Raymundo Heraldo Maués - SciELO

Medicinas populares e "pajelan?a cabocla" na Amaz?nia

Raymundo Heraldo Mau?s

SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros ALVES, PC., and MINAYO, MCS., orgs. Sa?de e doen?a: um olhar antropol?gico [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1994. 174 p. ISBN 85-85676-07-8. Available from SciELO Books .

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MEDICINAS POPULARES "PAJELAN?A CABOCLA"

NA AMAZ?NIA

RAYMUNDO HERALDO MAU?S

Entre as v?rias medicinas populares praticadas no Brasil, estudamos especialmente a chamada "pajelan?a cabocla", muito popular sobretudo na Amaz?nia rural, composta por um conjunto de pr?ticas de cura xaman?stica, com origem em cren?as e costumes dos antigos ?ndios Tupinamb?s, sincretizados pelo contato com o branco e o negro, desde pelo menos a segunda metade do s?culo XVIII .

A pajelan?a cabocla se fundamenta na cren?a nos "encantados", seres invis?veis que se apresentam durante os rituais incorporados no "paj?" (isto ?, o xam?), que ? a figura central da sess?o de cura. Come?ando pela descri??o de um ritual de pajelan?a t?pico, tal como pude observar numa povoa??o de pescadores do litoral do Par?,Itapu?**, prossigo analisando sua rela??o com o contexto social, visando tamb?m mostrar a import?ncia dessas pr?ticas de cura para as popula??es nativas da regi?o.

A sess?o de pajelan?a (ou "trabalho", como ? chamado pelos participantes) ? realizada com a assist?ncia de v?rias pessoas convidadas. Ocorre sempre ? noite, come?ando por volta das vinte horas e terminando j? pela madrugada (perto de uma ou duas horas, normalmente). Quase sempre ? patrocinada por um doente ou por seu parente (marido, quando se trata de mulher), que ? chamado de "dono do trabalho". Comparecem, al?m do doente para o qual ? feita a sess?o, outras pessoas (doentes ou n?o-doentes), muitas delas a convite do pr?prio paj?, ou do dono do trabalho, ou de seus parentes.

O "trabalho" come?a com uma ora??o feita pelo paj?, diante de um santu?rio ou mesa, onde s?o colocadas as imagens e estampas de v?rios santos cat?licos. Durante essa ora??o, o paj? "entrega" a Deus o seu esp?rito, que ir? deix?-lo por algumas horas,

* Cf., a respeito, o Livro da Visita??o do Santo Of?cio ao Par?, que apresenta, nas den?ncias e confiss?es, relatos de sess?es que hoje seriam vistas como de pajelan?a (Lapa, 1978).

** Trata-se de povoa??o pertencente ao munic?pio de Vigia, onde fiz trabalho de campo, nela residindo inicialmente durante quatro meses (dezembro de 1975 a abril de 1976) e, mais tarde, voltando ali in?meras vezes, num per?odo que vai at? o ano de 1985, quando completei a pesquisa para escrever minha tese de doutorado (Mau?s, 1987).

para dar lugar aos "caruanas" (ou "encantados") que nele se incorporam. Ap?s a ora??o, o paj? senta em um banquinho, cadeira ou rede de dormir. Em sua m?o direita est? o marac? e, na esquerda, tr?s penas coloridas. Concentra-se e, de repente, chega o primeiro guia ou cavalheiro. A partir desse momento, n?o ? mais o paj? que est? falando ou agindo diante das pessoas, mas sim o "caruana" que se apoderou de seu corpo. Durante todo o trabalho, embora se sucedam os "caruanas", o paj? permanecer? inconsciente, sem ter conhecimento de nada do que acontece, segundo afirmam os informantes.

Recebendo o primeiro guia, a voz do paj? se modifica, adotando o timbre pr?prio do "caruana" que nele se incorporou; d? boa-noite aos presentes e canta sua "doutrina", agitando o marac? e dan?ando pelo sal?o. Trata-se de um c?ntico inicial para "abrir as correntes" (isto ?, dar in?cio ? pr?pria sess?o de cura), durante o qual o "caruana" pede a b?n??o dos santos a todos os presentes e tamb?m se refere ao "encantado" mais importante na regi?o: o "rei Sebasti?o". Em seguida, conversa com os assistentes, despede-se e d? lugar a outro "caruana", que tamb?m dan?a e canta sua doutrina.

O clima do "trabalho" n?o ? de seriedade absoluta. Todos riem quando um "caruana" canta uma doutrina engra?ada. Os pr?prios "caruanas" brincam com as pessoas, dizendo piadas e, especialmente, fazem gracejos com o ajudante (ou servente) do paj?, que retruca no mesmo tom. A todo momento o servente oferece ao paj? um cigarro "branco" (isto ?, comum), al?m do cigarro tauari (permanentemente aceso), um pouco d'?gua ou ch? de uma erva chamada cidreira. O cigarro tauari, enrolado com a casca de uma planta chamada tauarizeiro, ? fumado ao contr?rio, com a brasa dentro da boca; ao inv?s de chupar a fuma?a, como se faz com o cigarro "branco", o paj? a sopra com for?a, para fazer defuma??o do ambiente, dos objetos e dos doentes.

Alguns guias ou "caruanas" que chegam pedem para ver o doente a quem o trabalho ? destinado, mandam defumar-lhe o corpo ou passar cacha?a em sua pele. Mas somente um guia especial ? que faz o tratamento propriamente dito. Trata-se do "mestre curador", que tamb?m chega dan?ando e cantando sua doutrina:

"Eu venho de longe No meu cavalo marinho. Eu s? cavalh?ro falado Eu s? mestre Jo?ozinho".

E, dirigindo-se ao doente, prossegue o canto:

"Eu recebi um recado da vossa senhoria Comigo queria fal? Por isso eu vim neste dia (...)".

Em seguida, o doente para quem se realiza o "trabalho" ? chamado para sentar-se numa cadeira ou banco no centro do sal?o e, a partir da?, iniciam-se os procedimentos

* O marac? ? um chocalho feito com a caba?a de uma planta chamada "balde". Pode ser fabricado localmente (em Itapu? e outras povoa??es rurais), mas tamb?m pode ser comprado em casas de com?rcio especializadas, na capital do Estado (Bel?m). As penas s?o de arara, sendo tamb?m vendidas nas mesmas casas comerciais.

necess?rios para realizar sua cura. Os outros doentes presentes s?o chamados e recebem o tratamento feito pelo paj?. Mesmo pessoas que n?o se sentem doentes aproveitam a oportunidade para tomar passes. Quando n?o h? mais ningu?m que queira se "consultar" ou tomar passe, o mestre curador se despede, deixando o corpo do paj? e dando lugar a outro "caruana".

Da? a pouco chega a "linha das princesas". Tratando-se de um paj? do sexo masculino, sua voz passa a imitar uma mulher. Depois de "baixarem" v?rias princesas, o trabalho se encerra, com a vinda de um pr?ncipe chamado mestre Domingos. Ele fala da "cidade de Maiandeua, onde reside o rei de todos os encantados, o rei Sebasti?o". Despede-se de todos, cantando e dan?ando. Faz uma s?rie de recomenda??es, especialmente ao ajudante do paj?, para que n?o se descuide no momento em que abandonar o corpo do "aparelho" (paj?), para que este n?o caia ao ch?o e se machuque. Em dado momento, cessa o canto abruptamente e o paj? parece estar desacordado, sendo amparado pelo servente. Este reza o Pai-Nosso, a Ave-Maria e, em seguida, bate com a m?o direita aberta sobre sua testa, chamando-o pelo nome e mandando que ele acorde. O paj? volta a si, d? boa-noite a todos e passa a se comportar normalmente. Est? encerrado o trabalho e todos se retiram para suas casas.

A pajelan?a cabocla ? uma forma de culto medi?nico, constitu?do por um conjunto de cren?as e pr?ticas muito difundidas na Amaz?nia, que j? t?m sido estudadas por outros pesquisadores . Tendo provavelmente, segundo Galv?o (1976), origem na pajelan?a dos grupos tupis, esse culto, que hoje se integra em um novo sistema de rela??es sociais, incorporou cren?as e pr?ticas cat?licas, kardecistas e africanas, recebendo atualmente uma forte influ?ncia da umbanda. Seus praticantes, entretanto, n?o se v?em como adeptos de uma religi?o diferente, considerando-se "bons cat?licos", inclusive os paj?s ou curadores que presidem as sess?es xaman?sticas.

Embora se possa estabelecer uma homologia entre santos cat?licos e "encantados" da pajelan?a, ? necess?rio, aqui, enfatizar suas diferen?as e aprofundar um pouco a caracteriza??o destas ?ltimas entidades. Enquanto os santos se caracterizam por suas numerosas estampas e imagens (ou "semelhan?as" deixadas por Deus na terra, segundo os informantes), os "encantados" n?o s?o representados de nenhuma forma, sendo tamb?m, normalmente, invis?veis a nossos olhos. N?o obstante, assim como se acredita que os santos se manifestam ?s vezes diante das pessoas, em apari??es a devotos privilegiados, o mesmo se diz que fazem os "encantados", s? que de forma bem mais freq?ente e de modo bastante variado. Essa cren?a, em parte, ? respons?vel pela variedade de denomina??es que recebem. Distinguem-se, entre eles, os "encantados" "do fundo" e "da mata", conforme o lugar onde habitam: o fundo dos rios ou a floresta.

Os "encantados-do-fundo" s?o designados como "bichos-do-fundo", "oiaras" ou "caruanas". A denomina??o "bicho-do-fundo" prov?m da cren?a de que os "encantados" podem se manifestar sob a forma de diferentes animais aqu?ticos, que vivem "no fundo" dos rios, como peixes, cobras, botos, etc. Manifestando-se, por?m, com forma humana, geralmente nas zonas de "mangai" (manguezais), ? margem dos rios e igarap?s, os

* Entre eles. Gal v?o (1976), Figueiredo (1976), Figueiredo & Vergolino e Silva (1972) e Salles (s.d., 1969). Esses estudos, entretanto, foram realizados em ?reas diferentes da Amaz?nia e com uma perspectiva te?rica c objetivos diversos do presente trabalho.

"encantados" surgem na condi??o de "oiaras". J? os "caruanas" (tamb?m conhecidos como "guias" ou "cavalheiros") s?o aqueles que se manifestam sem que se possa visualizar sua forma, nas sess?es xaman?sticas dos paj?s, incorporando-se neles. Nestes casos surgem como entidades ben?ficas, com a finalidade de curar.

Outra faceta dos "encantados" ? a sua "malineza". Concebidos como seres perigosos, podem provocar doen?as nos seres humanos, al?m de outros males. Por isso, ? necess?rio ter cautela com eles, n?o s? pedindo a prote??o divina contra os males que podem provocar, como adotando atitudes respeitosas no momento em que se passa pelos locais onde costumam manifestar-se, assim como quando se est? assistindo ao trabalho de um paj?.

Os "encantados-do-fundo" podem provocar "doen?as", como o "mau-olhado", a "flechada-de-bicho", a "corrente-do-fundo" e, ainda, manifestando-se na forma de um boto que se transforma num belo rapaz, s?o capazes de possuir sexualmente as mulheres . Al?m disso, s?o tamb?m perigosos por costumarem atrair as pessoas para suas moradas "no fundo", onde elas tamb?m se transformar?o em "encantados".

Os "encantados-da-mata" ("anhanga" e "curupira") tamb?m provocam o "mau-olhado" e t?m o poder de "mundiar" as pessoas, isto ?, faz?-las perder-se na floresta. Isto acontece, sobretudo, no caso de ca?adores que cometem abusos, matando persistentemente um s? tipo de animal ou uma quantidade de ca?a superior ?s suas necessidades.

Isto, ali?s, ? um elemento importante na ideologia regional, desde que esses seres funcionam tamb?m como uma esp?cie de defensores m?ticos da floresta, dos rios, dos campos e dos lagos. Tudo tem sua "m?e" (um "encantado"): abusos s?o castigados pela "m?e do rio", quando este ? polu?do, pela "m?e do mato", quando a floresta ? devastada, e assim sucessivamente. Parece por?m que, em certas ?reas, "os curupiras foram embora" desde que a destrui??o das motosserras foi mais poderosa.

Tudo isso se constitui em elementos relevantes de uma forma de culto que ? tamb?m uma pr?tica m?dica local, cuja import?ncia ? tanto maior em Itapu?, como em centenas de outras povoa??es e vilas do interior da Amaz?nia. S?o extremamente prec?rios ou inexistentes os servi?os de sa?de oferecidos por pessoal treinado dentro da tradi??o da medicina ocidental. Ademais, mesmo que essas pessoas possam utilizar servi?os m?dicos de fora de suas comunidades, isso ? feito concomitantemente com a utiliza??o da medicina local, cuja abrang?ncia ? muito mais ampla, envolvendo cren?as religiosas, conhecimento da natureza (sobretudo plantas e animais), rela??es sociais (fam?lia, vizinhan?a, povoa??o, outras localidades), bem como trocas econ?micas, cerimoniais, participa??o em rituais, divers?o, etc.

Por outro lado, a pajelan?a cabocla surge como uma das v?rias medicinas populares na Amaz?nia, desde que o paj? n?o ? o ?nico especialista local no tratamento de doen?as. Al?m dele, existem o "experiente", a parteira, o benzedor ou a benzedeira, o "esp?rita"

* O "mau-olhado" ? bastante conhecido na literatura antropol?gica (Cf. Reminick, 1974, Spooner, 1970, entre outros). Quanto ? "flechada-de-bicho" e ? "corrente-do-fundo", trata-se de conceitos locais que designam "doen?as" capazes de provocar, a primeira, dores localizadas em partes do corpo, como se a pessoa tivesse sido atingida por uma flecha; e, a segunda, incorpora??o descontrolada por encantados e esp?ritos, indicativo de um poss?vel "dom" xaman?stico. As hist?rias sobre a sedu??o de mulheres pelo boto t?m sido muito difundidas e abordadas pela literatura, pelo cinema e por trabalhos de cunho antropol?gico.

** Este ? o t?tulo de uma disserta??o de mestrado em antropologia, que estuda o campesinato na regi?o de Santar?m, no Estado do Par? (Cf. Lins e Silva, 1980).

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