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Rel 07. O poder de submissão

O poder de submissão é uma expressão técnica. Não deve ser lida apenas no seu sentido comum. Embora a expressão técnica procure beneficiar e manipular esse sentido comum para proveito próprio.

Para esclarecer o que se deve entender por poder de submissão em sentido técnico terá de ter-se em conta as definições de estados de espírito e de espírito de submissão, sendo o último uma das formas básicas dos estados de espírito centrados no poder; do ponto de vista negativo há vantagem em ter presente o contraste entre as palavras subordinação e submissão, analisadas etimologicamente. No quotidiano moderno são praticamente sinónimos. Porém há-de haver uma diferença entre missão e ordem. Ditas assim facilmente se entende o contraste entre a acção e o status quo, o entusiasmo e restrição, o prémio e a sansão, a pro-actividade e a resignação.

O poder de submissão refere-se à forma natural com que as pessoas se envolvem socialmente entre si em torno de missões assumidas paulatinamente por gente muito diversa, em detrimento de outras missões potenciais mas abandonadas por falta de energias sociais associadas. O espírito de submissão é o modo como as pessoas se organizam interior e exteriormente para entrarem em missão, juntamente com todos os outros que já estão nesse modo de estar e com os que se lhes venham a juntar depois. Não se tratar de um espírito de subordinação, como o desenvolvido pelos escravos ou por pessoas passivas, eventualmente por efeito da resignação perante necessidades especiais que tenham, como se diz hoje em dia de forma politicamente correcta para se referir as pessoas com deficiências limitativas da autonomia pessoal. Trata-se de um poder efectivo de escolher o tipo de aliados a que se pretenda juntar, dando força à missão que os torna solidários, como acontece com os apoiantes de um movimento social, independentemente de esse apoio se concretizar em cada momento em posições de direcção, de apoio directo à direcção ou simples apoio moral, à distância.

Da mesma maneira que o poder de proibir é formado a partir de tabus herdados a que as sociedades dão continuidade (ou não, quando certa legislação cai em desuso), e que a construção actual de novas proibições está sujeita à capacidade de as instituições imporem a sua vontade à sociedade, o que muitas vezes não acontece, ficando as leis como letra morta ou sendo que a prática ignora o espírito do legislador e organiza a vida de modo diverso daquele imaginado pela estratégia política que promove a lei, desse mesmo modo o poder de submissão regula precisamente a maneira como as sociedades e as pessoas se organizam para cumprir as missões actuais, adaptando as regras formalmente em vigor às necessidades práticas.

O poder de submissão é, pois, parceiro do poder de proibir na organização das actividades sociais e pessoais. Está sobretudo virado para a acção colectiva não inovadora. Mal comparado, é como o voto em democracia: escolhe-se entre o que há para fazer aquilo que deve ser dado prioridade. É mal comparado porque também em períodos de transformação ou revolucionários o poder de submissão se faz sentir, até com mais força e de forma mais evidente que em períodos de normalidade. Em períodos de transformação social a opção pela missão a apoiar é mais urgente, enérgica, participada, imediata, física e directa. E provavelmente menos reflectiva, dada a aceleração do tempo e a transformação dos espaços que caracterizam tal tipo períodos.

O poder de submissão e o espírito de submissão que o compõe é algo de que todos temos experiência pessoal durante a vida. Tem a vantagem de ser um modo mais económico de a viver. Limita-se a escolher a missão social que há-de orientar as principais decisões da vida e, também, repudiar as opções de escolha que lhe sejam contraditórias. A missão aqui referida pode ser estratégica, quando estamos a pensar em decisões com impacto a longo prazo e a grande distância. Mas igualmente pode ser aplicada a decisões quotidianas com efeitos apenas imediatos – embora, na verdade, ainda que excepcionalmente, decisões aparentemente irrelevantes têm consequências inesperadas e para toda a vida.

No uso destas noções deve ter-se em conta a natureza sobretudo semelhante entre si das pessoas – quando comparadas com outras espécies animais. O cão não experimenta nenhum poder de submissão – por muitos cães que se juntem para apoiar o seu dono, não são essas relações sociais que preenchem a vida de um ser humano. O cão instintivamente segue uma criatura alfa não para cumprir uma missão mas para estar junto, de forma amorfa relativamente às necessidades particulares das relações sociais humanas.

As pessoas seguem orientações e interpretam-nas à sua maneira, conformando a seu modo, à sua medida, aquilo que acaba por resultar em poderes sociais diversos, mesmo quando disso não tem consciência ou não faz alarde. Mas também quando a missão que quer seguir está muito presente na consciência e é motivo de especial orgulho ou até identificação pessoal, como acontece com os chefes mais empenhados, ou os seus apoiantes mais ardorosos. A poder de submissão é maior quanto mais envolvidas as pessoas estiverem nas missões a que aderem. Quanto mais se envolvem de maneira exclusiva, mais subordinadas ficam a uma missão da qual não têm recuo possível, por falte de alternativas disponíveis.

Os amores obsessivos como os processos autoritários e autocráticos geram problemas desse tipo. Embora possam ser emocionalmente muito satisfatórios em termos de poupança de energias (ao contrário do que se possa imaginar, uma tal poupança – a lei do menor esforço – não é sempre sinónimo de maior esperança de vida ou de mais saúde. A prática desportiva, como noutro sentido o consumo de tabaco ou de outras drogas, mostra como não se pode estabelecer uma razão directa entre o destino de cada um e as suas opções sociais de organização da vida. O treino pode trazer problemas de saúde mas também pode aumentar as possibilidades de sobrevivência. As causas conhecidas das doenças mais desagradáveis e mortais não são fatais a todos igualmente).

A missão dos Descobrimentos foi uma missão aparentemente consensual. Em Os Lusíadas, o Velho do Restelo representa a insubmissão, mas não a insubordinação. Tudo o resto se refere às miríades de acções de submissão dos portugueses, a quem na verdade o poema épico presta homenagem e com quem o autor partilhou a submissão, primeiro como embarcado (provavelmente à força) e depois como artista. Prefigurando no século XVI um nacionalismo cujo sentido ajudaria a criar mas necessariamente sem poder ter qualquer consciência disso.

Para efeitos metodológicos e analíticos, com o fizemos também para o poder de proibir e faremos depois para o poder marginal, a tratar a seguir, separámos as versões positivas do poder de submissão das suas versões negativas. Espera-se que deste modo as conotações de senso comum associadas à palavra submissão possam ser afastadas.

Na verdade, em condições do capitalismo, segundo Holloway (??), a subordinação é organizada de forma massiva através da separação funcional das mais pequenas partes possível das tarefas de cada missão, de modo a que a submissão simplesmente não possa ocorrer ou, melhor dito, possa ser controlada por via da alienação pessoal de cada um – e de todos – e por via da sobreposição do “poder sobre”, de tipo repressivo, relativamente ao “poder para”, de tipo cooperativo.

A noção de espírito de submissão sofre necessariamente dos males próprios do nosso tempo. Mas é imaginada assim precisamente por poder ter algum papel emancipatório, quando usada. Nomeadamente por abrir um debate junto de quem a quiser utilizar sobre dois aspectos relevantes e interligados da episte da teoria sociai: a) são as pessoas sobretudo iguais nas suas sociabilidades – face aos outros animais – ou sobretudo diferentes – perante si próprias e as respectivas civilizações, culturas e opções sociais, forçadas ou não? b) são as pessoas sobretudo indivíduos a cumprirem papeis sociais especializados ou são as pessoas e as sociedades elementos indiscerníveis da experiência especificamente humana, como forma de vida?

Para o espírito de submissão distinguimos a subordinação (negativa, susceptível à inércia da resistência) da adesão (positiva, livremente proactiva).

Canto i - Espírito de submissão: adesão

Como isto disse, o Padre poderoso,

A cabeça inclinando, consentiu

No que disse Mavorte valeroso,

E néctar sobre todos esparziu.

Pelo caminho Lácteo glorioso

Logo cada um dos Deuses se partiu,

Fazendo seus reais acatamentos,

Para os determinados aposentos.

Uma decisão institucional formaliza o sentido oficial de uma determinada missão. No caso do concílio dos Deuses, em Os Lusíadas, tratou-se de favorecer a missão dos Portugueses nas Descobertas. E tal como na vida real, também com os Deuses uma decisão tomada não significa mais do que uma atenção redobrada sobre determinado curso de acontecimentos que possam fazer sentido ou vir a fazer sentido, uma vez concretizados os passos intermédios com vista a assegurar as condições propícias à concretização a missão abstractamente almejada.

Em termos práticos, porém, uma vez publicitada uma missão, ocorrerão apoios empenhados e tantas vezes gratuitos, espontâneos, como ocorrerão possivelmente gente a construir obstáculos artificiais. Na verdade a própria construção de uma missão pode incluir a destruição da concorrência ou de projectos de acção conflituantes (ou imaginados como tal). O que significa para quem constrói uma missão dois tipos de avaliação de problemas: qual o investimento para evitar os escolhos das alianças dos inimigos ou adversários? O que pode ser imprevisível dada a característica de flexibilidade e instabilidade geral das alianças entre humanos. E qual o investimento em termos de trabalho de sapa das alianças divergentes da missão em curso?

As decisões institucionais, como as teorias em geral, podem ser classificadas em dois tipos: as consagradoras de um estado de missão já alcançado e se propõe reforça-lo – nomeadamente através do espírito de proibir, isto é da construção e difusão de tabus e sansões para comportamentos divergentes, tanto mais codificadas quanto melhor se conhecer a situação; as decisões propiciadoras de um programa de acções promotoras da transformação social, em torno de uma missão nem sempre claramente definida, mas sobretudo bem insinuada, capaz de seduzir os espíritos e mobilizá-los para os efeitos pretendidos, eventualmente à força.

Ao primeiro tipo poderemos chamar decisões jurídicas e o segundo tipo poderemos chamar decisões políticas. As primeiras aplicam-se casuisticamente a situações raras e exemplares. As segundas aplicam-se em geral e para efeitos abrangentes sobretudo e em primeiro lugar ao nível emocional e social, condicionando as actividades intencionais das pessoas preferencialmente (para os promotores das políticas em causa) para a adesão participativa no processo lançado verbalmente. Não é raro os efeitos de obstaculização superam a mobilização desejada, comprometendo o sucesso da missão.

Nesses casos, praticamente todos os casos, os promotores da intenção anunciada reforçam as possibilidades de êxito da acção por métodos coercivos, seja para neutralizar a adesão aos movimentos de construção de obstáculos, seja para atacar directamente as fontes de interesse contraditórias com a missão em causa.

Dai-me agora um som alto e sublimado,

Um estilo grandíloquo e corrente,

Em Os Lusíadas, Camões apresenta a missão dos Portugueses nos Descobrimentos e faz representar os perigos e a sorte porque passaram através não apenas da disputa entre Deuses mas também de um ponto de vista apologético da sua Fé nas suas capacidades, em grande parte misteriosas para os próprios protagonistas. Como ainda hoje o são para os historiadores que procuram entender racionalmente os factores determinantes da façanha, tão desproporcionada que aparece relativamente aos recursos disponíveis no país de então.

Não há neutralidade no poema épico, evidentemente. O que não quer dizer que tenha de faltar razão na adesão à missão social em causa ou racionalidade à análise ponderada dos factores relevantes ao sucesso da missão. Mas é perfeitamente razoável o reconhecimento pelo autor – ainda hoje em vigor para os estudiosos do assunto – da sua incapacidade (fora da vocação poética, de resto) de tudo explicar pela razão.

Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,

Para do mundo a Deus dar parte grande;

O sucesso das missões depende da sua prévia preparação (por isso Camões nos remete para a história de Portugal até então, onde se detém, à procura de sequências explicativas da extraordinária situação presente, ao tempo). Como depende da capacidade de decisão, do Infante e de Gama, nomeadamente, juntamente com todos os outros de que Camões faz protagonistas, incluindo a si próprio. E todos se determinam não de forma retórica ou mecânica, mas antes de uma forma paulatinamente mais profunda e compreensiva, até à incorporação do fazer extraordinário no quotidiano, como aconteceu com a navegação para dobrar o cabo meridional de África e com a Carreira da Índia.

As verdadeiras vossas são tamanhas,

Que excedem as sonhadas, fabulosas;

Que excedem Rodamonte, e o vão Rugeiro,

E Orlando, inda que fora verdadeiro,

A consciência do autor sobre o modo como funcionam as relações entre o que se diz e o que se faz decorre do conhecimento que tem e dos estudos que fez dos clássicos e das suas histórias, modelos para o seu próprio trabalho.

Mas enquanto este tempo passa lento

De regerdes os povos, que o desejam,

Dai vós favor ao novo atrevimento,

Para que estes meus versos vossos sejam;

E vereis ir cortando o salso argento

Os vossos Argonautas, por que vejam

Que são vistos de vós no mar irado,

E costumai-vos já a ser invocado.

Igualmente está consciente da sua função de orador (será por isso que ao longo do poema pouco se fala da função dos padres na missão das Descobertas?), para que se oferece ao Rei. Sem sucesso, como sabemos da maneira como viveu os últimos dias da sua vida.

"Agora vedes bem que, cometendo

O duvidoso mar num lenho leve,

Por vias nunca usadas, não temendo

De Áf rico e Noto a força, a mais se atreve:

Que havendo tanto já que as partes vendo

Onde o dia é comprido e onde breve,

Inclinam seu propósito e porfia

A ver os berços onde nasce o dia.

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"Prometido lhe está do Fado eterno,

Cuja alta Lei não pode ser quebrada,

Que tenham longos tempos o governo

Do mar, que vê do Sol a roxa entrada.

Nas águas têm passado o duro inverno;

A gente vem perdida e trabalhada;

Já parece bem feito que lhe seja

Mostrada a nova terra, que deseja.

Para quem fala da história, do passado, pode com segurança contra a benevolência dos Deuses, cujas desígnios e missões podem bem ser construídos ex-post por qualquer mortal. Embora essa inspiração divina, para nos expressarmos assim, não seja neutra. Pelo contrário, a exemplo da função cognitiva da história, enquanto disciplina das ciências sociais, contar histórias significa escolher um tema (ou uma missão) para o destacar do magma de acontecimentos avulso. Significa também, para além disso e em conjugação com isso, cumprir a função de estímulo à acção dos seus leitores no sentido de aderirem aos méritos (e perdoarem os defeitos) da missão em causa. No caso do poema épico a ambição é ainda maior. Pretende-se tornar o discurso num instrumento de mobilização de energias e alianças sociais a favor das Descobertas, em particular através da construção de uma identidade social nova, inovadora, como foram Os Lusíadas, musas inspiradoras de maiores feitos, inspiradas em feitos anteriores.

Enquanto isto se passa na formosa

Casa etérea do Olimpo onipotente,

Cortava o mar a gente belicosa,

Já lá da banda do Austro e do Oriente,

Entre a costa Etiópica e a famosa

Ilha de São Lourenço; e o Sol ardente

Queimava então os Deuses, que Tifeu

Com o temor grande em peixes converteu.

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Tão brandamente os ventos os levavam,

Como quem o céu tinha por amigo:

Sereno o ar, e os tempos se mostravam

Sem nuvens, sem receio de perigo.

O promontório Prasso já passavam,

Na costa de Etiópia, nome antigo,

Quando o mar descobrindo lhe mostrava

Novas ilhas, que em torno cerca e lava.

O espírito de submissão organiza a vida de uma vez por todas, para quem opta (ou é forçado) em aderir. Uma vez no mar alto não há muitas escolhas a não ser colaborar na sobrevivência colectiva, cujos escolhos – todos o sabiam – são muito grandes sobretudo para as pessoas de ordens sociais menos afortunadas.

Mas a Deusa em Citere celebrada,

Vendo como deixava a certa rota

Por ir buscar a morte não cuidada,

Não consente que em terra tão remota

Se perca a gente dela tanto amada.

E com ventos contrários a desvia

Donde o piloto falso a leva e guia.

Para todos há um abandono à sorte e aos elementos, ao cumprirem missão tão estranha, para os contemporâneos como para os modernos.

Canto i - Espírito de submissão: subordinação

Em perigos e guerras esforçados,

O espírito de submissão poupa energias nos processos de tomada de decisão e de organização geral das orientações de vida das pessoas. É muito mais económico seguir alguém ou, mais comumente, uma moda, uma forma de sentir e de fazer, copiar aquilo que outros já fazem e ignorar, não dar importância ou não levar a sério o que se diz – cuja ambiguidade é grande e cujas interpretações são múltiplas e frequentemente enganosas. Fora disso, depois disso, nada mais incerto do que haver poupanças de energia, principalmente quando a submissão significa muitos trabalhos.

Do ponto de vista biológico, não é certo que o princípio do menor esforço seja uma tendência para todos os seres humanos. Principalmente na puberdade e juventude, na verdade, a necessidade de desperdiçar energias é grande. A sua canalização para trabalho social, como as guerras ou o trabalho produtivo, tem uma história bem conhecida e recorrente, independentemente de se saber das práticas recorrentes conhecidas como “carne para canhão” e de exploração do trabalho.

Nos Descobrimentos muitos morriam pelo caminho, mas embarcavam na mesma. Com esperança ou sem ela, voluntariamente ou à força.

E não menos certíssima esperança

De aumento da pequena Cristandade;

O mote geral para a missão foi a expansão da Fé romana, cujo chapéu serviu, como é sabido, variados objectivos menores mas nem por isso menos importantes, como sejam as carreiras militar e diplomática, a continuação da expansão da fidalgia para lá do território europeu, entretanto libertado, e sobretudo o comércio tanto por grosso e atacado dos comerciantes como os benefícios económicos para a Coroa, ainda os pequenos negócios privados dos mareantes e a colonização também a cargo dos condenados.

Vós, que esperamos jugo e vitupério

Do torpe Ismaelita cavaleiro,

Do Turco oriental, e do Gentio,

Que inda bebe o licor do santo rio;

É possível imaginar uma missão apenas definida pela positiva. Mas manifestamente essa não era uma preocupação forte ao tempo da Renascença. O espírito de submissão era mobilizado em nome da Fé na Igreja de Roma mas também, em partes equivalentes ou muito parecidas, contra os Infiéis, isto é aqueles que usurparam direitos que podem justamente ser reclamados pelos povos cristãos, em unidade. Desse modo ficava estabelecida nas suas traças gerais as políticas de aliança e os alvos da acção violenta levada a cabo mesmo por gente pouco informada sobre os pormenores mais técnicos das estratégias e das tácticas utilizadas pelos respectivos senhores.

Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,

Fantásticas, fingidas, mentirosas,

Louvar os vossos, como nas estranhas

Musas, de engrandecer-se desejosas:

O espírito de submissão é, claro, susceptível de ser induzido em erro, pelo entusiasmo natural, pela reduzida energia dispendida ao nível dos processos de decisão, pela flexibilidade e complexidade das formulações estratégicas e das suas naturais mas frequentes adaptações tácticas às circunstâncias, incluindo recuos e esperas por melhores oportunidades, mais ou menos prolongados. Porque o poder de submissão é apenas uma das facetas das experiências de poder, e mesmo que seja a faceta mais comumente experimentada nunca é experimentada sozinha, quanto mais não seja quando haja concorrência entre missões contraditórias cada um poderá ter de escolher a qual aderir e na qual participar.

Ainda que não caiba na natureza do poder de submissão inquirir atentamente as fontes de legitimação das missões que se lhe são apresentadas, é parte do trabalho de proibir conseguir neutralizar, o mais possível (ou subverter se possível) as fidelidades entre aliados do campo adversário, o que se pode conseguir pela desmoralização. Quer dizer pela indução da convicção de haver na missão a que se aderiu algo de perverso mais ou menos bem definido. Ora as falhas lógicas nas justificações da missão podem ser interpretadas como formas intencionais de ludibriar e manipular os aliados e os dispostos a aderir à submissão (subempreitada de missão). Uma forma de prevenir que tal ocorra passa por evitar as lacunas lógicas – o que é praticamente impossível – e manter o espírito aberto perante qualquer crítica potencial, nomeadamente as decorrentes da própria natureza extraordinária da missão – neste caso os Descobrimentos, de facto dos eventos históricos mais transcendentes que há memória. Mas igualmente decorrente dos desejos de revelar a quem não viveu directamente os acontecimentos a sua dramaticidade, exagerando em vez de descrever aquilo que se possa ter passado.

Vasco da Gama, o forte capitão,

Que a tamanhas empresas se oferece,

De soberbo e de altivo coração,

A quem Fortuna sempre favorece,

Para se aqui deter não vê razão,

Que inabitada a terra lhe parece:

Por diante passar determinava;

Mas não lhe sucedeu como cuidava.

O poder de submissão refere-se também à concentração que na prática é central para a realização das tarefas práticas de realização das finalidades mais gerais e de mais longo prazo. Refere-se a um estado de espírito com origem em pressupostos estratégicos mas compreendidos e vividos do ponto de vista das práticas quotidianas, mais imediatas, sem que necessariamente as preocupações estratégicas estejam em cima da mesa e a debate ou consideração. Uma coisa, evidentemente, não vai sem a outra: uma missão complexa e demorada depende radicalmente da capacidade de superação de milhentos problemas menores, afinal tão importantes como os maiores, dada a sua capacidade de bloqueio das possibilidades de êxito do programa mais geral.

"E por mandado seu, buscando andamos

A terra Oriental que o Indo rega;

Por ele, o mar remoto navegamos,

Que só dos feios focas se navega.

É assim que o programa mais geral é lembrado no poema. Assim era conhecido de todos, nas suas linhas gerais.

"E já que de tão longe navegais,

Buscando o Indo Idaspe e terra ardente,

Piloto aqui tereis, por quem sejais

Guiados pelas ondas sabiamente.

Também será bem feito que tenhais

Da terra algum refresco, e que o Regente

Que esta terra governa, que vos veja,

E do mais necessário vos proveja."

A prática reclama, como aqui se disse, além do objectivo bem definido, competências, condições e protecção.

Eis nos batéis o fogo se levanta

Na furiosa e dura artilharia,

A plúmbea péla mata, o brado espanta,

Ferido o ar retumba e assovia:

O coração dos Mouros se quebranta,

O temor grande o sangue lhe resfria.

Já foge o escondido de medroso,

E morre o descoberto aventuroso.

Mas também consciência das dificuldades poderem ser, e sê-lo-ão necessariamente, artificiais. Criadas pelas sociedades humanas que para além da cooperação se caracterizam também pela belicosidade. Tanto as sociedades instaladas no terreno como, naturalmente, as sociedades que se projectam nos Descobrimentos no espaço-tempo alargado, que ainda hoje continuamos a construir paulatinamente, meio milénio depois de ficarem claros os objectivos imperiais globais da civilização ocidental.

Não se contenta a gente Portuguesa,

Mas seguindo a vitória estrui e mata;

A povoação, sem muro e sem defesa,

Esbombardeia, acende e desbarata.

Da cavalgada ao Mouro já lhe pesa,

Que bem cuidou comprá-la mais barata;

Já blasfema da guerra, e maldizia,

O velho inerte, e a mãe que o filho cria.

A violência pode facilmente tornar-se inebriante e um fim em si mesma. Sobretudo para os vencedores, excitados com as vitórias e prontos para fazerem tabu dos sofrimentos próprios, mas sobretudo dos alheios.

E vão a seu prazer fazer aguada,

Sem achar resistência, nem defesa.

Ficava a Maura gente magoada,

No ódio antigo mais que nunca acesa;

E vendo sem vingança tanto dano,

Somente estriba no segundo engano.

Não há só irracionalidade na extrema violência. Há juntamente um móbil de intimidação geral, que funciona como prevenção contra alianças opostas e favorece a sua diluição. Os passeios dos guerreiros, quando não têm oposição, devem-se aos feitos anteriores e à fama que os precede. O que não significa estarem a salvo de novas investidas; nem todas são no campo de batalha.

O Capitão, que não caía em nada

Do enganoso ardil, que o Mouro urdia,

Dele mui largamente se informava

Da Índia toda, e costas que passava.

A política é a extensão da guerra por outros meios, no dizer de Palida?? (??), invertendo os termos clássicos da equação formulada originalmente por ??

Canto ii - Espírito de submissão: adesão

O grande estrondo a Maura gente espanta,

Como se vissem hórrida batalha;

Não sabem a razão de fúria tanta,

Não sabem nesta pressa quem lhe valha;

Cuidam que seus enganos são sabidos,

E que hão de ser por isso aqui punidos.

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Ei-los subitamente se lançavam

A seus batéis velozes que traziam;

Outros em cima o mar alevantavam,

Saltando n'água, a nado se acolhiam;

De um bordo e doutro súbito saltavam,

Que o medo os compelia do que viam;

Que antes querem ao mar aventurar-se

Que nas mãos inimigas entregar-se.

A extrema violência é um meio eficaz para ultrapassar obstáculos à consecução de uma missão. Principalmente quando se sabe à partida que não há condições de cooperação da parte contrária: sobretudo quando essa parte é já inimiga de velha data. Mais ainda quando a identidade social dos promotores da missão está tradicionalmente assente precisamente no tipo de violência contra o opositor de interesses. Nem por isso a violência deixa de ser lamentável. Só que ela pode não ser vergonhosa, como parece ser o caso do Renascimento português, em que o artista se reclama das melhores causas mas não vacila perante a confirmação do valor social da violência, de uma forma que não será seguramente a mesma para o artista moderno.

Ao mensageiro o Capitão responde

As palavras do Rei agradecendo:

E diz que, porque o Sol no mar se esconde,

Não entra para dentro, obedecendo;

Porém que, como a luz mostrar por onde

Vá sem perigo a frota, não temendo,

Cumprirá sem receio seu mandado,

Que a mais por tal senhor está obrigado.

A submissão activa não é necessariamente contagiosa. Quando se trata de acções singulares fora dos quadros de institucionalização de processos, a neutralidade de outrem pode bem ser satisfatória – no caso vertente trata-se de uma viagem de apresentação e de exploração para avaliar a melhor forma de organizar a carreira da Índia, cujo resultado terá sido a instrução de os navios evitarem, a menos de casos de força maior, fazer escala antes de chegar ao destino final, no subcontinente indiano.

Mas aquele que sempre a mocidade

Tem no rosto perpétua, e foi nascido

De duas mães, que urdia a falsidade

Por ver o navegante destruído,

Estava numa casa da cidade,

Com rosto humano e hábito fingido,

Mostrando-se Cristão, e fabricava

Um altar sumptuoso, que adorava.

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Ali tinha em retrato afigurada

Do alto e Santo Espírito a pintura:

A cândida pombinha debuxada

Sobre a única Fénix, Virgem pura;

A companhia santa está pintada

Dos doze, tão torvados na figura,

Como os que, só das línguas que caíram,

De fogo, várias línguas referiram.

A não-violência torna menos claros os campos a polarizar, relativamente ao empenho em realizar ou impedir a realização da missão. A tentativa de destruição dos corpos, substituída pela conversa fiada, venha escolher quem possa qual pode ser mais obstaculizadora.

E destas brandas mostras comovido,

Que moveram de um tigre o peito duro,

Co'o vulto alegre, qual do Céu subido,

Torna sereno e claro o ar escuro,

As lágrimas lhe alimpa, e acendido

Na face a beija, e abraça o colo puro;

De modo que dali, se só se achara,

Outro novo Cupido se gerara.

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E co'o seu apertando o rosto amado,

Que os soluços e lágrimas aumenta,

Como menino da ama castigado,

Que quem no afaga o choro lhe acrescente,

Por lhe pôr em sossego o peito irado,

Muitos casos futuros lhe apresenta.

Dos fados as entranhas revolvendo,

Desta maneira enfim lhe está dizendo:

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"Formosa filha minha, não temais

Perigo algum nos vossos Lusitanos,

Nem que ninguém comigo possa mais,

Que esses chorosos olhos soberanos;

Que eu vos prometo, filha, que vejais

Esquecerem-se Gregos e Romanos,

Pelos ilustres feitos que esta gente

Há-de fazer nas partes do Oriente.

Perante a inocência do vulgo, aqui representado por uma criança, alheio à missão e aos partidos que por ela se disputam, a bondade da convicção torna-se ternura, em vez de guerra ou política.

O Capitão ilustre, já cansado

De vigiar a noite que arreceia,

Breve repouso então aos olhos dava,

A outra gente a quartos vigiava;

A submissão, mais do que uma poupança de energias, é um empenho de todas as energias num propósito partilhado. O símbolo de tal partilha vem de cima, neste caso do Capitão ilustre, ou não virá. Sendo de esperar efeitos práticos ao nível dos níveis de empenhamento e disponibilidade para as tarefas árduas necessárias ao cumprimento da missão.

Alevanta-se nisto o movimento

Dos marinheiros, de uma e de outra banda;

Levam gritando as âncoras acima,

Mostrando a ruda força, que se estima.

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Neste tempo, que as âncoras levavam,

Na sombra escura os Mouros escondidos

Mansamente as amarras lhe cortavam,

Por serem, dando à costa, destruídos;

Mas com vista de linces vigiavam

Os Portugueses, sempre apercebidos.

Eles, como acordados os sentiram,

Voando, e não remando, lhe fugiram.

O empenhamento e a disponibilidade mesmo e sobretudo dos parceiros de missão mais humildes fez a diferença nesta missão, como noutras. Sendo pouco diferente servir o rei português ou mouro, porque atentariam os marinheiros nas estratégias deste último para desestabilizar a missão?

E como o Gama muito desejasse

Piloto para a Índia que buscava,

Cuidou que entre estes Mouros o tomasse;

Mas não lhe sucedeu como cuidava,

Que nenhum deles há que lhe ensinasse

A que parte dos céus a Índia estava;

Porém dizem-lhe todos, que tem perto

Melinde, onde achará piloto certo.

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Louvam do Rei os Mouros a bondade,

Condição liberal, sincero peito,

Magnificência grande e humanidade,

Com partes de grandíssimo respeito.

O Capitão o assela por verdade,

Porque já lhe dissera, deste jeito,

Cileneu em sonhos; e partia

Para onde o sonho e o Mouro lhe dizia.

Apesar das circunstâncias gerais de animosidade, o certo é que os portugueses tinham que fazer contas não apenas com a adversidade dos muçulmanos, mas também com a eventual boa-fé e ajuda de quem o possa fazer, mesmo sendo muçulmano mas sem estar implicado negativamente nas consequências prováveis da missão.

Lhe manda rogar muito que saíssem,

Para que de seus reinos se servissem.

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São oferecimentos verdadeiros,

E palavras sinceras, não dobradas,

A colaboração desinteressada também existe e é experimentada em toda a parte. E também integra a natureza humana, tão contraditória naquilo a que se dispõe. Na verdade a submissão pode reunir interesse próprio, constrangimentos entre parceiros e ataques entre adversários, empatia sem condições.

"Mas tu, e quem mui certo confiamos

Achar-se mais verdade, ó Rei benigno,

E aquela certa ajuda em ti esperamos,

Que teve o perdido Ítaco em Alcino,

A teu porto seguro navegamos,

Conduzidos do intérprete divino;

Que, pois a ti nos manda, está mui claro,

Que és de peito sincero, humano e raro.

Provavelmente tal postura rara, como diz o autor, é em si mesma uma missão para certas gentes, empenhadas em tranquilizar quanto possam a vida ou em oferecer caminho mais leve aos entusiasmados com missões meritórias.

E com risonha vista e ledo aspeito,

Responde ao embaixador, que tanto estima:

"Toda a suspeita má tirai do peito,

Nenhum frio temor em vós se imprima;

Que vosso preço e obras são de jeito

Para vos ter o mundo em muita estima;

E quem vos fez molesto tratamento,

Não pode ter subido pensamento.

Canto ii - Espírito de submissão: subordinação

A violência utilizada pode ser explícita ou implícita. Pode ser a violência usada contra as sociedades que se quer transformar para cumprir a missão. Pode ser a violência genérica – as penas aplicadas aos condenados – mobilizada arbitrariamente, quando se entende necessário, por exemplo, para minimizar danos na vida das pessoas que apoiem a missão mas não façam desse apoio uma questão de vida ou de morte.

E de alguns que trazia condenados

Por culpas e por feitos vergonhosos,

Por que pudessem ser aventurados

Em casos desta sorte duvidosos,

A produção de condenados foi e é usada para muitos fins políticos (por oposição a bélicos). E também foi usada nas Descobertas e, em geral, no programa imperial ocidental. De que talvez o efeito mais conhecido foi a colonização de todo um continente, a Austrália, por condenados deportados a cumprir pena em desterro. Para o tráfico de escravos os pretextos jurídicos não tiveram importância (ao contrário do que ocorreu com os anos após a abolição da escravatura, quando os exploradores de escravos procuraram e nalguns casos conseguiram justificar judicialmente a continuação da exploração, cf. Escravatura com otro nome ??).

Não foram só os negros a quem impuseram vidas e tarefas arriscadas. Também os condenados portugueses foram mobilizados à força. Provavelmente em quantidades maiores do que as que se tem informação.

"Bem nos mostra a divina Providência

Destes portos a pouca segurança;

Bem claro temos visto na aparência,

Que era enganada a nossa confiança.

Mas pois saber humano nem prudência

Enganos tão fingidos não alcança,

Ó tu, Guarda Divina, tem cuidado

De quem sem ti não pode ser guardado!

32

"E se te move tanto a piedade

Desta mísera gente peregrina,

Que só por tua altíssima bondade,

Da gente a salvas pérfida e malina,

Nalgum porto seguro de verdade

Conduzir-nos já agora determina,

Ou nos amostra a terra que buscamos,

Pois só por teu serviço navegamos."

Na verdade todas as ajudas são bem-vindas para cumprir a missão, cujos contornos são tão vagos como aqueles a que se deitaram os navegadores. Desde as divindades aos escravos, passando pelos pilotos mouros e condenados portugueses.

Tinha uma volta dado o Sol ardente

E noutro começava, quando viram

Ao longe deus navios, brandamente

Co'os ventos navegando, que respiram:

Porque haviam de ser da Maura gente,

Para eles arribando, as velas viram:

Um, de temor do mal que arreceava,

Por se salvar a gente à costa dava.

69

Não é o outro que fica tão manhoso;

Mas nas mãos vai cair do Lusitano,

Sem o rigor de Marte furioso,

E sem a fúria horrenda de Vulcano;

Que como fosse débil e medroso

Da pouca gente o fraco peito humano,

Não teve resistência; e se a tivera,

Mais dano resistindo recebera.

A valentia e bravura do marinheiro lusitano não está em causa. Mas o temor dos adversários revela várias coisas: a superioridade militar das naus ibéricas no oceano Índico, cf. Tomates (??), a fama que precedia os navegadores (aparentemente logo na primeira viagem) e a regularidade do destino dos seus adversários em combate, a fazer lembrar os piratas dos livros do Asterix.

"E não cuides, ó Rei, que não saísse

O nosso Capitão esclarecido

A ver-te, ou a servir-te, porque visse

Ou suspeitasse em ti peito fingido:

Mas saberás que o fez, porque cumprisse

O regimento, em tudo obedecido,

De seu Rei, que lhe manda que não saia,

Deixando a frota, em nenhum porto ou praia.

84

"E porque é, de vassalos o exercício,

Que os membros tem regidos da cabeça,

Não quererás, pois tens de Rei o ofício,

Que ninguém a seu Rei desobedeça;

Mas as mercês e o grande benefício,

Que ora acha em ti, promete que conheça

Em tudo aquilo que ele e os seus puderem,

Enquanto os rios para o mar correrem."

Novamente Camões se refere a preceitos preconcebidos sobre o comportamento dos portugueses, mas desta vez na boca deles próprios conscientemente anunciados como determinações superiores. É certo que a tal distância de casa, um tal respeito pela norma tornaria os portugueses do século XV outra etnia que não aquela que hoje conhecemos. É, noentanto, possível interpretar esta passagem como uma forma de evitar correr riscos sem perder a simpatia aparente dos poderes estabelecidos na zona. Como também se pode interpretar como resultado de formação prévia, provavelmente na escola de Sagres, onde certas orientações mais importantes eram firmemente fixadas nas mentes dos capitães, juntamente com as respectivas justificações, de modo a que as usassem com conhecimento de causa, sem o que a memorização normativa seria insuficiente para os efeitos práticos pretendidos.

Canto iii - Espírito de submissão: adesão

Canto iii - Espírito de submissão: subordinação

E para dizer tudo, temo e creio,

Que qualquer longo tempo curto seja:

Mas, pois o mandas, tudo se te deve,

Irei contra o que devo, e serei breve.

O poder da submissão pode ser mobilizada por cortesia, para favor de terceiros e seu prazer, como uma arte de agradar, para o que os artistas estão particularmente vocacionados. Neste caso Gama corresponde nesses termos à solicitação de um rei com o qual avalia a possibilidade de colaboração ou mesmo aliança para a missão dos portugueses.

E não vê a soberba o muito que erra

Contra Deus, contra o maternal amor;

Mas nela o sensual era maior.

Nesta referência à luta do fundador da nacionalidade contra sua mãe Camões distingue a submissão maior à causa nacional da submissão menor à causa sensual, provavelmente descrita assim como forma de minimizar as opções e a vontade dos derrotados dessa contenda.

"E tu, nobre Lisboa, que no Mundo

Facilmente das outras és princesa,

Que edificada foste do facundo,

Por cujo engano foi Dardânia acesa;

Tu, a quem obedece o mar profundo,

Obedeceste à força Portuguesa,

Ajudada também da forte armada,

Que das Boreais partes foi mandada.

A geo-estratégia emerge aqui simbolicamente fixada na importância da capital do Império, para quem são mobilizados afectos e honrarias, como forma de reforço simbólico da determinação da missão.

"Já se ia o Sol ardente recolhendo

Para a casa de Tethys, e inclinado

Para o Ponente, o Véspero trazendo,

Estava o claro dia memorado,

Quando o poder do Mauro grande e horrendo

Foi pelos fortes Reis desbaratado,

Com tanta mortandade, que a memória

Nunca no mundo viu tão grã vitória.

Mas o maior e mais emocionante símbolo de poder e o maior instigador de submissão continua a ser a violência extrema. Violência usada mesmo entre portugueses e entre membros da mesma família: a própria família real, como é relato no caso de Inês de Castro. Cujos efeitos de submissão são efectivos para o príncipe (pelo menos enquanto seu pai não lhe deixou o reino em herança).

Mas se to assim merece esta inocência,

Põe-me em perpétuo e mísero desterro,

Na Cítia f ria, ou lá na Líbia ardente,

Onde em lágrimas viva eternamente.

129

"Põe-me onde se use toda a feridade,

Entre leões e tigres, e verei

Se neles achar posso a piedade

Que entre peitos humanos não achei:

Ali com o amor intrínseco e vontade

Naquele por quem morro, criarei

Estas relíquias suas que aqui viste,

Que refrigério sejam da mãe triste." -

Canto iv - Espírito de submissão: adesão

A violência e a guerra é, todos os sabemos (ainda que não gostemos), um factor de coesão identitária. Girard (??) revela-nos serem elas mais fundamentais do queremos querer e mais profundas dos que possamos adivinhar. Fala-nos do genocídio que está sistematicamente cantado na origem mítica (e provavelmente factual) dos povos, antigos e modernos, simples e complexos.

A identidade é, ao mesmo tempo, uma chantagem emocional ameaçadora e amorosa, opressiva e voluntária, como a coerção social de que nos fala Durkheim.

"Como! Da gente ilustre Portuguesa

Há-de haver quem refuse o pátrio Marte?,

Como! Desta província, que princesa

Foi das gentes na guerra em toda a parte,

Há-de sair quem negue ter defesa?

Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte

De Português, e por nenhum respeito

O próprio Reino queira ver sujeito?

A identidade social e o amor referem-se a um todo, sem partes divisíveis. Gostar ou partilhar a vida social com alguém significa tomar como seu – no sentido de identificar-se socialmente com o convívio de – não apenas as virtudes mas também os defeitos e até perversidades de outrem. O que inclui uma reserva especial na menção de tudo o que não sejam as virtudes (ou os aspectos virtuosos da identidade em causa) na medida que isso é também parte da apresentação pessoal de cada um. Mas sobretudo um acto de solidariedade social.

Vão correndo e gritando a boca aberta:

- "Viva o famoso Rei que nos liberta!"-

Toda a identidade do próprio e do outro que se agrupam socialmente é simbolicamente unida nalguma entidade cujo valor é a síntese das virtudes sociais, neste caso o Rei.

"Das gentes populares, uns aprovam

A guerra com que a pátria se sustinha;

Uns as armas alimpam e renovam,

Que a ferrugem da paz gastadas tinha;

Capacetes estofam, peitos provam,

Arma-se cada um como convinha;

Outros fazem vestidos de mil cores,

Com letras e tenções de seus amores.

Nas lutas sociais, não admira, tomar partido pelo Rei que melhor representa a identidade que se pretenda alimentar substituiu a luta por esperanças concretamente formuladas de um certo modo de viver. Modo esse muitas vezes demasiado vago para poder ser expresso em poucas palavras – se alguma vez poder ser verdadeiramente completa – e eventualmente iludido pelos próprios interesses dos grupos dominantes que usam o poder sobretudo em seu proveito.

São frequentemente emoções mais do que razões, impressões mais do que conhecimentos, intuições mais do que certezas que mobilizam as pessoas, eventualmente animadas de uma forma difícil de compreender por quem não tenha sido apanhado por esse sentimento.

Não sei por que razão, por que respeito,

Ou por que bom sinal que em mi se via,

Me põe o ínclito Rei nas mãos a chave

Deste cometimento grande e grave.

Canto iv - Espírito de submissão: subordinação

Por vós, ó Rei, o espírito e a carne é pronta."

A forma como as identidades sociais se impõe aos indivíduos e às sociedades, de forma frequentemente maniqueísta, reclama respeitabilidade, em particular pelos seus símbolos. Quando o símbolo é humano, a sua subjectividade naturalmente conta para a apreciação social do que sejam os limites da tolerância social aos modos de convívio com outras entidades sociais. O que não significa que as subjectividades reais, neste caso, não possam ser escrutinadas ou pelo menos sentidas pelas sociedades de formas diferentes. Nuns casos deslocadas da realidade e da ponderação razoável ou útil da história; noutros casos a merecer apoio empenhado do corpo social, havendo entre estas duas atitudes outras mistas e intermédias.

A declaração pública do modo de adesão ao apelo superior para a mudança de estado de espírito social – entre a paz e a guerra, neste caso particular – define o estado de coesão social e também a qualidade do apelo identitário adoptado pelos grupos dirigentes.

Para o sumo Poder que a etérea corte

Sustenta só coa vista veneranda,

Imploramos favor que nos guiasse,

E que nossos começos aspirasse.

Dali para a frente as rotinas anteriores perdem sentido e pertinência. Novas formas de socialização são requeridas, emergem e são paulatinamente construídas, a todos os níveis sociais. As funções sociais de cada instituição são também distintas e sobretudo mais exigentes por parte de quem assume a responsabilidade dupla de representar e reorganizar a sociedade.

"A gente da cidade aquele dia,

(Uns por amigos, outros por parentes,

Outros por ver somente) concorria,

Saudosos na vista e descontentes.

E nós coa virtuosa companhia

De mil Religiosos diligentes,

Em procissão solene a Deus orando,

Para os batéis viemos caminhando.

89

"Em tão longo caminho e duvidoso

Por perdidos as gentes nos julgavam;

As mulheres c'um choro piedoso,

Os homens com suspiros que arrancavam;

Mães, esposas, irmãs, que o temeroso

Amor mais desconfia, acrescentavam

A desesperarão, e frio medo

De já nos não tornar a ver tão cedo.

As incertezas são muitas e o conforto mental é procurado em processos holistas, em que tudo deve estar ligado entre si de modo favorável. A identidade em causa faz retornar o sentimento básico que junta em última instâncias as sociedades e os seus componentes contraditórios numa única entidade: o medo.

"Mas ele enfim, com causa desonrado,

Diante dela a ferro frio morre,

De outros muitos na morte acompanhado,

Que tudo o fogo erguido queima e corre:

Quem, como Astianás, precipitado,

(Sem lhe valerem ordens) de alta torre,

A quem ordens, nem aras, nem respeito;

Quem nu por ruas, e em pedaços feito.

O medo é sobretudo medo da morte. Da morte dos indivíduos e dos seus associados em sociedade, a começar pela família. Medo que se sobrepõe à vergonha e facilita o pior que as guerras permitem e sistematicamente ocorre, no silêncio das identidades emergentes e selectivas (como todas) do que querem lembrar-se sobre aquilo que foi feito para forjar a renovação da identidade social em risco.

Cornélio moço os faz que, compelidos

Da sua espada, jurem que as Romanas

Armas não deixarão, enquanto a vida

Os não deixar, ou nelas for perdida:

E tal como não serão as perversidades de cada identidade a determinar o rearranjo das mesmas, também não são as perversidades das guerras que as transformam em algo moralmente aceitável.

"Respondem as trombetas mensageiras,

Pífaros sibilantes e atambores;

Alférezes volteam as bandeiras,

Que variadas são de muitas cores.

Era no seco tempo, que nas eiras

Ceres o fruto deixa aos lavradores,

Entra em Astreia o Sol, no mês de Agosto,

Baco das uvas tira o doce mosto.

São as festas e as paradas aí incluídas algumas das formas de manifestação da presença de identidades sociais e das suas virtudes, nomeadamente as de sociabilidade alargada e tolerância, naturalmente contraditória com a história mas bem fundada no momento próprio, sobretudo se for apropriado.

- "Ó tu, a cujos reinos e coroa

Grande parte do mundo está guardada,

Nós outros, cuja fama tanto voa,

Cuja cerviz bem nunca foi domada,

Te avisamos que é tempo que já mandes

A receber de nós tributos grandes.

74

- "Eu sou o ilustre Ganges, que na terra

Celeste tenho o berço verdadeiro;

Estoutro é o Indo Rei que, nesta serra

Que vês, seu nascimento tem primeiro.

Custar-te-emos contudo dura guerra;

Mas insistindo tu, por derradeiro,

Com não vistas vitórias, sem receio,

A quantas gentes vês, porás o freio."-

Se a festa atrai a comunhão entre estranhos, a superioridade pode marcar também essas ocasiões, propícias a trocar expressões violentas de poder em disputa por relações de subordinação acatadas.

Certifico-te, ó Rei, que se contemplo

Como fui destas praias apartado,

Cheio dentro de dúvida e receio,

Que apenas nos meus olhos ponho o freio.

No caso dos Descobrimentos o medo de morte e também do sentido geral do empreendimento são reais e efectivamente sentidos, como o testemunha Camões nestes versos. A missão inclui, portanto, uma dimensão de subordinação que todavia dará azo a rotinas em breve estabelecidas – como a da carreira da índia – em que a morte não deixa de estar presente mas de tal forma que pelo menos ao nível social os medos se tornam mais suaves ou desaparecem mesmo, como acontece modernamente com os riscos de andar nas estradas, com os mortos e estropiados tão estranhamente ignorados pelos sentimentos públicos, determinados a não prescindir das rotinas positivamente valorizadas como parte integrante das exposições das identidades sociais de cada um.

"Qual vai dizendo: -" Ó filho, a quem eu tinha

Só para refrigério, e doce amparo

Desta cansada já velhice minha,

Que em choro acabará, penoso e amaro,

Por que me deixas, mísera e mesquinha?

Por que de mim te vás, ó filho caro,

A fazer o funéreo enterramento,

Onde sejas de peixes mantimento!" -

91

"Qual em cabelo: -"Ó doce e amado esposo,

Sem quem não quis Amor que viver possa,

Por que is aventurar ao mar iroso

Essa vida que é minha, e não é vossa?

Como por um caminho duvidoso

Vos esquece a afeição tão doce nossa?

Nosso amor, nosso vão contentamento

Quereis que com as velas leve o vento?" -

92

"Nestas e outras palavras que diziam

De amor e de piedosa humanidade,

Os velhos e os meninos os seguiam,

Em quem menos esforço põe a idade.

Os montes de mais perto respondiam,

Quase movidos de alta piedade;

A branca areia as lágrimas banhavam,

Que em multidão com elas se igualavam.

Os sofrimentos decorrentes das opções sociais assumidas tornam-se questões privadas, como bem sabem os veteranos de guerra e os seus familiares.

Canto v - Espírito de submissão: adesão

Uma missão é sempre misteriosa, indefinida, arriscada, no caso dos Descobrimentos temerária. Será património da identidade social, para o melhor e para o pior, apesar de todos os filtros de representação e memória se lhe aplicam.

É relevante para os que viveram a missão como para quem a observa de mais longe, como nós, ser D. Henrique singular símbolo duma missão de âmbito nacional e de impacto global transcendente, bem como o facto de até hoje a sua pessoa ter-se mantido discretamente misteriosa mas firme.

"Assim fomos abrindo aqueles mares,

Que geração alguma não abriu,

As novas ilhas vendo e os novos ares,

Que o generoso Henrique descobriu;

De Mauritânia os montes e lugares,

Terra que Anteu num tempo possuiu,

Deixando à mão esquerda; que à direita

Não há certeza doutra, mas suspeita.

O facto de estarem em missão em nome de uma civilização, para a expandir, no quadro de extensas relações de poder, para as alargar, dava aos navegadores o quadro sobre como interpretar as acções dos diferentes interlocutores: desinteressantes quando não podiam oferecer comércio e subordinadas quando amistosas…

"Mas logo ao outro dia, seus parceiros,

Todos nus, e da cor da escura treva,

Descendo pelos ásperos outeiros,

As peças vêm buscar que estoutro leva:

Domésticos já tanto e companheiros

Se nos mostram,

Monstruosas quando apresentação perigos desconhecidos:

"Assim contava, e com um medonho choro

Súbito diante os olhos se apartou;

Desfez-se a nuvem negra, e com um sonoro

Bramido muito longe o mar soou.

Eu, levantando as mãos ao santo coro

Dos anjos, que tão longe nos guiou,

A Deus pedi que removesse os duros

Casos, que Adamastor contou futuros.

Essas leituras das experiências vividas tornaram-se mais agudas e intensas porque a vida nas naus aprisionava os navegadores dentro de si próprios, no espaço exíguo e sobrelotado, sem grandes recursos. Na situação os expedientes para manter a salubridade, física e mental, eram uma prioridade, eventualmente insuficiente para evitar todos os efeitos da longa clausura forçada.

"Aqui de limos, cascas e d'ostrinhos,

Nojosa criação das águas fundas,

Alimpamos as naus, que dos caminhos

Longos do mar, vêm sórdidas e imundas.

Dos hóspedes que tínhamos vizinhos,

Com mostras aprazíveis e jocundas,

louvemos sempre o usado mantimento,

Limpos de todo o falso pensamento.

Tensão grande que gerava nos mareantes o forte desejo e a grande sensibilidade para os ambientes apaziguadores dos medos quotidianos e inquietantes.

"Até que aqui no teu seguro porto,

Cuja brandura e doce tratamento

Dará saúde a um vivo, e vida a um morto,

Nos trouxe a piedade do alto assento.

Aqui repouso, aqui doce conforto,

Nova quietação do pensamento

Canto v - Espírito de submissão: subordinação

Para além dos aspectos psicológicos resultantes da submissão, da disponibilização para o cumprimento das tarefas capazes de tornar realidade a ideia da missão, Camões regista os aspectos objectivos, como os comportamentos do mar e dos céus…

"Contar-te longamente as perigosas

Coisas do mar, que os homens não entendem:

Súbitas trovoadas temerosas,

Relâmpados que o ar em fogo acendem,

Negros chuveiros, noites tenebrosas,

Bramidos de trovões que o mundo fendem,

Os mal-entendidos com povos desconhecidos …

"E sendo já, Veloso em salvamento,

Logo nos recolhemos para a armada,

Vendo a malícia feia e rudo intento

Da gente bestial, bruta e malvada,

A necessidade de recrutamento de competências e recursos indisponíveis a borde mas necessários para levar a carta a Garcia.

Alegria muito grande foi por certo

Acharmos já pessoas que sabiam

Navegar, porque entre elas esperamos

De achar novas algumas, como achamos.

Canto vi - Espírito de submissão: adesão

Nos contos para entreter o tempo a bordo exprimem-se ainda os mesmos sentimentos de submissão embora noutras condições. As distracções da vida presente a bordo recordam, na terra firme, os compromissos sociais dos contadores e ouvintes, tanto para com as relações sociais quotidianas como para com as relações sociais de poder, e o modo com estas se cruzam na teia das vidas de cada qual:

"Este, que socorrer-lhe não queria,

Por não causar discórdias intestinas,

Lhe diz: — "Quando o direito pretendia

Do reino lá das terras Iberinas,

Nos Lusitanos vi tanta ousadia,

Tanto primor, e partes tão divinas,

Que eles sós poderiam, se não erro,

Sustentar vossa parte a fogo e ferro.

49

"E se, agravadas damas, sois servidas,

Por vós lhe mandarei embaixadores,

Que, por cartas discretas e polidas,

De vosso agravo os façam sabedores.

Também por vossa parto encarecidas

Com palavras de afagos e de amores

Lhe sejam vossas lágrimas, que eu creio

Que ali tereis socorro e forte esteio." -

Canto vi - Espírito de submissão: subordinação

Nem só os mareantes portugueses estavam imbuídos do espírito de submissão. Sem o apoio de muitos outros interlocutores e circunstâncias os descobridores não teriam podido fazê-lo do mesmo modo. Disso nos dá conta o poema:

Mas vendo o Capitão que se detinha

Já mais do que devia, e o fresco vento

O convida que parta e tome asinha

Os pilotos da terra e mantimento,

Não se quer mais deter, que ainda tinha

Muito para cortar do salso argento;

Já do Pagão benigno se despede,

Que a todos amizade longa pede.

O que significa que o espírito de submissão se organiza socialmente e nas pessoas sem necessidade de conhecimento sobre qual seja a missão. Do que acima vimos ser a condições de submissão – nomeadamente a insuficiência e por vezes a dispensabilidade do conhecimento para se mobilizar o estado de espírito aqui tratado, sendo suficiente os apelos identitários pretéritos ou potenciais e as respectivas projecções no futuro – podemos deduzir para quem não possa ser sensibilizado do mesmo modo, por não partilhar as mesmas identidades, para o efeito de simples acolhimento e hospitalidade, o espírito de submissão pode ser muito menos exigente.

A participação de recentes conhecidos nos trabalhos da missão, em função das respectivas disponibilidades, por mera simpatia, pode ser uma questão de opção filosófica de vida. A partilha sincera de experiências e de apoios para minimizar a instabilidade própria da vida de seja quem for pode ser, sempre foi e há-de continuar a ser uma possibilidade de boa vida, para quem a saiba viver assim.

Que tanto tempo há já que vai buscando.

No piloto que leva não havia

Falsidade, mas antes vai mostrando

A navegação certa, e assim caminha

Já mais seguro do que dantes vinha.

São pessoas iguais às outras, essas que escolhem viver melhor sendo solidárias e descomprometidas com as missões alheias. Por isso os capitães portugueses, na sua função de orientação prática das tarefas, mantinham-se alerta. Apesar da compreensão que tinham da benignidade do comportamento desses seus interlocutores, na verdade o engano (nosso ou de outros) não se pode descartar, se se quiser ser competente.

Já finalmente todos assentados

Na grande sala, nobre e divinal;

As Deusas em riquíssimos estrados,

Os Deuses em cadeiras de cristal,

Foram todos do Padre agasalhados,

Que com o Tebano tinha assento igual.

De fumos enche a casa a rica massa

Que no mar nasce, e Arábia em cheiro passa.

Os mistérios para os leigos de como se fazem as decisões nas altas esferas sociais são encenados no Olimpo por Camões, ao gosto da Renascença. Mas ao mesmo tempo trazidas para a história de Portugal, através de episódios pungentes, como este:

A feminil fraqueza Pouco usada,

Ou nunca, a opróbrios tais, vendo-se nua

De forças naturais convenientes,

Socorro pede a amigos e parentes.

46

"Mas como fossem grandes e possantes

No reino os inimigos, não se atrevem

Nem parentes, nem férvidos amantes,

A sustentar as damas, como devem.

Com lágrimas formosas e bastantes

A fazer que em socorro os Deuses levem

De todo o Céu, por rostos de alabastro,

Se vão todas ao duque de Alencastro.

Embora a nacionalidade fosse então qualquer coisa de distinto do nacionalismo de que somos herdeiros, após o século XIX, já no século XVI parecia mais fácil usar palavras duras para com os estrangeiros do que para os patrícios. Fossem eles tomados como inferiores, como os africanos, ou superiores, como os ingleses.

Cai a soberba Inglesa de seu trono,

Há situações em que a submissão é decisiva para a sobrevivência, e em que o medo em vez de paralisar é mobilizado para a solidariedade organizada em determinação de fazer o melhor possível aquilo que alguém assuma saber fazer.

O céu fere com gritos nisto a gente,

Com súbito temor e desacordo,

Que, no romper da vela, a nau pendente

Toma grã suma d'água pelo bordo:

"Alija, disse o mestre rijamente,

Alija tudo ao mar; não falte acordo.

Vão outros dar à bomba, não cessando;

A bomba, que nos imos alagando!"

Em casos de confronto com as forças da natureza, claro, a pequenez das pessoas, mesmo quando organizadas, depende para a sobrevivência da clemência dos elementos, também ela (como os processos de decisão) antropomorfizada pelo poeta em seres sobrenaturais, neste caso mais sedutores que autoritários.

Assim foi; porque, tanto que chegaram

A vista delas, logo lhe falecem

As forças com que dantes pelejaram,

E já como rendidos lhe obedecem.

Os pés e mãos parece que lhe ataram

Os cabelos que os raios escurecem.

A Bóreas, que do peito mais queria,

Assim disse a belíssima Oritia:

Na verdade não se luta corpo a corpo com o meio ambiente, porque a humanidade é parte integrante desse mesmo ambiente. É por isso o amor mais adequado para exprimir as lutas intestinas entre os navegantes e a aventura da navegação oceânica.

Desta maneira as outras amansavam

Subitamente os outros amadores;

E logo à linda Vénus se entregavam,

Amansadas as iras e os furores.

Ela lhe prometeu, vendo que amavam,

Sempiterno favor em seus amores,

Nas belas mãos tomando-lhe homenagem

De lhe serem leais esta viagem.

A persistência, a presciência, a intencionalidade secularmente construída, impunham o sucesso da navegação? Talvez. Mas para quem se encarregou na prática de realizar tal desiderato não pode ter tanta a certeza como o historiador que verifica o facto.

"Esta é por certo a terra que buscais

Da verdadeira Índia, que aparece;

E se do mundo mais não desejais,

Vosso trabalho longo aqui fenece."

Sofrer aqui não pode o Gama mais,

De ledo em ver que a terra se conhece:

Os geolhos no chão, as mãos ao céu,

A mercê grande a Deus agradeceu.

Canto vii - Espírito de submissão: adesão

Parece que já ao tempo das Descobertas aos portugueses era dado viver experiências de singular fraternidade com gentes remotas, como hoje ainda beneficiamos em muitas partes do mundo do prestígio da presença dos nossos antepassados pelos cantos mais exóticos.

O Português aceita de vontade

O que o ledo Monçaide lhe oferece;

Como se longa fora já a amizade,

Com ele come, e bebe, e lhe obedece.

Ambos se tornam logo da cidade

Há quem fale e procure caracterizar o carácter português como explicação não apenas para os protocolos de sociabilidade mas também para o próprio decurso da história. Nomeadamente a nossa proximidade com o Mouro, nos negócios, no convívio e na menor racionalidade na organização da vida colectiva.

Para a frota, que o Mouro bem conhece;

Sobem à capitania; e toda a gente

Monçaide recebeu benignamente.

29

O Capitão o abraça em cabo ledo,

Ouvindo clara a língua de Castela;

Junto de si o assenta, e pronto e quedo,

Pela terra pergunta, e cousas dela.

Qual se ajuntava em Ródope o arvoredo,

Só por ouvir o amante da donzela

Eurídice, tocando a lira de ouro,

Tal a gente se ajunta a ouvir o Mouro.

A feira e o comércio são tanto ou mais um modo de acumular riqueza que um modo de conviver e conhecer:

Mas ele, que do Rei já tem licença

Para desembarcar, acompanhado

Dos nobres Portugueses, sem detença

Parte, de ricos panos adornado.

Prática efectivamente familiar e confortável para vasco da Gama, e ao seu gosto.

Na praia um regedor do Reino estava,

Que na sua língua Catual se chama,

Rodeado de Naires, que esperava

Com desusada festa o nobre Gama.

Aqui Camões fala do modo como a vida e a morte de cada mareante daquela missão se lhes apresentava de um modo social, como parte de uma processo mais geral com sentido grandioso, perante o qual a sequência existencial organizava o seu sentido elevado.

Aqueles sós direi, que aventuraram

Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,

Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,

Tão bem de suas obras merecida.

Apolo, e as Musas que me acompanharam,

Me dobrarão a fúria concedida,

Enquanto eu tomo alento descansado,

Por tornar ao trabalho, mais folgado.

Canto vii - Espírito de submissão: subordinação

Os processos idiossincráticos de afirmar a distinção entre ordens sociais distintas e hierarquizadas também aparecem no texto, neste caso como estranheza pela forma invulgar, para os costumes lusos.

Já na terra, nos braços o levava,

E num portátil leito uma rica cama

Lhe oferece, em que vá, costume usado,

Que nos ombros dos homens é levado.

O que Camões renega não é os costumes e a concentração de poder mas antes o uso da missão como pretexto para alimentar finalidades privadas, em seu detrimento.

Nem creiais, Ninfas, não, que a fama desse

A quem ao bem comum e do seu Rei

Antepuser seu próprio interesse,

Inimigo da divina e humana Lei.

O autor não podia deixar de conhecer as liberdades de comércio e as atribuições de méritos e honras aos navegadores, conforme a respectiva condição e circunstância. Não estaria, imagina-se, a condenar a exploração de direitos outorgados pela Coroa, mas antes a contestar aqueles que esquecem o fim último e primeiro da missão que lhes era confiada.

Canto viii - Espírito de submissão: adesão

A fé numa identidade maior que a pessoa é uma das características indispensáveis aos guerreiros de todos os tempos, sejam eles clássicos, renascentistas ou modernos. Essa identidade maior justifica a submissão pessoal a interesses maiores merecedores de sacrifícios pessoais, em nome da missão, dos seus símbolos, como os dirigentes, e do futuro da identidade maior, Deus, Portugal, a casa nobre de cada qual já existente ou em devir, a fazenda de cada um também.

"Mas olha com que santa confiança,

- Que inda não era tempo, — respondia,

Como quem tinha em Deus a seguraria

Da vitória que logo lhe daria.

Assim Pompílio, ouvindo que a possança

Dos inimigos a terra lhe corria,

A quem lhe a dura nova estava dando,

-"Pois eu, responde, estou sacrificando." -

Identidade social através da qual se estabelecem as relações sociais e o sentido das prioridades na vida. De que serviria na nobreza ou a solidariedade cristãs lá onde delas não havia conhecimento ou ligação? Nesses casos as trocas seriam um valor reconhecido em toda a parte. Sobretudo onde nada mais fosse susceptível de intervir para distorcer o mercado.

Posto que os maus propósitos entenda

O Gama, que o danado peito encerra,

Consente, porque sabe por verdade,

Que compra com a fazenda a liberdade.

Aqui, neste caso, não foi a liberdade a condição do mercado, mas precisamente o inverso.

Canto viii - Espírito de submissão: subordinação

Falar ao Rei gentio determina,

Por que com seu despacho se tornasse,

Que já sentia em tudo da malina

Gente impedir-se quanto desejasse.

O Rei, que da notícia falsa e indina

Não era de espantar se se espantasse,

Que tão crédulo era em seus agouros,

E mais sendo afirmados pelos Mouros,

As informações, negativas neste caso, podem interferir com a disponibilidade de uma das partes que trate de estabelecer relações de equivalência material entre produtos para troca, seja por razões de convicção, seja por razões de interesse, seja por razões de manter relações sociais preferenciais não as pondo em risco, seja por razões de desconfiança, intuição ou superstição. Todas estas razões devem ser afastadas para a realização de um mercado onde apenas as razões comerciais valham. Onde a liberdade de circulação dos descobridores possa beneficiar.

Aos brados o razões do Capitão

Responde o Idolatra que mandasse —

Chegar à terra as naus, que longo estão,

Por que melhor dali fosse e tornasse.

"Sinal é de inimigo e de ladrão,

Que lá tão longe a frota se alargasse,

Lhe diz, porque do certo e fido amigo

É não temer do seu nenhum perigo."

Liberdade essa à mercê das estratégias comerciais locais, mas também de todas os outros tipos de influências sociais, todas elas desconhecidas mas influentes não apenas no negócio mas também em toda a situação. De um momento para o outro o que aparente um encontro entre iguais pode tornar-se numa situação de subordinação, logo as armas de defesa e de ataque de cada um possam ter efeitos bloqueados ou meramente muito desfavorecidos relativamente ao emergente inimigo.

A definição do estatuto da relação comercial é instável, sobretudo quando não é regular e repetida. E só é clarificada definitivamente depois de concretizada na prática das trocas.

Insiste o Malabar em tê-lo preso,

Se não manda chegar a terra a armada;

Ele constante, e de ira nobre aceso,

Os ameaços seus não teme nada;

Que antes quer sobre si tomar o peso

De quanto mal a vil malícia ousada

Lhe andar armando, que pôr em ventura

A frota de seu Rei, que tem segura.

As negociações rompidas continuam sobre outra forma. A diplomacia endurece, diz-se, e os actos de violência estabelecem-se e ameaçam generalizar-se. Aqui a guerra parece ser a política comercial por outros meios e noutras circunstâncias – em particular potencialmente destrutivas, por contraste com o comércio entre iguais, em que os jogos de soma positiva são possível emergir a partir de equações comerciais.

Canto ix - Espírito de submissão: adesão

Os afectos e emoções que estabelecem entre as pessoas, independentemente das necessidades e interesses de cada um, podem ser determinantes – e são-no muitas vezes – para lá das convenções sociais e modelos de comportamento. Esse facto é geralmente conhecido e bem aceite pelas pessoas, como uma das características nobres da natureza humana – a capacidade individual de criar acontecimentos inesperados, não anteriormente experimentados, abrindo novos caminhos aos processos de adaptação da espécie ao meio, eventualmente com impacto social, em contraste com os outros animais de que nenhuma inovação se tem memória ter sido eficaz e reproduzida por outros.

De afeição em Monçaide, que guardado

Estava para dar ao Gama aviso,

E merecer por isso o Paraíso.

São relações positivas deste tipo que podem estar por detrás da transformação de meras relações comerciais e sem mais sentido em relações de antagonismo de outro tipo, quando ocorrem no campo oposto. E o reforçam contra a intromissão que é a dos inovadores navegadores. Mas de uma forma obviamente negativa para estes últimos.

Que as imortalidades que fingia

A antiguidade, que os ilustres ama,

Lá no estelante Olimpo, a quem subia

Sobre as asas ínclitas da Fama,

Por obras valorosas que fazia,

Pelo trabalho imenso que se chama

Caminho da virtude alto e fragoso,

Mas no fim doce, alegre e deleitoso:

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Não eram senão prémios que reparte

Por feitos imortais e soberanos

O mundo com os varões, que esforço e arte

Divinos os fizeram, sendo humanos.

Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,

Eneias e Quirino, e os dois Tebanos,

Ceres, Palas e Juno, com Diana,

Todos foram de fraca carne humana.

É dos escolhos deste género ultrapassados que se faz a história humana e também a história da nossa civilização. Cuja determinação e sequência é assim coerente por ser similar a natureza humana que lhe subjaz, nomeadamente a necessidade identitária de auto-legitimação daquilo que possa ser negativo (os meios?) para obter um resultado socialmente relevante (o império?).

Canto ix - Espírito de submissão: subordinação

Empatadas sem explicação plausível as relações comerciais isso pode dever-se a questões de outra índole, nomeadamente afectivas – mas também estratégicas e racionais sobre o devir da situação local após o bom sucesso dos portugueses -, avaliados os graus de liberdade para romper negociações sem ter de expor as razões (apenas intuídas) de tal atitude, o segredo deixa de ser a alma do negócio e torna-se segredo militar ou de Estado.

O Gama, que também considerava

O tempo, que para a partida o chama,

E que despacho já não esperava

Melhor do Rei, que os Maumetanos ama,

Aos feitores, que em terra estão, mandava

Que se tornem às naus; e por que a fama

Desta súbita vinda os não impeça,

Lhe manda que a fizessem escondida.

Para Camões – ao contrário do que contam as modernas histórias de espiões – os amores românticos, ao invés de quase todas as outros tipos de relações sociais, são de fiar (pelo menos para ele):

Que, depois de lhe ter dito quem era,

Com um alto exórdio, de alta graça ornado,

Dando-lhe a entender que ali viera

Por alta influição do imóvel fado,

Para lhe descobrir da unida esfera

Da terra imensa, e mar não navegado,

Os segredos, por alta profecia,

O que esta sua nação só merecia,

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Tomando-o pela mão, o leva e guia

Para o cume dum monte alto e divino,

No qual uma rica fábrica se erguia

De cristal toda, e de ouro puro e fino.

A maior parte aqui passam do dia

Em doces jogos e em prazer contino:

Ela nos paços logra seus amores,

As outras pelas sombras entre as flores.

Canto x - Espírito de submissão: adesão

À instabilidade da vida contrapõe-se a convicção e a sabedoria da entrega pessoal a desígnios sociais, no seio da família, para efeitos sociais de libertação, em nome de entidades superiores a quem se adjudicam valores maiores subjectivamente merecedores de esforços porfiados, independentemente do conhecimento de causa que possa haver, ou não.

"Basiliscos medonhos e liões,

Trabucos feros, minas encobertas,

Sustenta Mascarenhas cos barões

Que tão ledos as mortes têm por certas;

Até que, nas maiores opressões,

Castro libertador, fazendo ofertas

Das vidas de seus filhos, quer que fiquem

Com fama eterna e a Deus se sacrifiquem.

Tais sacrifícios não são extraordinários. Todos os povos os fazem. São parte da experiência e da natureza humanas.

Os povos Abassis, de Crista amigos;

Olha como sem muros (novo estilo)

Se defendem milhor dos inimigos;

A Fé e o Império funda-se, afinal, nessa disponibilidade ao mesmo tempo extraordinária e vital, em todo o caso sempre surpreendente quando atinge píncaros nunca anteriormente alcançados.

Os Cavaleiros tende em muita estima,

Pois com seu sangue intrépido e fervente

Estendem não sòmente a Lei de cima,

Mas inda vosso Império preminente.

Pois aqueles que a tão remoto clima

Vos vão servir, com passo diligente,

Dous inimigos vencem: uns, os vivos,

E (o que é mais) os trabalhos excessivos.

Canto x - Espírito de submissão: subordinação

A superação dos medos é arte nobre e de grande mérito, desde os clássicos e outros ancestrais. Provavelmente para os primeiros seres humanos fazer isso seria uma necessidade básica, tal a desprotecção a que estavam sujeitos ao explorarem novos ninhos onde fosse possível sobreviver. Uma vez estabelecidas as condições materiais de alguma estabilidade face ao meio, passaram a ser actos especiais, orientados por vistas largas e preparados por gentes das ordens superiores, ao mesmo tempo ansiosos e temerosos de se equipararem aos heróis de antanho e viverem directamente a nobre experiência humana de arriscar a vida para melhor a poder viver. Em nome da sua casa e da própria civilização herdada.

E canta como lá se embarcaria

Em Belém o remédio deste dano,

Sem saber o que em si ao mar traria,

O grão Pacheco, Aquiles Lusitano.

O peso sentirão, quando entraria,

O curvo lenho e o férvido Oceano,

Quando mais n'água os troncos que gemerem

Contra sua natureza se meterem.

Sem dúvida, os riscos assumidos dificilmente poderiam ser mais arriscados.

"Mas ah, que desta próspera vitória,

Com que despois virá ao pátrio Tejo,

Quási lhe roubará a famosa glória

Um sucesso, que triste e negro vejo!

O Cabo Tormentório, que a memória

Cos ossos guardará, não terá pejo

De tirar deste mundo aquele esprito,

Que não tiraram toda a Índia e Egipto.

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"Ali, Cafres selvagens poderão

O que destros imigos não puderam;

E rudos paus tostados sós farão

O que arcos e pelouros não fizeram.

Ocultos os juízos de Deus são;

As gentes vãs, que não nos entenderam,

Chamam-lhe fado mau, fortuna escura,

Sendo só providência de Deus pura.

A persistência e as vidas perdidas foram suficientes para suportar tamanho feito, como o do passar o cabo das tormentas. Mas poderia não ter sido assim. E, por outro lado, o entusiasmo do feito pode mascarar os custos posteriores, para o reino e suas gentes, dos sacrifícios demográficos pagos. Para não falar dos custos imediatamente pagos pelos protagonistas:

Mas em tempo que fomes e asperezas,

Doenças, frechas e trovões ardentes,

A sazão e o lugar, fazem cruezas

Nos soldados a tudo obedientes,

Parece de selváticas brutezas,

De peitos inumanos e insolentes,

Dar extremo suplício pela culpa

Que a fraca humanidade e Amor desculpa.

A unidade na acção daqueles povos embarcados e as convicções que as mobilizaram ainda hoje são misteriosos – por estarem por explicar. A subordinação é uma explicação. Mas a submissão será talvez mais credível.

Por vos servir, a tudo aparelhados;

De vós tão longe, sempre obedientes;

A quaisquer vossos ásperos mandados,

Sem dar reposta, prontos e contentes.

Só com saber que são de vós olhados,

Demónios infernais, negros e ardentes,

Cometerão convosco, e não duvido

Que vencedor vos façam, não vencido.

Àquela distância e naquele tempo os meios de controlo central do comportamento das pessoas e grupos seria mínimo, sem a força das convicções de cada um, alegadamente em torno da fé católica, do retorno do saque e de uma vida renovada pelas possibilidades de conhecer novas formas de estar e de viver. Em Os Lusíadas, porém, é ao poder do Rei que o artista se dirige:

"Mas tu, de quem ficou tão mal pagado

Um tal vassalo, ó Rei, só nisto inico,

Se não és pera dar-lhe honroso estado,

É ele pera dar-te um Reino rico.

Enquanto for o mundo rodeado

Dos Apolíneos raios, eu te fico

Que ele seja entre a gente ilustre e claro,

E tu nisto culpado por avaro.

Já então os benefícios sociais se concentravam onde o poder estava. E a necessidade da sua intervenção para consolidar e reconhecer méritos também. Sendo, portanto, alvo de queixas e de reclamações.

"Esta luz é do fogo e das luzentes

Armas com que Albuquerque irá amansando

De Ormuz os Párseos, por seu mal valentes,

Que refusam o jugo honroso e brando.

Os trabalhos dos melhores e mais conhecidos comandantes dependem, claro, da submissão de tantos outros à admiração dos seus gestos e da confiança das suas ordens. O que pode ser diferente e até distante dos reconhecimentos reais dos méritos de por quem passou pelos eventos.

Ali do sal os montes não defendem

De corrupção os corpos no combate,

Que mortos pela praia e mar se estendem

De Gerum, de Mazcate e Calaiate;

Até que à força só de braço aprendem

A abaxar a cerviz,

Foi na luta e pela força que grande parte do trabalho foi feita.

"A nobre ilha também de Taprobana,

Já pelo nome antigo tão famosa

Quanto agora soberba e soberana

Pela cortiça cálida, cheirosa,

Dela dará tributo à Lusitana

Bandeira, quando, excelsa e gloriosa,

Vencendo se erguerá na torre erguida,

Em Columbo, dos próprios tão temida.

Os méritos são reconhecidos pelos que se submetem em benefício da Coroa portuguesa, mas a luta por lá continuo, e houve de continuar.

Baticalá, que vira já Beadala.

De sangue e corpos mortos ficou cheia

E de fogo e trovões desfeita e feia.

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