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A possibilidade de escrita da história contemporânea: a polêmica do Correio Official com O Chronista sobre a História do Brasil de John Armitage

Flávia Florentino Varella *

Mestranda em História

Universidade de São Paulo

Resumo: Neste texto objetivamos analisar a polêmica travada entre os redatores dos periódicos Correio Official e O Chronista, em 1837, em relação à História do Brasil de John Armitage. Ao publicarem resenhas sobre este livro em seus jornais, os dois periodistas promoveram um intenso debate sobre um fator constituinte desta História: a escrita da história contemporânea. Nesse sentido, buscamos verificar quais eram os possíveis problemas que abarcavam a redação de uma história do presente, assim como as nuances que envolviam a problemática do envolvimento do historiador com o período relatado. Armitage, historiador inglês, viveu no Brasil durante parte considerável do período em que recortou sua História, que compreende a chegada da família Real ao Brasil – em 1808 – até a abdicação de Dom Pedro I, em 1831. Essa extensão temporal sobre o presente foi um dos argumentos utilizados para deslegitimar seu relato.

Palavras chave: História da historiografia; Modernidade; Distanciamento histórico.

John Armitage, um autor desconhecido

Diversos são os historiadores oitocentistas que escreveram sobre a história brasileira ou que dela fizeram parte, que caíram em parcial ou total desconhecimento. Apesar do recente aumento de trabalhos dedicados ao estudo e análise das obras de história produzidas no século XIX, ainda somos profundos desconhecedores da diversidade das imagens forjadas de nosso passado naquele momento.

A História do Brasil, do inglês John Armitage, integra esse grupo, sobre o qual possuímos poucas e lacunadas informações. O principal e mais completo estudo feito a respeito da História do Brasil foi escrito em 1914, e compõe sua terceira edição em língua portuguesa. Com o intuito de solucionar cabalmente o problema sobre a autoria desta História, Eugênio Egas ofereceu “Ao Leitor” informações inéditas até aquele momento.[1] Por meio de uma carta enviada ao editor do periódico inglês P. C. (são indicadas apenas suas iniciais) obteve informações que o levaram a assegurar a existência de John Armitage e, por conseguinte, a comprovação autoral da História do Brasil. A polêmica que Eugênio Egas tentava solucionar era calcada nas dúvidas em relação à autoria e tradução portuguesa dessa obra. Muitos defendiam a hipótese de que o verdadeiro escritor da História do Brasil teria sido Evaristo da Veiga e, depois de abandonada essa especulação, cogitaram que Veiga poderia ter sido seu tradutor. Motivado por essas indagações, Eugênio Egas começou sua busca por John Armitage e obteve grande sucesso. Por intermédio das informações de um leitor do jornal P. C. descobriu parte da trajetória do historiador inglês.

Recentemente descobrimos outras informações sobre a trajetória de Armitage que nos ajudam a entender melhor quem era esse comerciante e seus interesses literários que culminaram na escrita da História do Brasil. John Armitage nasceu aos 27 de setembro de 1807 em Failsworth, Lancaster, e logo nos primeiros anos de sua infância seus pais se mudaram para Dukinfield, Chester, onde iniciou sua educação. Membro de uma família religiosa, recebeu lição de vários presbíteros e, por volta dos nove anos de idade, o Reverendo Benjamin Goodier, que conduzia a Congregação Unitária de Oldham, assumiu sua educação vivendo, inclusive, em sua casa em Dukinfield. Poucos anos depois, teve que interromper sua instrução para ajudar seu pai na fábrica de algodão pertencente à família. O jovem Armitage demonstrava forte inclinação para a escrita, que sua educação ajudou a aprimorar, e mantinha também o gosto pela poesia. Esse interesse pelas artes literárias motivou Armitage a escrever um poema logo que deixou de ser um garoto, expressando alguns dos seus sentimentos mais ardentes da meninice em versos (THE CHRISTIAN REFORMER, 1856: 317).

Pouco antes de completar 21 anos, aceitou o convite para trabalhar na firma mercantil Philips, Wood & Co e foi enviado para a cidade do Rio de Janeiro, onde se estabeleceu sob o gerenciamento de Mr. John Holland em 1828. No período de sua estadia (1828-1835), compôs um poema inspirado no Rio de Janeiro. De sua amizade com Evaristo da Veiga, importante publicista e figura influente na luta política que levou à abdicação de Dom Pedro I, surgira a oportunidade de participar da Sociedade Defensora da Liberdade e da Independência Nacional, no curto período de sua existência, entre os anos de 1831 e 1832.[2] Apenas na parte final de sua estadia de sete anos no Rio de Janeiro é que escreveu a História do Brasil. Retornando a Inglaterra no dia 6 de julho de 1835 (RODRIGUES, 1962: 16), aos 28 anos, publicou sua história em dois volumes no ano seguinte, e já em 1837 contava com tradução para a língua portuguesa.

Em 1836 viajava, por outra companhia mercantil, para a ilha do Ceilão (atual Sri Lanka); tendo obtido sucesso em suas empreitadas, abriu sua própria firma mercantil, chamada Armitage Brothers (JOHN ARMITAGE LAST WILL AND TESTAMENT: 674). Em 6 de setembro de 1838 se casou com Fanny Henriette, filha única de John Jumeaux, com a qual teve seis filhos.

Após dezenove anos no Ceilão, Armitage voltou para a Inglaterra em 30 de agosto de 1855 com o estado de saúde bem comprometido. Durante o tempo em que viveu na ilha, serviu por longos anos ao governo belga como seu representante consular, foi um dos diretores do Banco regional e membro do conselho legislativo por oito anos (THE CHRISTIAN REFORMER, 1856: 319). Tendo devotado bastante atenção a melhoria da educação, a multiplicação de estradas e modos de trafegar entre partes diferentes da ilha, a abolição de toda taxa desnecessária e opressiva, o cultivo de produtos favoráveis ao clima, entre outras melhorias.

Depois de chegar em Manchester, onde se estabeleceu ao lado da família e amigos, sua saúde continuou debilitada até o falecimento em 17 de abril de 1856, aos 48 anos, em casa. Foi enterrado no mausoléu pertencente à família na velha capela de Dukinfield. Após esse breve contato com a trajetória do autor da História do Brasil que foi motivo de debate entre dois redatores cariocas, estamos mais familiarizados com os elementos que estão em jogo nesta disputa.

A polêmica sobre a legitimidade da escrita da história contemporânea: a recepção da História do Brasil de John Armitage

Tucídides e seus contemporâneos tinham como indiscutível a escrita da história do presente na medida em que a autoridade do historiador estava fundada na visão – na experiência do relatado - e na possibilidade de inquirição das testemunhas oculares. Por ter ido ao cenário da guerra do Peloponeso, participado dela e conversado com quem presenciou seu desfecho, Tucídides produziu uma história verdadeira. Assim, quanto mais próximo de seu objeto, maiores seriam as chances de obter relatos completos sobre a história vivida cabendo ao historiador organizar as informações e até mesmo indicar seu grau de veracidade. Entre os séculos I a.C. e I d.C. o historiador foi questionado sobre a sua imparcialidade ou parcialidade tendo em vista que ao narrar a história contemporânea corria o sério risco de confundir suas paixões com a verdade do acontecido. No intuito de solucionar esse impasse, os historiadores, na época moderna, lançaram não do “distanciamento histórico”, ou seja, houve praticamente uma recusa à escrita da história contemporânea, assumindo-se, assim, a história como disciplina que versava sobre a escrita do passado.

A polêmica que vamos apresentar em relação à validade da História do Brasil escrita por John Armitage está diretamente ligada à possibilidade de, no século XIX, ainda ser inquestionável a escrita da história contemporânea. Tal polêmica foi travada, nos meses de abril e maio de 1837, entre dois periódicos cariocas: O Chronista e o Correio Official. O redator do O Chronista, Justiniano José da Rocha, publicou uma pequena nota sobre a tradução que saia à luz da História do Brasil de Armitage argumentando que:

ir-se-há nela buscar juízo independente dos homens e das cousas: quer-se há ver a história contemporânea despida das preocupações dos interesses dos partidos; a história contemporânea com todos os privilégios de história antiga pela distância da pessoa que a escreveu (O CHRONISTA: 1837: 209).

Entretanto, o leitor irá se surpreender já que não encontrará nenhum desses atributos fundamentais à escrita da história. Motivo central para isso foi a amizade perniciosa de Evaristo da Veiga com John Armitage que influenciou de forma direta e decisiva a escrita da história da independência brasileira. Justiniano sublinha que só pode ser encontrada nesta História “[...] o juízo parcial e hostil que ali se faz dos maiores homens do Brasil, dos Andradas, dos Vasconcellos” (O CHRONISTA, 1837: 210). Por mais que Armitage reinvidique no prefácio da História sua imparcialidade, inerente a um estrangeiro que não esteve de corpo e alma envolvido na luta política brasileira e que não tem nenhum vínculo com a história nacional em questão, isso não convence o redator do O Chronista que coloca em dúvida toda a sua História do Brasil. Para Justiniano a história contemporânea só poderia ser escrita por alguém totalmente isento de contato com o solo brasileiro e com os intelectuais que viveram no período que almejam estudar, tornado a escrita da história contemporânea se não impossível, particularmente difícil.

Em resposta aos argumentos de Justiniano, o redator do Correio Official sai em defesa da imparcialidade da História do Brasil de Armitage e, conseqüentemente, da escrita da história contemporânea.[3] Propõe que:

Quando os acontecimentos históricos estão feitos, quem melhor do que aqueles que o fizeram, ou neles tomaram importante parte, os pode expor e explicar? Certamente as épocas, que Armitage passa em revista, já estão transactas; a Independência, o reinado e queda do primeiro Imperador, são fatos feitos, e que já pertencem à história [...] (CORREIO OFFICIAL, 1837: 400).

A história da independência brasileira e dos que a tornaram possível estaria completamente terminada e nada melhor do que as pessoas que vivenciaram essa experiência para relatar seu surgimento, desenrolar e fim. A história contemporânea poderia ser melhor escrita pelos que tiveram a oportunidade de ver os acontecimentos que tornaram-se históricos. O redator do Correio Official continua seu argumento respondendo ao problema levantado por Justiniano em relação à influência de Evaristo na escrita da História do Brasil:

[...] se com efeito o autor para os narrar [os feitos], como o Chronista o avança, foi inspirado, com especialidade, pelos relatórios, escritos e explicações do Publicista distinto [ Evaristo da Veiga], que antes de 7 de abril lutou com tanta sagacidade, talento, e intrepidez, contra os abusos, e teve depois tanta influência nas medidas, que escoraram o edifício social, não podemos fugir de louvar a sua prudência e desejo de acertar com o verdadeiro espírito dos fatos, que queria relatar aos seus concidadãos da Inglaterra (CORREIO OFFCIAL, 1837: 400).

Armitage não poderia ter tomado melhor decisão do que a de ter Evaristo da Veiga como conselheiro para a escrita de sua História já que a parcialidade do distinto publicista é tida como auxiliar na filtragem dos verdadeiros fatos. Por estar dentro do jogo político, Evaristo tinha melhor consciência das questões que estavam em jogo no processo de independência. Esse contato com Evaristo permitiu a Armitage “ [...] tomar exata idéia das eras em que brilharam, para poder evocar as suas sombras, desfrutar, ainda só por meia hora, a sua conversação [...]. Quando os atores dos dramas políticos transactos ainda existem, os historiadores gozam desta fortuna” (CORREIO OFFICIAL, 1837: 400).

Paralelo a essa polêmica sobre a validade da escrita contemporânea, ambos os redatores estão profundamente preocupados com a imagem que a História do Brasil de John Armitage transmitirá para seus leitores britânicos, tendo em vista que, originalmente foi escrita em inglês. Um dos motivos centrais de Justiniano manifestar descrédito em relação à obra de Armitage é, sem dúvida, a firme apreensão de que seu autor narrou o processo de independência pelo prisma liberal. Joaquim Gonçalves Ledo, por exemplo, um dos articuladores centrais da independência brasileira e aclamação de D. Pedro I como Imperador, não possui qualquer destaque na História de Armitage.[4]

Propomos analisar a polêmica apresentada ao veto à história contemporânea como sinalizadora da existência sincrônica, corrente na primeira metade do oitocentos brasileiro, de dois conceitos de história: o antigo e o moderno.[5] Como vimos ao longo deste texto, o principal problema em relação a possibilidade da História do Brasil de Armitage tornar-se canônica está diretamente ligada a escrita da história contemporânea. Valdei Araujo, ao analisar os anos iniciais do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), pôde concluir que os escritos de seus sócios fundadores indicam a concepção de escrita da história nacional como um processo, como uma totalidade em movimento, e não mais como simples sucessão cronológica dos fatos. Descobrir o sentido da história nacional foi um dos principais objetivos dos letrados da década de 1830-40, pois só a partir desse primeiro passo se poderia escrever um relato que reproduzisse a origem e o destino da nação brasileira. Contudo,“[...] essa tarefa era dificultada pela consciência nascente de que os interesses e parcialidades dos homens vivos poderiam distorcer a compreensão dos eventos e, logo, do destino histórico da comunidade. Para enfrentar esse problema, a positividade dos fatos é transformada em único critério de verdade” (ARAUJO, 2008: 179).

O entendimento de que a passagem do tempo permite ao historiador melhor compreender os acontecimentos pretéritos foi uma das mudanças centrais para a mudança do conceito antigo de história para o moderno. Aliado a essa nova compreensão surge a demanda pela constante re-escrita da história, tendo em vista que existe um sentido que se desvela ao longo do tempo. O depoimento da testemunha ocular também deixa de ser a fonte maior de verdade, como era para Tucídides, entrando em jogo o documento e a crítica documental como certificadores da veracidade do relatado.

Em sua nota sobre a obra de Armitage, Justiniano da Rocha emprega o vocabulário que caracteriza o conceito moderno de história, assumindo a recusa da história contemporânea. A falta de distanciamento – temporal ou físico/emocional - do historiador em relação ao objeto relatado é o argumento central para desvalorizar a obra de Armitage. O historiador da história contemporânea estaria fadado a reproduzir relatos parciais. A boa história seria necessariamente a história antiga, produzida com devido distanciamento, e fundada na imparcialidade do documento. Por outro lado, o redator do Correio Official ainda acreditava profundamente que a razão humana daria conta de controlar os possíveis arroubos partidários e que não existia melhor relato que o feito pelos contemporâneos dos fatos.

Referências bibliográficas

ARAUJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo. São Paulo: Hucitec, 2008.

ARMITAGE, João. História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1977.

Correio Official. Nº. 100, 9 de maio de 1837.

EGAS, Eugênio. “Ao leitor”. In: João ARMITAGE. História do Brasil: desde o período da chegada da família de Bragança, em 1808, até a abdicação de D. Pedro I, em 1831, compilada à vista dos documentos públicos e outras fontes originais formando uma continuação da História do Brasil de Southey. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981

John Armitage last Will and testament. The National Archives of the United Kingdom. PROB 11/2238.

KOSELLECK, Reinhart. L’expérience de l’histoire. Paris: Gallimard, 1997.

O Chronista. Nº 53, 12 de abril de 1837.

RODRIGUES, José Honório (Org.). Registro de Estrangeiros - 1831-1839. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Interiores; Arquivo Nacional, 1962.

RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil: introdução metodológica. São Paulo: Ed. Nacional, 1978.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.

The Christian Reformer; or unitarian magazine and review. New series, vol. XIL. From january to december. London: Edward T. Whitfield, 1856.

VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História da Independência do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1962.

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* Bolsista CAPES sob orientação do Prof. Dr. João Paulo Garrido Pimenta.

[1] Eugênio EGAS. “Ao leitor”. In: João ARMITAGE. História do Brasil: desde o período da chegada da família de Bragança, em 1808, até a abdicação de D. Pedro I, em 1831, compilada à vista dos documentos públicos e outras fontes originais formando uma continuação da História do Brasil de Southey. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, pp. 11-5. Tal edição constitui-se como a mais cuidadosa que possuímos em língua portuguesa. Algumas edições excluíram partes consideráveis da obra de Armitage, sendo o exemplo mais crítico a edição produzida pela Melhoramentos na qual todas as notas de rodapé são simplesmente suprimidas sem nenhum aviso aos leitores. Cf. João ARMITAGE. História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1977.

[2] Agradeço a preciosa informação sobre a atuação de John Armitage nesta Sociedade à Lucia Paschoal Guimarães professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

[3] Não é isento de polêmica o nome do redator do Correio Official. José Honório Rodrigues afirma que seria Januário da Cunha Barbosa, enquanto Nelson Werneck Sodré propõe José Cristino da Costa Cabral como redator deste periódico carioca. Cf. José Honório RODRIGUES. Teoria da História do Brasil: introdução metodológica. São Paulo: Ed. Nacional, 1978, p. 363; Nelson Werneck SODRÉ. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 137.

[4] Encontramos movimento oposto na História da Independência do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen que descreve a forte participação de Ledo no cenário político carioca. Cf. Francisco Adolfo de VARNHAGEN. História da Independência do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1962.

[5] Sigo as proposições de Reinhart Koselleck em relação ao conceito antigo e moderno de história. Cf. Reinhart KOSELLECK. L’expérience de l’histoire. Paris: Gallimard, 1997.

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