o Dito também pegava vontade de chorar junto.

- Eu acho, Pai não quer que Mãe converse mais nunca com o ti Terez... Mãe está soluçando em pranto, demais da conta.

Miguilim entendeu tudo tão depressa, que custou para entender. Ar galava um sofrimento. O Dito se assustou: - "Vamos na beira do rego, v os patinhos nadando..."

- acrescentava. Queria arrastar Miguilim.

- Não, não... Não pode bater em Mamãe, não pode...

Miguilim brotou em choros. Chorava alto. De repente, rompeu para casa, Dito não o conseguia segurar.

Diante do pai, que se irava feito um fero, Miguilim não pôde fal nada, tremia e soluçava; e correu para a mãe, que estava ajoelhada enca tada na mesa, as mãos tapando

o rosto. Com ela se abraçou. Mas dali o arrancava o pai, batendo nele, bramando. Miguilim nem gritava, procurava proteger a cara e as orelhas; o pai tirara o cinto

e com ele g peava-lhe as pernas, que ardiam, doíam como queimaduras quantas, guilim sapateando. Quando pôde respirar, estava posto sentado na ta borete, de castigo.

E tremia, inteirinho o corpo. O pai pegara o chapétY saíra.

A mãe, no quarto, chorava mais forte, ela adoecia assim nessas ocasr pedia todo consolo. Ninguém tinha querido defender Miguilim. Nem ~ vó Izidra. E tanto, até o

pai parecia ter medo de Vovó Izidra. Ela era riscá magra, e seca, não parava nunca de zangar com todos, por conta de tu Com o calor que fizesse, não tirava o fichu

preto. - "Em vez de bater, que deviam era de olhar para a saúde deste menino! Ele está cada dia m magrinho..." Sempre que batiam em algum, Vovó Izidra vinha ralhar

favor daquele. Vovó Izidra pegava a almofada, ia fazer crivo, rezava e r mungava, no quarto dela, que era o pior, sempre escuro, lá tinha tanta c

sa, que a gente não pensava; Vovó Izidra quase vez nenhuma abria a janela, ela enxergava no escuro.

Os irmãos já estavam acostumados com aquilo, nem esbarravam mais dos brinquedos para vir ver Miguilim sentado alto no tamborete, à paz. Só o Dito, de longe distante,

pela porta, espiava leal. Mas o Dito não vinha, não queria que Miguilim penasse vergonha.

Aonde o pai teria ido? De ficar botado de castigo, Miguilim não se queixava. Deixavam-no, o ruim se acabara, as pernas iam terminando de doer, podia brincar de pensar,

ali, no quieto, pegando nas verônicas que tinha passadas por um fio, no pescoço, e que de vez em quando devia de beijar, salgando a boca com o fim de suas lágrimas.

O cachorro Gigão caminhava para a cozinha, devagaroso, cabeçudo, ele tinha sempre a cara fechada, era todo grosso. Ninguém não tocava o Gigão para fora de dentro

de casa, porque o pai dizia: - "Ele salvou a vida de todos!" -; dormia no pé da porta do quarto, uma noite latiu acordando o mundo, uma cobra enorme tinha entrado,

uma urutu, o pai matou. O dia estava bruto de quente, Miguilim com sede, mas não queria pedir água para beber. Sempre que a gente estava de castigo, e carecia de

pedir qualquer coisa, mesmo água, os outros davam, mas, quem dava, ainda que fosse a mãe, achavam sempre de falar alguma palavra de ralho, que avexava a gente mais.

Miguilim estava sujo de suor. Mais um pouco, reparou que na hora devia de ter começado a fazer pipi, na calça; mas agora nem estava com vontade forte de verter.

A mãe suspirava soluçosa, era um chorinho sem verdade, aborrecido, se ele pudesse estava voltando para a horta, não ouvia aquilo sempre assim, via as formiguinhas

entrando e saindo e trançando, os caramujinhos rodeando as folhas, no sol e na sombra, por onde rojavam sobrava aquele rastrio branco, que brilhava. Miguilim esfregava

um pé no outro, estava comichando: outro bicho-de-pé; quando crescia e embugalhava, ficava olhoso, a mãe tirava, com alfinete. Vovó Izidra clamava: - "Já foram brincar

perto do chiqueiro! Menino devia de andar de pé calçado..." Só tinha um par de sapatos, se crismara com ele; tinha também um par de alpercatinhas de couro-cru, o

par de sapatos devia de ficar guardado. O Bispo era tão grande, nos roxos, na hora de se beijar o anel dava um medo. Quem ficava mais vezes de castigo era ele, Miguilim;

mas quem apanhava mais era a Chica. A Chica tinha malgênio - todos diziam. Ela aprontava birra, encapelava no chão, capeteava; mordia as pessoas, não tinha respeito

nem do pai. Mas o pai não devia de dizer que um dia punha ele Miguilim de castigo pior, amarrado em árvore, na beirada do mato. Fizessem isso, ele morria da estrangulação

do medo? Do mato de cima do morro, vinha onça. Como o pai podia imaginar judiação, querer amarrar um menino no escuro do mato? Só o pai de Joãozinho reais Maria,

na estória, o pai e a mãe levaram eles dois, para desnortear no meio da mata, em distantes, porque não tinham de comer para dar a

472

eles. Miguilim sofria tanta pena, por Joãozinho mais Maria, que voltav vontade de chorar.

O Dito vinha, desfazendo de conta. Quando um estava de castigo, outros não podiam falar com esse. Mas o Dito dizia tudo baixinho, e vi dó para outro lado, se alguém

visse não podiam exemplar por isso, cone sando com Miguilim até que ele não estava.

- Vai chover. O vaqueiro Jé está dizendo que já vai dechover chu brava, porque o tesoureiro, no curral, está dando cada avanço, em ci das mariposas!... O vaqueiro

Jé veio buscar creolina, para sarar o beze da Adivinha. Disse que o pai subiu da banda da grota da Guapira, ou q deu volta para ir no Nhangã - que pai estava muito

jerizado. Disse que por conta do calorão que vai vir chuva, que todos estão com o corpo aza gado, no pé de poeira...

Miguilim não respondia. De castigo, não tinha ordem de dar respos só aos mais velhos. Sim sorria para o Dito, quando ele olhava - só o rab do-olho. O tesoureiro

era um pássaro imponente de bonito, pedrês c de-cinza, bem as duas penas compridas da cauda, pássaro com mais ro pante do que os outros. Gostava de estar vendo aquilo

no curral.

O Dito vigiava que não tinha ninguém por ali, tretava coragem de ch gar pertim, o Dito era levado de esperto. Dizia, no ouvido dele:

-Miguilim, eu acho que a gente não deve de perguntar nada ao tl Terez, nem contar a ele que Pai ralhou com Mamãe, ouviu? Mãitina dis que tudo que há que acontece

é feitiço... Miguilim, eu vou perguntar a V vó Izidra se você já pode sair. Você está aí muito tempo...

O Dito era a pessoa melhor. Só que não devia de conversar naque coisas com Mãitina. Mãitina tomava cachaça, quando podia, falava bo gens. Era tão velha, nem sabia

que idade. Diziam que ela era negra fugi debaixo de cativeiro, que acharam caída na enxurrada, num tempo em q Mamãe nem não era nascida. A Chica vinha passando,

com a boneca nem era boneca, era uma mandioquinha enrolada nos trapos, dizia que filhinha dela, punha até nome, abraçava, beijava, dava de mamar. A Chi dessa vez,

nem sei porque, não fez careta, até adivinhou que ele estive com sede - ele nem se lembrava mais que estava com sede - a Ch" falava: - "Miguilim, você é meu irmão,

você deve de estar com sede, vou buscar caneco d"água..." Um dia Pai tinha zangado com a Chica, xou orelha; depois Pai precisou de beber água, a Chica foi trazer.

Ei que; meio do corredor, a Chica de raiva cuspiu dentro, e mexeu com o dedinh para Pai não saber que ela tinha cuspido. A Chica era tão engraçadin clara, mariolinha,

muito menor do que Drelina, mas era a que sabia m brinquedos, botava todos para rodar de roda, ela cantava tirando compl tas cantigas, dançava mocinha. O Dito não

voltava.

Agora voltava, mas ouviam a voz do tio Terez entrando, voroço d cachorros. Tio Terez contava que tinham esbarrado o eito na roça, porq

íV(ANUELZÃO E IViIGUILIM 473

uma chuva. toda vinha, ia ser temporal: - "Na araçariguama do mato de baixo, os tucanos estão reunidos lá, gritando conversado, cantoria de gente..." Tio Terez trazia

um coelho morto ensangüentado, de cabeça para baixo. A cachorrada pulava, embolatidos, tio Terez bateu na boca do Caráter, que ganiu, saíam correndo embora aqueles

todos quatro: Caráter, Catita, Soprado e Floresto. Seu-Nome ficava em pé quase, para lamber o sangue da cara do coelho. - "Ei, Miguilim, você hoje é que está alçado

em assento, de pelourim?" - tio Terez gracejava. Daí, para ver e mexer, iam com o coelho morto para a cozinha. Miguilim não queria. Também não aceitava a licença

de sair, dada por tio Terez; com vez disso pensava: será que, o tio Terez, os outros ainda determinavam dele poder mandar palavra alguma em casa? Em desde que, então,

a gente obedecer de largar o lugar de castigo não fosse pior.

Em todo dia, também, arrastavam os bichos matados, por caça. O coelhinho tinha toca na borda-da-mata, saía só no escurecer, queria comer, queria brincar, sessepe,

serelé, coelhinho da silva, remexendo com a boquinha de muitos jeitos, esticava pinotes e sentava a bundinha no chão, cismado, as orelhas dele estremeciam constantemente.

Devia de ter o companheiro, marido ou mulher, ou irmão, que agora esperava lá na beira do mato, onde eles moravam, sozim. - "Qu"é-de sua mãe, Miguilim?..." - tio

Terez querenciava. A mãe com certo estava fechada no quarto, estendida na cama, no escuro, como era, passado quando chorava. Mais que matavam eram os tatus, tanto

tatu lá, por tudo. Tatu-de-morada era o que assistia num buraco exato, a gente podia abrir com ferramenta, então-se via: o caminho comprido debaixo do chão, todo

formando voltas de ziguezague. Aí tinha outros buracos, deixados, não eram mais moradia de tatu, ou eram só de acaso, ou prontos de lado, para eles temperarem de

escapulir. Tão gordotes, tão espertos - e estavam assim só para morrer, o povo ia acabar com todos? O tatu correndo sopressado dos cachorros, fazia aquele barulhinho

com o casculho dele, as chapas arrepiadas, pobrezinho - quase um assovio. Ecô! - os cachorros mascaravam de um demônio. Tatu corria com o rabozinho levantado - abre

que abria, cavouca o buraco e empruma suas escamas de uma só vez, entrando lá, tão depressa, tão depressa - e Miguilim ansiava para ver quando o tatu conseguia fugir

a salvo.

Mas Vovó Izidra vinha saindo de seu quarto escuro, carregava a almofada de crivo na mão, caçando tio Terez. - "Menino, você ainda está aí?!" -;ela queria que Miguilim

fosse para longe, não ouvir o que ela ia dizer a tio Terez. Miguilim parava perto da porta, escutava. O que ela estava dizendo: estava mandando tio Terez ir embora.

Mais falava, com uma curta brabeza diferente, palavras raspadas. Forcejava que tio Terez fosse embora, por nunca mais, na mesma da hora. Falava que por umas coisas

assim é que há questão de brigas e mortes, desmanchando com as famílias. Tio

Terez nem não respondia nada. Como é que ela podia mandar tio Tere embora, quando vinha aquela chuvada forte, a gente já pressentia até derradeiro ameaço dela entrando

no cheiro do ar?! Tio Terez só pergu tou: - "Posso nem dar adeus à Nhanina?..." Não, não podia, não. Vo Izidra se endurecia de magreza, aquelas verrugas pretas na

cara, com o compridos fios de pêlo desenroscados, ela destoava na voz, no pescoço es pichava parecendo uma porção de cordas, um pavor avermelhado. Migu lim mesmo

começava medo, trás do que ouvia, que nem pragas. Ah, ti Terez devia de ir embora, de ligeiro, ligeiro, se não o Pai já devia estar vol tando por causa da chuva,

podia sair homem morto daquela casa. Vov Izidra xingava tio Terez de "Caim" que matou Abel, Miguilim tremia re ceando os desatinos das pessoas grandes, tio Terez

podia correr, sair escon dido, pela porta da cozinha... Que fosse como se já tivesse ido há muit tempo... Levava um punhado de comida, pegava a caroça de palha-de-bu

riti, para se agasalhar de tanta chuva, mas devia de ir, tudo era aquele perz go enorme...

- Sai daí, Miguilim! Quê que está atrás da porta, escutando conversa de "s mais velhos?!

Era Drelina, segurando-o estouvada, por detrás, à traição, mas podia mais; Miguilim tinha de ir com ela para a cozinha.

A Rosa e Maria Pretinha estavam acabando de fazer o jantar, a Rosa não gostava de menino na cozinha. Mas Tomezinho estava dormindo, no monte de sabucos. Mesmo de

propósito, que o gato tinha achado igual de dormir lá, quase encostado em Tomezinho. - "Mamãe também vai jantar?..." - Miguilim perguntava à Rosa. - "E o Dito...?!"

- "Menino, deis xa de ser especula. Tu que vai ver agorinha é o pé-d"água, por aí, que evém vem..." Miguilim se sentava no pilão emborcado. Gostava de se deitar

nos sabucos também, que nem Tomezinho, mas aí era que a Rosa então man dava ele embora. Maria Pretinha picava couve na gamela. Tinha os dentes engraçados tão brancos,

de repente eles ocupavam assim muito lugar branqueza que se perpassava. O gato Quóquo. Por conta que, Tomezinho quando era mais pequenino, a gente ensinava para

ele falar: g"a-to - mas a lingüinha dele só dava capaz era para aquilo mesmo: quó! O gato somen vivia na cozinha, na ruma de sabucos ou no borralho, outra hora andava

no quintal e na horta. Lá os cachorros deixavam. Mas quando ele queria sair para o pátio, na frente da casa, aí a cachorrama se ajuntava, o espert do gato repulava

em qualquer parte, subia escarreirado no esteio, mas bra viado também, gadanhava se arredobrando e repufando, a raiva dele pu nha um atraso nos cachorros. Por que

não botavam nele nome vero d gato nas estórias: Papa-Rato, Sigurim, Romão, Alecrim-Rosmanim o Melhores-Agrados? Se chamasse Rei-Belo... Não podia? Também, po Quóquo,

mesmo, ninguém não chamava mais - gato não tinha, nome, g to era o que quase ninguém prezava. Mas ele mesmo se dava respeito, com

¿VIANUEL7ÃO E IVtIGUILIM 47S

os olhos em cima do duro bigode, dono-senhor de si. Dormia o oco do tempo. Achava que o que vale vida é dormir adiante. Rei-Belo... Tomezinho acordava chorando,

tinha sonhado com o esquecido.

- Ei, ela! Corre, gente, pôr tudo p"ra dentro... Olh" as portas, as janelas...

Estavam acabando de jantar, e todos corriam para o quintal, apanhar um resto de roupa dependurada. Tinha dado o vento, caíam uns pingos grossos, chuva quente. Os

cachorros latiam, com as pessoas. O vento zunia, queria carregar a gente. Miguilim ajudava a recolher a roupa - não podiam esquecer nenhuma peçazinha ali fora...

- ele tinha pena daquelas roupinhas pobres, as calças do Dito, vestidinho de Drelina... - "P"ra dentro, menino! Vento te leva..." - "Vem ver lá na frente, feio que

chega vai derrubar o mato..." - era o Dito, chamando. Os coqueiros, para cima do curral, os coqueiros vergavam, se entortavam, as fieiras de coqueiros velhos, que

dobravam. O vento vuvo: vüv... viív... Assoviava nas folhas dos coqueiros. A Rosa passava, com um balde, que tinham deixado na beira do curral. Três homens no alpendre,

enxadeiros, que tinham vindo receber alguma paga em toicinho, estavam querendo dizer que ia ser como nunca ninguém não tinha avistado; estavam sem saber como voltar

para suas casinhas deles, dizendo como ia se passar tudo por lá; aqueles estavam meiotristes, fingiam que estavam meio-alegres. De repente, deu estrondo. Que o vento

quebrou galho do jenipapeiro do curral, e jogou perto de casa. Todo o mundo levou susto. Quando foi o trovão! Trovejou enorme, uma porção de vezes, a gente tapava

os ouvidos, fechava os olhos. Aí o Dito se abraçou com Miguilim. O Dito não tremia, malmente estava mais sério. - "Por causa de Mamãe, Papai e tio Terez, Papai-do-Céu

está com raiva de nós de surpresa..." - ele foi falou.

- Miguilim, você tem medo de morrer?

- Demais... Dito, eu tenho um medo, mas só se fosse sozinho. Queria a gente todos morresse juntos...

- Eu tenho. Não queria ir para o Céu menino pequeno.

Faziam uma pausa, só do tamanho dum respirar.

- Dito, você combina comigo para o gato se chamar Reibel?

- Mas não pode. Nome dele é Sossonho.

- Também é. Uai... Quem é que falou?

- Acho que foi Mãitina, o vaqueiro Jé. Não me importo.

Daí deu trovão maior, que assustava. O trovão da Serra do MutumMutum, o pior do mundo todo, - que fosse como podia estatelar os paus da casa.

Corda-de-vento entrava pelas gretas das janelas, empurrava água. Molhava o chão. Miguilim e Dito a curto tinham olho no teto, onde o barulho remoía. A casa era muito

envelhecida, uma vez o chuvão tinha desabado no meio do corredor, com um tapume do telhado. Trovoeira. Que os tro-

vões a mau retumbavam. - "Tá nas tosses..." - um daqueles enxadeir falou. Pobre dos passarinhos do campo, desassisados. O gaturamo, tão p dido miúdo, azulzinho no

sol, tirintintim, com brilhamentos, mel de m lhor - maquinazinha de ser de bem-cantar... - "O gaturarninho das fr tas, ele merece castigo, Dito?" - "Dito, que Pai

disse: o ano em que cho sucedido é ano formoso... -?" - "Mas não fala essas coisas, Miguili nestas horas."

- "P"ra rezar, todos!" - Drelina chamava. Chica e Tomezinho es vam escondidos, debaixo da cama. Agora não faltava nenhum, acerto reunidos, de joelhos, diante do

oratório. Até a mãe. Vovó Izidra acen a vela benta, queimava ramos bentos, agora ali dentro era mais forte. Sa ta Bárbara e São Jerônimo salvavam de qualquer perigo

de desordem, Magnificatera que se rezava! Miguilim soprava um cisco da roupa de Ro Era carrapicho? Os vaqueiros, quando voltavam de vaquejar boiadas pa ruins matos,

rente que esses tinham espinhos e carrapichos. até nos ombr do gibão. O Dito sabia ajoelhar melhor? De dentro, para enfeitar os santo do oratório, tinha um colarzinho

de ovos de nhambu e pássaro-pret enfiados com linha, era entremeado, doutro e dum - um de nhambu; de pássaro-preto, depois outro de nhambu, outro de pássaro-preto...;

o pássaro-preto era azul-claro se descorando para verde, o de nhambu uma cor-de-chocolate clareado... Se o povo todo se ajuntasse, rezando cont essa força, desse

medo, então a tempestade num átimo não esbarrava Miguilim soprava seus dedos, doce estava, num azado de consolo, gra grande.

Ele tinha fé. Ele mesmo sabia? Só que o movido do mais-e-mais des tudo, e desluz e desdesenha, nas memórias; é feito lá em fundo de á dum poço de cisterna. Uma vez

ele tinha puxado o paletó de Deus.

Esse dia - foi em hora de almoço : ele Miguilim ia morrer! - d repente estava engasgado com ossinho de galinha na goela, foi tudo tã ... malamém... more... - nem

deu tempo para idéia nenhuma, era só u errado total, morrer e tudo, aí! -; e mais de repente ele já estava em pé e cima do banco, como se levantou, não pediu ajuda

a Pai e Mãe, só n relance ainda tinha rodado o prato na mesa.- por simpatia em que al ma vez tinha ouvido falar - e, em pé, no banco, sem saber de seus olh para

ver - só o acima! - se benzia, bramado: - Em nome do Padre, do lho e do Espírito Santo!... - (ele mesmo estava escutando a voz, aquela v - ele se despedindo de si

- aquela voz, demais: todo choro na voz, a fo ça; e uma coragem de fim, varando tudo, feito relâmpagos...) Desrepente - ele parecia que tinha alto voado, tinha voado

por uma al enorme? - era o pai batendo em suas costas, a mãe dando água para ber, e ele se abraçava com eles todos, chorando livre, do ossinho na estava todo salvo.

- "Que fé!" - Vovó Izidra colava nele o peixe daqu olhos bravos dela, que a gente não gostava de encarar - "Que fé, que

]VíANUtiL7.ÃO E IVtIGUILIM 477

menino tem!..." - Vovó Izidra se ajoelhava. Depois desse dia, Miguilim não queria comer nunca mais asa de galinha, pedia que não facilitassem de nenhum dos irmãozinhos

comer, não deixassem. Mas até o Dito comia, calado, escondido. Tomezinho e Chica comiam de propósito, só para contestar Miguilim, pegavam os ossinhos na mão, a ele

mostravam: - "Miguilim bobo!... Miguilim doido..." - debicavam.

Vovó Izidra quizilava com Mãitina:

- Traste de negra pagã, encostada na cozinha, mascando fumo e rogando para os demônios dela, africanos! Vem ajoelhar gente, lYtãitina!

Mãitina não se importava, com nenhuns, vinha, ajoelhava igual aos outros, rezava. Não se entendia bem a reza que ela produzia, tudo resmungo; mesmo para falar, direito,

direito não se compreendia. A Rosa dizendo que Mãitina rezava porqueado: "Veva Maria zela de graça, pega ne Zesu põe no saco de mombassa..." Mãitina era preta de

um preto estúrdio, encalcado, trasmanchada de mais grosso preto, um preto de boi. Quando estava pinguda de muita cachaça, soflagrava umas palavas que a gente não

tinha licença de ouvir, a Rosa dizia que eram nomes de menino não saber, coisas pra mais tarde. E daí Mãitina caía no chão, deixava a saia descomposta de qualquer

jeito, as pernas pretas aparecendo. Ou à vez gritava: - "Cena, Corinta!..."-batendo palmas-de-mão. Isso a mãe explicava: uma vez, fazia muitos, muitos anos, noutro

lugar onde moraram, ela tinha ido ao teatro, no teatro tinha uma moça que aparecia por dançar, Mãitina na vida dela toda nunca tinha visto nada tão reluzente de

bonito, como aquela moça dançando, que se chamava Corina, por isso aprovava como o povo no teatro, quando estava chumbada. - "Que é que é teatro, Mãe?" - Miguilim

perguntara. - "Teatro é assim como no circo-de-cavalinhos, quase..." Mas Miguilim não sabia o que o circo era.

- Dito, você vai imaginar como é que é o circo?

- É uma moça galopando em pé em riba do cavalo, e homens revestidos, com farinha branca na cara... tio Terez disse. É numa casa grande de pano.

- Dito, e Pai? E tio Terez? Chuva está chovendo tanto...

- "Vigia esses meninos, cochichando, cruz!, aí em vez de rezar..." - Vovó Izidra ralhava. E reprovava Mãitina, discutindo que Mãitina estava grolando feias palavras

despautadas, mandava Mãitina voltar para a cozinha, lugar de feiticeiro era debaixo dos olhos do fogo, em remexendo no borralho! Mãitina ia lá, para esperar de cócoras,

tudo o que os outros mandavam ela obedecia, quando não estava com raiva. Se estivesse com raiva, ninguém não tinha coragem de mandar. Vovó Izidra tirava o terço,

todos tinham de acompanhar. E ela ensinava alto que o demônio estava despassando nossa casa, rodeando, os homens já sabiam o sangue um do outro, a gente carecia

de rezar sem esbarrar. Mãe ponteava, com muita cordura, que Vovó Izidra devia de não exaltar coisas assim, perto dos meninos. -

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"Os meninos necessitam de saber, valença de rezar junto. Inocência del é que pode livrar a gente de brabos castigos, o pecado já firmou aqui meio, braseado, você

mesma é quem sabe, minha filha!..." Mãe abaixav cabeça, ela era tão bonita, nada não respondia. Parecia que Vovó Izi tinha ódio de Mãe? Vovó Izidra não era mãe dela,

mas só irmã da mãe d Mãe de Mãe tinha sido Vó Benvinda. Vó Benvinda, antes de morrer, to vida ela rezava, dia e noite, caprichava muito com Deus, só queria era re

e comer, e ralhava mole com os meninos. Um vaqueiro contou ao Dito, segredo, Vó Benvinda quando moça tinha sido mulher-à-toa. Mulhertoa é que os homens vão em casa

dela e ela quando morre vai para o finfe no. O que Vovó Izidra estava falando - ..."Só pôr sua casa porta afora"I - A nossa casa? E que o demônio diligenciava de

entrar em mulher, vira cadela de satanaz... Vovó Izidra não tinha de gostar de Mãe? Então, por q era que judiava, judiava? Miguilim gostava pudesse abraçar e beijar

a Mã zinha, muito, demais muito, aquela hora mesma. Ah, mas Vovó Izidra ë velha, Mãe era moça, Vovó Izidra tinha de morrer mais primeiro. Ali oratório, embrulhados

e recosidos num saquinho de pano, eles guardav os umbiguinhos secos de todos os meninos, os dos irmãozinhos, das irm o de Miguilim também - rato nenhum não pudesse

roer, caso roendo menino então crescia para ser só ladrão. Agora, ele ia gostar sempre Mãe, tenção de ser menino comportado, obediente, conforme o de De essas orações

todas. Bom era ser filho do Bispo, e o mundo solto para passarinhos... Os joelhos de Miguilim descansavam e cansavam, doía er corpo, um poucadinho só, quase não

doía. Mas Tomezinho brincava estralar as juntas dos dedos; depois, de puxar o nariz para diante. A Ch" rezava alto, era a voz mais bonita de todas. Drelina parecia

uma santa. T dos diziam que ela parecia uma santa. E os cachorros lá fora, desertad com tanta chuva? De certo iam para a coberta do carro. - "Sem os cach ros, como

é que a gente ia poder viver aqui?" - o pai sempre falava. tomavam conta das criações. Se não, vinham de noite as raposas, gamb irarinha muito raivosa, até onça

de se tremer, até lobos, lobo guará Gerais, que vinham, de manhã deixavam fios de pêlo e catinga deles que cachorros reconheciam nos esteios da cerca, nas porteiras,

uns deles mijavam sangue. E o teiú, brabeado, espancando com o rabo - rabo co tesoura tonsando. Lobo uivava feio, mais horroroso mais triste do que chorro. E jibóia!

Jibóia vinha mesmo de dia, pegava galinha no galinhe" Os cachorros tinham medo dela? Jibóia, cobra, mais medonha de se p sar, uma sojigou o cachorrinho Floresto,

mordeu uma orelha dele por firmar, queria se enrolar nele todo, mor de sufocar sem partir os ossos tinha conseguido de se enlaçar duas dessas voltas; Pai acudiu,

tiro não dia ter cautela de dar, lapeava só com o facão, disse que ela endureci corpo de propósito, para resistir no gume do facão, o facão bamb Contavam que no

Terentém, em antigos anos, uma jibóia velha entrou

~,fpv~ELZÃO E IVtIGUILIM 479

ma casa, já estava engolindo por metade um meninozinho pequeno, na rede, no meio daquela baba...

Miguilim e Dito dormiam no mesmo catre, perto da caminha de Tomezinho. Drelina e Chica dormiam no quarto de Pai e Mãe.

- "Dito, eu fiz promessa, para Pai e Tio Terez voltarem quando passar a chuva, e não brigarem, nunca mais..." - "Pai volta. Tio Terez volta não." - "Como é que você

sabe, Dito?" - "Sei não. Eu sei. Miguilim, você gosta de Tio Terez, mas eu não gosto. É pecado?" - "É, mas eu não sei. Eu também não gosto de Vovó Izidra. Dela,

faz tempo que eu não gósto. Você acha que a gente devia de fazer promessa aos santos, para ficar gostando dos parentes?" - "Quando a gente crescer, a gente gosta

de todos." - "Mas, Dito, quando eu crescer, vai ter algum menino pequeno assim como eu, que não vai gostar de mim, e eu não vou poder saber?" - "Eu gosto de Mãitina!

Ela vai para o inferno?" - "Vai, Dito. Ela é feiticeira pagã... Dito, se de repente um dia todos ficassem com raiva de nós - Pai, Mãe, Vovó Izidra - eles podiam

mandar a gente embora, no escuro, debaixo da chuva, a gente pequenos, sem saber onde ir?" - "Dorme, Miguilim. Se você ficar imaginando assim, você sonha de pesadelo..."

- "Dito, vamos ficar nós dois, sempre um junto com o outro, mesmo quando a gente crescer, toda a vida?" - "Pois vamos." - "Dito, amanhã eu te ensino a armar urupuca,

eu já sei..."

Dito começava a dormir de repente, era a mesma coisa que Tomezinho. Miguilim não gostava de pôr os olhos no escuro. Não queria deitar de costas, porque vem uma mulher

assombrada, senta na barriga da gente. Se os pés restassem para fora da coberta, vinha mão de alma, friosa, pegava o pé. O travesseirinho cheirava bom, cheio de

macela-do-campo. Amanhã, ia aparar água de chuva, tinha outro gosto. Repartia com o Dito. O barulho da chuva agora era até bonito, livre do moame do vento. Tio Terez

não tinha se despedido dele. Onde estava agora o Tio Terez? Um dia, tempos, Tio Terez o levara à beira da mata, ia tirar taquaras. A gente fazia um feixe e carregava.

- "Miguilim, este feixinho está muito pesado para você?" - "Tio Terez, está não. Se a gente puder ir devagarinho como precisa, e ninguém não gritar com a gente para

ir depressa demais, então eu acho que nunca que é pesado..." - "Miguilim, você é meu amigo." - "Amigo grande, feito gente grande, Tio Terez?" - "É sim, Miguilim.

Nós somos amigos. Você tem mais juízo do que eu..." Agora parecia que naquela ocasião era que o Tio Terez estava se despedindo dele. Tio Terez não parecia com Caim,

jeito nenhum. Tio Terez parecia com Abel... A chuva de certo vinha de toda parte, de em desde por lá, de todos os lugares que tinha. Os lugares eram o Pau-Roxo,

a fazenda grande dos Barboz, Paracatu, o lugar que não sabia para onde tinham levado a Cuca Pinguinho-de-Ouro, o Quartel-Geral-do-Abaeté, terra da mãe dele, o Buritis-do-Urucuia,

terra do pai, e outros lugares mais que tinha: o Sucuriju, as fazendas e veredas por onde ti-

4HO IOÃO GUIMARAES ROSA ~ FICÇAO COMPL

nham passado... E aí Miguilim se encolhia, sufocado debaixo de seu co ção; uma pessoa, uma alma, estava ali à beira da cama, sem mexer rum aparecida de repente,

para ele se debruçava. Miguilim se estarrecia de olh fechados, guardado de respirar, um tempo que nem não tinha fim. Era V vó Izidra. Quando via que pensava que

ele estava bem dormindo, ela beij va a testa dele, dizia bem baixinho: - "Meu filhinho, meu filho, Deus h te abençoou..."

Chovera pela noite afora, o vento arrancou telhas da casa. Ainda cho nem se podia pôr para secar o colchão de Tomezinho, que tinha urina na cama. Na hora do angu

dos cachorros, Pai tinha voltado. Ele almoç com a gente, não estava zangado, não dizia. Só que, quando Pai, Mãe Vovó Izidra estavam desaliviados assim como hoje,

não conversavam a suntos de gente grande, uns com os outros, mas cada um por sua vez fala era com os meninos, alegando algum malfeito deles. Pai dizia que Migu lim

já estava no ponto de aprender a ler, de ajudar em qualquer serviç fosse. Mas que ali no Mutum não tinha quem ensinasse pautas, boa sorf tinha competido era para

o Liovaldo, se criando em casa do tio Osmund Cessim, um irmão de Mãe, na Vila-Risonha-de-São-Romão. Miguilim d brecia, assumido com aquelas conversas, logo que podia

ia se esconder tulha, onde as goteiras sempre pingavam. Ao quando dava qualquer estia. da, saía um solzinho arrependido, então vinham aparecendo abelhas e m rimbondos,

de muitas qualidades e cores, pousavam quietinhos, chupand no caixão de açúcar, muito tempo, o açúcar mel-mela, pareciam que esta vam morridos.

Dito não fazia companhia, falava que carecia de ir ouvir as conver todas das pessoas grandes. Miguilim não tinha vontade de crescer, de s pessoa grande, a conversa

das pessoas grandes era sempre as mesmas sois secas, com aquela necessidade de ser brutas, coisas assustadas. O gato So sõe, certa hora, entrava. Ele vinha sutil

para o paiol, para a tulha, censea do os ratos, entrava com o jeito de que já estivesse se despedindo, sem bu com o ar. Mas, daí, rodeando como quem não quer, o

gato Sossõe princ piava a se esfregarem Miguilim, depois deitava perto, se prazia de ser, co aquela ronqueirinha que era a alegria dele, e olhava, olhava, engrossava

ronco, os olhos de um verde tão menos vazio - era uma luz dentro d outra, dentro doutra, dentro outra, até não ter fim.

A gente podia ficar tempo, era bom, junto com o gato Sossõe. Ele fugiu quando escutou barulho de vir chegando na tulha aquele menin dentuço, o Majela, filho de seo

Deográcias, mas que todos chamavam de Patori.

Seo Deográcias falava tão engraçado: - "O senhor, seo Nhô Berno, po dia ter a cortesia de me agenciar para mim um dinheirozinhozinhozinh pouco, por ajuda?" - "Quem

dera eu tanto tivesse como o senhor, se Deográcias!" - o Pai respondia. - "Ara, qual, qual, seo Nhô Berno Cás

jytpNUEl.7.ÃO E MIGUILIM

sio, eu estou pobre como agüinha em fundo de canoa... Achasse um empréstimo, comprava adquirido um bom cavalo de sela... Podia até vir mais amiúde, por uma prosa,

servo do senhor, sem grave pecado de incomodar...." - "Pois, aqui, seo Deográcias, o senhor é sempre bem aparecido..:"

Contavam que esse seo Deográcias estava excomungado, porque um dia ele tinha ficado agachado dentro de igreja. Mas seo Deográcias entendia de remédios, quando alguém

estava doente ele vinha ver. Era viúvo. Morava ali a diversas léguas, na Vereda-do-Cocho. Agora tinha viajado de vir para pedir uma pouca de sal e de café, por emprestados,

e um pedaço de carne-de-vento - quando matassem boi, lá, pagava de volta. O Patori, ele trouxe junto. - "Vem, Miguilim, ajudar a tacar pedra: os meninos acharam

um sapo enorme!" - o Patori gritando já vinha.

Miguilim não queria ir, não gostava de sapos. Não era como a Chica, que puxava a rã verde por uma perna, amarrava num fio de embira, prendia-a no pau da cerca. Por

paz, não estava querendo também brincar junto com o Patori, esse era um menino maldoso, diabravá. - "Ele tem olho ruim", - a Rosa dizia - "quando a gente está comendo,

e ele espia, a gente pega dor-de-cabeça..."

- "Então, vem cá, Miguilim. Olha aqui..." - o Patori mostrava bala doce, embrulhada em papelim, tirava da algibeira. Miguilim aceitava. Mas era uma pedra, de dentro

do papel. O Patori ria dele, da logradela: - "Enganei meu burrinho, com uma pedrinha de sal!..." Aqueles dentes dentuços! - "A bala eu chupei, estava azedinha gostosa..."

- ainda dizia, depois, mais malino. - "Mas, agora, Miguilim, vou te ensinar uma coisa, você vai gostar. Sabe como é que menino nasce?" Miguilim avermelhava. Tinha

nojo daquelas conversas do Patori, coisas porcas, desgovernadas. O Patori escaramuçava o Dito e Tomezinho: - "Foge daí! Não quero brincar com menino-pequeno!" -

proseava. E tornava a falar. Inventava que ia casar com Drelina, quando crescesse, que com ela ia se deitar em cama. Ensinava que, em antes de se chupar a bala doce,

a gente devia de passar ela no tamborete onde moça bonita tivesse sentado, meio de arte. Contava como era feita a mãe de Miguilim, que tinha pernas formosas... -

"Isso tu não fala, Patori!" -Miguilim dava passo. - "A já! E eu brigo com menino menorzinho do que eu?! Tu bobeia?" O Patori debochava. Saía para o pátio. Daí, quando

Miguilim estava descuidado, o Patori pegava um punhado de lama, jogava nele, sujando. Miguilim sabia que não adiantava acusar: - "Não foi por querer..." - o Patori

sempre explicava aos mais velhos - "Eu até gosto tanto de Miguilim..." Mas o Dito chegava, tendo visto, o Dito era muito esperto: - "Sabe, Patori, o vaqueiro Saluz

está caçando você, Pra bater, disse que você furtou dele uma argola de laço!" Aí o Patori pegava medo, corria para dentro de casa, não saía mais de perto do pai.

- Miguilim, você sabe o que o vaqueiro Saluz disse? Tio Terez foi morar no Tabuleiro Branco. O vaqueiro Saluz vai levar lá o cavalo dele e o

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resto das coisas que ainda ficaram. Tio Terez decerto que quer traba p"r" a Sa Cefisa, no Tabuleiro Branco...

- Por que, Dito? P"ra sempre?

- Acho que ele tomou medo de Pai, não quer ser mais parente de n sa casa. O Tabuleiro Branco é longe, mais de dez léguas daqui, p"r" a ou banda de lá. Vaqueiro Saluz

disse que até assim é bom, tio Terez acaba casando com a Sa Cefisa, que ela é mulher enviuvada...

- Miguilüim!...

A Chica gritava dessa forma, feito ela fosse dona dele.

- ... Miguilim, vem depressa, Mamãe, Papai tá te chamando! Seo D grácias vai te olhar...

Seo Deográcias ria com os dentes desarranjados de fechados, pare careta cã, e sujo amarelai brotava por toda a cara dele, um espim de u barba. - "A-há, seu Miguilim,

hum... Chega aqui." Tirava a camisinha. "Ahã... Ahã... Está se vendo, o estado deste menino não é p"ra nada-na senhor, a gente pode se guiar quantas costelinhas

Deus deu a ele... Ru que meu, eu digo: cautelas! Ignorância de curandeiro é que mata, seo N Berno. Um que desvê, descuidou, há-de-o! - entrou nele a febre. E, que

digo: p"ra passar a héctico é só facilitar de beirinha, o caso aí malej Muito menino se desacude é assim. Mas, tem susto não: com as ervas q sei, vai ser em pé um

pau, garantia que dou, boto bom!..."

- "Meu filhinho, Miguilim..." - a mãe desnorteava, puxando-o p si. - "De remédio é que ele carece, momo não cura ninguém!" - o desdenhava grosso.

- "Isto mesmo, seo Nhô Berno, bem deduzido!" - seo Deográci pronunciava. Bebia café. - "Remédio: e - o senhor agradeça, eu est vindo viver aqui nestas más brenhas,

donde só se vê falta tudo, muita m gua, ninguém não olha p"ra este sertão dos pobres..."

Seo Deográcias ficava brabo: agora estava falando da falta de provid cias para se pegar criminosos tão brutos, feito esse Brasilino Boca-degre, que cercava as pessoas

nas estradas, roubava de tudo, até tinha aparê do na Vereda do Terentém, fazedor de medo, deram em mão o que quis, conduziu a mulher do Zé Ijim, emprestada por três

dias, devolveu dali a quase mês! Seo Deográcias cuspia longe, em tris, asseava a boca c as costas da mão, e rexingava: - "Assim mais do que assim, as coisas podem

demasiar. Por causa de umas e dessas, eu vou no papel! - vou tinta!" Dizia que estava escrevendo carta para o Presidente, já tinha esc outra vez, por conta de tropeiros

do Urucuia-a-fora não terem auxilia de abrir a tutaméia de um saquinho de sal, nem de vender para os d quando sal nenhum para se pôr em comida da gente não se achava.

Aá estava com a carta quase pronta, só faltando era ter um positivo que a fo levar na barra, na Vila Risonha.

- "Bem, eu mora vou-me-vou, estou de passar na cafua do Frieza, p

MAwe~zAO E MIGUILIM 483

tos abaixo. Viajar é penoso! Olha, o corguinho já está alargado, com suas águas amarelas..." - Seo Deográcias só gostava de ir visitar os outros era no intervalinho

de chuvas, aí ele sabia certo que achava todos em casas. Ele tinha também ofício de cobrar dinheiro, de uns para os outros. Levantou, foi na janela, espiar o céu

do tempo. - "Eh, água vai tornar a revirar água? No melhor, estia: vigiem o olho-de-boi!" Todos discorriam para ir ver, até Vovó Izidra concordava de apreciar o

olho-de-boi, que era só um reduzidinho retalho de arco-da-velha, leviano airoso. Miguilim, não, hoje não podia. Esperava abraçado no colo da mãe, enquanto que ela

quisesse assim. - "Que é que você está soletrando, Miguilim?" Nada, não, estava falando nada. Estava rezando, endereçado baixinho, para Deus dificultar dele morrer.

Mas Pai tinha tirado por tino, conversava: - "Seo Deográcias, o senhor que sabe escola, podia querer ensinar o Miguilim e o Dito algum começo, assim vez por vez,

domingo ou outro, para eles não seguirem atraso de ignorância?"

Mal de Miguilim, que de todo temor se ameaçava. O arujo daquilo. Então, o que seo Deográcias ensinasse - ele e o Dito iam crescer ficando parecidos com seo Deográcias?...

Cruzou os olhos com o Dito. O Dito, que era o irmãozinho corajosozinho destemido, ele ia arrenegar? Daí, não, o Dito deixava, estava adiando de falar alto. Mas ele,

Miguilim, ia mesmo morrer de uma doença, então ele agora não somava com ralho nenhum:

- Quero tudo não, meu Pai. Mãe sabe, ela me ensina...

Ah o pai não ralhava - ele tinha demudado, de repente, soável risonho; mesmo tudo ali no instante, às asas: o ar, essas pessoas, as coisas - leve, leve, tudo demudava

simples, sem desordem: o pai gostava de mamãe. Com o ser, com os olhos como que ele olhava, tanto querendo-bem; e o pai estava remoçado. Mãe, tão bonita, só para

se gostar dela, todo Omundo. Então Miguilim era Miguilim, acertava no sentir, e em redor amoleciam muitas alegrias. O pai gostava de mamãe, muito, demais. Até,

para agradar mamãe, ele afagava de alisar o cabelo de Miguilim, em quando falava gracejado: - "A Nhanina sabe as letras, mas ela não tem nenhuma paciência... Eh,

Nhanina não decora os números, de conta de se fazer..." Se seo Deográcias então queria ser mestre?

Mas seo Deográcias coçava a cara pela barba, ajuizava sério. - "Bom, seo Nhô Berno, o que o senhor está é adivinhando uma tenção que já está residida aqui nesta

minha cabeça há muito, mas mesmo muito tempo... Mas o que não pode é ser assim de horas pra hora. Careço de mandar vir papéis, cartilha, régua, os aviamentos...

Ter um lugarim, reunir certa quantidade de meninos de por aqui por em volta, tão precisados, assim é que vale. O bom real é o legal de todos... Por o benefício de

muitos." Todo tão feio, seo Deográcias, aquele tempo se tinha medo ele envelhecesse em doido.

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E era bom quando seo Deográcias e o Patori iam embora. - "M antes um que mal procede, mas que ensina pelo direito a regra dos uso - Vovó Izidra dava valor a seo

Deográcias. - "Seja bom-homem, só-q truqueado com tantos remiolamentos..." - o pai inventava de dizer. guilim pensava que ele tinha vindo pedir esmola; mas o Dito

sabia, de cutação: - "lh, não, Miguilim. Mais veio buscar o dinheiro, para um mem da cidade. Mas Pai falou que ainda não estava em ponto de po pagar..." Então o

Dito estava mentindo! Mas Vovó Izidra tinha ojeriza seo Aristeu, que morava na Veredinha do Tipã, ele também assisava aconselhar remédios, e que para ver o Miguilim

a mãe queria que cham sem. - "Aquele mal entende do que é, catrumano labutante como nós., - dizia o pai. Dizia que seo Aristeu servia só para adjutorar, em idas

caçadas, ele dispunha notícia do regulamento dos bichos, por onde pás vam acostumados - carreiro de anta, sumetume de paca, trauta de vea - marcava lugar para se

pôr espera. Outras vezes também dava rumo vaqueiros do movimento do gado fugido, e condizia de benzer bicheira d bois, recitava para sujeitar pestes. Seu Aristeu

criava em roda de casa a a lha-do-reino e aquelas abelhinhas bravas do mato, ele era a única pess capaz dessa inteligência. - "Ele é um homem bonito e alto..." -

Mãe. - "Ele toca uma viola..." - "Mas do demo que a ele ensina, o cu de formar profecia das coisas..." - Vovó Izidra reprovava.

Mas então Miguilim estava mesmo de saúde muito mal, quem sabé" morrer, com aquela tristeza tão pesada, depois da chuva as folhas de árv res desbaixavam pesadas.

Ele nem queria comer, nem passear, queria ab os olhos escondido. Que bom, para os outros - Tomezinho, o Dittf, Chica, Drelina, Maria Pretinha - nenhum não estava

doente. Só ele, gúilim, só. Antes tinha ido com o Tio Terez, de viagem grande, crism no Sucuriju, tanta coisa podendo ver, agora não sabia mais. Sempre cis va medo

assim de adoecer, mesmo era verdade. Todo o mundo conh que ele estava muito doente, de certo conversavam. Tivesse outras quah des de remédios - que fossem muito

feios, amargosos, ruins, remédio q doesse, a gente padecia no tomar! - então ele tomava, tantas vezes, não importando, esperança que sarava. Ele mesmo queria melhor

ir para a c de seo Deográcias, daquele menino Majela, tão arlequim, o Patori - seo Deográcias tinha esses póderes, lá ele tomava remédio, toda hora, diam judiar,

não fazia mal que judiassem, cada dia ele melhorava mais pouco, quando acabasse bom voltava para casa. Mas seo Deográcias ti mandado só aqueles, que a gente não

pressentia com respeito, que eram jatobá e óleo de capivara. Assim mesmo, tomava, a certas. Só ele. Ag pensava uma raiva dos irmãos, dos parentes - não era raiva

bem, erã desconhecer deles, um desgosto. Não calava raiva do Dito, nem do To zinho, nem da Chica e de Drelina, quando vinham perto, quando est vendo, estimava sempre

uns e outros. Mas, quando ficava imaginando

zinho assim, aquele dissabor deles todos ele pensava. Ah, então, quem devia de adoecer, e morrer, em vez, por que é que não era, não ele, Miguilim, nem nenhum dos

irmãozinhos, mas aquele mano Liovaldo, que estava distante dali, nem se sabia dele quase notícia, nem nele não se pensava?

Choveu muitos dias juntos. Chuva, chuvisco, faísca- raio não se podia falar, porque chamava para riba da gente a má coisa. Assim que trovoava mais cão, Miguilim

já andava esperando para vir perto de Vovó Izidra: - "Vovó Izidra, agora a gente vai rezar, muito?" Ah, porque Vovó Izidra, que era dura e braba desconforme, então

ela devia de ter competência enorme para o lucro de rezarem reunidos - para o favor dele, Miguilim, para o que ele carecia. Nem não estava com receio do trovão de

chuva, a reza era só para ele conseguir de não morrer, e sarar. Mas fingia, por versúcia - não queria conversar a verdade com as pessoas. Falasse, os outros podiam

responder que era mesmo; falasse, os outros então aí era que acreditavam a mortezinha dele certa, acostumada. - "Vovó Izidra, agora a gènte vai rezar de oratório,

de acender velas?!" - ele mais quase suplicava. - "Não, menino..." - que não, Vovó Izidra respondia- "Me deixe!" - respondia que aquela chuva não regulava de se

acender vela, não estava em quantidades. Ser menino,- a gente não valia para querer mandar coisa nenhuma. Mas, então, ele mesmo, Miguilim, era quem tinha de encalcar

de rezar, sozinho por si, sem os outros, sem demão de ajuda. Ele ia. Carecia. Suprido de sua fé - que se dizia : para auxiliar Nosso Senhor a poder obrar milagre.

Miguilim queria. Mas, como é que, se ele sendo assim pequeno, agora quem é que sabia se o baguinho-de-fé nele ainda era que estava, não gastada? Descorçoava. - "Vovó

Izidra, a senhora falou aquilo, aquela vez: eu tenho muita fé em Deus?" - "Tu tem é severgonhice, falta de couro! Menino atentado!..."

A gente-essas tristezas. Mesmo, daí, Vovó Izidra ralhava, aconselhava para ele não ir caminhar molhando os pés no chão chovido. Que era que adiantava? Para um assim

com má-sina-que é que adiantava? Entre chuva e outra, o arco-da-velha aparecia bonito, bebedor; quem atravessasse debaixo dele - fu! - menino virava menina, menina

virava menino: será que depois desvirava? Estiadas, as agüinhas brincavam nas árvores e no chão, cada um de um jeito os passarinhos desciam para beber nos lagoeiros.

O sanhaço, que oleava suas penas çom o biquinho, antes de se debruçar. O sabiá-peito-vermelho, que pinoteava com tantos requebros, para trás e para a frente, ali

ele mesmo não sabia o que temia. E o casal de ticoticos, o viajadinho repulado que ele vai, nas léguas em três palmos de chão. B o gaturamo, que era de todos o mais

menorzim, e que escolhia o espaço de água mais clara: a figurinha dele, reproduzida no argume, como que ele muito namorava. Tudo tão caprichado lindo! Ele Miguilim

havia de achar um jeito de sarar com Deus. Perguntava a Mãitina, mesmo, como não devia, quem sabe?

4$ó JOÃO GUIMARÃES ROSA ~ F[CÇAO COMPL

Mãitina gostava dele, por certo, tinha gostado, muito, uma vez, fa tempo, tempo. Miguilim agora tirava isso, da deslembra, como as mern rias se desentendem. Ocasião,

Mãitina sempre ficava cozinhando cois tantas horas, no tacho grande, aquele tacho preto, assentado no trempe pedras soltas, lá no cômodo pegado com a casa, o puxado,

onde que er moradia dela - uma rebaixa, em que depois tinham levantado pared o acrescente, como se chamava. Lá era sem luz, mesmo de dia quase que as labaredas mal

alumiavam. Miguilim era mais pequeno, tinha medo tudo, chegou lá sozinho para espiar, não tinha outra pessoa ninguém lá, Mãitina mesmo, sentada no chão, todo o mundo

dizia ela feiticeira, ass preta encoberta, como que deve de ser a Morte. Miguilim esbarrou, já esf va com um começo de dúvida, daí viu, os olhos dele vendo: viu

nada, conheceu que o escuro estava sendo mais maldoso, em redor - e o tresli guar do fogo - era uma mata-escura, mato em que o verde vira preto, e fogo pelejava

para não deixar aquilo tomar conta do mundo, estremecia mole todos os sombreados. Ele se assustou forte, deu grito. E, se agarran nas costas dela, se abraçou com

Mãitina. Ah, se lembrava. Pois porque do tinha tornado a se desvirar do avesso, de repente. Mãitina estava pon ele no colo, macio manso, e fazendo carinhos, falando

carinhos, ele n esperava por isso, isso nem antes nem depois nunca não tinha acontecid O que Mãitina falava: era no atrapalho da linguagem dela, mas tudo ninar,

de querer-bem, Miguilim pegava um sussu de consolo, fechou olhos para não facear com os dela, mas, quisesse, podia adormecer inteir não tinha mais medo nenhum, ela

falava a zuo, a zumbo, a linguagem d era até bonita, ele eritendia que era só de algum amor. Tanto mesmo M tina tinha gostado dele, nesse dia, que, depois, ela segurou

na mãozi dele, e vieram, até na porta-da-cozinha, aí ela gritou, exclamando os casa, e garrou a esbravecer, danisca, xingando todos, um cada um, e ap tava para ele,

Miguilim, dizendo que ele só é que era bonzinho, mas todos, que ela mais xingava, todos não prestavam. Pensaram que ela tive doidado furiosa.

Mas, depois, aquilo tinha sido mesmo uma vez só, os outros dias vinham eram no igual a todos, a gente de tudo não agüenta também de lembrar, não consegue. Mãitina

bebia cachaça, surtia todas as venetas, mia o senso na velhice. A ver, os meninos todos queriam ir lá, no acresc te, Mãitina agachada, remexendo o tacho; num canto

Mãitina dor ainda era mais trevoso. Com a colher-de-pau ela mexia a goiabada, ho completas, resmungava, o resmungo passava da linguagem de gente p aquela linguagem

dela, que pouco fazia. A fumaça estipava nos olhos Miguilim, ele tossia e apertava lágrimas de rir azedo. - "Fumaça p"ra dinheiro p"ra cá..." - cada um dizia, quando

o enfio da fumaça se espal va. Só Drelina era quem queria gostar: - "Fumaça percura é formosurà. Vovó Izidra sobrevinha, à tanta, às roucas, esgraviava escramuçandb"

jyjgNUELZÃO E tVtIGUILIM 4$~

crianças embora, eta escrapeteava com a criançada toda do mundo! Vovó Izidra, mesmo no escuro assim, avançava nos guardados, nos esconsos, em buracos na taipa, achava

aqueles toquinhos de pau que Mãitina tinha escascado com a faca, eram os calunguinhas, Vovó Izidra trouxava tudo no fogo, sem dó! : eram santos-desgraçados, a gente

nem não devia de consentir se Mãitina oferecesse aquilo para respeito de se beijar, bonecos do demo, cazumbos, a gente devia era de decuspir em riba. Mãitina depois

tornava a compor outros. Essas horas, a gente nunca sabia o que Mãitina fosse arrumar, tudo com ela dependia. Tinha vez, ria à toa, não fazia caso; mas, outras,

ela gritava horroroso, enfrenesiava no meio do quintal, rogando pragas sentidas, tivesse lama deitava mesmo na lama, se esparramava.

E agorinha, agora, que ele carecia tanto de qualquer assinzinho de socorro, algum aprumo de amparo, será que não podia pedir a ela? Miguilim pensava. Miguilim nem

ria. O que ele ia vendo: que nem não adiantava. Ah, não adiantava não, de jeito nenhum = Mãitina estava na bebedeira. A mal, derradeiro deixavam ela tomasse como

quisesse; porque estavam supeditando escondido na cachaça o pó de uma raiz, que era para ela enfarar de beber, então, sem saber, perdia o vício. Mas nem não valia.

Podiam sobpor aquilo, sustanciar em todas quantidades, a meizinha não executava. Judiação. Mãitina bebia e rebebia, queria mais, ela gastava a cachaça toda. Tudo,

que todo o mundo fazia, era errado.

A Rosa. Miguilim pergunta à Rosa: - "Rosa, que coisa é a gente ficar héctico?" - "Menino, fala nisso não. Héctico é tísico, essas doenças, derrói no bofe, pessoa

vai minguando magra, não esbarra de tossir, chega cospe sangue..." Miguilim deserteis para a tulha, atontava.

- "Agora você ensina armar urupuca..." - o Dito queria, quando desinvernou de repente, as maitacas já passavam, vozeando o trilique, antes era tão bonito. Para o

Dito, não tinha coragem de negar. Mas a urupuca não definia certa, o Dito mesmo experimentou, espiava sério, só Tio Terez era quem podia. Tio Terez em tudo estava

vivendo longe. Tio Terez voltasse, Miguilim conversava. - "Sanhaço pia uma flauta... Parece toca aprendendo..." - "Que é que é flauta, Tio Terez?" Flauta era assovio

feito, de instrumento, a melhor remedava o pio assim do sanhaço grande, o ioioioim deles... Tio Terez ia aprontar para ele uma, com taquara, com canudo de mamão?

Mas, depois, de certo esqueceu, nunca que ninguém tinha tempo, quase que nenhum, de trabalhar era que todos careciam.

Tomezinho e o Dito corriam, no pátio, cada um com uma vara de pau, eram cavalinhos que tinham até nomes dados. - "Brincar, Miguilim!" Brincar de pegador. Até a Chica

e Drelina brincavam, os cachorros latiam diverso. O Gigão sabia quase brincar também. Miguilim corria, tinha uma dor de um lado. Esbarrava, nem conseguia ânimo de

tomar respiração- Não queria aluir do lugar - a dor devia de ir embora. Assim instante assim, comecinho dela, ela estava só querendo vindo pousando - então

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N(p;~UFLZAO E MIGUILIM

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num átimo não podia também desistir de nele pousar, e ir embora? Ia. não adiantava, ele sabia, deu descordo. Já estava héctico. Então, ia morr mesmo, o remédio de

seo Deográcias não adiantava.

- Dito, hoje é que dia?

Então ia morrer; carecia de pensar feito já fosse pessoa grande? Suspe deu as mãozinhas, tapando os olhos. Em mal que, a gente carecia de que pensar somente nas

coisas que devia de fazer, mas o governo da cabeça e erroso - vinha era toda idéia ruim das coisas que estão por poder sucede Antes as estórias. Do pai de seo Soande

vivo, estória do homem boticár Soande. Esse, deu um dia, se prezou que já estava justo completo, cap para navegar logo pra o Céu, regalias altas; como que então

ele dispôs d tudo que tinha, se despediu dos outros, e subiu numa árvore, de man cedo, exclamou: - "Belo, belo, que vou para o Céu!..." - e se soltou, p voar; descaiu

foi lá de riba, no chão muito se machucou. - "Bem feito. - Vovó Izidra relatava. - "Quem pensa que vai para o Céu, vai mas para o Céu-de-Lalau!..." Vovó Izidra todos

vigiava.

O Dito tinha ido ver, perguntar. Daí, voltava: - "Hoje é onze, a Ro espiou na folhinha. A Rosa disse essa folhinha que agora a gente tem não boa, folhinha-de-Mariana;

que carece de arranjar folhinha de desfolhar de tão bonitos quadros..." - "Eu vou ali, volto..." - Miguilim disse. M guilim tinha pegado um pensamento, quase que

com suas mãos.

- Deix" ele ir, Dito. Ele vai amarrar-o-gato..." - ainda escutava dizer vaqueiro Jé. Mentira. Tinha mentido, de propósito. Era o único jeito d sozinho poder ficar,

depressa, precisava. Podiam rir, de que rissem ele n se importava. Mesmo agora ali estava ele ali, atrás das árvores, com as ças soltadas, acocorado, fingindo. Ah,

mas livre de todos; e pensava, pensava!

Repensava aquele pensamento, de muitas maneiras amarguras. Era pensamento enorme, aí Miguilim tinha de rodear de todos os lados, e beira dele. E isso era, era! Ele

tinha de morrer? Para pensar, se carecia agarrar coragem - debaixo da exata idéia, coraçãozinho dele anoitec Tinha de morrer? Quem sabia, só? Então - ele rezava

pedindo: combin va com Deus, um prazo que marcavam... Três dias. De dentro daqueles dias, ele podia morrer, se fosse para ser, se Deus quisesse. Se não, passad os

três dias, aí então ele não morria mais, nem ficava doente com peri mas sarava! Enfim que Miguilim respirava forte, no mil de um minuto, coçando das ferroadas dos

mosquitos, alegre quase. Mas, nem nisso, ma - maior susto o salteava: três dias éra curto demais, doíam de assim perto, ele mesmo achava que não agüentava... Então,

então, dez. Dez d" bom, como valesse de ser, dava espaço de, amanhã, principiar uma nov na. Dez dias. Ele queria, lealdoso. Deus aprovava.

Voltou para junto. Agora, ele se aliviava qualqual, feliz no acorro mento, espairecia. Era capaz de brincar com o Dito a vida inteira, o D"

nho era a melhor pessoa, de repente, sempre sem desassossego. O Dito como que ajudava. Ele Miguilim ainda carecia de sinalar os dias todos, para aquela espera, fazia

a conta nos dedos. O Dito e o vaqueiro Jé não estavam entendendo nada, mas o vaqueiro Jé fez a conta, Miguilim e Dito não sabiam. - "Pra que é, Miguilim? Você fechou

data para se casar?" - assim a poetagem do vaqueiro Jé, falanfão. Soubesse o que era, de verdade, assim se rindo assim ele falava? O vaqueiro Jé era uma pessoa esperdiçada.

- "Ah, isto é" - ainda vinha dizendo mais - "é por via da vacama: o Miguilim vai reger o costeio..."

A tempo, com a chuva, os pastos bons, o pai tinha falado iam tornar a começar a tirar muito leite, fazer requeijão, queijo. As vacas estavam sobrechegando, com o

touro. O touro era um zebu completo preto - Rio-Negro. A bezerrada se concluía num canto do curral, os rabinhos de todos pendurados, eles formavam roda fechada,

com as cabeças todas juntas. O cachorro Gigão vigiava, sempre sério, sentado; ele desgostava do RioNegro. O Rio-Negro era ruim, batedor. Um dia ele tinha investido

nos meninos. Quando que avançou, de supetão, todos gritaram, as pessoas grandes gritaram: os meninos estavam mortos! Mas mais se viu que o Gigão sobrestava, de um

pulo só ele cercou, dando de encontro - tinha ferrado forte do Rio-Negro, abocando no focinho - não desmordeu, mesmo - deu com o pai-de-bezerro no chão. Três tombos,

até o Rio-Negro rolar por debaixo do cocho que quase encostado na cerca. Todas as belezas daquele retumbo! Deu a derradeira queda aqui, já neste fundinho de terra.

O Gigão gostava de mexida de gado, cachorro desse derruba qualquer boi. Tinha livrado os meninos da morte, todos faziam festas no Gigão, sempre que se matava galinha

assavam o papo e as tripas para ele. Mas agora o Gigão parava ali, bebelambendo água na poça, e mesmo assim, com ele diante perto, Miguilim estava sentindo saudade

dele. Então, era porque ia mesmo morrer? Já tinham quase passado dois dias, faltavam os outros para inteirar. E ele, por motivo nenhum, mas tinha deixado de principiar

a novena, e não sobrava mais tempo, não dava. Deus Jesus, como é que havia de ser?

Não ia fazer mais artes. Só tinha trepado na árvore-de-tentos, com o Dito, para apanhar as frutinhas de birosca. Tomezinho não sabia subir, ficava fazendo birra

em baixo, xingava nome feio. - "Não xinga, Tomezinho, é Mãe que você está ofendendo!" Mas então precisavam de ensinar a ele outros nomes de xingar, senão o Tomezinho

não esbarrava. Às vezes a melhor hora para a gente era quando Tomezinho estava dormindo de dia. No descer do tenteiro, Miguilim desescorregou, um galho partiu, ele

bateu no chão, não machucou parte nenhuma, só que a calça rasgou, rasgão grande, mesmo. Tudo se dado felizmente. Mas o pai, quando ele chegou, gr"tou pito, era para

costurarem a roupa. E ainda mandou que deixassem Miguilim nu, de propósito, sem calça nenhuma, até Mãe acabar de costu-

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rar. Só isso, se morria de vergonha. E, então, não tinham pena dele, Mig lim, achavam de exemplar por conta de tudo, mesmo num tempo co esse, que faltavam seis dias,

do comum diferentes? Ah, não fosse pecado, aí ele havia de ter uma raiva enorme, de Pai, deles todos, raiva mesmo ódio, ele estava com razão. Pudesse, capaz de ter

uma raiva assim até d Dito! Mas por que era que o Dito semelhava essa sensatez - ninguém n botava o Dito de castigo, o Dito fazia tudo sabido, e falava com as pesso

grandes sempre justo, com uma firmeza, o Dito em culpa aí mesmo e que ninguém não pegava.

Agora estavam reduzindo com os bezerros para a ferra, na laçação. M" guilim também queria ir lá no curral, para poder ver - não ia, nu, nuel castigado. Escutava

o barulho - como o bezerro laçado bufa e pula, tre bravo. O vaqueiro Jé sabia jogar focinheira bem, com o laço: era custos mais custoso quando o bezerro estava com

a cabeça abaixada. Laçava pelo pescoço. Quando pegavam o pescoço e perna, duma vez, Pai zangav estavam errando. Peavam o bezerro, na curva, com duas voltas de Bedém

um nó-de-porco; encambixavam, com as duas mãos. Outro apertava a ca beça dele no chão. Outro ajudava. O bezerro punha a língua de fora. E o berros. Berru-berro feio,

como quando que gado toma uma esbarrada estremece bruto, nervoso, derruba gente, agride, pula cerca. Doidavam de sespero, davam testada. Até às vezes, no pular,

algum rasgava a barriga na pontas de aroeira, depois morriam. Como o pai ficava furioso: até quas chorava de raiva! Exclamava que ele era pobre, em ponto de virar

mise rável, pedidor de esmola, a casa não era dele, as terras ali não eram del o trabalho era demais, e só tinha prejuízo sempre, acabava não podend nem tirar para

sustento de comida da família. Não tinha posse nem par retelhar a casa velha, estragada por mão desses todos ventos e chuvas, ne recurso para mandar fazer uma boa

cerca de réguas, era só cerca de achas. paus pontudos, perigosa para a criação. Que não podia arranjar um ga rote com algum bom sangue casteado, era só contentar

com o Rio-Negr touro do demônio, sem raça nenhuma quase. Em tanto nem conseguia r mediar com qualquer zebu ordinário, touro cancreje, que é gado brav miúdo ruim

leiteiro, de chifres grandes, mas sempre é zebu mesmo, c queimada, parecendo com o guzerate: - "Zebu que veio no meio dos o tros, mas não teve aceitação..." - que

era o que queria o vaqueiro Sal Dava vergonha no coração da gente, o que o pai assim falava. Que de p bres iam morrer de fome - não podia vender as filhas e os filhos...

Pude se, crescesse um poucado mais, ele Miguilim queria ajudar, trabalhar ta bém. Mas, muito em antes queria trabalhar, mais do que todos, e n morrer, como quem

sabe ia ser, e ninguém não sabia.

Mas por que não cortavam aquela árvore de pé-de-flor, de detrás casa, que seo Deográcias tinha falado? Se não cortassem, era tanto perig de agouro, ela crescia solerte,

de repente uma noite despassava mais alta d

N(p\UELZ,ÃO E MIGUILIM 491

que o telhado, então alguém da família tinha de morrer, então era que ele Miguilim morria. Pois ele não era o primeirozinho separado para ser, conforme Deus podia

mandar, como a doença queria? Mas nem que o pai não queria saber de cortar, quizilou quando Mãe disse. - "Não corto, não deixo, não dou esse prazer a esse seo Deográcias!

Nem ele não pense que tudo o que fala é minhas-ordens, que por destino de pobres ignorantes a gente é bobo também..." Não cortavam, e a arvorezinha pegava asas.

Miguilim excogitava. - "Dito, alegria minha maior se alguém terminasse com a árvore-de-flor, um vento forte derribasse..." O Dito não fosse tão ladino: quando ninguém

não estava vendo ele chamou o vaqueiro Saluz, disse que para botar no chão, mandado do pai. Vaqueiro Saluz gostava de cortar, meteu o facão, a árvore era fina. Miguilim

olhava de longe; de alegria, coração não descansava. Quando os outros viram, todos ficaram assustados, temor do pai, diziam o Dito ia apanhar de tirar sangue. O

Dito, por uma agüinha branca como nem que ele não se importava. Saiu brincando com carrinhode-boi, com os sabucos. Um sabuco roxo era boi roxo, outros o Dito pedia

à Rosa para no fogo tostar, viravam sendo boizinhos amarelos, pretos, pintados de preto-e-branco. Era o brinquedo mais bonito de todos. Pai chegou, soube da árvore

cortada, chamou o Dito: - "Menino, eu te amostro! Que foi que mentiu, que eu tinha mandado sentar facão na árvore-deflor?!" - "Ah, Pai, ressonhei que o que se disse,

se a árvore danasse de crescer, mais o senhor é que é o dono da casa, agora o senhor pode bater em mim, mas eu por nada não queria que o senhor adoecesse, gosto

do senhor, demais..." E o pai abraçou o Dito, dizia que ele era menino corajoso e com muito sentimento, nunca que mentia. Mesmo Miguilim não entendia o sopro daquilo;

pois até ele, que sabia de tudo, dum jeito não estava acreditando mais no que fora: mas achando que o que o Dito falou com o pai era que era a primeira verdade.

Maroto que o Dito saía, por outros brinquedos, com simples de espiar o ninho de filhotes de bem-te-vi, não tinha medo que bem-te-vi pai e mãe bicavam, podiam furar

os olhos da gente. Chamava Miguilim para ir junto. Miguilim não ia. O Dito não chamava mais. O Dito quase que não se importava mais com ele, o Dito não gostava mais

dele. Cada dia todos deixavam de gostar dele um poucadinho, cismavam a sorte dele, parecia que todos já estavam pressentindo, e queriam desacostumar. Não faltavam

só três dias? Mas agora ele imaginava outros pensamentos, só que eram desencontrados, tudo ainda custoso, dificultoso. Se escapasse, achava que ia ficar sabendo,

de repente, as coisas de que precisava. Ah, não devia de ter decorado na cabeça a data desses dias! Sempre de manhã já acordava sopitado com aquela tristeza, quando

os bem-te-vis e passos-pretos abriam Pio, e Tomezinho pulava da cama tão contente, batia asas com os braços e cocoricava, remedando o galo. De noite, Miguilim demorava

um tempo distante, pensando na coruja, mãe de seus saberes e poderes de agouro. -

492

"É coruja, cruz?!" Não. O Dito escutava com seriedades. Só era só o gn do enorme sapo latidor.

De em dia, Miguilim mesmo tinha escasseado o gosto de se escon de se apartar às vezes da companhia dos outros, conforme tanto de-p meiro ele apreciava. Mas, agora,

de repente achava que, se sozinho, en - por certo encoberto modo - aí era que ele era mais sabido de to mais enxergado e medido. Parava dentro de casa, na cozinha,

perto Mãe, perto das meninas. Queria que-tudo fosse igual ao igual, sem espar me nenhum, nunca, sem espanto novo de assunto, mas o pessoal da fa lia cada um lidando

em suas miúdas obrigações, no usozinho. Que - ele mesmo desse de viver mais forte, então puxava perigo de desmancha esquecimento de Deus, influía mais para a banda

da doença. Que, se a dasse, adoecia amadurecido, sentia uma dor na contraquilha, no fundo tampas do peito, daí cuspia sangue - era o que a Rosa falava para sempr

De sestro, salivava, queria saber se já sobrava o gosto de sangue. - "Qu" qu" isso, Miguilim? Larga de mania feia!"-qualquer um repreendia. E abanava a cabeça que

sim, sorria mansinho que pudesse, para ser bobinla Porque a alma dele temia gritos. No sujo lamoso do chiqueiro, os por gritavam, por gordos demais. Todo grito,

sobre ser, se estraçalhava, est gava, de dentro de algum macio miolo - era a começação de desconhec das tristezas. O quirquincho de um tatu caçado. O afurôo dos

cachorr estrepolindo com o tatu em buraco.

Ali mesmo, para cima do curral, vez pegaram um tatu-peba - co roncou! - o tatu-pevinha é que é o que ronca mais, quando os cachorr o encantoam. Os cachorros estreitam

com ele, rodeavam - era tatuamea - ela encapota, fala choraminguda; peleja para furar buraco, os chorros não deixam. Os cachorros viravam com ela no chão, ela tornava

se desvirar, ligeiro. A gente via que ela podia correr muito, se os cachorr deixassem. E tinha pelinhos brancos entremeados no casco, feito as pon mais finas, mais

últimas, de raizinhas. E levantava as mãozinhas, cruza mostrava aqueles dedos de unhas, como ossinhos encardidos. Pedia pe Depois, outra ocasião, não era peva, era

um tatu-galinha, o que corre m corredor. Funga, quando cachorro pega. Pai tirava a faca, punha a f nele, chuchava. Ele chiava: Izuis, Izuis!... Estava morrendo,

ainda estava zendo barulho de unhas no chão, como quando entram em buraco. "Tem dó não, Miguilim, esses são danados para comer milho nas ro derrubam pé-de-milho,

roem a espiga, desenterram os bagos de milho meados, só para comer..." - o vaqueiro Saluz dizia aquilo, por consol tantas maldades. - "O tatu come raízes..." Então,

mas por que é que P os outros se praziam tão risonhos, doidavam, tão animados alegres, na ra de caçar à toa, de matar o tatu e os outros bichinhos desvalidos? Ass

com o gole disso, com aquela alegria avermelhada, era que o demônio p cisava de gostar de produzir os sofrimentos da gente, nos infernos?

M.~INUELZÃO E IVtIGUILIM 493

nem queriam que ele Miguilim tivesse pena do tatu-pobrezinho de Deus sozinho em seu ofício, carecido de nenhuma amizade. Miguilim inventava outra espécie de nojo

das pessoas grandes. Crescesse que crescesse, nunca havia de poder estimar aqueles, nem ser sincero companheiro. Aí, ele grande, os outros podiam mudar, para ser

bons - mas, sempre, um dia eles tinham gostado de matar o tatu com judiação, e aprontado castigo, essas coisas todas, e mandado embora a Cuca Pingo-de-Ouro, para

lugar onde ela não ia reconhecer ninguém e já estava quase ceguinha.

Mas, a mal, vinha vesprando a hora, o fim do prazo, Miguilim não achava pé em pensamento onde se firmar, os dias não cabiam dentro do tempo. Tudo era tarde! De siso,

devia de rezar, urgente, montão de rezas. Não compunha. Pois então, no espandongado mesmo dessa pressa, era que a reza não dava vontade de se rezar, ele principiava

e não conseguia, não agüentava, nervosia, toleimado se atolava todo. Se sentava na tulha, ainda uma vez, com coragem, só com o gato Sossõe. Ficava pensando. Se lembrando.

O gato chegava por si, sobremacio, tripetrepe, naquela regra. Esse não se importava com nenhuma coisa; mais, era rateiro: em estado de dormindo, mesmo, ele com um

cismado de orelhas seguia longe o rumor de rato que ia se aparecer dum buraquinho. E Miguilim de repente viu que estava recordando aquelas conversas do Patori, gostando

delas, auxiliando mesmo de se lembrar. A coisa do boi se chamava verga. A do cavalo, chamava província, pendurada, enorme, semelhando um talo de cacho de bananeira,

sem o mangará. Tinha até vontade que o Patori voltasse, viesse, havia de conversar a bem com ele, perguntar mais desordens. O garrote tourava as vacas, depois nasciam

os bezerrinhos. Patori falava que podia ensinar muitas coisas, que homem fazia com mulher, de tão feio tudo era bonito. Só assim em se pensar, mesmo já esquentava,

bom, descansava. Um porco magro, passante, demorou na porta da tulha, esmastigando, de amarelar, um bagaço de cana. Grunhava. Devia de ser bom, namoração. Ele Miguilim

era quem ia se casar com Drelina - mas irmão não podia casar com irmã? Daí, não agüentava: tinha vergonha. - "Dito, vem cá, fala comigo uma pergunta minha..."

- "Quê que é, Miguilim? Você sabe Pai disse? Amanhã ele vai deixar a gente nós dois montar a cavalo, sozinhos, vamos ajudar a trazer os bezerros..." - "Dito, você

já teve alguma vez vontade de conversar com o anjoda-guarda?" - "Não pode, Miguilim. Se puder, vai p"ra o inferno..." - "Dito eu às vezes tenho uma saudade de uma

coisa que eu não sei o que é, nem de donde, me afrontando..." - "Deve de não, Miguilim, descarece. Fica todo olhando para a tristeza não, você parece Mãe." - "Dito,

você ainda é companheiro meu? De primeiro você gostava de conversar comi

g°---" - "Que eu que eu gosto, Miguilim. Demais. Mas eu quero não conversar essas conversas assim." - "Você quer me ver eu crescer, Dito? Eu viver, toda a vida,

ficar grande?" -, "Demais. A gente brincar muito, tem-

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pos e tempos, de em diante crescer, trabalhar, todos, comprar uma fazend muito grande, estivada de gados e cavalos, pra nós dois!" A alegria do Dit em outras ocasiões

valia, valia, feito rebrilho de ouro.

Daí mas descambava, o dia abaixando a cabeça morre-não-morre o sol O oõo das vacas: a vaca Belbutina, a vaca Trombeta, a vaca Brindada... enfite delas todas, tantas

vacas, vindo lentamente do pasto, sobre pé de pó" Atitava um assovio de perdiz, na borda-do-campo. Voando quem passav era a marreca-cabocla, um pica-pau pensoso,

casais de araras. O gavião zinho, o gavião-pardo do cerrado, o gaviãozinho-pintado. A gente sabiá esses todos vivendo de ir s"embora, se despedidos. O pio das rolinhas

man sas, no tarde-cai, o ar manchado de preto. Daí davam as cigarras, e outras A rã rapa-cuia. O sorumbo dos sapos. Aquele lugar do Mutum era triste era feio. O

morro, mato escuro, com todos os maus bichos esperando, para lá essas urubuguaias. A ver, e de repente, no céu, por cima dos matos, uma coisa preta disforme se estendendo,

batia para ele os braços: ia ecar, para ele, Miguilim, algum recado desigual? "São os morcegos? Se fossem só os morcegos?!..." Depois, depois, tinha de entrar p"ra

dentro, beber leite, para o quarto. Não dormia dado. Queria uma coragem de abrir a janela espiar no mais alto, agarrado com os olhos, elas todas, as Sete-Estrelas

Queria não dormir, nunca. Queria abraçar o Ditinho, conversar, mas nãcr tinha diligência, não tinha ânimo.

Agora era o dia derradeiro. Hoje, ele devia de morrer ou não morrer. Nem ia levantar da cama. De manhã, ele já chuviscara um chorozinho, o travesseiro estava molhado.

Morria, ninguém não sentia que não tinha mais o Miguilim. Morria, como arteirice de menino mau? - "Dito, perue gunta à Rosa se de noite um pássaro riu em cima do

paiol, em cima d casa?" O dia era grande, será que ele ia agüentar de ficar o tempo tod deitado? - "Miguilim, Mãe está chamando todos! É p"ra catar piolho... Miguilim

não ia, não queria se levantar da cama. - "Que é que está sentia do, Miguilim? Está doente, então tem de tomar purgante..." A mãe já esta ria lá, passando o pente-fino

na cabeça dos outros, botava óleo de babo nos cabelos de Drelina e da Chica, suas duas muito irmãzinhas, delas gos tava tanto. Tomezinho chorava, ninguém não podia

com Tomezinho. "Miguilim está mesmo doente? Que é agora que ele tem?" Era Vovó Izidr moendo pó em seu fornilho, que era o moinho-de-mão, de pedra-sabã com o pião

no meio, mexia com o moente, que era um pau cheiroso sassafrás. Miguilim agora em tudo queria reparar demais, lembrado. PóI tabaco-rapé, de fumo que ela torrava,

depois moía assim, repisando - gente gostava às vezes de auxiliar a moer - o pó ela guardava na cornich de ponta de chifre de boi, com uma tampinha segura com tirinha

de cour dentro dela botava também uma fava de cumaru, para dar cheiro... Vov Izidra não era ruim, todos não eram ruins, faziam ele comer bastante, par fortalecer,

para não emagrecer héctico, de manhãzinha prato fundo co

mingau-de-fubá, dentro misturavam leite, pedacinhos de queijo, que derretiam, logo, despois comia gemada de ovo, enjoada, toda noite Vovó Izidra quentava para ele

leite com açúcar, com umas folhinhas verdes de hortelã, era tão gostoso... A mãe vinha ver: - "Melhor se dar logo o salamargo a ele, senão o Bero vem, ele pensa

que remédio para menino é doses, feito bruto p"ra cavalo..." Mas Miguilim estava chorando simples, não era medo de remédio, não era nada, era só a diferença toda

das coisas da vida. Só Drelina só era quem adivinhava aquilo, vinha se sentar na beira da cama. - "Miguilinzinho, meu irmãozinho, fala comigo por que é que você

está chorando, que é que você está sentindo dor?" Drelina pegara uma das mãos dele, de junto carinhava Miguilim, na testa. Drelina era bonita de bondade. - "Sossega,

Miguilim, você não está com febre não, cabeça não está quente..." - "Drelina, quando eu crescer você casa comigo?" - "Caso, Miguilim, demais." - "E a Chica casa

com o Dito, pode?" - "Pode, decerto que pode." - "Mas eu vou morrer, Drelina. Vou morrer hoje daqui a pouco..." Quem sabe, quem sabe, melhor ficasse sozinho - sozinho

longe deles parecia estar mais perto de todos de uma vez, pensando neles, no fim, se lembrando, de tudo, tinha tanta saudade de todos. Para um em grandes horas,

todos: Mãe, o Dito, as Meninas, Tomezinho, o Pai, Vovó Izidra, Tio Terez, até os cachorros também, o gato Sossõe, Rosa, Mãitina, vaqueiro Saluz, o vaqueiro Jé, Maria

Pretinha... Mas, no pingo da horinha de morrer, se abraçado com a mãe, muito, chamando pelo nome que era dela, tão bonito: - Nhanina...

- Mãe! Acode ligeiro, o Miguilim está dando excesso!...

E o Dito? Onde o Dito estava? Saíra correndo certo. Tinha avistado o seo Aristeu, que descia de volta do Nhangã, montado no seu cavalinho sagaz, foi correu - chamar

para vir ver Miguilim, pronto. Seo Aristeu chegou.

Seo Aristeu entrava, alto, alegre, alto, falando alto, era um homem grande, desusado de bonito, mesmo sendo roceiro assim; e doido, mesmo. Se rindo com todos, fazendo

engraçadas vênias de dançador.

- "Vamos ver o que é que o menino tem, vamos ver o que é que o menino tem?!... Ei e ei, Miguilim, você chora assim, assim - p"ra cá você ri, p"ra mim!..." Aquele

homem parecia desinventado de uma estória. - "O menino tem nariz, tem boca, tem aqui, tem umbigo, tem umbigo só..." - "Ele sara, seo Aristeo?" - "... Se não se tosar

a crina do poldrinho novo, pescoço do poldrinho não engrossa. Se não cortar as presas do leitãozinho, leitãozinho não mama direito... Se não esconder bem pombinha

do menino, pombinha voa às aluadas... Miguilim - bom de tudo é que tu "tá: levanta, ligeiro e são, Miguilim!..."

- Eu ainda pode ser que vou morrer, seo Aristeu...

- Se daqui a uns setenta anos! Sucede como eu, que também uma vez já morri: morri sim, mas acho que foi morte de ida-e-volta... Te segura e pula, Miguilim, levanta

já!

NIANUELZÃO E IVtIGUILIM

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496 JOÃO GUIMARÃES ROSA ~ PICÇÃO COMPLET

Miguilim, dividido de tudo, se levantava mesmo, de repente são, nã ia morrer mais, enquanto seo Aristeu não quisesse. Todo ria. Tremia d alegrias.

- "Não disse, não falei? Apruma mesmo durim, Miguilim, a dança h je é das valsas..." Todo o mundo: boca que ria mais ria. - "Ai, Miguili eu soubesse disto, tinha

trazido minha companhia - que por nome te até é Minrela-Mindola, Menina Gordinha, com mil laços de fitas... -vio mestra de todo tocar!" - "Então, eu não estou héctico

nem tísico não, se Aristeu?" - "Bate na boca por bestagem tão grande que se disse, compa dre meu Miguilim: nunca que eu ouvi outra maior. Tísica nem não dá nestes

Gerais, o ar aqui não consente! Vai o que você tem é saúde grand ainda mal empenada..."

Pai estava chegando, seo Aristeu para ele explicava: - "Amigo meu Mi; guilim de repente estranhou a melhor saúde que ele tem. Isso isso-mesmo:. ajustar as perninhas

primeiro nos compassos..." Estipulava: que ali nos Ge rais não dava tísica, não, mas mesmo tísica ele sarava, com agrião e caldo de bicho caramujo - era: pá!-bosta!

- e todos milagres aquilo fazia... Mi guilim carecia de remédio nenhum, estava limpo de tudo. Siso de que exercício era bom: podia ir até na caçada... Porque seo

Aristeu aparecia por era para prevenir os caçadores: uma anta enorme estava trançando, desdada, uma anta preta chapadense, seo Aristeu tinha batido atrás da treit

do rastro, acertara com a picada mais principal, ela reviajava de chapad pra chapada, e em três veredas ela baixava: no Tipã, no Terentém e no Ran,chório - burrinhando,

sozinha, a fêmea decerto tinha ficado perdida dela ou alguém mais já tinha matado. Carecia de se emprazar a boa caçada... "E as abelhas, como vão, seo Aristeu?"

- "De mel e mel, bem e mal, Nh Berno, mas sempre elas diligenceiam, me respeitam como rei delas, el sabem que eu sou o Rei-Bemol... Inda ontem,. sei, sabem, um cortiço

de enxame, enxame enorme: um vê - rolando .uma nuvem preta, o dia devia de querer estar no meio, rosnando... Ei, Miguilim, isto é p"ra voc você carece de saber das

coisas: primeiro, foi num mato, onde eu achei un macacos dormindo, aí acordaram e conversaram comigo... Depois, se gente vê um ruivo espirrar três vezes seguidas,

e ele estando com facão, pedir água de beber, mas primeiro lavar a boca e cuspir - então, desse nada não se queira, não!" Seo Aristeu sossegava para almoçar. Supria

d aceitar cachaça. Oh homem! Ele tinha um ramozinho de ai-de-mim de fl espetado na copa do chapéu, as calças ele não arregaçava. Só dizia aquel coisas dançadas no

ar, a casa se espaceava muito mais, de alegrias, até Vo Izidra tinha de se rir por ter boca. Miguilim desejava tudo de sair com el passear - perto dele a gente sentia

vontade de escutar as lindas estórias Na hora de ir embora afinal, seo Aristeu abraçou Miguilim:

- "Escuta, meu Miguilim, você sarou foi assim, sabe:

E isto se canta bem ligeiro, em tirado de quadrilha."

Depois e tanto, abraçou o Dito; falou: - "Tratem com os açúcras este homenzinho nosso, foi ele quem veio e quis me chamar..."

A caçada, a batida da anta, para um domingo, Deus quisesse, ficou marcada.

Agora Miguilim tinha tanta fome, comeu demais, até deu na fraqueza: depois de comer, ficou frio suado. Mas estava alevantado nas boas cores. O barro secou. Pai disse:

- "Miguilim carece de render exercício labutando,amanhã ele leva almoço meu na rocinha." Miguilim gostou disso, por demais: Pai estava achando que ele tinha préstimo

para ajudar, Pai tinha falado com ele sem ser ralhando. A alegria de Miguilim era a sus.

- Você me ensinazinho a dançar, Chica?

- Ensino, você não aprende.

- Aprendo sim, Chica...

- A Rosa quem disse: Dito aprende, Miguilim não aprende...

- Por que, Chica?

- Você nasceu em dia-de-sexta com os pés no sábado: quando está alegre por dentro é que está triste por fora... A Rosa é quem disse. Você tem pé de chacolateira...

No odtro dia, dia-de-manhã bonito, o sol chamachando, estava dado lindo o grilgril das maitacas, no primeiro, segundo, terceiro passar delas, para os buritis das

veredas. Por qualquer coisa, que não se sabe, as seriemas gritaram, morro abaixo, morro acima, quase bem uma hora inteira. Vaqueiro Saluz tirava leite, o Dito conseguia

de ajudar. A bezerrinha da vaca Piúva era dele, bezerro da Trombeta era de Tomezinho, o da Nobreza de Drelina, o da Mascaranha de Chica, dele Miguilim o da vaca

Sereia. O RioNegro não saía de junto da Gadiada, que devia de estar em começo de calor. Touro em turvo, feio, a cara burra, tão de ruim. Vez em quando virava a cabeçona,

por se lamber na charneira - estava cheio de bernes. - "Por causa que aqui é mato, pé-de-serra, aí no meio dos Gerais não dá..." - por ele punia o vaqueiro Saluz.

O Dito perguntava continuação. O Dito de tudo queria aprender.

Mas depois Mãe e a Rosa arrumavam bem a comida, no tabuleirinho de pau com aqueles buracos diferentes - nem não se carecia de prato nenhum, nem travessa, nenhuma

vasilha nenhuma ; ele Miguilim podia ir cauteloso, levar para o pai. Em mal que o Dito não acompanhava de rir junto, porque dois meninos nunca que dá certo, fazem

arte. E o ca-

N[ANUELZAO E MIGUILIM

... Eu vou e vou e vou e vou e volto!

Porque se eu for

Porque se eu for

Porque se eu for

hei de voltar...

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498 JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COMP

minhozinho descia, beirava a grota. Põe os olhos pra diante, Miguil Em ia contente, levava um brio, levava destino, se ria do grosso grito papagaios voantes, nem

esbarrou para merecer uma grande arara pousada comendo grelos de árvore, nem para ouvir mais o guaxe de r amarelo, que cantava distinto, de vezinha não cantava,

um estádio. piava, pra chamar fêmea. De daí, Miguilim tinha de traspassar um p ço de mato. Não curtia medo, se estava tão perto de casa. Assim o mês só meios de

novembro, mas por si pulavam caindo no chão as frutin da gameleira. O joá-bravo em roxo florescia - seus lenços roxos, Gados. E ali nem tinha tamanduá nenhum, tamanduá

reside nas gro gostam de lugar onde tem taboca, tamanduá arranha muito a casca árvores. A bem que estúrdio ele tamanduá é, tem um ronco que é arquejo, parece de

porco barrão, um arquejo soluçado. Miguilim tinha medo, mas medo nenhum, nenhum, não devia de. Miguilim do mato, destemido. Adiante, uma marfa-faceira em cima do

vôo soviava - ia ver as águas das lagoas. O curiol ainda recantava, em m mo, na primeirinha árvore perto do mato. Miguilim não virava a c para espiar, faltava prazo.

Os passarinhos são assim, de propósito: bo tos não sendo da gente. A pra não se ter medo de tudo, carecia dé uma obrigação. Aí ele andava mais ligeiro, instantinho

só, chegava rocinha.

O pai estava lá, capinando, um sol batia na enxada, relumiava. Pai e va suado, gostava de ver Miguilim chegando com a comida do almo Tudo estava direitim direito,

Pai não ralhava. Se sentava no toco, principiar a comer. Miguilim sentava perto, no capim. Gostava do gostava até pelo barulhinho dele comendo o de-comer. Pai comia

e conversava. Miguilim olhava. A roça era um lugarzinho descansado b to, cercado com uma cerquinha de varas, mó de os bichos que estrag Mas muitas borboletas voavam.

Afincada na cerca tinha uma caveira in ra de boi, os chifres grandes, branqueta, por toda boa-sorte. E espeta em outros paus da cerca, tinha outros chifres de boi,

desparelhados, so

que ali ninguém não botava mau-olhado! As feições daquela cav grande de boi eram muito sérias. Aí uma nhambuzinha ia saindo, po bora, acautelada com as perninhas

no meio do meloso, passou por deb da tranqueira. A nhambuzinha ainda quis remirar para trás, sobres aqueles olhos da cor de ferrugem. Pai tinha plantado milho, feijão,

bati doce, e tinha uns pés de pimenteira. Mas, em outros lugares, também certo ele plantava arrozal, algodão, um mandiocal grande que tinha. quilim tirava os carrapichos

presos na roupa. As folhas de batata-doce e vam picadas: era um besourinho amarelo que tudo furava. Pai tinha lata d"água, e uma cabaça com rolha de sabuco, mais

tinha um coité, beber. Mesmo muitos mosquitos, abelhas e avèspas inçoavam sem asse o barulhim deles zunia. Pai não falava.

- Pai, quando o senhor achar que eu posso, eu venho também, ajudar o senhor capinar roça...

Pai não respondia nada. Miguilim tinha medo ter falado bobagem faltando ao respeito.

- Estou comido, regalo do corpo e bondade de Deus. Agora volta p"ra casa, menino, caça jeito no caminho não fazer arte.

Miguilim pegava o tabuleirinho vazio, tomava a benção a Pai, vinha voltando. Chegasse em casa, uma estória ao Dito ele contava, mas estória toda nova, dele só, inventada

de juízo: a nhá nhambuzinha, que tinha feito uma roça, despois vinha colher em sua roça, a Nhá Nhambuzinha; que era uma vez! Essas assim, uma estória - não podia?

Podia, sim! - pensava em seo Aristeu... Sempre pensava em seo Aristeu - então vinha idéia de vontade de poder saber fazer uma estória, muitas, ele tinha! Nem não

devia de ter medo de atravessar o mato outra vez, era só um matinho bobo, matinho pequeno trem-à-toa. Mas ele estava nervoso, transparecia que tinha uma coisa, alguém,

escondido por algum, mais esperando que ele passasse, uma pessoa? E era! Um vulto, um homem, saía de detrás do jacarandá-tã - sobrevinha para riba dele Miguilim

- e era Tio Terez!...

Miguilim não progredia de formar palavra, mas Tio Terez o abraçava, decidido carinhoso. - "Tio Terez, eu não vou morrer mais!" - Miguilim então também desexclamava,

era que nem numa porção de anos ele não tivesse falado.

- "De certo que você não vai morrer, Miguilim, em de ouros! Te tive sempre meu amigo? Conta a notícia de todos de casa: a Mãe como é que vai passando?"

E Miguilim tudo falava, mas Tio Terez estava de pressa muito apurado, vez em quando punha a cabeça para escutar. Miguilim sabia que Tio Terez estava com medo de

Pai. - "Escuta, Miguilim, você alembra um dia a gente jurou ser amigos, de lei, leal, amigos de verdade? Eu tenho uma confiança em você..." - e Tio Terez pegou o

queixo de Miguilim, endireitando a cara dele para se olharem. - "Você vai, Miguilim, você leva, entrega isto aqui à Mãe, bem escondido, você agarante?! Diz que ela

pode dar a resposta a você, que mais amanhã estou aqui, te espero..." Miguilim nem paz, nem pôde, perguntou nada, nem teve tempo, Tio Terez foi falando e exaparecendo

nas árvores. Miguilim sumiu o bilhete na algibeira, saiu quase corre-corre, o quanto podia, não queria afrouxar idéia naquilo, só chegar em casa, descansar, beber

água, estar já faz-tempo longe dali, de lá do mato.

- Miguilim, menino, credo que sucedeu? Que que está com a cara em ar?

- Mesmo nada não, Mãe. Gostei de ir na roça, demais. Pai comeu a comida...

O bilhete estava dobrado, na algibeira. O coração de Miguilim solava

MpN"UEL7.AO E MIGUILIM

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SOO JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COMPL

que rebatia. De cada vez, que ele pensava, recomeçava aquela dúvida respiração, e era como estivesse sem tempo. - "Miguilim está escondeu alguma arte que fez!" -

"Foi não, Vovó Izidra..." - "Dito, quê que foi q o Miguilim arrumou?!" - "Nada não, Vovó Izidra. Só que teve de pas em matos, ficou com medo do capèta..."

Pois agora iam ajudar Mãitina a arrancar inhame p"ra os porcos. Bus vam os nhames na horta, Mãitina cavacava com o enxadão, eram uns n mes enormes. Mãitina esbarrava,

pegava própria terra do chão com os dos do pé dela, falava coisas demais de sérias. Quase nada do que fala com a boca e com as duas mãos pretas, a gente bem não

aproveitava. mascava fumo e enfiava também mecha de fumo no nariz, era vício. "Dito, por que foi que você falou aquilo com Vovó Izidra?" - "Em tem que não te auxiliei,

Miguilim?" - "Mas por quê que você inventou no peta, Dito? Por quê?!" - "É porque do capeta todos respeitam, direito, Vovó Izidra." O Dito suspendia um susto na

gente - que sem ser, se saber, ele atinava com tudo. Mas não podia contar nada a ninguém, ne ao Dito, para Tio Terez tinha jurado. Nem ao Dito! Custava não ter o

p der de dizer, chega desnorteava, até a cabeça da gente doía. Mas não po entregar o bilhete à Mãe,"nem passar palavra a ela, aquilo não podia, e pecado, era judiação

com o Pai, nem não estava correto. Alguém pod matar alguém, sair briga medonha, Vovó Izidra tinha agourado aqueF coisas, ajoelhada diante do oratório - do demônio,

de Caim e Abel, sangue de homem derramado. Não falava. Rasgava o bilhete, jogava os p dacinhos dentro do rego, rasgava miúdo. E Tio Terez? Ele tinha prometi ao Tio

Terez, então não podia rasgar. Podia estar escrito coisa importa exata, no bilhete, o bilhete não era dele. E Tio Terez estava esperando lá, outro dia, saindo de

detrás das árvores. Tio Terez tinha falado feito nu estória: - "...amigos de todo guerrear, Miguilim, e de não sujeitar as mas?!..." Então, então, não ia, no outro

dia, não ia levar a comida do Pai roça, falava que estava doente, não ia...

Mesmamente que acabavam a arrancação de inhames, aí Mãitina c mava a gente, puxava, resumindo uma conversa ligeira, resmunga aquela feia fala, eles dois tinham de

ir com ela até na porta do acresceu Quê que queria? Pois, vai, mexia em seus guardados, vinha com rodelãó" cobre-de-quarenta na palma-da-mão, demostrava aquele dinheiro

sujo falava, falava, de ventas abertas, toda aprumada em sobres. - "Que quer é cachaça! Que está dizendo dá o cobre, a gente furtar pra ela um g um copo, do restilo

que Pai tem..." O Dito espertava Miguilim para co rem, os dois escapuliam, Mãitina parava de lá, zureta, sapateava, até lev tava de ofensa a saia, presentava o sesso,

aquelas pernas pretas, pernas gras, magras. - "O que é que vocês estão fazendo com a negra?" - a R gritava. - "Olha, ela arruma em vocês malefício de ato, põe o

que p A Rosa temia toda qualidade de praga e de feitiçaria.

¿VjdNURLZÃO E MIGUILIM 5O1

No curral, o vaqueiro Jé já tinha reunido todos os burros e cavalos, que estava tratando, o cavalinho pampa semelhava doente, sangrado na cia e desistido de sacudir

os cabos. - "Aprende, Dito: pisadura que custa mais para sarar, é a no rim e na charneira..." Miguilim gostava de esperar perto do cocho, perto deles - os cavalos

que sopram quente. Nos mais mansos, o vaqueiro Jé deixava a gente montar, em pêlo, um em um. - "Vocês me honrem, ãã!? Não facilitem..." Desde, desde, se ia até lá

adiante, a porto nos coqueiros, se voltava. Devoava uma alegria. Era a coisa melhor. O Dito montava no Papavento, que era baio-amarelo, cor de terra de ivitinga;

Miguilim montava no Preto, que era preto mesmo, mas Mãe queria mudar o nome dele para Diamante. O vaqueiro Jé dava a cada um um ramo verde, para bater. Tomezinho

se escaldava, burrando birra, por não poder montar, ele só. Miguilim todo o tempo quase não pensava no bilhete, resolvia deixar para pensar no outro dia, manhã cedo.

Um que outro gavião, quando pousavam gritavam. Alto, os altos, uns urubus. - "Vai fazer tua casa, arubu! Tempo de chuva envém, arubu!..."Esses iam. - "Eta, apostar

quem corre mais, Miguilim?" - "Não, Dito, vaqueiro Jé disse que a gente deve de não correr..." Despois das piteiras, com aquelas verdes pontas, aquelas flores amarelas,

principiava o pasto, despois do jacarandá-violeta. Tinha aquelas árvores... De já, tinha um boi vermelho, boi laranjo, esbarrado debaixo do alto tamboril. Tantas

cores! Atroado, grosso, o môo de algum outro boi. O Dito então aboiava. Miguilim queria ver mais coisas, todas, que o olhar dele não dava. - "Pai é dono, Dito, de

mandar nisso tudo, ah os gados... Mas Pai desanima de galopar nunca, não vem vaquejar boiadas..." - "pai é dono nenhum, Miguilim: o gadame é dum homem, Sô Sintra,

só que Pai trabalha ajustado em tomar conta, em parte com o vaqueiro Saluz." - "Sei e sei, Dito. Eu sabia... Mas então é ruim, é ruim..." - "Mais, mesmo, também,

Pai não consegue de muito montar, ele não agüenta campeio. Pai padece de escandescência." - "Eu sabia, Dito. Só a mal eu esqueci..." O Dito aboiava de endiabrado

certo, que nem fosse um homem, estremecido. - "Dito, mesmo você acha, eu sou bobo de verdade?" - "~ não, Miguilim, de jeito nenhum. Isso mesmo que não é. Você tem

juízo por outros lados..." Vinham voltando, cruzavam com o vaqueiro Jé, montado no cavalo Cidrão, carregando Tomezinho adiante e com a Chica na garupa. A Chica punha

os dedinhos na boca, os beijos ela jogava. - "Quem ensinou fazer isso, Chica?" - "Mãe mesma que ensinou, ah!" Amável que era tão engraçadinha, a Chica, todas as

vezes, as feições de ser.

- "Dito, como é que a gente sabe certo como não deve de fazer alguma coisa, mesmo os outros não estando vendo?" - "A gente sabe, pronto." Zerró e Julim perseguiam

atrás das galinhas-d"angola. Tomezinho jogou uma pedra na perna do Floresto, que saiu, saindo, cainhando. Tomezinho teve de ir ficar de castigo. No castigo, em tamborete,

ele não chorava, daí deixava de pirraçar: mais de repente virava sisudo, casmurro - tão peque-

titinho assim, e assombrava a gente com uma cara sensata de criminoso. "Rosa, quando é que a gente sabe que uma coisa que vai não fazer é malf to?" - "É quando o

diabo está por perto. Quando o diabo está perto, gente sente cheiro de outras flores..." A Rosa estava limpando açúcar, m xendo no tacho. Miguilim ganhava o ponto

de puxa, numa cuia d"ág repartia com o Dito. - "Mãe, o que a gente faz, se é mal, se é bem, quando é que a gente sabe?" - "Ah, meu filhinho, tudo o que a gente ac

muito bom mesmo fazer, se gosta demais, então já pode saber que é malf to..." O vaqueiro Jé descascava um ananás branco, a eles dava um peda - "Vaqueiro Jé: malfeito

como é, que a gente se sabe?" - "Menino n carece de saber, Miguilim. Menino, o todo quanto faz, tem de ser mesmo malfeito..." O vaqueiro Saluz aparecia tangendo

os bezerros, as vacas q berravam acompanhavam. Vaqueiro Saluz vinha cantando bonito, ele e valente geralista. A ele Miguilim perguntava. - "Sei se sei, Miguilim?

N so nunca imaginei. Acho quandos os olhos da gente estão querendo olh para dentro só, quando a gente não tem dispor para encarar os outr quando se tem medo das

sabedorias... Então, é mal feito." Mas o Dito, ouvir, ouvir, já se invocava. "Escuta, Miguilim, esbarra de estar pergunta do, vão pensar você furtou qualquer trem

de Pai." - "Bestagem. O c que eu furtei algum!" - "Olha: pois agora que eu sei, Miguilim. Tu quanto há, antes de se fazer, às vezes é malfeito; mas depois que está

feit a gente fez, aí tudo é bem-feito..." O Dito, porque não era com ele. Fo com ele, desse jeito não caçoava.

Desde estavam brincando de jogar malha, no pátio, meio de tardin Era com dois tocos, botados em pé, cada um de cada lado. A gente tinha derrubar, acertando com uma

ferradura velha, de distância. Duma band Dito, mais vaqueiro Saluz, da outra Miguilim mais o vaqueiro Jé. Mas guilim não dava para jogar direito, nunca que acertava

de derribar. - mal não, Miguilim, hoje é dia de são-gambá: é de branco perder e pr ganhar..." - o vaqueiro Jé consolava. Mas Miguilim não enxergava be toco, de certo

porque estava com o bilhete no bolso, constante que em Terez não queria pensar. Essa hora, Pai tinha voltado da roça, estav dentro, cansado, deitado na rede macia

de buriti, perto de Mãe, como chilava. Miguilim forcejava, não queria, mas a idéia da gente não tinha cho. Aquilo, aquilo. Pensamentos todos desciam por ali a baixo.

Então, não queria, não ia pensar - mas então carecia de torar volta: prestar m atenção só nas outras coisas todas acontecendo, no que mais fosse bon e tudo tinha

de ser bonito, para ele não pensar - então as horas daq dia ficavam sendo o dia mais comprido de todos... O Gigão folgai com Tomezinho, os dois rolavam no chão,

em riba da palha. Aquele fino dos sanhaços e sabiás entorpecia, gaturamo já tinha ido dormir, em quando só um bem-te-vi que era que ainda gritava. Zerró, Julim e

5 Nome estavam deitados, o tempo todo - conforme podia ser notícia

;~-1ANUELZÃO E IVt1GUILIM 5O3

chuva: se diz que, chuva vesprando, cachorro soneja muito. Mas Caráter, Catita, Leal e Floresto corriam espaço, até muito por longe, querendo pegar as bobagens do

vento. Miguilim pensava a conversa do Dito. Quando ODito falou, aquilo devagar ainda podia parecer justo, o Dito sabia tanta coisa tirada de idéia, Miguilim se

espantava. Menos agora. Agora, ele excogitava, cismava que não era só assim, o do Dito, achava que era o contrário. A ver, com ele Miguilim, era o contrário. A coisa

mais difícil que tinha era a gente poder. saber fazer tudo certo, para os outros não ralharem, não quererem castigar. De primeiro, Miguilim tinha medo dos bois,

das vacas costeadas. Pai bramava, falava: - "Se um sendo medroso, por isso Ogado te estranha, rês sabe quando um está com pavor, qualquer receiozinho, então capaz

mesmo que até a mansa vira brava, com vontades de bater..." Pois isso, outra vez, Miguilim sabia que a gente não tivesse medo não tinha perigo, não se importou mais,

andou logo por dentro da boiada, duma boiada chegada, poeira de boi. Daí, foi um susto, veio Pai, os vaqueiros vieram, com as varas, carregaram com ele Miguilim

pra o alpendre, passavam muito ralho. - "Menino, diabo, demonim! Tu entra no meio desse gado bruto, que é outro, tudo brabeza dos Gerais?! Sei como não sentaram

chifre, não te espisaram!..." De em diante, Miguilim tudo temeu de atravessar um pasto, a tiro de qualquer rês, podia ser brava podia ser mansa, essas coisas. Mas

agora Miguilim queria merecer paz dos passados, se rir seco sem razão. Ele bebia um Bolinho de velhice.

- "Você hoje está honrador, Miguilim, assoprado solerte!" Vaqueiro Saluz era que estava para vadiar, desusado de vaqueiro. Miguilim não queria ficar sozinho de coisa

nenhuma. Agora jogavam peteca, à toa. Vaqueiro Saluz fez uma peteca de palha-de-milho, espetou penas de galinhas. A Chica e Tomezinho divertiam com os bezerros,

Tomezinho apartava um mais sereno, montava, de primeiro Miguilim também gostava daquilo. Os bezerros também brincavam uns com os outros, de dar pinotes, os coices,

e marradas - zupa que estralavam, os garrotinhos se escornando, chifreando - conforme fazem esse sistema. Tinha uma bezerrinha, tão nascida pequena, a filha da Atucã,

e era aspra, zangosa, feito uma vaquinha brava: investia de lá, vinha na Chica. - "Nem, nem, nem, Tucaninha? Me quer-bem de me matar?!" A Chica nunca aceitava medo

de nada. O Dito botava um milho para os cavalos. Sobreescurecia. Devoavam em az os morcegos, que rodopeiam. O vaqueiro Jé acendia um foguinho de sabucos, quase encostado

na casa, o fogo drala bonito, todos catavam mais sabucos, catavam lenha para se queimar. Um cavalo vinha perto, o Dito passava mão na crina dele. A gente nem esperando,

via vaga-lume principiando pisca. - "Teu lume, vaga-lume?" Eram tantos. Sucedeu um vulto: de ser a coruja-branca, asas tão moles, passou para perto do paiol, o vôo

dela não se ouvia. - "Ri aqui, Xandoca velha, que eu te sento bala!..." De trás de lá, no mato da grota, mãe-da-lua cantava: - "Floriano, foi, foi, foi!..."Migui-

5O¢ JOÃO GUIMARÃES ROSA ~ F[CÇÀO COMPL

lim seguia o existir do cavalo, um cavalo rangendo seu milho. Aquele ca lo arreganhava. O vaqueiro Saluz contava duma caçada de veado, no Pa do Perau, em beiras.

Estava na espera melhor, numa picada de sarna baias, samambaia alta, onde algum roçado tinha tido. Veado claro do c po: um suassu-tinga, em era. Vaqueiro Saluz produzia:

- "O bicho a - ele ganhou uma dianteira... Os cachorros maticavam, piando sepa dos: -Piu, piu... Uão, uão, uão..."A cachorrada abre o eco, que ningué tem mão...

Veado foi acuado num capão-de-mato, não quis entrar no to... Aí o veado tomou o chumbo, ajoelhou pulou de lado, por riba da mambaia... A gente abria o veado, esvaziava

de tripas e miúdos, mó de fic leve p"ra se carregar. Seo Aristeo estava lá, divertido. - "Você inda ap ceia de caçar, Miguilim. Quer vir junto?" Miguilim queria,

não queria. "Quem sabe um dia eu quero. Pai vai me levar..." O vaqueiro Jé, pra o pit pegava um tição. Tomezinho assanhava as sombras no nu da pared A noite, de

si, recebia mais, formava escurão feito. Daí, dos demais, de tudo vaga-lume. - "Olha quanto mija-fogo se desajuntando no ar, br xolim deles parece festa!" Inçame.

Miguilim se deslumbrava. - "Chic vai chamar Mãe, ela ver quanta beleza..." Se trançavam, cada um como q se rachava, amadurecido quente, de olho de bago; e as linhas

que riscava o comprido, naquele uauá verde, luzlino. Dito arranjava um vidro vaza para guardar deles vivendo. Dito e Tomezinho corriam no pátio, queren do pegar,

chamavam: - "Vaga-lume, lume, lume, seu pai, sua mãe, estã aqui!..." Mãe minha Mãe. O vaga-lume. Mãe gostava, falava, afagand os cabelos de Miguilim: - "O lumeio

deles é um acenado de amor... Um cavalo se assustava, com medo que o vaga-lume pusesse fogo na noite Outro cavalo patalava, incomodado com seu corpo tão imóvel.

Um vaga lume se apaga, descendo ao fundo do mar. - "Mãe, que é que é o m Mãe?" Mar era longe, muito longe dali, espécie duma lagoa enorme, u mundo d"água sem fim,

Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, susp rava. - "Pois, Mãe, então mar é o que a gente tem saudade?" Miguil" parava. Drelina espiava em sonho, da janela. Maria

Pretinha e a Rosa ti nham vindo também.

Mas chegava a noite de dormir, Miguilim esperdiçava as coisas todas d dia. O Dito guardou debaixo da cama a garrafa cheia de vaga-lumes. "Miguilim, você hoje não

tirou calça." - "Amola não, Dito. Tou cansa do." Mas antes tinha carecido de lavar os pés: quem vai se deitar em estad sujo, urubu vem leva. Também, tudo que se

fazia transtornava preceito Amanhã, Pai estava lá na roça... O Dito sabia não, deitado no canto. Todos outros pensamentos, menos esse, o Dito pensava. Ele ainda

estava deitadd de costas, vez em quando fungava um assopro brando, já devia de ter rezado suas três aves-marfas sem rumor. Agora, o que era que ele pensava? Essas

horas, bem em beira do sono, o Dito, mesmo irmão, mesmo ali encostado, na cama, e ficava parecendo quase que outra pessoa, um estranho,

¡VIANUELZÃO E IVtIGUILIM 5O5

dividido da gente. O Dito era espertadozinho, mas acomodado. Nunca que ele falava por mal. - "Dito?" - "O que, Miguilim?" - "Nu só é que a gente não deve de dormir,

anjo-da-guarda vai s"embora... Mas calça a gente pode não se tirar..." - "Eu sei, Miguilim." O Dito resumia de nada. O Dito não brigava de verdade com ninguém, toda

vez de brigar ele economizava. Miguilim sempre queria não brigar, mas brigava, derradeiramente, com todos. Tomara a gente ser, feito o Dito: capaz com todos horários

das pessoas... - "Dito? Não tiro a calça hoje, pois porque foi uma promessa que eu fiz..." - "Uê, Miguilim..." Ele não acreditava? - "Miguilim? Foi pra as almas-do-purgatório

que você fez?" O Dito se rebuçava. Miguilim também se rebuçava. O bilhete estava ali na algibeira, até medo de botar a mão, até não queria saber, amanhã cedo ele

via se estava. Rezava, rezava com força; pegava um tremor, até queria que brilhos doessem, até queria que a cama pulasse. Conseguia era outro medo, diferente. O

Dito já tinha adormecido. O que dormia primeiro, adormecia. O outro herdava os medos, e as coragens. Do mato do Mutum. Mas não era toda vez: tinha dia de se ter

medo, ocasião, assim como tinha dia de mão de tristeza, dia de sair tudo errado mesmo - que esses e aqueles a gente tinha de atravessar, varar da outra banda. Cuidava

de outros medos.

Das almas. Do lobisomem revirando a noite, correndo sete-portelos, as sete-partidas. Do Lobo-Afonso, pior de tudo. Mal, um ente, Seo Dos-Matos Chimbamba, ele Miguilim

algum dia tinha conhecido, desqual, relembrava metades dessa pessoa? Um homem grosso e baixo, debaixo de um feixe de capim seco, sapé? - homem de cara enorme demais,

sem pescoço, roxo escuro e os olhos-brancos... Pai soubesse que ele tinha conversado com Tio Terez? Ai, mortes! -? Rezava. Do Pitorro. Um tropeiro vinha viajado,

sozinho, esbarrava no meio do campo, por pousar. Aí, ele enxergava, sentado no barranco, homenzinho velho, barbim em queixo, peludo, barrigudo, mais tinha um chapéu-de-couro

grande na cabeça, homem esse assoviava. Parecia veredeiro em paz. Mas o Homem perguntava se o Tropeiro tinha fumo e palha; mas ele mesmo secundava da algibeira um

cachimbo que tinha, socava de fumo, acendia esquentado. Soltava fumaceira, de dentro indagava, com aquela voz que ia esticando, cada ponto mais perguntadeira, desonrosa:

- "Seor conhece o Pitorro?" Botava outras fumaças: - "Seor conhece o Pitorro?!" E ia crescendo, de desde, transformava um monstro Homem, despropósito. - "Não conheço

Pitorro, nem mãe, nem pai de Pitorro, nem diabo que os carregue em nome de Se" J"us Cristo amém!..." - o Tropeiro exclamava, riscava no chão o signo-salomão, o Pitorro

com enxofres breus desrebentava: ele era o "Menino", era o pé-de-Pato. - "Com Deus me deito, com Deus me levanto!" - jaculava Miguilim; e não pegava de ver a ponta

do sono em que se adormecia.

Tanto que amanheceu, e que as poucas horas se agravaram, pobres peZinhos de Miguilim, no outro dia, caminhando pronto e vagaroso, passeio

5O6 JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COMPL

para o curto do mato, arregalado em sua aflição. Se abobava? Deu ar: Pai hoje estava capinando noutra roça - ah, que era bom! Mas, não, nem não era bom, não remediava.

A outra roça era mais adiante,

o caminho sendo o mesmo, Miguilim tinha por-toda-a-lei de atravessar matinho, lá Tio Terez estava em pé esperando. Consoante que se sobref mava um céu chuvo, dia

feio, bronho. Miguilim carregava à cabeça o ta leirinho. E não chorava. Que ninguém visse, ninguém podia ver: por ele não chorava. Tinha pensado tudo que podia dizer

e não fazer? Não: nha. - "Tio Terez, eu entreguei o bilhete a Mãe, mas Mãe duvidou de dar a resposta..." Ah, de jeito nenhum, podia não, era levantar falso à M não

podia. Mas então não achava escape, prosseguia sem auxílio de desc pa, remissão nenhuma por suprir. Sem tempo mais, sem o solto do temp e o tamanho de tantas coisas

não cabia em cabeça da gente... Ah, me deus, mas, e fosse em estória, numa estória contada, estoriazinha assim e inventando estivesse - um menino indo levando o

tabuleirinho com almoço - e então o que era que o Menino do Tabuleirinho decifrava fazer? Que palavras certas de falar?! - "... Tio Terez, Vovó Izidra vinh raivava,

eu rasguei o bilhete com medo dela tomar, rasguei miudinh tive de jogar os pedacinhos no rego, foi de manhãzinha cedo, a Rosa esta dando comida às galinhas..." -

"Tio Terez, a gente foi a cavalo, costear.. gado nesses pastos, passarinhos do campo muito cantavam, o Dito aboia feito vaqueiro grande de toda-a-idade, um boi rafado

de pretos e verd investiu para bater, de debaixo do jacarandá-violeta, ai, o bilhetezinho se ter e não perder eu perdi..." Mas, aí, Tio Terez não era da estória,

aí pega escrevia outro bilhete, dava a ele outra vez; tudo, pior de novo, rec meçava. - "Tio Terez, eu principiei querer entregar a Mãe, não entregu inteirei coragem

só por metade..." Ah, mas, se isso, Tio Terez não desa mava de nada, recrescia naquela vontade estouvada de pessoa, agarrava braço dele, falava, falava, falava,

não desistia nenhum. Nenhum jeito! A ra Miguilim esbarrava, respirava mais um pouco, não queria chorar p não perder seu pensamento, sossegava os espantos do corpo.

E não ti outro caminho, para chegar lá na roça do Pai? Não tinha, não. Miguilirrt ia. Ia, não se importava. Tinha de ser lealdoso, obedecer com ele mes obedecer

com o almoço, ia andando. Que, se rezasse, sem esbarrar, o te po todo, todo tempo, não ouvia nada do que Tio Terez falasse, ia anda rezava, escutava não, ia andando,

ia andando... Entrava no mato. Era aq le um mato calado. Miguilim rezava, sem falar alto. Deus vigiava t com traição maior, Deus vaquejava os pequenos e os grandes!

E era na ta que o Tio Terez ia aparecer? Mas não era.

Tio Terez saía de suas árvores, ousoso macio como uma onça, vi para cima de Miguilim. Miguilim agora rezava alto, que doideira era aq la? E nem não pôde mais, estremeceu

num pranto. Sacudia o tabuleir na cabeça, as lágrimas esparramaram na cara, sufocavam o fôlego da

N[pNUEL7_AO E MIGUILIM 9O]

ele não encarava Tio Terez e rezava. - "Mas, Miguilim, credo que isso, quieta!? Quê que você tem, que foi?!" - "Tio Terez, eu não entreguei o bilhete, não falei

nada com Mãe, não falei nada com ninguém!" - "Mas, por que, Miguilim? Você não tem confiança em mim?!" - "Não. Não. Não! O bilhete está aqui na algibeira de cá,

o senhor pode tirar ele outra vez..." Tio Terez duvidava um espaço, depois recolhia o bilhete do bolso de Miguilim, Miguilim sempre com os bracinhos levantados,

segurando na cabeça o tabuleirinho com a comida, outra vez quase não soluçava. Tio Terez espiava o bilhete, que relia, às tristes vezes, feito não fosse aquele que

ele mesmo tinha fornecido. Daí olhou para Miguilim, de dado relance, tirou um lenço, limpou jeitoso as lágrimas de Miguilim. - "Miguilim, Miguilim, não chora, não

te importa, você é um menino bom, menino direito, você é meu amigo!" Tio Terez estava com a camisa de xadrezim, assim o tabuleiro na cabeça empatava de Tio Terez

poder dar abraço. - "Você é que está certo, Miguilim. Mais não queira mal ao seu Tio Terez, nem fica pensando..." Tio Terez falava tantas outras coisas; comida de

Pai não estava por demais esfriando? Tio Terez dizia só tinha vindo por perto para dar adeus, pois que ia executar viagem, por muito distante. Tio Terez beijava

Miguilim, de despedida, daí sumia por entre o escuro das árvores, conforme que mesmo tinha vindo.

Miguilim chorava um resto e ria, seguindo seu caminhinho, saía do mato, despois noutro mato entrava, maior, a outra rocinha de Pai devia de se ser mais adiante por

ali, ao por pouco. E Miguilim andava aligeirado, desesfogueado, não carecia mais de pensar! Só um caxinguelê ruivo se azougueou, de repentemente, sem a gente esperar,

e já de ah subindo p"la árvore de jequitibá, de reta, só assim esquilando até em cima, corisco, com o rabãozinho bem esticado para trás, pra baixo, até mais comprido

que o corpo - meio que era um peso, para o donozinho dele não subir mais depressa do que a árvore... Miguilim por um seu instante se alegrou em si, um passarinho

cantasse, dim e dom.

Mas o mato mudava bruto, no esconso, mais mato se fechando. Miguilim andara demais longe, devia de ter depassado o ponto da roça nova. Esbarrou. Tinham mexido em

galho - mas não era outro serelepe, não.

Susto que uns estavam conversando cochicho, depressa, fervido, davam bicotas. Vulto de vaqueiro encourado, acompanhado de outro, escorregou pelas folhagens, de sonsagato,

querendo mais escondido. Desordem de ameaça, que disse-disse, era lá em cima: um frito de toicinho, muitos olhos estalavam, no mioloso. E destravavam das árvores,

reputando; vindo nele? -A cô!-Miguilim tinha não agüentado mais, tiçou tabuleiro no chão, e abriu correndo de volta, aos gritos de quero mãe, quero pai, foi - como

que nem sabia como que - mais corria.

De supetão, o Pai - aparecido - segurava-o por debaixo dos braços, Miguilim gritava e as perninhas ainda queriam sempre correr, o Pai ele não

Sa8 JOÃO GUIMARÃES ROSA ~ FICÇÃO COMP

tinha reconhecido. Mas Pai carregava Miguilim suspendido alto, che com ele na cabeceira da roça, dava água na cabaça, pra beber. Migu bebia, chorava e cuspia. -

"Que foi que foi, Miguilim? Qu" é de o al ço?" Junto com o Pai, estava o outro homem, sem barba nenhuma, pegava na mão de Miguilim, e ria para ele, com os olhos

alumiados. Q do Miguilim contou o caso do mato, Pai e o outro espiaram o ar, to sérios, tornaram a olhar para Miguilim. Com Pai ali, Miguilim tinha m não, isto é

tinha e não tinha. - "A gente vamos lá!" - o Pai disse. estavam com as armas. Miguilim vinha caminhando, meio atrás deles d

Mas, que mal iam chegando lá onde tinha sido aquele lugar, e Pai outro homem desbandeiravam de rir, se descadeiravam, tomavam bom panto: bichos macacos se escapuliam

de pra toda banda, só guinchos e cussão de assovio, cererê de mão em mão no chão, assunga rabo, rabo q até enroscavam para dependurar, quando empoleiravam, mais

aqueles los macünhos, de árvore em árvore - tudo mesmo assim ainda queri ver, e pouco fugiam. Mas, no alto meio, agarrado com as mãos em d galhos, senhor um mandava,

que folhassem e azulassem mostrando as c tas com toda urgência. Capela de macacos! Miguilim entendia, juntou pernas e baixou a cara, Pai agora o ia matar, por ter

perdido o caráter, tado fora o almoço. Mas Pai, se rindo com o outro homem, disse, sem. tura de palavras, sem zanga verdadeira nenhuma: - "Miguilim, você é nhas

vergonhas! Mono macaco pôde mais do que você, eles tomara comida de suas mãos..." E não quiseram matar macacos nenhuns. T bém, não fazia grande mal, ia começar a

chover, careciam mesmo de vql para casa. Miguilim pegou o tabuleirinho - os macacos tinham comid de-comer todo.

Sofria precisão de conversar com o Dito, assim que,o Pai terminas contar tantas vezes a estória dos macacos, todos riam muito, mas ele guilim não se importava, até

era bom que rissem e falassem, sem ralhar; "Miguilim? Se encontrou com padrinho Simão, correu ensebado, vea Chorou a água de uns três cocos..." - Pai caçoava. Quando

Pai caçoa então era porque Pai gostava dele.

Mas carecia de ficar sozinho com o Dito. Tinha aprendido o segred uma coisa, valor de ouro, que aumentava para sempre seu coração. - to, você sabe que quando a gente

reza, reza, reza, mesmo no fogo do m o medo vai s"embora, se a gente rezar sem esbarrar?!" O Dito olhava ele, desconvindo, só que não tinha pressa de se rir: - "Mas

você não reu dos macacos, Miguilim, o que Pai disse?" Agora via que nisso não pensado: não podia contar ao Dito tudo a respeito do Tio Terez, nem ele Miguilim tinha

sido capaz de não entregar o bilhete, e o que Tio T tinha falado depois, de louvor a ele, tudo. Ah, aí Miguilim nunca pe que ia penar tanto, por não dizer, cão de

que tinha de ficar calado! O D escorria no nariz, com um defluxo, ele repensava, muito sério. Tirou

[VIANUELZÃO 8 MIGUILIM SOJ

pedaço de rapadurinha preta do bolso, repartiu com Miguilim. Depois, falou: - "Mas eu sei, que é mesmo. Aquilo que você perguntou." - "Então, quando você está com

medo, você também reza, Dito?" - "Rezo baixo, e aperto a mão fechada, aperto o pé no chão, até doer..." - "Por que será, Dito?" - "Eu rezo assim. Eu acho que é por

causa que Deus é corajoso."

O Dito, menor, muito mais menino, e sabia em adiantado as coisas, com uma certeza, descarecia de perguntar. Ele, Miguilim, mesmo quando sabia, espiava na dúvida,

achava que podia ser errado. Até as coisas que ele pensava, precisava de contar ao Dito, para o Dito reproduzir, com aquela força séria, confirmada, para então ele

acreditar mesmo que era verdade. De donde o Dito tirava aquilo? Dava até raiva, aquele juízo sisudo, o poder do Dito, de saber e entender, sem as necessidades. Tinha

repente de judiar com o Dito: - "Mas eles não deixam você levar comida em roça, acham você não é capaz..." O Dito não se importava. Comia o restante de rapadura,

com tanto gosto, depois limpou a mão na roupa. - "Miguilim - ele disse - você lembra que seo Aristeu falou, os macacos conversaram? Eu acho que foi de verdade."

Aí, começava a chover, chuva dura entortada, de chicote. Destampava que chovia, da banda de riba. O mato do morro do Mutum em branco morava.

Pai ainda estava na sala, acabando almoço com o outro homem, o vaqueiro Saluz disse: topara com seo Deográcias. O Patori, filho dele, tinha matado assassinado um

rapaz, dez léguas de lá do Cocho, noutro lugar. Vaqueiro Saluz redondeava: - "Que faz dias, que foi..." Seo Deográcias estava revestido de preto, envelhecido com

os cabelos duma hora para outra, percorrendo todas as veredas, e dando aviso às pessoas, dizendo que o Patori não queria assassinar, só que estavam experimentando

arma-defogo, a garrucha disparou, o rapazinho morreu depressa demais. O Patori esquipou no mundo, de si devia de estar vagando, campos. Seo Deográcias pedindo, a

todos, para cercarem sem brutalidade. Seo Deográcias só perguntava, repetidas, se não achavam que o Patori, sendo sem idade e sem culpa governada, não devia de escapar

de cadeia, se não chegava ser mandado para a Marinha, em Pirapora, onde davam escola de dureza para meninos apoquentados.

O homem que tinha vindo junto, Pai dizia que ele era o Luisaltino. Conhecido bom amigo, deixado de trabalhar na Vereda do Quússo, meeiro, mas agora ia passar os

tempos morando em casa, plantar roça com Pai. E era até bom, outro homem de respeito, mais garantido. Carecia de se pensar naqueles criminosos que andavam soltos

nos Gerais, feito, por um exemplo, o Brasilino Boca-de-Bagre. Mãe, Vovó Izidra, todas acho que concordavam.

Esse Luisaltino aceitou água para beber; mas primeiro bochechou, com um gole, e botou fora. Será que tinha facão? Miguilim espiou aberto para o Dito: do fim da conversa

de seo Aristeu se lembrava. Será que tinha espir-

51O JOÃO GUIMARÃES ROSA ~ PICÇÃO COMP

rado, três vezes? Miguilim não reparara. Mas não podia que ser? De Assunto de Miguilim, se assustando: se devia de dar aviso ao Dito, avis todos - para ninguém não

comer coisas nenhumas, o que o Luisal oferecesse. E bom que o Luisaltino ainda não dormia lá, naquela no mais primeiro tinha de ir buscar a trouxa e os trens, numa

casa, na beire Ranchório. Só retardava de beber o café, e que a chuva melhorasse.

A Chica também estava esperando: tinha tirado amolecido mais dentinho de diante, quando estiasse careciam de jogar o dente no telh para ela, dizendo: - "Mourão,

Mourão, toma este dente mau, me dá dente são!..."A Chica agora ria tão engraçado; então dizia que, fosse me no-homem, batia no Dito e em Miguilim. Drelina mandava

que ela tive modo. Drelina ficava olhando muito para Luisaltino, disse depois que era um moço muito bonito apessoado. Tomezinho estava no alpen conversando com um

menino chamado o Grivo, que tinha entrado pará esconder da chuva. Esse menino o Grivo era pouquinho maior que guilim, e meio estranho, porque era pobre, muito pobre,

quase que n não tinha roupa, de tão remendada que estava. Ele não tinha pai, mor sozinho com a mãe, lá muito para trás do Nhangã, no outro pé do morro única coisa

que era deles, por empréstimo, era um coqueiro buriti e olho-d"água. Diziam que eles pediam até esmola. Mas o Grivo não era dão. Mãe dava a ele um pouco de comer,

ele aceitava. Ia de passagem, c regando um saco com cascas de árvores, encomendadas para vender. "Você não tem medo? O Patori matou algum outro, anda solto doido

p aí..." - Miguilim perguntava. O Grivo contava uma história compr diferente de todas, a gente ficava logo gostando daquele menino das p uras sozinhas. E disse que

queria ter um cachorro, cachorrinho peque que fosse, para companhia com ele, mas a mãe não deixava, porque tinham de comer para dar. Mas eles tinham galinhas. -

"Sem cacho pra tomar conta, raposinha não pega?" - o Dito perguntava. - "De tar nha, a gente põe as galinhas para dentro de casa..." - "Dentro de sua c chove?" -

perguntava Miguilim. - "Demais." O Grivo tossia, muito. rá que ele não tinha medo de morrer?

Maria Pretinha trazia café para o vaqueiro Saluz. O que sobrava, o vo também bebia. Maria Pretinha sabia rir sem rumor nenhum, só aque dentes brancos se proseavam.

Uma hora ela perguntou pelo vaqueiro - "Ei, campeando fundo nesse Gerais... Tem muito rancho por aí, pra de chuva se esconder!" Mas o vaqueiro Jé tinha levado capanga

com çoca, fome nenhuma não passava. Os cachorros gostavam do sistema. Grivo, vinham para perto, abanando rabo, as patas eles punham no joe dele. Tomezinho tinha

furtado uma boneca da Chica, escondeu por de xo duma cangalha. A Chica queria bater, Tomezinho corria até lá na va. O Gigão corria junto, sabia conversar, com uns

latidos mais fortes, molhar o corpo ele mesmo não se importava - "Dito, eu vou fala

jy/ANUELZÃO E MIGUILIM Sll

Pai, pra não deixar esse moço morar aqui com a gente." - "Fosse eu, não falava." - "Pois por que, Dito? Você não tem medo de adivinhados?" - "Pai gosta que menino

não fale nada desta vida!" Mas Miguilim mesmo não tinha certeza, cada hora tinha menos, cada hora menos. O Dito mais tinha falado: - "Luisaltino não é ruivo. Seo

Aristeu não falou? Pai é que é ruivo..." E mesmo Miguilim achava que aquelas palavras de seo Aristeu também podia ser só parte de uns versos muito antigos, que se

cantavam. Agorinha, tinha vontade era de conversar muito com o Dito e o Grivo, juntos, a chuvinha ajudava a gente a conversar. O que ao Grivo ele estava dizendo:

que a cachorrinha mais saudosa deste mundo, a Cuca Pingo-deOuro, era que o Grivo devia de ter conhecido.

Quando o Luisaltino veio de ficada, trouxe um papagaio manso, chamado Papaco-o-Paco, que sabia muitas coisas. Pai não gostava de papagaio; mas parece que desse um

não se importou, era um papagaio que se respeitava. Penduraram a alcândora dele perto da cozinha, ele cantava: "Olerê lerê lerá, morena dos olhos tristes, muda esse

modo de olhar..."Comia de tudo.

Miguilim agora ia todo dia levar comida na roça, para Pai e Luisaltino. Não pensava em Tio Terez nem nos macacos; mas também ia com as algibeiras cheias de pedras.

Luisaltino prometeu dar a ele uma faquinha. Luisaltino agradava muito a todos. Disse que o Papaco-o-Paco era da Chica, mas o Papaco-o-Paco não gostava constante

da Chica, nem de pessoa nenhuma, nem dos meninos, nem do gato Sossõe, nem dos cachorros, nem dos papagaios bravos, que sovoavam. Só gostava era da Rosa, estalava

beijos para a Rosa, e a Rosa sabia falar boazinha com ele: - "Meu Cravo, tu chocou no meio dos matos, quantos ovinhos tinha em teu ninho? Onça comeu tua mãe? Sucruiú

comeu teu pai? Onde é que estão teus irmãozinhos?" E Pa-paco-o-Paco estalava beijos e recantava: "Estou triste mas não choro. Morena dos olhos tristes, esta vida

é caipora..."Cantava, cantava, sofismado, não esbarrava. A Rosa disse que aquela cantiga se chamava "Mariazinha".

Com taquara e cana-de-flecha, Luisaltino ensinou a fazer gaiolas. O Dito logo aprendeu, fazia muito bem feitinhas, ele tinha jeito nas mãos para aprender. As gaiolas

estavam vazias, sanhaço e sabiá do peito vermelho não cantavam presos e o gaturaminho se prendesse morria: mas Luisaltino falou que com visgo e alçapão mais tarde

iam pegar passarim de bom cantar: patativo, papa-capim, encontro. Luisaltino conversava sozinho com Mãe. ~ Dito escutou. - "Miguilim, Luisaltino está conversando

com Mãe que ele conhece Tio Terez..." Mas Miguilim desses assuntos desgostava. De certo que ele não achava defeito nenhum em Luisaltino.

Aqueles dias passaram muito bonitos, nem choveu: era só o sol, e o verde, veranico. Pai ficava todo tempo nas roças, trabalhava que nem um negro do cativeiro - era

o que Mãe dizia. E era bom para a gente, quando Pai não estava em casa. A Rosa tinha deitado galinhas: a Pintinha-amarela-na-

cabeça, com treze ovos, e a Pintadinha com onze - e três eram ovo perdiz, silpingados de roxo no branco; agora não ia ter perigo de me dar piolho nelas, no choco.

Também estava chegando ocasião de se f presépio, Vovó Izidra mandava vir musgo e barba-de-pau, até o Griv trazer. Vaqueiro Saluz pegou um mico-estrela, se pôs p"ra

morar numa bacinha alevantada na parede, atrás da casa. A Chica brincou uma fes batizar três bonecas de mentira, para Miguilim, o Dito e Tomezinho s os padrinhos.

Depois, os vaqueiros estavam chegando de campear, rel vam: - "Os cachorros deram com um tatu-canastra, tão grande! O canastra joga pedra e terra, tanta, que ninguém

chega atrás. Alguém su se em riba dele, ele não esbarrava de cavacar..." - "Ô bicho que t força!" - o vaqueiro Jé aprovava. Disse que alguns não comiam tatunastra,

porque a carne dele tem gosto de flor. - "Mas a carne dos ou tatus dá uma farofa boa!" Miguilim então se ria, de tanta poetagem. O queiro Jé, sem-sabido, perguntou:

- "Ei, eu fizer a farofa, Miguilim, come? Você tem pena do tatu mais não?" - "Pois tenho, demais! Só q agora eu não estava pensando..." Daí Miguilim ficou com um

ódio, p aquilo terem perguntado. E o Dito, em encoberto, contou que o vaque Jé tinha abraçado a Maria Pretinha. Doideiras.

A vaca Sinsã pariu um bezerrinho branco, e a Tapira e a Veluda parir cada-uma uma bezerrinha, igualzinhas das cores delas duas. Siarlinda, lher do vaqueiro Saluz,

veio, trouxe requeijão moreno e doce-de-leite q ela fez. Siarlinda contou estórias. Da Moça e da Bicha-Fera, do Papag Dourado que era um Príncipe, do Rei dos Peixes,

da Gata Borralheira, Rei do Mato. Contou estórias de sombração, que eram as melhores, para estremecer. Miguilim de repente começou a contar estórias tiradas da c

beça dele mesmo: uma do Boi que queria ensinar um segredo ao Vaquei outra do Cachorrinho que em casa nenhuma não deixavam que ele mor se, andava de vereda em vereda,

pedindo perdão. Essas estórias pegava Mãe disse que Miguilim era muito ladino, despois disse que o Dito ta bém era. Tomezinho desesperou, porque Mãe tinha escapado

de falar n nome dele; mas aí Mãe pegou Tomezinho no colo, disse que ele era u fiozinho caído do cabelo de Deus. Miguilim, que bem ouviu, raciocino apreciando aquilo,

por demais. Uma hora ele falou com o Dito - que Mã ãs vezes era a pessoa mais ladina de todas.

Tudo era bom, às tardes a gente a cavalo, buscando vacas. Dia-de-d mingo, cedinho escuro, no morno das águas, Pai e Luisaltino iam lav corpo no poço das pedras,

menino-homem podia ir junto, carregavam pe daço de sabão de fruta de tingui, que Mãitina tinha cozinhado. Luisaltin cortava pau-de-pita: abraçado com o leve desse,

e com as cabaças amarra das, não se afundava, todo o mundo suspendido n"água, se aprendendo nadar. Naquele poço, corguinho-veredinha, não dava peixe, só fingindo

d fazer de conta era que se pescava. Mas Vovó Izidra teve de ir dormir n

Njp~UtiLLAO E MIGUILIM 5~3

Vereda do Bugre, para servir de parteira; sem Vovó Izidra a casa ainda ficava mais alegrada. Aí a Rosa levou os meninos todos, variando, se pescou. Só só piabas,

e um timburé, feio de formas, com raja, com aquela boquinha esquisita, e um bagre - mole, saposo, arroxeado, parecendo uma posta de carne doente. Mas se pescou;

foi muito divertido, a gente brincava de rolar à toa no capim dos verdes. E vai, veio uma notícia meio triste: tinham achado o Patori morto, parece que morreu mesmo

de fome, tornadiço vagando por aquelas chapadas.

Pai largou de mão o serviço todo que tinha, montou a cavalo,.então carecia de ir no Cocho, visitar seo Deográcias, visita de tristezas. Então, aquela noite, sem

Pai nem Vovó Izidra, foi o dia mais bonito de todos. Tinha lua-cheia, e de noitinha Mãe disse que todos iam executar um passeio, até aonde se quisesse, se entendesse.

Eta fomos, assim subindo, para lá dos coqueiros. Mãe ia na frente, conversando com Luisaltino. A gente vinha depois, com os cavalos-de-pau, a Chica trouxe uma boneca.

A Rosa cantava silêncio de cantigas, Maria Pretinha conversava com o vaqueiro Jé. Até os cachorros vinham - tirante Seu-Nome, que esse Pai tinha conduzido com ele

na viagem. Quando a lua subiu no morro, grandona, os cachorros latiam, latiam. Mãitina tinha ficado em casa, mas ganhou gole de cachaça. Vaqueiro Saluz também ganhou

do restilo de Pai, mas veio mais a gente. Drelina disse para a lua: - "Lua, luar! Lua, luar!" Vaqueiro Saluz disse que era o demônio que tinha entrado no corpo do

Patori; aí o Dito perguntou se Deus também não entrava no corpo das pessoas; mas o vaqueiro Saluz não sabia. Contava só que todas patifarias de desde menino pequeno

o Patori aprontava: guardava bosta de galinha nas algibeiras dos outros, inventava Jélis, lelê de candonga, semeava pó de joão-mole na gente, para fazer coçar. O

Dito semelhava sério. - "Dito, você não gosta de se conversar do Patori, que morreu?" O Dito respondeu: - "Estou vendo essa lua." Assim era bom, o Dito também gostasse.

- "Eu espio a lua, Dito, que fico querendo pensar muitas coisas de uma vez, as coisas todas..." - "É luão. E lá nela tem o cavaleiro esbarrado..." - o Dito assim

examinava. Lua era o lugar mais distanciado que havia, claro impossível de tudo. Mãe, conversando só com Luisaltino, atenção naquilo ela nem não estava pondo. Uma

hora, o que Luisaltino falou: que judiação do mal era por causa que os pais casavam as filhas muito meninas, nem deixavam que elas escolhessem noivo. Mas Miguilim

queria que, a lua assim, Mãe conversasse com ele também, com o Dito, com Drelina, a Chica, Tomezinho. A gente olhava Mãe, imaginava saudade. Miguilim não sabia muitas

coisas. - "Mãe, a gente então nunca vai poder ver o mar, nunca?" Ela glosava que quem sabe não, iam não, sempre, por pobreza de longe. - "A gente não vai, Miguilim"

- o Dito afirmou: - "Acho que nunca! A gente é no sertào- Então por que é que você indaga?" - "Nada, não, Dito. Mas às vezes eu queria avistar o mar, só para não

ter uma tristeza..." Essa resposta Mãe

514 IOÃO GUIMARÃES ROSA ~ FICÇÃO COMPLE

escutou, prezou; pegou na mão de Miguilim para perto dela. Quando ch garam nos coqueiros, Mãe falou que gostava deles, porque não eram árv re dos Gerais: o primeiro

dono que fez a casa tinha plantado aqueles, p que também dizia que queria ali outros coqueiros altos, mas que n fossem buritis. Mas o buriti era tão exato de bonito!

A Rosa cantava a est ria de um, às músicas, buriti desde que nasceu, de preso dentro da caixi de um coco, até cair de velho, na água azulada de sua vereda dele.

A Rd dizia que podia ensinar a Papaco-o-Pato todo cantar que tencionas Quando a gente voltou, se tornou café, nem ninguém não precisou de faz café forte demais

e

amargoso, só Pai e Vovó Izidra é que bebiam daqu café desgostável. No outro dia, foi uma alegria: a Rosa tinha ensinad Papaco-o-Pato a gritar, todas as vezes: -

"Miguilim, Miguilim, me dá u beijim!..."Até Mãitina veio ver. Mãitina prezou muito o pássaro, deu a e o nome de Quixume; ficou na frente dele, dizendo louvor, fazendo

agacha dos e vênias, depois levantava a saia, punha até na cabeça. - "Miguil Miguilim..."Era uma lindeza.

Mas vem um tempo em que, de vez, vira a virar só tudo de ruim, a gén paga os prazos. Quem disse foi o vaqueiro Saluz, que não se esquecia estória do Patori, e também

perdeu um pé de espora no campeio, e Sia linda achou um dinheiro que ele tinha escondido dela em buraco no ai da parede, e ele estava com dois dentes muito doendo

sempre, disse q hemorróida era aquilo. Depois o Dito aprovou que o tempo-do-ruim mesmo verdade, quando no dia-de-domingo tamanduá estraçalhou o chorro Julim. Notícia

tão triste, a gente não acreditava, mas Pai tro para se enterrar o Julim morto, dependurado no cavalo, ninguém que não esbarrava de chorar. Foi na caçada de anta.

Pai não querendo cont o tamanduá-bandeira se abraçou com o Julim, primeiro estapeava com mão na cara dele, como tamanduá dá sopapos como pessoa. Daí rolar no chão,

aquela unha enorme do tamanduá rasgou a barriga dele, o Jul abraçado sangrado, não desabotoou o abraço - abriu os peitos, ainda rou os olhos. Zerró não pôde ajudar,

nem os outros. Pai matou o band mas teve de pedir a um companheiro caçador que acabasse de matar o lim, mó de não sofrer. Nem não deviam de ter ido! Não eram cachoa

para isso, anteiros eram os de seo Brízido Boi, que caçou também. E ne anta não mataram: ela pegou o carreiro, furtou o caminho, desbestou reta chapada afora, fez

sertão, cachorro frouxou, com a anta, que froux também; mas não puderam matar. Aquele dia, Pai adoeceu de pena. pois, Zerró e Seu-Nome percuravam, percuravam, os

dois eram irmãos Julim. Só o Gigão dormia grande, não fazia nada; e os paqueiros junY que corriam por ali a quatro, feito meninos sem juízo: Caráter, Catita, prado

e Floresto.

Marimbondo ferroou Tomezinho, que danou chorou, Vovó Izidra 1 vou Tomezinho na horta, no luar ofendido espremeu joão-leite, aqu

~q,wuEizno E IVt1GUILfM 5~5

leite azulado, que muito sarava. Mais isso não era coisa nova por si, sempre abelha ou avespa ferroavam algum, e a lagarta tatarana cabeluda, que queima a gente,

tatarana-rata, até em galhos de árvore, e toda-a-vida a gente caía, relava os joelhos, escalavrava, dava topada em pedra ou em toco. Pior foi que o Rio-Negro estava

do outro lado da cerca, lambendo sal no cocho, e Miguilim quis passar mão, na testa dele, alisar, fazer festas. O touro tinha só todo desentendimento naquela cabeçona

preta - deu uma levantada, espancando, Miguilim gritou de dor, parecia que tinham quebrado os ossos da mão dele. Mãe trouxe a mula de cristal, branquinho, aplicou

no lugar, aquela friúra lisinha do cristal cercava a dor para sarar, não deixava inchaço; mas Miguilim gemia e estava com raiva até dele mesmo. O Dito veio perto,

falou que o touro era burro, Miguilim achava que tinha entendido que o Dito queria era mexer - minha-nossenhora! - nem sabia por que era que estava com raiva do

Dito: pulou nele, cuspiu, bateu, o Dito bateu também, todo espantado, com raivas - "Cão!" "Cão!" - no chão que rolaram, quem viu primeiro pensava eles dois estivessem

brincando.

Quando Miguilim de repente pensou, fechou os olhos: deixava o Dito dar, o Dito podia bater o tanto que quisesse, ele ficava quieto, não podia brigar com o Dito!

Mas o Dito não batia. O Dito ia saindo embora, nem insultava, só fungava; decerto pensava que ele Miguilim estava ficando doido. Quem sabe estava? Desabria de vergonha,

até susto, medo. Carecia de não chorar, rezar a Deus o cr"em-deus-padre. Não achava coragem pronta para frentear o Dito, pedir perdão - podia que tão ligeiro o Dito

não perdoasse. E então Miguilim foi andando - a mão que o Rio-Negro machucou nem não doía mais - e Miguilim veio se sentar no tamborete, que era o de menino de-castigo.

A vergonha que sentia era assim como se ele tivesse sobrado de repente ruim leve demais, a modo que todõ esvaziado, carecia de esperar muito tempo, quieto, muito

sozinho, até o corpo, a cabeça se encher de peso firme outra vez; mais não podia. Aquele castigo dado-por-si decerto era a única coisa que valia.

Com algum tempo, mais não agüentava: ia porque ia, procurar o Dito! Mas o Dito já vinha vindo. - "Miguilim, a gente vai trepar no pé-de-fruta..." O Dito nem queria

falar na briga. Ele subia mais primeiro - o brinquedo ele tinha inventado. Antes de subir, botava a camisinha para dentro da calça, resumia o pelo-sinal, o Dito

era um irmão tão bonzinho e sério, todas as coisas certas ele fazia. Lá em cima, bem em cima, cada um numa forquilha de galhos, estavam no meio das folhagens, um

quase defronte do outro, só sozinhos. Estavam ali como escondidos, mas podiam ver o que em volta de casa se passava. O gato Sossõe que rastreava sorrateiro, capaz

de caçar alguma lagartixa: com um zapetrape ele desquebrava a lagartixa, homem de fazer assim até com calango - o calango pequeno verde que é de toda parte, que

entra em mato e vem em beira de morada, mas que vive o diário é no cerrado. Maria Pretinha lavando as vasilhas no rego,

516 JOÃO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COMPL

Papaco-o-Pato cochilando no poleiro, Mãitina batendo roupa na laje lavadouro. - "Dito, você não guarda raiva de mim, que eu fiz?" - "V fez sem por querer, só por

causa da dor que estava doendo..." O Dito fu gava no nariz, ele estava sempre endefluxado. Falava: - "Mais, se v tornar a fazer, eu dou em você, de pontapé, eu jogo

pedrada!..." Migui não queria dizer que agora estava pensando no Rio-Negro: que por que que um bicho ou uma pessoa não pagavam sempre amor-com-amor, amizade de outro?

Ele tinha botado a mão no touro para agradar, e o tou tinha repontado com aquela brutalidade. - "Dito, a gente vai ser sernp amigos, os mais de todos, você quer?"

- "Demais, Miguilim. Eu já fale Com um tempo, Miguilim tornava: - "Você acha que o Rio-Negro e demônio dentro dele, feito o Patori, se disse?" - "Acho não." O que

o Di achava era custoso, ele mesmo não sabia bem. Miguilim perguntava mais da conta. Então o Dito disse que Pai ia mandar castrar o Rio-Negro qualquer jeito, porque

careciam de comprar outro garrote, ele não se mais para a criação, capava e vendia para ser boi-de-lote, boi-boiadeir iam levar nas cidades e comer a carne do Rio-Negro.

Vaqueiro Saluz fala que era bom: castravam no curral e lá mesmo faziam fogo, assavam grãos dele, punham sal, os vaqueiros comiam, com farinha.

Mas, de noite, no canto da cama, o Dito formava a resposta: - "O rui tem raiva do bom e do ruim. O bom tem pena do ruim e do bom... Ass está certo." - "E os outros,

Dito, a gente mesmo?" O Dito não sabia. "Só se quem é bronco carece de ter raiva de quem não é bronco; eles acha que é moleza, não gostam... Eles têm medo que aquilo

pegue e amole neles mesmos - com bondades..." - "E a gente, Dito? A gente?" - gente cresce, uai. O mole judiado vai ficando forte, mas muito mais for Trastempo,

o bruto vai ficando mole, mole..." Miguilim tinha trazido mula de cristal, que acertava no machucado da mão, debaixo das cobert - "Dito, você gosta de Pai, de verdade?"

- "Eu gosto de todos. Por iss que eu quero não morrer e crescer, tomar conta do Mutum, criar um dão enorme."

De madrugada, todo o mundo acordou cedo demais, a Maria Pretin tinha fugido. A Rosa relatava e xingava: - "Foi o vaqueiro Jé que seduzi corjo desgramado! Sempre

eu disse que ela era do rabo quente... Levott negrinha a cavalo, decerto devem de estar longe, ninguém não pega ma O cavalo do vaqueiro Jé se chamava Assombra-Vaca.

O vaqueiro Jé e branco, sarda!, branqueio. Como é que foi namorar completo com a Mar Pretinha? A Rosa também era branca, mas era gorda e meia-velha, não n morava

com ninguém. Quando a Rosa brabeava, desse jeito assim, Pap co-o-Pato também desatinava. Aquilo ele gritava só numa fúria: - " não bebo mais cachaça, não gosto de

promotor! Filho-da-mãe é você! É vb ouviu!? É você!..."

O Dito não devia de ter ido de manhãzinha, ao nascer do sol, espiar

N(ANUELZAO E MIGUILIM 51]

coruja em casa dela, na subida para a Laje da Ventação. Miguilim não quis ir. Era uma coruja pequena, coruja-batuqueira, que não faz ninhos, bota os ovos num cupim

velho, e gosta de ficar na porta - no buraco do cupim - quando a gente vinha ela dava um grito feio - um barulho de chiara: " Cuic-cc"-kikikik!... " e entrava no

buraco; por perto, só se viam as cascas dos besouros comidos, ossos de cobra, porcaria. E ninguém não gostava de passar ali, que é perigoso: por ter espinho de cobra,

com os venenos.

O Dito contou que a coruja eram duas, que estavam carregando bosta de vaca para dentro do buraco, e que rodavam as cabeças p"ra espiar pra ele, diziam: "Dito! Dito!"

Miguilim se assustava: - "Dito, você não devia de ter ido! Não vai mais lá não, Dito." Mas o Dito falou que não tinha ido para ver a coruja, mas porque sabia do

lugar onde o vaqueiro Jé mais a Maria Pretinha sempre em escondido se encontravam. - "Que é que tinha lá, então, Dito?" - "Nada não. Só tinha a sombra da árvore

grande e o capim do campo por debaixo."

Mas no meio do dia o mico-estrela fugiu, correu arrepulando pelas moitas de carqueja, trepou no cajueiro, pois antes de trepar ainda caçou maldade de correr atrás

da perua, queria puxar o rabo dela. Todo o mundo perseguiu ligeiro pra pegar, a cachorrada latindo, Vovó Izidra gritava que os meninos estavam severgonhados, Mãe

gritava que a gente esperasse, que a Rosa sozinha pegava, Drelina gritava que deixassem o bichinho sonhim ganhar a liberdade do mato que era dele, o Papaco-o-Pato

gritava: "Mãe, olha a Chita me beliscando! Ai, ai, ai, Pai, a Chita puxou meu cabelo!..."era copiadinho o choro de Tomezinho. A gente tinha de fazer diligência,

se não já estava em tempo d"os cachorros espatifarem o pobre do mico. Não se pegou: ele mesmo, sozinho por si, quis voltar para a cabacinha. Mas foi aí que o Dito

pisou sem ver num caco de pote, cortou o pé: na cova-do-pé, um talho enorme, descia de um lado, cortava por baixo, subia da outra banda.

- "Meu-deus-do-céu, Dito!" Miguilim ficava tonto de ver tanto sangue. - "Chama Mãe! Chama Mãe!"- o Dito pedia. A Rosa carregou o Dito, lavaram o pé dele na bacia,

a água ficava vermelha só sangue, Vovó Izidra espremia no corte talo de bálsamo da horta, depois puderam amarrar um pano em cima de outro, muitos panos, apertados;

ainda a gente sossegou, todo o mundo bebeu um gole d"água, que a Rosa trouxe, beberam num copo. O Dito pediu para não ficar na cama, armaram a rede para ele no alpendre.

Miguilim queria ficar sempre perto, mas o Dito mandava ele fosse saber todas as coisas que estavam acontecendo. - "Vai ver como é que o mico está." O mico estava

em pé na cabacinha, comendo arroz, que a Rosa dava. - "Quando o vaqueiro Saluz chegar, pergunta se é hoje que a vaca Bigorna vai dar cria." - "Miguilim, escuta o

que Vovó Izidra conversar com a Rosa, do vaqueiro Jé mais a Maria Pretinha." O Dito gostava de ter notícia de todas as vacas, de todos os camaradas que estavam trabalhando

nas outras

51$ JOÃO GUIMARÃES RoSA / FICÇÃO COMPLE

roças, enxadeiros que meavam. Requeria se algum bicho tinha vindo estr gar as plantações, de que altura era que o milho estava crescendo. - "Vo Izidra, a senhora

já vai fazer o presépio?" - "Daqui a três dias, Dito, e começo." O Dito não podia caminhar, só podia pulando num pé só, m doía, porque o corte tinha apostemado muito,

criando matéria. Chaman do, o Gigão vinha, vigiava a rede, olhava, olhava, sacudia as orelhas. "Você está danado, Dito, por causa?" - "Estou não, seo Luisaltino,

costu mei muito com essas coisas..." - "Depressa que sare!" - "Uê, p"ra se sarai basta se estar doente."

Meu-deus-do-céu, e o Dito já estava mesmo quase bom, só que torno outra vez a endefluxar, e de repente ele mais adoeceu muito, começou chorar - estava sentindo dor

nas costas e dor na cabeça tão forte, dizia qu estavam enfiando um ferro na cabecinha dele. Tanto gemia e exclamava enchia a casa de sofrimento. Aí Luisaltino montou

a cavalo, ia daí a mal de um dia de viagem, aonde tinha um fazendeiro que vendia, buscar rem dio para tanta dor. Vovó lzidra fez um pano molhado, com folhas-santas

amassadas, amarrou na cabeça dele. - "Vamos rezar, vamos rezar!" -À Vovó Izidra chamava, nunca ela tinha estado tão sem sossego assim. Decl diram dar ao Dito um

gole d"água com cachaça. Mas ele tinha febre muita quente, vomitava tudo, nem sabia quando estava vomitando. Vovó Izidr veio dormir no quarto, levaram a caminha

do Tomezinho para o quarto Luisaltino. Mas Miguilim pediu que queria ficar, puseram uma esteira n chão, para ele, porque o Dito tinha de caber sozinho no catre.

O Dito ge mia, e a gente ouvia o barulhinho de Vovó Izidra repassando as contas d terço.

No outro dia, o Dito estava melhorando. Só que tinha soluço, quem beber água-com-açúcar. Miguilim ficava sentado no chão, perto dele. Vód vó lzidra tinha de principiar

o presépio, o Dito não podia ver quando ela" tirar os bichos do guardado na canastra - boi, leão, elefante, águia, urso, camelo, pavão - toda qualidade de bichos

que nem tinha deles ali no M tum nem nos Gerais, e Nossa Senhora, São José, os Três Reis e os Pastore os soldados, o tem-de-ferro, a Estrela, o Menino Jesus. Vovó

Izidra vez e quando trazia uma coisa ou outra para mostrar ao Dito: os panos, que el endurecia com grude - moía carvão e vidro, e malacacheta, polvilhava n grude.

Mas Dito queria tanto poder ver quando ela estava armando o pie sépio, forrando os tocos e caixotes com aqueles panos - fazia as serras; formava a Gruta. Os panos

pintados com anil e tinta amarela de pacarb misturados davam um verde bonito, produzido manchado, como todos d matos no rebroto. E tinha umas bolas grandes, brilhantes

de muitas cores, e o arroz plantado numa lata e deixado nascer no escuro, para não ser vei de e crescer todo amarelo descorado. Tinha a lagoa, de água num prato"

fundo, com os patinhos e peixes, o urso-branco, uma rã de todo tamanho o cágado, a foquinha bicuda. Quase a maior parte daquelas coisas Vov

~IANLELZÃO E MIGUILIM 519

lzidra possuía e carregava aonde ia, desde os tempos de sua mocidade. Depois de pronto, era só pôr o Menino Jesus na Lapinha, na manjedoura, com a mãe e o pai dele

e o boizinho e o burro. E punha um abacaxi-maçã, que fazia o presépio todo cheirar bonito. Todos os anos, o presépio era a coisa mais enriquecida, vinha gente estranha

dos Gerais, para ver, de muitos redores. Mas agora o Dito não podia ir ajudar a arrumação, e então Miguilim gostava de não ir também, ficar sentado no chão, perto

da cama, mesmo quando o Dito tinha sono, o Dito agora queria dormir quase todo o tempo.

A Chica e Tomezinho podiam espiar armar o presépio o prazo que quisessem, mas eram tão bobinhos que pegavam inveja de Miguilim e o Dito não estarem vendo também.

E então vinham, ficavam da porta do quarto, os dois mais o Bustica - aquele filho pequeno do vaqueiro Saluz. - "Vocês não podem ir ver presepe, vocês então vão para

o inferno!" - isso a Chica tinha ensinado Tomezinho a dizer. E tinha ensinado o Bustica a fazer caretas. O Dito não se importava, até achava engraçado. Mas então

Miguilim fez de conta que estava contando ao Dito uma estória - do Leão, do Tatu e da Foca. Aí Tomezinho, a Chica e aquele menino o Bustica também vinham escutar,

se esqueciam do presépio. E o Dito mesmo gostava, pedia: - "Conta mais, conta mais..." Miguilim contava, sem carecer de esforço, estórias compridas, que ninguém

nunca tinha sabido, não esbarrava de contar, estava tão alegre nervoso, aquilo para ele era o entendimento maior. Se lembrava de seo Aristeu. Fazer estórias, tudo

com um viver limpo, novo, de consolo. Mesmo ele sabia, sabia: Deus mesmo era quem estava mandando! - "Dito, um dia eu vou tirar a estória mais linda, mais minha

de todas: que é a com a Cuca Pingo-de-Ouro!..." O Dito tinha alegrias nos olhos; depois, dormia, rindo simples, parecia que tinha de dormir a vida inteira.

A Pinta-Amarela tirou os pintinhos, todos vivos, e no meio as três perdizinhas. A Rosa trouxe as três, em cima de uma peneira, para o Dito conhecer. Mas o Dito mandava

Miguilim ir espiar, no quintal, e depois dizer para ele como era que elas viviam de verdade. A dor-de-cabeça do Dito tinha voltado forte, mas agora Luisaltino tinha

trazido as pastilhazinhas, ele engolia, com gole d"água, melhorava. - "Dito, as três perdizinhas são diabinhas! A galinha pensa que elas são filhas dela, mas parece

que elas sabem que não são. Todo o tempo se assanham de querer correr para o bamburral, fogem do meio dos pintinhos irmãos. Mas a galinha larga os pintinhos, sai

atrás delas, chamando, chamando, cisca para elas comerem os bichinhos da terra..." A febre era mais muita, testa do Dito quente que pelava. - "Miguilim, vou falar

uma coisa, para segredo. Nem p"ra mim você não torna a falar." O Dito sentava na cama, mas não podia ficar sentado com as pernas esticadas direito, as pernas só

teimavam em ficar dobradas nos joelhos. Tudo endurecia, no corpo dele. - "Miguilim, espera, eu

52O JOAO GUIMARÃES ROSA / FICÇÃO COMPLET

estou com a nuca tesa, não tenho cabeça pra abaixar..." De estar pior, Dito quase não se queixava.

- "Miguilim, Vovó Izidra toda hora está xingando Mãe, quando el estão sem mais ninguém perto?" Miguilim não sabia, Miguilim quase nu ca sabia as coisas das pessoas

grandes. Mas o Dito, de repente, pegava fazer caretas sem querer, parecia que ia dar ataque. Miguilim chamava Vo vó Izidra. Não era nada. Era só a cara da doença

na varinha dele.

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