Exposição Escrita



Texto e materiais brochura

Exposição Escrita

Ricardo Nicolau

Tesouros Submersos do Antigo Egipto não apresenta, ao contrário daquilo que o nome parece indicar, artefactos arqueológicos, porventura recém-descobertos, originários de uma geografia longínqua, de um tempo distante. Francisco Tropa também não é um mero apresentador de objectos preexistentes por si seleccionados. Ele é o artista que recolheu, concebeu e fabricou, ou mandou executar segundo desenhos seus, de acordo com as suas indicações precisas, todas as peças que constituem este falso espólio de antigos “tesouros”.

O nome da exposição replica praticamente à letra o título de uma mostra itinerante que tem vindo a ser apresentada em vários museus e centros de arte da Europa, sempre com um estrondoso êxito em termos de bilheteira: Tesouros Submersos do Egipto[1]. Esta quase coincidência de títulos poderá suscitar a dúvida em alguns dos muitos potenciais visitantes do Espaço Chiado 8, localizado numa zona de Lisboa especialmente frequentada por turistas, podendo inclusive contribuir para aumentar a afluência de público[2]. Estes não foram objectivos fundamentais para Francisco Tropa quando nomeou a sua exposição, muito embora a semelhança de títulos, e as suas consequências mais imediatas, se possam encarar como uma crítica deliberada às lógicas de programação de determinadas instituições – nomeadamente aquelas que, equiparando o êxito de uma determinada exposição ao número de pessoas que a visitam, se tornam reféns de números, de lógicas estritamente quantitativas.

Não é com certeza por acaso que um artista conhecido por refutar qualquer relação entre as suas exposições e eventuais obrigações de clareza e de pedagogia, dê praticamente o título de uma exposição blockbuster, eminentemente condicionada por todos aqueles “deveres”, à mais recente apresentação pública dos seus trabalhos. Numa altura em que se discute a usurpação do papel dos profissionais das artes por aqueles que tradicionalmente “apenas” os apoiavam (patronos, mecenas), em que muitos exigem que a arte se torne imediatamente compreensível para os grandes públicos, que seja mais uma distracção, que transforme definitivamente os museus e os centros de arte em pólos para a transacção da criatividade, em locais privilegiados da indústria do entretenimento, Francisco Tropa reivindica a densidade e a opacidade como valores inalienáveis na nossa relação com a obra de arte, que nenhuma ideia de lógica (e muito menos a lógica dos números) e de puro conhecimento deve conseguir eliminar.

O título da exposição permite, além disso, trabalhar a partir das expectativas dos visitantes, do seu conhecimento de determinados protocolos. Quase todos sabemos, porque já os visitámos ou porque vimos imagens que os reproduziam, que os museus, particularmente os museus etnográficos, exibem os artefactos antigos, os pretensos tesouros de determinadas civilizações, em mesas, vitrinas e plintos. Estas convenções são aqui empregues. O objectivo não passa apenas por dilatar o tempo em que o visitante julga estar, de facto, perante peças egípcias – esta confusão pode acontecer, mas Francisco Tropa não está especialmente preocupado com esta vertente mais anedótica da experiência do espectador. Passa, isso sim, pela deslocação de protocolos de exibição muito conhecidos – deslocação que vem demonstrar que as obras de arte são sempre signos polissémicos, mudando com cada apresentação aquilo que representam, dependendo da disposição dos observadores e das especificidades das circunstâncias em que são vistas.

Tesouros Submersos do Antigo Egipto também pode ser visto, pelo menos por quem vem acompanhando a obra de Francisco Tropa, como um título que aponta para possíveis referências, para determinadas preocupações que são comuns aos seus últimos trabalhos. Porque parece ser mais ou menos anacrónico – ou, melhor, pouco contemporâneo (e, nos seus últimos projectos, Francisco Tropa tem vindo a eleger como seus contemporâneos antigos pensadores, artistas que trabalharam há muitos séculos, arquitectura desaparecida ou em ruínas – resultado, por exemplo, da tragédia de Pompeia, em 79 d. C.)[3]; porque aponta para objectos, para a tridimensionalidade (as pinturas e os desenhos são mais dificilmente resgatáveis de uma submersão prolongada); porque nomeia uma geografia que está para além daquela que à partida define a arte ocidental, europeia. Isto para não falar de possíveis ressonâncias entre o título e a obra de dois escritores que têm marcado especialmente o trabalho de Francisco Tropa: Raymond Roussel (Paris, 1877 – Palermo, 1933), autor de Impressions d’Afrique (1910) e de Nouvelles Impressions d’Afrique (1932), e Michel Leiris (Paris, 1901 – Saint-Hilaire, Essonne, 1990), escritor e etnógrafo que no início dos anos de 1930, justamente graças ao patrocínio de Roussel, fez parte de uma equipa que levou a cabo várias missões científicas em África. Estas expedições etnográficas, em que se recolhia todo o tipo de artefactos, dariam origem ao Musée de l’Homme, em Paris; também permitiram a Leiris escrever L’Afrique Fantôme, livro publicado em 1934 e que, combinando estudos etnográficos e dados autobiográficos, rompeu radicalmente com a tradição dos escritos etnográficos tradicionais.

Francisco Tropa não tem nenhuma fobia em relação ao novo, ao contemporâneo – é, aliás, muito curioso em relação a tudo aquilo que é produzido hoje no campo da arte e do pensamento –, mas a sua obra contempla preocupações estruturais, nomeadamente sobre aquilo que tem ajudado a definir o Homem, e que são, portanto, transversais a várias épocas. Por outro lado, e independentemente da diversidade de suportes que já empregou, este artista tem recusado deixar o território convencionalmente chamado de escultura. Esta exposição no Chiado 8, como aliás alguns outros projectos apresentados recentemente, mistura claramente uma ideia de escultura – e técnicas, matérias e objectos que associamos imediatamente àquela disciplina (fundição, bronze, molde) – com a tal dimensão intemporal a que já nos referimos, e que passa por uma análise que pode ser vista como atrevida, sem medo do ridículo e do fora de moda, da relação do Homem com a morte[4] (e a ligação desta a determinados objectos, que podem ser recolhidos, simplesmente, ou fabricados – e lembremo-nos que os animais não têm nem objecto nem morte), da pretensão em deixar marcas da sua passagem pela terra – como escreveu com ironia Adolfo Bioy Casares (Buenos Aires, 1914–1999), a “sobreviver em obras, em filhos, de qualquer maneira”, já que, “sem dúvida, somos mordidos por um instinto, e pelo menos nesse ponto igualamos em inteligência dois insectos, a formiga e a abelha, e um roedor, o castor ou castor fiber”[5].

Francisco Tropa também tem vindo a empregar as convenções da escultura, nomeadamente sistemas de encaixe e de moldagem, como possível tradução das relações entre positivo e negativo, entre masculino e feminino; como tem constantemente sublinhado as tensões entre leis aritméticas, impessoais (sistemas de medição, grelhas, serialidade, progressões sistemáticas) e o território do acaso.

Muitas das peças apresentadas nesta exposição servem-se de técnicas de escultura ancestrais - como a fundição de bronze, já empregue pelos sumérios e pelos egípcios - e de materiais, nomeadamente madeira, areia e barro, que associamos ao fabrico dos primeiros utensílios utilizados pelo Homem. Algumas correspondem a objectos contemporâneos, em certos casos produzidos industrialmente, mas que são replicados noutros materiais, ou descontextualizados ao ponto de se perder qualquer relação imediata com a respectiva função original: frascos, garrafas de cerveja, recipientes de medição, caixas de fruta.

Os materiais aqui empregues por Francisco Tropa, com excepção do bronze e do ouro, manifestam alguma vulnerabilidade face aos efeitos do tempo. Interessante é que mesmo as peças fabricadas em liga de cobre e estanho sugiram processos naturais de desgaste: a madeira e os ossos passados a bronze falam tanto de permanência como, na sua aparência tosca e irregular (e algumas madeiras, recordemos, pertenceram originalmente a caixas de fruta), de inexorável degradação.

Não é um acaso que grande parte das peças seja apresentada em mesas desenhadas pelo próprio artista. Elas não são apenas uma base; são, pelo menos na cultura ocidental, superfícies onde se desenrolam actividades, onde se trabalha, ao mesmo tempo que servem para elevar objectos valiosos, quase sagrados, como a comida e a bebida.

As mesas são, portanto, territórios para a acção, ao mesmo tempo que garantem elevação a matérias eminentemente degradáveis. Talvez não exista suporte mais apropriado para peças que sublinham a temporalidade como uma das suas principais dimensões, além de fazerem conviver estabilidade e deterioração: estes trabalhos de Francisco Tropa apresentam um difícil equilíbrio, quase uma confusão, entre artificial e natural, entre o que se deteriora e o que permanece.

Algumas das peças, nomeadamente as feitas de barro e areia da praia, ou aquelas que apresentam desenhos resultantes do gesto de “polvilhar” com areia sólidos que depois são deslocados, contam a história da sua própria feitura, apontam para uma acção. Esta acção é muitas vezes repetitiva – e fazer aparentemente a mesma coisa, sem pensar, de maneira mecânica, deve permitir, segundo as filosofias orientais, que nos concentremos simplesmente em “ser”, sem a distracção de ter de tomar decisões[6].

Pensemos melhor na particular utilização do barro no contexto desta exposição. Corresponde, à partida e para qualquer visitante, a um material muito tradicional, manipulado com métodos também eles tradicionais. A Francisco Tropa interessou com certeza explorar esta relação quase imediata com a ideia de processos ancestrais, que têm uma origem perdida no tempo – e o artista sabe bem que a ideia de matéria-prima pura é hoje inconcebível; está consciente de que qualquer material tem uma carga histórica, social, política –, um significado cultural implícito.

O barro também lhe permitiu, como referimos, traduzir as memórias de uma acção; permitiu-lhe invocar o corpo sem recorrer à sua representação. As peças em barro apresentam as marcas da acção do corpo, da sua pressão sobre uma determinada massa; também apresentam marcas da aleatoriedade, do deixar cair sobre o solo – do confronto do corpo com o mecânico através de uma acção repetitiva.

Ao associar areia da praia a estes blocos de barro, ao deixá-la cair de forma a preencher frestas, cavidades, o artista cria micropaisagens que podem sugerir jardins japoneses – e a cultura nipónica é particularmente apreciada por Francisco Tropa. De qualquer forma, as texturas impressas no barro e a areia que tombou sublinham o simples trabalho da gravidade, convocando ao mesmo tempo a morosidade da sedimentação.

Este artista é um apreciador de culturas orientais, por vezes aplicando os seus sistemas de manufactura, designadamente os japoneses, nas suas peças – interessa-lhe, por exemplo, a sofisticada simplicidade do seu trabalho com madeira (especificamente, no caso desta exposição, dos seus sistemas de encaixe). Tesouros Submersos do Antigo Egipto alia, de facto, uma certa procura de simplicidade a uma determinada essencialidade, sinalizada, por exemplo, pela referida utilização de terra, de areia, do solo – e lembremo-nos que, como afirmava Francis Ponge (Montpellier, 1899 – Le Bar-sur-Loup, 1988), “o que é perfeitamente espontâneo no homem, no tocante à terra, é uma imediata afecção de familiaridade, de simpatia, e mesmo de veneração quase filial. Porque ela é a medida por excelência”[7]. De qualquer forma, esta simplicidade e essencialidade são, e é aqui que reside grande parte do mistério destas peças, constantemente contrariadas pelo recurso a elementos dificilmente admissíveis no campo das artes visuais em geral, e especificamente no campo da escultura: ornamentação, sentido decorativo, uma certa teatralidade.

O arquitecto e teórico Adolf Loos (Brno, 1870 – Kalksburg, 1933) escrevia em 1908: “Eu suporto os ornamentos do negro zulu, do persa, da camponesa eslovaca ou do meu sapateiro, pois eles não têm outros meios para chegar aos pontos altos da sua existência.”[8] O texto de onde foi retirada esta citação, intitulado “Ornamento e crime”, representa bem a repulsa pelo ornamento que ajudou a definir, em grande medida, toda a arte moderna. O seu autor defendia que o ornamento deixara de ser um produto natural da nossa cultura, encarando-o apenas como desperdício de mão-de-obra, de saúde, de materiais, de dinheiro.

A relação da arte com a ornamentação foi controversa ao longo de todo o século XX, como podemos perceber através de uma lacónica definição, proferida por Carl Andre (Quincy, Massachusetts, 1935) numa entrevista radiofónica em 1970, e citada por Hal Foster (Seattle, 1955) em “Master Builder”, texto publicado num livro que, aliás, veio chamar a atenção do leitor contemporâneo para os escritos de Loos: Design and Crime (and other diatribes)[9]. Segundo aquele escultor minimalista, e utilizando como caso de estudo a Estátua da Liberdade (1886), os artistas debruçaram-se, ao longo do século XX, sobre características muito diferentes da convenção artística designada como escultura. Primeiro, ter-se-iam interessado pelo modelo académico da figura humana, especificamente pelo modelo em bronze da Estátua da Liberdade que apenas se podia encontrar no atelier de Frédéric Bartholdi (Colmar, Alsácia, 1834 – Paris, 1904); mais tarde, interessou-lhes a estrutura de ferro, concebida por Gustav Eiffel (Dijon, 1832 – Paris, 1923), que suportava a estátua; finalmente, na década de 1970, anos que viram nascer a expressão site-specific, aos artistas interessaria exclusivamente a relação da escultura com o sítio onde está instalada, a ilha de Bedloe.

O trabalho de Francisco Tropa pode ilustrar estas três abordagens à escultura, e nenhuma em particular, confundindo qualquer ideia de progressão linear, enquanto se atreve a explorar o proibido, que é tudo aquilo que possa ser entendido como desperdício, como obsoleto. Pensemos nesta exposição: por um lado, o artista não descarta a figuração; por outro, interessa-se tanto pela estrutura interna das peças como pelo seu carácter teatral; finalmente, serve-se inteligentemente da localização e da arquitectura do Espaço Chiado 8.

Talvez tenhamos, isso sim, de repensar a definição de ornamento. É que, no caso deste artista, ele nunca se manifesta enquanto mera excrescência. De facto, nas suas peças, tanto como no percurso estabelecido pela relação entre elas, a visualidade nunca é livre do corpo do espectador, do espaço que ocupa, da sua posição num determinado campo cognitivo; não existe nenhuma separação entre tangibilidade e visualidade – e talvez seja este o motivo pelo qual continuo a encarar Francisco Tropa como um escultor, mais do que como um artista visual.

O ornamento (talvez por isso ele ainda lhe pareça uma manifestação vital) é aquilo que permite ligar diferentes culturas, distintos períodos temporais. Não é particularmente importante apontar para fontes concretas, mas algumas das peças nesta exposição inspiram-se em desenhos eminentemente ornamentais de culturas não ocidentais. O resultado: uma mistura bizarra de registos visuais, de objectos que parecem não pertencer a um período específico, ou a vários períodos ao mesmo tempo.

Para finalizar, proponho o seguinte exercício: imaginemos que estes objectos, que afinal não foram descobertos no Egipto, serão analisados, caso sobrevivam, por arqueólogos de um futuro distante. Que elementos existirão para decifrar estes signos? A que formas de catalogação poderão recorrer? Com que cultura, com que língua inteligível os relacionarão?

O próprio Francisco Tropa encara cada uma das peças que constituem esta exposição como elementos de um alfabeto. Nesse sentido, Tesouros Submersos do Antigo Egipto pode ser entendida, como aliás já o foram alguns livros de Raymond Roussel, como uma exposição escrita[10].

Legendas para imagens – divulgação

1. / [FT#11.tif]

1. (detalhe) / [FT13.tif]

Sem título, 2008

Frasco de vidro, areia, ouro e mármore

2. / [FT23.tif]

Sem título, 2008

Barro e areia

3. / [FT#25.tif]

Sem título, 2008

Areia, frasco e calcário

© artista, Francisco Tropa e fotografias, Pedro Tropa, 2008

Projecto de Exposições (2006-2008)

Miguel Wandschneider (Culturgest)

Coordenação

Gabinete de Comunicação e Imagem (Fidelidade Mundial)

Curador

Ricardo Nicolau

Coordenação de produção e de montagem

António Sequeira Lopes (Culturgest)

Montagem

Fernando Teixeira

André Lemos

Sílvia Santos

Carpintaria

PREFORMA – Projectos e Exposições, Lda.

CATÁLOGO

Texto

Ricardo Nicolau

Desenho

Pedro Falcão com Francisco Tropa

Proporção

[A5] – 14,85 x 21 cm

Tipo de letra

Akkurat

Fotografias

Pedro Tropa

Coordenação editorial

Rosário Sousa Machado (Culturgest)

Revisão de provas

am edições / antónio alves martins

CHIADO8 –ARTECONTEMPORÂNEA

Largo do Chiado, n.º 8 / 1249-125 Lisboa

Tel. 213 402 241 / fidelidademundial.pt

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[1] Tesouros Submersos do Egipto é uma exposição que apresenta peças recuperadas por um arqueólogo na costa mediterrânica do Egipto – entre estátuas colossais, artefactos de templos e peças de joalharia. Já foi apresentada na Alemanha (Bundeskunsthalle, Bona), em França (Grand Palais, Paris) e em Espanha (Matadero, Madrid). Ao longo deste percurso, foi vista por quase dois milhões de visitantes. Um dos maiores atractivos da exposição, o elemento que mais terá ajudado a vendê-la enquanto blockbuster, é a supostamente mais alta estátua encontrada de Hapi, deus da prosperidade do rio Nilo, com cerca de dois mil anos.

[2] Esta potencial maior afluência de público, relacionável com o seu interesse por descobertas arqueológicas, teve uma espécie de confirmação enquanto preparávamos a exposição. Há poucos meses, concretamente entre Maio e Setembro de 2008, os jornais portugueses destacaram a descoberta de uma nau quinhentista portuguesa ao largo de Oranjemud, no Sul da Namíbia. Uma equipa de arqueólogos tentava resgatar o seu recheio, composto em grande medida por objectos e artefactos em ouro, prata e marfim, trabalhando em contra-relógio, antes que as águas voltassem a submergir a embarcação.

Não é frequente ver os jornais portugueses dedicar as suas primeiras páginas, sequer páginas inteiras, a assuntos relacionados com quaisquer tipos de obras de arte – a cultura está confinada a um local específico nos periódicos, normalmente exíguo, nalguns casos a suplementos semanais; as artes visuais, que não correspondem a lógicas de produção industrial, ao contrário da música, da literatura e do cinema, são, naquele espaço, particularmente negligenciadas. O Verão é por definição uma época do ano associada a algum défice de notícias, mas este facto não explica, ainda assim, o tipo e a extensão da cobertura desta em particular. Estes estão relacionados com um interesse genuíno por este tipo de descobertas, que associam os mesmos ingredientes, que também garantem sucesso de público a filmes de James Bond, Indiana Jones ou Lara Croft: misturas de exotismo e de antiguidade, acenos etnográficos, olhares colonizadores e românticos, façanhas eminentemente desportivas, corridas contra o tempo, crises diplomáticas.

Para ter uma ideia do destaque que estas notícias tiveram na imprensa portuguesa, ver, por exemplo, a edição de 10 Maio 2008 do Diário de Notícias, ou texto de Leonor Botelho e Vanessa Rato, “Nau portuguesa do século XVI em risco de ser submersa na Namíbia”, in Público, 29 Setembro 2008, p. 8.

[3] Nuno Faria sublinhou recentemente a “convivência de épocas”, o “abalar da noção de contemporaneidade” traduzidos pela obra de Francisco Tropa. Ver Nuno Faria, “De uma visão outra”, in AA. VV., Caminos. Arte Contemporáneo Portugués. Colección Caixa Geral de Depósitos. Adquisiciones 2005/2006, Lisboa: Culturgest, 2006, pp. 99-101. Teresa Velázquez também destacou esta intemporalidade: “Numa sociedade em que o presente, que tudo engole e nada recorda, é a forma dominante de experiência, Tropa procede artesanalmente, restituindo às formas um horizonte que as investe de significado, para devolver ao espectador a estranheza de um fragmento imperceptível que o distancie do momento em que vive e para fazer com que o tempo incisivo e único, onde cada um recolhe os princípios primeiros e indemonstráveis de toda a aprendizagem, se reate.” Teresa Velázquez, “La Asamblea de Euclides / Francisco Tropa”, in La Asamblea de Euclides, Madrid: Matadero Madrid, 2007, p. 13.

[4] Francisco Tropa tem vindo, nos últimos anos, a apresentar uma série de ossadas e de crânios moldados em bronze. Esta relação directa com a morte, este olhar a morte de frente, não é comum na obra dos artistas contemporâneos. É muito raro que os artistas nos levem a pensar na linha que separa a vida e a morte, questão eminentemente metafísica, ainda para mais empregando iconografia apenas associável à arte clássica ou a experiências modernas datadas de há oitenta anos, aproximadamente. Benjamin Buchloh explica-o muito bem numa entrevista a Gabriel Orozco em 2000, quando, às tantas, pergunta: “Quem fez crânios no contexto da modernidade, no século XX? Lembramo-nos dos crânios de Cézanne, do crânio de Picasso; um dos quadros mais importantes do cubismo tardio, Natureza-morta com crânio, é uma obra extraordinária; lembramo-nos pelo menos de uma escultura notável de Picasso, que é um crânio em bronze e, depois disso, há uma grande lacuna. Não houve muitos artistas que fizessem crânios depois disso, e será Gerhard Richter a fazer uns crânios em finais ou em meados dos anos de 1980, tomando a mesma aproximação que tu tomas, de tour de force, que passa por confrontar uma tradição iconográfica que parece basicamente inabitável. Não trabalhas com crânios se és um artista contemporâneo; isto é uma lei. Perguntemos a Carl Andre, a Donald Judd ou a Dan Flavin se o crânio é um objecto apropriado. Simplesmente não podes fazer isto depois dos anos de 1960; não existe tal coisa como confrontar a morte através da arte: é piroso, é ridículo, está cheio de kitsch, é um cliché.” Ver “Molly Nesbit, Benjamin H. D. Buchloh y Gabriel Orozco conversan en la ciudad de México”, in Textos sobre la obra de Gabriel Orozco, Madrid: CONACULTA, 2005, p. 158.

[5] Adolfo Bioy Casares, “La obra”, in Historias de Amor, Madrid: Alianza Editorial, p. 79.

[6] Leonard Karen, Wabi-Sabi for Artists, Designers, Poets & Philosophers, Berkeley, California: Stone Bridge Press, 1994.

[7] Francis Ponge, “A Terra”, in Alguns Poemas, Lisboa: Edições Cotovia, 1996, pp. 61-63, p. 63.

8 Adolf Loos, “Ornamento e crime”, in Ornamento e Crime, Lisboa: Cotovia, 2004, pp. 223-234, p. 234.

[8] Hal Foster, “Master Builder”, in Design and Crime (and other diatribes), Londres e Nova Iorque: Verso, 2002, pp. 27-42.

[9] Nicholas Bourriaud referia-se recentemente a Locus Solus, de Raymond Roussel, nas páginas da revista Frieze: “Escrito originalmente em 1914, é uma das mais fantásticas exposições jamais escritas, uma impressionante redistribuição das relações entre formas, palavras, ideias”. Ver Frieze, Maio 2008, pp. 34-35.

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