A ESCOLARIZAÇÃO DA POPULAÇÃO NEGRA



A Escolarização da população negra

Entre o final do Séc. XIX e o início do Séc. XX[1]

Rosimeire Santos(

RESUMO: O presente artigo propõe analisar o processo de inserção da população negra à escolarização, no período compreendido entre o final do séc. XIX e o início do séc. XX, buscando compreender as dificuldades vivenciadas por essa camada da população em ter acesso e permanência no sistema oficial de ensino, além de elucidar as tentativas alternativas de aproximação negra com o saber e a cultura escolar.

Palavras chaves: Escolarização; Inserção; Saber; Cultura.

INTRODUÇÃO

A carência de abordagens sobre as trajetórias educacionais dos negros[2] no Brasil, revela uma tendência que perdurou durante muito tempo na produção da historiografia da história da educação, como ressalta Maria Lúcia Spedo Hilsdorf, em História da Educação Brasileira – Leituras:

Na primeira República, para o trabalhador nacional ou estrangeiro, além das escolas públicas oficiais, havia as instituições particulares e as escolas dos trabalhadores. E para os escravos? Temos ainda poucas informações (2003, p. 77).

Os autores que compõem o conjunto de referência e que realizam a crítica a historiografia da história da educação brasileira (Jorge Nagle, 1984; Mirian Jorge Warde, 1984 e 1990; Leonor Maria Tanuri, 1997; Nunes e Carvalho s.d.; e Ghiraldelli Jr., 1993; entre outros), ao analisarem os estudos realizados no campo da história da educação, indicam que esses trabalhos têm apresentado algumas limitações, tais como: termo educação restrito ao sentido de escolarização das classes mais abastadas; periodização baseada em fatos político-administrativos; temáticas mais enfocadas em contemplar o Estado e as legislações de ensino. Têm sido esquecidos os temas e as fontes que poderiam nos esclarecer sobre as experiências educativas oficiais e alternativas dos negros e afrodescendentes. O estudo, por exemplo, dos mecanismos de conquista da alfabetização por esse grupo; dos detalhes sobre a exclusão desses setores nas instituições oficiais; dos mecanismos criados para alcançar a escolarização extra-oficial; as vivências nas primeiras escolas oficiais que aceitaram negros, são exemplos de temas, que tem sido desconsiderados nos relatos da história oficial da educação e que ainda carecem de estudos sistemáticos.

Outra questão evidenciada quando se analisa as produções acadêmicas, em nível de pós-graduação, na temática Negro e Educação, segundo balanço bibliográfico realizado por Cunha Jr. (1999), é que são escassas as abordagens em períodos históricos mais remotos (colônia e Império), problema que é agravado pela falta de fontes oficiais (escritas) que relatem essas experiências. Quais teriam sidos os processos de escolarização dessa população vivenciados desde o período da escravidão e nos anos iniciais da República? A necessidade de ser liberto ou de usufruir a cidadania livre, tanto durante o período do Império, quanto nos primeiros anos da República, aproximou as camadas negras da apropriação do saber nos moldes das exigências oficiais? Os estudos realizados[3] apontam que não de forma massiva, camadas populacionais negras atingiram níveis de instrução quando criaram suas escolas, receberam instrução informal de pessoas escolarizadas, adentraram na rede pública, asilos de órfãos e escolas particulares.

A luta da camada negra pela sua inclusão no processo de escolarização oficial evidencia que, mesmo a margem do acesso pleno à cidadania, os negros acompanharam o processo de formação da nação brasileira e nele tentaram exercer influência. Diante do quadro de carência de informações sobre a história da educação dos afro-brasileiros em épocas mais remotas, e principalmente, devido à omissão nos conteúdos oficiais da Disciplina História da Educação, torna-se urgente e necessário o incentivo a pesquisas nessa área. O presente artigo, não tem a pretensão de preencher esta lacuna, mas visa contribuir na reflexão sobre a história da educação dos negros e sua invisibilidade na disciplina História da Educação Brasileira, considerando o que Nunes de Carvalho (s.d., p.8) indica sobre a “importância de problematização e do alargamento da concepção de fontes em história da educação, no intuito de construir uma historiografia menos generalista e estereotipada”.

EDUCAÇÃO E CIVILIZAÇÃO

As últimas décadas do séc. XIX no Brasil foram agitadas por discussões sobre os rumos que o país devia tomar. O discurso e a política de Estado da elite brasileira foram sacudidos pelos debates de como construir uma nação “civilizada”, alinhada aos novos rumos do progresso e desenvolvimento. Tendo como referenciais a serem seguidos os discursos do liberalismo político e econômico e as idéias das teorias raciais, efervesceram no país novas idéias políticas, econômicas, científicas e educacionais.

O período entre o final do século XIX e primeiros anos do século XX, de acordo com a análise de Jorge Nagle, caracteriza-se também pelo entusiasmo pela educação. Nas palavras de Maria Lúcia Hilsdorf, o autor ‘viu as décadas entre 1870 e 1920 como tomadas por um fervor ideológico e um entusiasmo pela educação muito característicos, no sentido de ter-se configurado na sociedade brasileira um clima, um ambiente social e cultural, no qual proliferavam não só debates e polêmicas que discutiam a educação, como também iniciativas e realizações no campo escolar’ (BARROS, 2005, p. 81).

O problema da desmontagem do sistema escravista com seus avanços e recuos tornara-se fato irrevogável. As autoridades temiam que o fim da escravidão desencadeasse um processo mais amplo de mudanças sociais com desdobramentos e conseqüências imprevisíveis. Esse temor não era infundado. Experiências de emancipação em outras regiões de passado escravista haviam despertado antigas e novas aspirações com desenlaces nem sempre favoráveis aos senhores. Os ex-senhores temiam que o processo de abolição se transformasse em algo mais que a substituição de um regime de trabalho por outro. Temiam perder as rédeas, na condução do processo, diante das iniciativas dos ex-escravos. Nesse cenário de discussões e debates acerca da abolição da escravidão, um modelo de educação de cunho disciplinador era aventado como uma estratégia desejável para uma transição segura do sistema de trabalho. O importante era assegurar que o fim do regime escravista ocorresse de forma paulatina, de modo a não atrapalhar o bom andamento da economia brasileira. Ou seja, a exigência de organizar o trabalho livre trouxe, simultaneamente, a necessidade de educar o homem para o trabalho. Uma educação para o trabalho, para a “liberdade”, para a construção da nação, em que o acesso à escola por essa camada pode ser visto como emblemático das mudanças que os discursos apresentavam como necessárias.

Dentro do movimento de construção de um país unido, coeso, inserido no ideal de modernização a ser seguido, a inserção da população negra era um ponto discutido, uma preocupação com a especificidade da herança escrava: o atraso – atribuído aos egressos do cativeiro e seus descendentes - ameaçava atrapalhar os planos de forjar uma nação civilizada. A crença na escola como local privilegiado de disciplinarização e construção de cidadãos ideais era um ponto de vista comum do período. A maioria dos discursos emancipacionistas propalava a necessidade de se incultar nos libertos (e demais trabalhadores livres) o amor ao trabalho, entendido este como a forma mais eficaz de regenerar os negros (vítimas de seu passado escravo) e incluí-los como partícipes da nação. Assim, os debates acerca da importância de se destinar instrução formal aos egressos do cativeiro e seus descendentes tinham ampla repercussão. No entanto, isso não se traduziu numa política pública de inclusão e igualdade de acesso entre brancos e negros às escolas oficiais.

O SISTEMA OFICIAL DE ENSINO

Pesquisas recentes sobre o tema, comprovam a presença de crianças negras no sistema oficial de ensino já entre o final do século XIX e o início do século XX. Souza, ao estudar os sete primeiros grupos escolares instalados em Campinas, no período de 1897 a 1925, identifica “a presença de crianças negras em fotografias de turmas de alunos de diferentes grupos escolares e em diferentes épocas” (1999, p.118).

Se as recentes pesquisas históricas não nos deixam dúvidas da presença da população negra no sistema oficial de ensino, todavia, resta-nos esclarecer outros questionamentos que nos ajudem a compreender como se deu o processo de inclusão dessa população à escolarização oficial. Qual o percentual dessa população que de fato adentrava na rede oficial? Quais os mecanismos oficiais e não oficiais que dificultavam e/ou impediam a permanência no sistema oficial de ensino?

Os mecanismos que impediram e/ou dificultaram o acesso e permanência da população negra no sistema oficial de ensino, foram basicamente de dois tipos: de natureza legislativa e baseado nos costumes discricionários da sociedade escravista. Vamos, neste artigo, relatar apenas quatro casos em que essa legislação, explícita ou implicitamente, ora proibia os escravos, (e em alguns casos também libertos), de freqüentarem a escola pública, ora dificultava o acesso e/ou a permanência nas escolas.

A Constituição de 1824 garantia a Instrução primaria e gratuita a todos os Cidadãos, porém restringia esse acesso somente aos brasileiros. Essa restrição automaticamente interditava o ingresso da população escrava no sistema oficial de ensino, visto que, a grande maioria dos escravos era de origem africana. No decorrer da primeira metade do séc. XIX, os escravos compunham a maioria da população brasileira. Os números não são absolutos devido à precariedade e deficiências dos sistemas de registros oficiais, mas segundo Emília Viotti da Costa, “Da senzala à colônia” (1966), em certas áreas, os cativos constituíam maioria absoluta, sendo sua distribuição irregular e mais concentrada principalmente no Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Embora já houvesse muitos cativos nascidos no Brasil, (os chamados crioulos, cabras, mulatos e pardos) estes, não constituíam a maioria da população escrava. Basta lembrar os dados que a historiografia da temática escravista amplamente já confirmou: a principal fonte de renovação da mão-de-obra escrava durante todo o período escravista (colônia e Império) foi o tráfico e não reprodução natural da escravaria[4]. Os caminhos da escravidão seguiam as etapas da economia. E os da exclusão a lógica de lucro do sistema escravista.

A Reforma de Couto Ferraz, pelo Decreto 1.331/1854, estava associada à idéia de que a educação seria instrumento para promover o alinhamento do Império com as chamadas nações civilizadas. A proposta envolve um amplo conjunto de medidas, instituídas através do Regulamento para a Reforma do Ensino Primário e Secundário do Município da Corte (Decreto nº 1.331A, de 17 de fevereiro de 1854). Posteriormente seriam apresentados dispositivos relativos à definição de novos estatutos para os Cursos Jurídicos (Decreto n° 1.386, de 28 de abril de 1854), para as Escolas de Medicina (Decreto n° 1.387, de 28 de abril de 1854) e para a Academia de Belas Artes.

A Reforma estabeleceu obrigatoriedade e gratuidade da escola primária para crianças maiores de 07 anos, inclusive libertos, desde que pudessem comprovar tal situação. No entanto, não eram admitidas crianças com moléstias contagiosas nem escravas. Ora, essa Reforma, além de excluir explicitamente as crianças escravas do acesso à escolarização, vedava também, implicitamente, as crianças negras libertas ou livres, visto que, a parcela da população mais atingida pelas moléstias infecto-contagiosas, eram justamente, o contingente pobre, em sua maioria negro e mestiço[5]. Ademais, não previa nenhuma ação destinada a escolarizar a população adulta que contava com um número expressivo de libertos. Uma Reforma que perpetuava a exclusão de escravos, crianças e adultos libertos, à escolarização formal.

Após a abolição da escravatura (1888), várias tentativas são realizadas para regulamentar o ensino público brasileiro. Vejamos duas dessas iniciativas.

A Reforma de Benjamin Constant (1890-1891) é a primeira de uma série de medidas visando o campo educacional deflagradas na República, tendo sido proposta no Governo Provisório de Manoel Deodoro da Fonseca. A iniciativa refere-se a um conjunto de documentos anteriores à primeira constituição republicana. São eles: o Regulamento da Instrução Primária e Secundária do Distrito Federal (Decreto n° 981, de 8 de novembro de 1890), o Regulamento da Escola Normal da Capital Federal (alterado pelo Decreto n. 982 de 8 de novembro de 1890), o Regulamento para o Ginásio Nacional (Decreto nº 1.075, de 22 de novembro de 1890) e o Regulamento do Conselho de Instrução Superior (Decreto nº 1232-G, de 2 de janeiro de 1891).

No decreto nº 982/1890, foram estabelecidas medidas proibitivas e punitivas, tais como: não permissão aos alunos de ocuparem-se na escola da redação de periódicos, permissão de intervenção policial em casos de agressão ou violência e a expulsão dos culpados. Esta reforma, no contexto conturbado do pós-abolição, ao estabelecer tais medidas, tendeu a dificultar a convivência e/ou permanência da população negra que conseguia adentrar na escola, pois estes eram vistos nos estabelecimentos escolares como perigosos, arruaceiros e de má índole[6].

A Reforma de Rivadávia Corrêa (1911) é instituída através de dois documentos: o primeiro, “Aprova a Lei Orgânica do Ensino Superior e do Ensino Fundamental na Republica” (Decreto nº 8.659, de 05 de abril de 1911); o segundo, “Aprova o Regulamento do Collegio Pedro II” (Decreto nº 8.660, de 5 de abril de 1911). Esta Reforma pretendia modificar radicalmente a estrutura do ensino superior em todo o Brasil. Através do Decreto nº 8.659/1911, concedeu maior autonomia aos diretores que instituíram taxas e exames para admissão no ensino fundamental e superior. A cobrança dessas taxas, principalmente a da admissão no ensino fundamental, criava um mecanismo não declarado de exclusão da população mais pobre, marcadamente negra e mestiça.

Observa-se que as reformas educacionais dos séculos XIX e XX, embora sob signo aparente da universalização, democratização e gratuidade do ensino, não criaram condições reais aos negros recém-egressos do cativeiro de vencerem as dificuldades do passado e incluírem-se efetivamente no universo da escolarização. Muito pelo contrário, algumas delas por estarem baseadas em critérios econômicos, como a Reforma de Rivadávia Corrêa, agravaram mais ainda a exclusão sócio-educacional dessa população.

Mas, não foi somente os obstáculos legais que impediram o acesso e/ou a permanência da população negra no sistema oficial de ensino. Pesquisas recentes nos mostram como dificuldades enfrentadas no cotidiano da vida escolar foram tão pertinentes quanto os fatores oficiais. Surya Aaronovich, ao analisar os relatórios da Instrução Pública de São Paulo, nos traz mostras de como a preconceito e a discriminação estiveram presentes no dia-a-dia da vida escolar.

Suscitou-se dúvida si erão admitidos á matrículas os escravos, ou indivíduos, sobre cuja liberdade não havia certeza. Visto que as famílias repugnarião mandar ás escholas públicas seus filhos si essa qualidade de alunos forem aceitas, e attendendo aos perigos de derramar a instrução pela classe escrava, ordenei que não fossem recebidos nos estabelecimentos de instrução pública senão os meninos, que os professores reconhecessem como livres, ou que provassem essa qualidade (Relatório do Inspetor Geral da Instrução Pública da Província de São Paulo, 1855, p. 48).

Depreende-se do trecho acima, que o sistema oficial de ensino interditava o acesso à escolarização as crianças escravas e não as crianças negras, desde que estas provassem sua condição de “livres”, o que obviamente não era uma tarefa nada fácil, posto que, os pais destas crianças, muitas vezes, ainda na qualidade de escravos, viviam com eles no cativeiro, ou sob o cuidado de senhores.

[...] negrinhos que por ahi andão, filhos de Africanos Livres que matriculão-se, mas não freqüentam a escola com assiduidade, que não sendo interessados em instruir-se, só freqüentariam a escola para deixar nela os vícios que se acham contaminados; ensinando aos outros a prática de actos e usos de expressões abomináveis, que aprendem ahi por essas espeluncas onde vivem [...] Para estes devião haver escolas a parte (Relatório do Professor José Rhomens enviado ao Inspetor Geral da Instrução Pública da Província de São Paulo, 1877).

O relatório do professor Rhomens, é um excelente exemplo do sentimento de aversão que a camada branca sentia do convívio direto e “igual” com a camada negra. Para o professor, o problema não residia no acesso à educação da camada negra e sim, na demasiada proximidade desse tipo de “gente cheia de vícios e hábitos indesejáveis” com os “bons-alunos”.

Concluí-se que, ao lado de uma legislação oficial que não engendrava condições de dignas de acesso e permanência nas escolas, somava-se a essas dificuldades a falta de consciência de uma população ex-egressa do cativeiro da importância da educação, além do duro e difícil cotidiano de preconceito e discriminação nas escolas, que tanto quanto e/ou muito mais contribuíram para o afastamento de grande parcela da população negra do processo de escolarização no sistema oficial de ensino.

SOLUÇÕES ALTERNATIVAS

A luta das camadas negras pela sua inclusão no processo de escolarização não se limitou somente ao caminho do ensino oficial. Pesquisas recentes trazem à tona iniciativas isoladas que propiciou a população afrodescendente acesso às primeiras letras. Vamos num breve inventário dar a conhecer algumas dessas ações.

Alguns trabalhos levantaram informações sobre o Colégio Perseverança ou Cesarino, primeiro colégio feminino fundado em Campinas, no ano de 1860, e o Colégio São Benedito, criado em Campinas em 1902, para alfabetizar os filhos de cor da cidade; ou aulas públicas oferecidas pela irmandade de São Benedito até 1821, em São Luís do maranhão (PEREIRA, 1999). Sem desconsiderar a pertinência dessas iniciativas, é importante destacar que se trataram de ações isoladas, empreendidas por instituições de cunho religioso, o que provavelmente deve ter repercutido na intencionalidade dessas ações, dando-lhes um cunho ideológico (cristão-filantrópico) ou catequético, fato que não diminui o valor das iniciativas, mas que deve ser considerado na análise do contexto histórico.

Outras escolas são apenas citadas em alguns trabalhos, a exemplo da Escola Primária no Clube Negro Primeiro de Maio de São Carlos (SP), a Escola dos Ferroviários de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e a promoção de cursos de alfabetização, de curso primário regular e de um curso preparatório para o ginásio criado pela Frente Negra Brasileira em São Paulo (PINTO, 1993; CUNHA JR. 1996; BARBOSA, 1997).

Há também o registro de uma escola criada pelo negro Cosme, no Quilombo da Fazenda Lagoa-Amarela, em Chapadinha, no maranhão, para o ensino da leitura e escrita dos escravos aquilombados (CUNHA, 1999).

Outra hipótese diz respeito à educação informal, que poderia acontecer tanto em meio rural como em meio urbano por meio da observação silenciosa das aulas das sinhás moças e da instrução religiosa dos padres, entre outras situações improvisadas (SILVA Geraldo da e ARAÚJO, Márcia, 2005).

Também não devemos desconsiderar a hipótese da contratação de professores particulares por senhores que esperavam lucrar com os escravos alfabetizados. Estes professores, apesar de seguir os traços de uma educação elementar de acordo com os desejos e interesses dos senhores, podem ter colaborado na educação dos negros (Idem).

Outra possibilidade é a do encaminhamento de escravos do sexo masculino às escolas vocacionais ou de aprendizado e o ensino de letras por aqueles que as tinham treinado na profissão (Idem).

Alguns escravos africanos já chegaram ao Brasil alfabetizados em árabe. João José Reis, Revolta dos Malês, Rebelião Escrava no Brasil e Mary Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro – 1808 a 1850, relatam queixas da elite branca contra os chamados negros minas que se reuniam em “associações secretas” e, no caso específico dos minas do Rio de Janeiro, também se correspondiam em escritos cifrados com outros minas da Bahia, São Paulo e Minas Gerais (Idem).

As primeiras oportunidades de educação formal que não sendo deliberadamente destinadas a população negra, mas que acabaram favorecendo-a, surgiram no Estado Republicano, quando o desenvolvimento industrial do final do século XIX impulsionou o ensino popular e o ensino profissionalizante, principalmente no Estado de São Paulo [...] Essas escolas propiciaram a escolarização profissional e superior [...] Pretos e pardos que obtiveram sucesso nesta direção formaram uma nova classe social independente e intelectualizada (Idem).

As iniciativas elencadas nos dão uma noção parcial e introdutória de como a população negra foi aproveitando a oportunidades e criativamente se organizando para minorar as adversidades que impediam seu acesso à escolarização e profissionalização na sociedade brasileira do final do séc. XIX e início do século XX.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos que as dificuldades de acesso e permanência do segmento negro ao sistema de ensino oficial podem ser compreendidas como parte do processo de construção do modelo de nação posto em marcha na transição do século XIX para o século XX: a nação branca e civilizada. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que este projeto exigia “a inclusão” do segmento negro, era evidente o temor das elites em conduzir seguramente este processo, como nos mostra Lilia Moritz Schwarcz.

É possível, portanto, pensar que no Brasil desenvolveram-se formas de sociabilidade diversas, nas quais a afirmação do igualitarismo das Luzes e dos Direitos dos Homens pode existir de maneira difusa por causa da “ausência da noção de direitos do cidadão [...] ‘os homens da lei’, que apenas teoricamente se afastavam desse debate, já que oficialmente defendiam a adoção de um Estado liberal no país, mas temerosos com os efeitos da Grande Guerra e da mestiçagem acelerada, ponderavam sobre a justeza de se ‘agir sobre o perfil de nossa população, composta por tantas raças desiguais, e talvez pouco preparada para o exercício da cidadania’” (p. 245).

A Lei Áurea, mecanismo legislativo de extinção da escravidão, não previu nenhum mecanismo de inclusão dos negros na sociedade. Abandonados à própria sorte, balizados pelo estigma da escravidão e rechaçados por uma sociedade que continuaria (em certa medida até os nossos dias) marcadamente preconceituosa, os negros e seus descendentes, enfrentaram inúmeras dificuldades de acesso e inclusão no mercado de trabalho e escolarização. A escravidão virara subcidadania. O chicote, o imobilismo e a invisibilidade social. Círculo vicioso de pobreza e miséria: subemprego – baixa escolaridade – subemprego.

As breves informações apresentadas neste artigo, tentaram demonstrar que a teia da discriminação e dificuldades não se iniciaram no 14 de maio. Muito menos as inúmeras formas de resistências e lutas da população negra. De maneira difusa, não articulada ou massiva, criando ou aproveitando oportunidades, a população afrodescendente buscou caminhos, veredas alternativas que levassem a sua inclusão na sociedade brasileira. Trilha que inevitavelmente passou (e passa) pelo acesso à educação.

Hoje, 122 anos após a Abolição dos Escravos, seus descendentes ainda reivindicam medidas compensatórias na área educacional capazes de eliminar os efeitos persistentes das barreiras impostas no passado, a fim de que possam equiparar-se, numa sociedade onde as oportunidades deveriam ser oferecidas a todos.

Dados do PNAD 2009, publicados pela Agência Brasil e divulgados no jornal A Tarde de 21 de novembro de 2010, (um dia após as comemorações ao Dia da Consciência Negra), demonstram que os desafios continuam enormes. “A média de anos de estudo também é diferente entre pobres e ricos, negros e brancos e moradores de zonas rurais e urbanas. O estudo destaca que os negros têm, em média, 1,7 anos de estudo a menos que os brancos”. Segundo a pesquisa, o Brasil precisa de mais 5 anos para atingir a escolaridade mínima prevista na Constituição (ensino fundamental completo ou oito anos de estudos). Por outro lado, constatou-se que o hiato educacional diminui a cada ano.

Concluímos que a luta pela escolarização da população negra e/ou afrodescendente não foi ou é somente um objeto de pesquisa, é antes de tudo um processo histórico em pleno devir onde ainda há muitos passos a serem trilhados.

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( Professora do IFBA; doutoranda em Ciências da Educação da Universidade Nacional de Cuyo, Argentina; membro do Grupo de Pesquisa Epistemologia do Educar e Práticas Pedagógicas do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFBA. Autora deste artigo. E-mail: rosipds@

[1] O termo escolarização refere-se à aquisição das primeiras letras, o que atualmente chamamos de alfabetização e ensino fundamental.

[2] Em virtude dos variados tipos de nomes historicamente catalogados para denominar a população mestiça do país, e da falta de consenso entre os diversos autores que discutem a questão da negritude em definir uma nomenclatura peremptória e isenta de questionamentos, vamos utilizar os termos negro e afrodescendente por serem os mais usados na bibliografia de referência deste artigo e nos sensos nacionais.

[3] ABBADE, Marinel; SOUZA, Cyntia de. Escolarização das meninas negras: um caso raro na história da educação paulista no início do século, 1996; CUNHA, Perses M. da. Da senzala à sala de aula: como o negro chegou à escola, 1999; MULLER, Maria Lúcia R. Professoras negras na primeira República, 1999; CUNHA, Lídia N. Educação, modernização e afrodescendentes: 1920-1936, 1999; ROMÃO, Jeruse. História da educação dos afro-brasileiros, 1999; dentre outros.

[4] Jacob, O escravismo colonial, 1988; COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia, 1966; REIS. João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em (1835), 1986.

[5] NASCIMENTO, Dilene Raimundo do, CARVALHO, Diana Maul de e MARQUES, Rita de Cássia (orgs.). Uma história brasileira das doenças, 2006.

[6] BARROS, Surya Aaronovich Pombo. Negrinhos que por ahi andão: a escolarização da população negra em São Paulo (1870-1920), 2005.

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