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“A minha família é a melhor do mundo. E a tua?”de Joana Miranda e Sofia Neves; ilustra??es de Luís Romano.Fonte da Palavra.Lan?amento: Pó dos Livros, 14 dezembro 2013.Ao contrário do que pensamos, é bem provável que um grande, demasiado grande número de crian?as n?o possa dizer “a minha família é a melhor do mundo”. Basta olharmos à nossa volta, às vezes demasiado perto de nós. Basta lermos os jornais – mesmo dando-lhes o devido desconto. Basta ler parte significativa da literatura ou ver parte significativa da cinematografia mundiais para nos apercebermos disso. Um grande número de crian?as vive em situa??es familiares de inseguran?a, ou de pobreza, ou de maus tratos, ou de desamor, ou de desleixo, ou de exigência excessiva. N?o estou a falar sequer da “disfuncionalidade” – entre aspas – que se calhar até é própria de uma institui??o que congrega pessoas de diferente gera??es, e na base de uma rela??o supostamente amorosa e sexual, debaixo de um mesmo teto e com uma mesma economia durante anos e anos a fio. Para isso bastaria refrescarmos o nosso Sigmund Freud... Estou a falar, sim, de situa??es de ruptura, de falha, de situa??es de ferida. Em suma, da ausência do amor.Isto nos dias maus, nas horas más. Nos dias bons, nas horas boas, conseguimos olhar à nossa volta (talvez n?o tanto nos jornais, na literatura ou na cinematografia...) e vislumbramos aquela coisa sem nome que nos faz pensar “olha, uma família feliz”. Uma família onde até as contrariedades s?o vividas sabendo que há qualquer coisa mais profunda que mantém o edifício intacto, apesar de em mudan?a permanente. Digo que é uma coisa sem nome, mas na verdade já o usei antes, e o nome é “amor”. Aquela coisa que vamos encontrar em família iniciadas por pessoas sozinhas, por casais heterossexuais, por famílias reconstituídas ou por pessoas a quem o destino ou a fatalidade lhes colocou uma crian?a no colo – um neto, uma sobrinha. Aquela coisa que também n?o vamos encontrar em algumas dessas famílias. O amor é independente da estrutura – está lá ou n?o está, cresce ou n?o cresce, é trabalhado ou n?o o é. ? portanto claro que na minha lista falta pelo menos incluir famílias como aquela que o pai Francisco e o pai Martim do livro iniciaram. E o Rui Jo?o é um miúdo com sorte, porque na sua família, que tem por acaso aquela estrutura, o amor parece ter florescido. O Rui Jo?o, claro, poderia n?o ter tido sorte nenhuma, e com um Jo?o e um Luís incapazes, uma Maria e uma Luísa perturbadas, como com um Manuel e uma Ana, poderia ter entrado na contabilidade das crian?as cuja família n?o é a melhor do mundo.Mas há uma coisa em que a família do Rui Jo?o n?o é igual às outras. Uma coisa que faz com que esteja viciado o jogo das chances de ali brotar ou n?o o amor. ? que todas as outras estruturas familiares est?o ou consagradas na lei – no nosso contrato coletivo sobre como nos vemos como comunidade – e/ou consagradas na cultura – nas nossas mentalidades, no nosso “achar normal que”. A família do Rui Jo?o é uma família amputada pela nossa lei, logo pela nossa comunidade. Por nós. Se o pai Francisco for o pai legal do Rui Jo?o, na sequência de um processo de ado??o que permite a ado??o singular, por exemplo (o Rui pode ter surgido de outras formas, mas fiquemo-nos por esta), isso quer dizer que o pai Martim n?o tem nenhum vínculo legal com o Rui. Melhor: o Rui n?o tem direito ao pai Martim. Sobretudo no caso de acontecer alguma fatalidade ao pai Francisco. Os textos surgem nos seus contextos. E este texto surge no contexto de uma vergonhosa manobra de insulto às, e exclus?o das crian?as que vivem com pais ou m?es do mesmo sexo; uma manobra politiqueira que pretende adiar ou impedir o pleno reconhecimento de uma lei que... já foi aprovada pela nossa assembleia tribal, o nosso conselho comunitário - o nosso parlamento, chama-se. Há quem n?o queira que o Rui Jo?o possa dizer, se tiver essa sorte com os seus pais, que a sua família é a melhor do mundo, porque há gente que quer convencer o Rui Jo?o de que a sua família é a pior do mundo, porque acha que a família do Rui Jo?o é a pior do mundo. Pergunto-me como ter?o sido as famílias dessa gente para que se tenham tornado em t?o má gente. Já sobre a estrutura dessas famílias, sei tudo, porque à época estruturas familiares como a do Rui quase que nem eram imagináveis.Imaginar. Criar imagens – visuais – e criar imagens – mentais. ? essa a tarefa do livro infantil. Bem como representar, re-apresentar – mostrar, dar voz, para mudar a cultura, o “achar normal que”. Há apenas meia-dúzia de anos famílias com estruturas semelhantes à da do Rui n?o tinham livros em português para poderem ler à noite aos seus filhos e às suas filhas. Livros que eles pudessem também levar para a escola, para uso de professoras e professores, e dos e das colegas. Livros que pudessem estar disponíveis nos escaparates das livrarias, nas estantes das bibliotecas, disponíveis online. Felizmente o panorama mudou e hoje já ninguém pode dizer que n?o há nada. Isso aconteceu gra?as ao esfor?o, desde logo, do movimento LGBT, de que é exemplo o concurso de livros infantis que as Famílias Arco-?ris da ILGA-Portugal promoveram, e a que este livro concorreu. Aconteceu também gra?as ao esfor?o da iniciativa e trabalho político n?o só do movimento, como de partidos políticos, deputados e deputadas; com a repercuss?o e o apoio de jornalistas e da comunica??o social, das redes sociais, de professores e professoras e, claro, de autores e autoras, de ilustradores e ilustradoras, e suas editoras. Mas o esfor?o principal, e o mais oculto, terá sido o dos miúdos e das miúdas. Muito cedo ter?o perguntado aos seus pais e às suas m?es porque é que nos livros que liam todos os miúdos e miúdas tinham um pai e uma m?e.“Ent?o e eu?” Sim, essa é a pergunta chave: “ent?o e eu?” A pergunta que muitos ainda n?o querem ouvir nem sequer imaginar que possa ser feita. Quanto mais impedirem os direitos das crian?as à igualdade na parentalidade mais conseguem dizer que o problema n?o existe porque o assunto n?o existe. Mas ele está lá e livros como este cumprem uma das responsabilidades mais prementes de qualquer adulto: dar voz às crian?as. Representá-las. E dar-lhes ferramentas para se imaginarem e imaginarem o mundo dos outros. Livros escritos e desenhados por pessoas que querem que cada vez mais crian?as possam ter as condi??es de partida para, se tiverem muita sorte, poderem vir a dizer “a minha família é a melhor do mundo”. E imaginarem, otimistas como ent?o ser?o, que será positiva a resposta à pergunta “E a tua?” Miguel Vale de Almeida ................
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