Prefácio*



UMA INDÚSTRIA CULTURAL CAMPONESA: EDITORES, FOLHETEIROS E POETAS NO NORDESTE BRASILEIRO (1972-1974)

Mauro W. B. de Almeida

INDICE

Prefácio 3

Linguagem Regional e Fala Popular 9

As Leituras do Cordel 10

A Indústria Cultural Pobre 11

Editores e Folheteiros 19

Intelectuais Camponeses 64

Transformações na literatura dos folhetos 87

Textos 131

Bibliografia 131

Prefácio

Os ensaios que compõem este livro foram escritos entre 1977 e 1979. De lá para cá muita coisa foi publicada sobre o assunto literatura de cordel. Apesar disso, decidi republicar esses ensaios quase na forma original. Os dois primeiros ensaios foram publicados em revistas. Em “Linguagem regional e fala popular”[1] digo que a cultura regional é uma linguagem onde se trava uma luta de falas, utilizando idéias de Bákhtin. No ensaio sobre “Leituras de cordel” dou um exemplo disso, mostrando comentando análises e usos dos folhetos de cordel [2]. Esses dois ensaios apresentam implicitamente a perspectiva adotada na análise.

A literatura de cordel é uma indústria cultural pobre e camponesa. As implicações dessa noção são exploradas no ensaio "A Indústria Cultural Pobre". Esse ensaio inédito foi escrito como introdução para essa coletânea quando ela foi aceita para publicação há muitos anos pela editora brasiliense, e eu a retirei para uma revisão que nunca foi feita.

Os três ensaios seguintes ("Editores e Folheteiros", "Intelectuais Camponeses", "Transformações na Literatura dos Folhetos") constituem abreviações de capítulos de minha tese de mestrado [3]. O fato de que essa tese tem sido indicada para alunos de literatura por Marlise Meyer, Gerusa Pires Ferreira e por foi a principal razão para publicar em livro a sua substância.

O ensaio "Editores e Folheteiros" trata das características da pequena indústria de folhetos e de seu mercado e procura demonstrar que o público para essa pequena indústria é a população camponesa. O ensaio "Intelectuais Camponeses" trata dos empresários e escritores, também da origem rural, que operam essa pequena indústria. "Transformações na Literatura dos Folhetos" procura interpretar os folhetos encarando-os como representação do sentimento de inviabilidade do modo de vida camponês.

Latifúndios e minifúndios inviáveis, mercado de trabalho e de bens agrícola, valorização da terra - é isso que inviabiliza o projeto camponês. Resulta dessas considerações que o projeto de vida camponês é uma ilusão; é a expressão de um desejo sobre bases que o tornam impossível. Mas essa ilusão, empurrando para a ação, tem o poder de causar mudanças: ela foi politicamente poderosa. Esse sonho foi expresso nos folhetos numa linguagem própria, onde mulheres são um símbolo privilegiado e onde o comportamento sexual indica mudanças sociais.

Uma questão central que motivou esta pesquisa era o tema da ideologia, visto a partir de um caso concreto, relativo à população rural brasileira do nordeste - e particularmente a parte dessa população formada pelos camponeses livres do sertão e do agreste. Essa população rural deu origem por um lado uma extensa literatura sobre o campesinato nordestino e sobre a estrutura social do latifúndio; e por outro lado gerou uma igualmente ampla literatura sobre a migração, o banditismo rural, o messianismo, e a literatura oral dos cantadores e dos repentistas.

Inicialmente, coloquei-me duas perguntas. Como eram vistas essas transformações históricas na literatura dos folhetos ao longo do século XX? E como os próprios folhetos mudaram com o tempo, expressando em suas metamorfoses as mudanças sociais que testemunharam? Abandonei a idéia de acompanhar as metamorfoses históricas dos folhetos ao longo do século (trabalho que estava sendo feito por Ruth Brito Lemos Terra), para fixar-me nos folhetos atuais e nas tradições mais velhas que os folhetos atuais conservaram e reproduziram.

Na análise de textos de folhetos, que constitui a base do terceiro ensaio, utilizei o método e as idéias do folclorista soviético Vladímir Propp[4], que mostrou como representar a unidade existente entre múltiplos exemplos de narrativa popular, e elaborou uma teoria para explicar sociologicamente tal constância. Propp viu nos contos mágicos uma forma (Propp 1970) cuja estrutura é a dos rito de passagem camponeses (1972). Para minha análise foi igualmente importante a obra de Lévi-Strauss. Penso que, se Lévi-Strauss tivesse lido a segunda obra de Propp, teria formulado a diferença entre seu próprio método e o de Propp não nos termos da oposição entre estrutura e forma (Lévi-Strauss 1973), mas em termos da oposição entre mito e rito. A minha análise foi também marcada pela leitura de Van Gennep (1977), Victor Turner (1974[1969]) e Edmund Leach (1975).

A respeito do papel dos intelectuais, da cultura tradicional e do bom senso nas camadas populares, bem como da relação do campesinato com a cultura, baseei-me evidentemente nas idéias de Antonio Gramsci (1975), mas as diferenças são fáceis de ver.

A noção de indústria cultural pobre inspirou-se na crítica à noção de arcaísmo camponês feita por Chico de Oliveira, Francisco Sá Jr. e outros, em inícios da década de 1970.

Um livro de Câmara Cascudo (1939, 1952, 1953) foi a origem de meu interesse sobre o assunto, quando o li durante uma viagem ao Nordeste em 1970. O artigo pioneiro de Orígenes Lessa sobre a literatura de cordel (1955), é uma síntese ainda atual sobre muitos temas que abordo. Liêdo Maranhão (1974) e de Sebastião Nunes Batista são importantes fontes etnográficas. Na época em que escrevi estes ensaios, no final dos anos 70, os principais estudos sociológicos sobre a literatura dos folhetos eram os de Renato Carneiro de Campos (1959), Marcius Cortez (1966), Robert Rowland (1967), Ronald Daus (1969), Mário Pontos (1972) e Neuma Aguiar (1973). É necessário ainda referir a contribuição importante e pioneira de Liêdo Maranhão (1974, 1977) sobre folheteiros e sobre a classificação popular, bem como a pesquisa histórica de Sebastião Nunes Batista; e os volumes da “Literatura Popular em Verso”, em particular os que contaram com o concurso de Cavalcante Proença, de quem se deve consultar também Ribeira do São FranciscoI (Proença 1944). Repito que essas referências são dadas aqui como crédito à influência desses estudos e a sua utilização no meu trabalho; não se trata de uma resenha e muito menos de um levantamento exaustivo.

Desde então, o assunto passou a interessar sobretudo ao campo dos estudos literários, devendo ser citados os trabalhos de Jerusa Pires Ferreira, Marlise Meyer e ... no Brasil, de Candace Slater nos EUA e aqueles feitos na França em uma tradição iniciada por Raymond Cantel.

Antonio Augusto Arantes Neto (1977) realizou o primeiro estudo antropológico da literatura de folhetos com rigor etnográfico e analítico. Ruth Terra é autora de um livro notável sobre a história social da indústria cultural camponesa, tanto pela riqueza dos fatos que ela descobriu do zero, quanto por sua interpretação pioneira (Terra 1978). Ruth Terra descobriu sózinha a “indústria cultura pobre”, rótulo com o qual talvez não concordasse, rejeitando as visões arcaizantes da literatura dos folhetos. Ela também descobriu a profunda unidade ideológica dos folhetos geralmente separados em “gêneros” estanques, unidade que ela resumia, citando o grande Leandro Gomes de Barros, dizendo que todos os folhetos são fragmentos de um texto único, articulado por três dimensões essenciais: “a princesa, o punhal e o divino”.

Conheci Antonio Augusto Arantes e Ruth Brito Lemos Terra depois que apresentei à FAPESP um projeto para realizar essa pesquisa, orientado pela professora Ruth Cardoso. Ruth Brito Lemos Terra influenciou profundamente a minha pesquisa. Antonio Augusto Arantes ajudou-me generosamente com seu roteiro de endereços e sugestões. Ruth Correa Cardoso foi a orientadora da tese de mestrado que defendi sobre esse assunto no Departamento de Ciência Política da USP. Arthur Eid, Carlos Alberto Dória e Carlos Alberto Ricardo foram meus colegas de estudo do Nordeste. Bóris Schnaiderman guiou-me na literatura soviética sobre folclore. Bela Bianco leu a versão da tese que publico agora, bem como Maria Lúcia Montes. Miriam Chnaiderman foi autora da idéia inicial de pesquisa. Manuela Carneiro da Cunha é a responsável pela idéia de publicar.

Dentre os poetas, folheteiros e editores nordestinos que tornaram possível este trabalho, quero mencionar particularmente Erotildes Miranda dos Santos, Maria de Jesus da Silva Diniz, Manuel Caboclo e Silva, Silvino Pereira da Silva, Rodolfo Coelho Cavalcanti, Firmino Ferreira da Silva, Delarme Monteiro da Silva, José Costa Leite e João José da Silva. E quero agradecer especialmente a João Ferreira da Silva e a Manoel Camilo dos Santos (poetas cujas idéias foram importantes na minha compreensão dos folhetos), bem como a João Severo da Silva. José Francisco Borges, foi, além do mais, um amigo hospitaleiro.

Agradeço ainda a:

Alípio Bispo dos Santos, e Avelino Santos (Feira de Santana), Stênio Diniz, Abraão Bezerra Batista, Manuel Gomes e, Expedito Sebastião da Silva (Juazeiro do Norte), Adalgiso Carlos (Cajazeiras), Antônio Zeferino, Severino Gabriel de Oliveira, Manuel Pinheiro Lira, Ismael Freira de Souza, Gilberto Severino e José Alves Pontes (Guarabira), Arthur Rodrigues da Silva (João Pessoa), Lourival Rodrigues Penteado (Salvador), João Vicente Emiliano e João Cândido (Vitória de Santo Antão), Palito (Olinda), Vitorino de Melo, Olegário Pereira da Silva (Caruaru), Manoel Miguel da Silva, Zezé, Joel Francisco Borges (Bezerros), Jsé Edson, João José da Silva (Recife), João Firmino, Arthur Pereira de Sales (Aracaju).

Os textos originais mencionados foram na maioria coletados por mim e estão depositados no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Campinas. Alguns figuram também em excelentes antologias, como a que foi organizada por Manoel Cavalcanti Proença[5].

Linguagem Regional e Fala Popular

(Texto impresso)

As Leituras do Cordel

(Texto impresso)

A Indústria Cultural Pobre[6]

Com o nome de indústria cultural pobre designo o sistema de produção de folhetos no nordeste brasileiro no século XX. Esse sistema incluía os escritores-poetas, as editoras, a rede de venda e o consumo, elos de uma cadeia que se fechava quando o consumo gerava novos escritores-poetas. Por que indústria cultural pobre?

Indústria cultural

Indústria cultural, para evitar um erro freqüente que é ver a literatura dos folhetos nordestinos como folclore ou tradição oral, identificando-a a um passado (social e cultural) que teria sobrevivido em nossos dias, e a uma espontânea linguagem popular que deveria ser preservada. Indústria cultural, também, para evitar o diagnóstico que decreta ser o declínio dessa literatura conseqüência da urbanização e do capitalismo, como se antes a literatura de cordel estivesse para o mundo da cultura de massas como o valor de uso está para o valor de troca. Nada mais falso que essa concepção dualista dos folhetos populares.

Uma indústria pobre

"Pobre", porque se tratava de uma indústria pequena, fragmentada, e imersa na sociedade camponesa nordestina do sertão e do agreste. Essa sociedade estava integrada parcialmente ao mercado não apenas fornecendo mão-de-obra sazonal para plantações, mas também vendendo sua pequena produção nas feiras regionais. A população camponesa constituía assim um mercado consumidor de perfil humilde. Uma razão importante para o sucesso da indústria cultural foi o fato de que ela baseou-se em intelectuais de origem camponesa e que se tornaram comerciantes em feiras e mercados urbanos, atendendo a esse mercado e de fato produzindo um público específico.

Cultura popular e indústria cultural

Com essa noção, estaremos contribuindo para que se reexamine também em outros casos a natureza daquilo que se chama de “cultura popular”. Ao descrever o sistema de produção e distribuição de folhetos como uma indústria cultural, estamos afirmando que essencialmente os folhetos são produzidos como mercadoria, para um mercado, por um corpo de pessoas relativamente especializado.

Há uma imagem da literatura do cordel na qual esses folhetos rudimentares aparecem como repositórios de uma literatura oral, impressos em prelos de fundo de quintal em sítios rurais, adornados com xilogravuras de feição naive. Seriam esses aspectos artesanais, associados aparentemente mais ao uso do que à troca mercantil, a base da natureza popular dos folhetos? Ao ver essa literatura pendurada em "cordel", observadores acentuaram o que pensaram ser uma sobrevivência de uma literatura arcaica e em desaparição. Seria a tradição a essência do popular?

A primeira pessoa a tratar da história da produção dos folhetos foi Ruth Brito Lemos Terra, no seu livro Memórias de Lutas. Ela mostra como os folhetos surgiram no início do século XX, produzidos em tipografias das capitais nordestinas (não de prelos de fundo de quintal), decorados com vinhetas e clichês de artistas de cinema (não com xilogravuras populares), compostos por autores letrados e profissionais (não por cantadores analfabetos) e que recorriam a fontes escritas, aos fatos da impressa e à tradição oral (não à tradição apenas), distribuídos por ferrovia (não de mão em mão), e por uma rede nacional de revenda (não como produção local).

Esse sistema, nascido no início do século, expandiu-se ao longo dos anos 30 e 40, com multiplicação de editores, distribuidores e poetas, e atingiu seu apogeu nos anos 50. Ao expandir-se, a produção e distribuição dos folhetos acompanhou o fenômeno da expansão da pequena produção agrícola nordestina, expansão esta que criou e multiplicou locais (as feiras) e os compradores (compradores rurais) para o produto.

Durante a primeira metade do século, e até o final da década de 1960, a indústria aumenta em número de editores, poetas e vendedores; no alcance da distribuição, e no tamanho do público. Havia editores especializados nos “clássicos” do gênero, de maior tamanho e preço mais elevado, enquanto outros editores concentravam-se em folhetos de menor extensão e de consumo rápido e local; praticamente todas as capitais nordestinas possuíam agentes revendedores que estocavam a produção dos principais editores e os redistribuíam para vendedores em nível estadual, e a mercadoria chegava assim na Amazônia e no Rio de Janeiro.

Ora, à medida que a indústria dos folhetos se afirmava e produzia seu próprio público, abriam-se espaços cada vez maiores para novos poetas, editores e vendedores. Ao lado dos maiores editores como José Bernardo da Silva em Juazeiro do Norte, que administravam uma tipografia com vários empregados e reproduziam um precioso acervo de textos clássicos de Leandro Gomes de Barros e João Martins de Athayde, e contavam com uma rede nacional de distribuidores, surgiram vários pequenos editores, estes sim de fundo de quintal, como José Francisco Borges em Bezerros, que combinavam o ofício de poeta, xilógrafo e vendedor, trabalhando com pequenas tiragens e vendendo-as na vizinhança.

Dessa forma, a indústria diferenciou-se internamente, e o folheto virou folheto de cordel. A indústria dos folhetos passou a incluir uma tradição sólida de obras clássicas produzidas no início do século com uma tradição mais efêmera e local; micro-empresas urbanas e artesãos rurais. Gerou-se assim a base para uma ilusão, a ilusão de uma primitiva fase artesanal e oral que evocava o passado.

A conclusão é que não é possível opor mercado a tradição, nem mercadoria a cultura camponesa. O território da pequena produção mercantil, estimulado pela expansão capitalista, foi também o território da expansão da cultura camponesa objetivada em mercadorias dotadas ao mesmo tempo de uma qualidade oral e dramática única.

De fato, a indústria cultural nordestina precisava adaptar-se a um público analfabeto, que transitava periódicamente do campo para as feituras urbanas, com pouco dinheiro para gastar em produtos culturais, e com uma cultura específica. A indústria dos folhetos tornou-se eficaz ao encarnar-se nesse público, ao tornar-se um momento do processo de constituição da cultura camponesa; ao constituir-se como uma indústria "pobre". Suas realizações não foram poucas. Comprei cerca de 600 títulos de vendedores em mercados e feiras nordestinas, em um único ano. Estimando cada tiragem em mil exemplares, e levando em conta a rápida circulação dos folhetos, chegamos a 600 mil exemplares em um ano. A indústria cultural dos folhetos precisava de um mercado suficientemente amplo para absorver as tiragens que na realidade podiam ser de três mil exemplares para os "romances", e podiam subir a dezenas de milhares para assuntos como a morte de Getúlio Vargas - mas a maioria da população nas áreas rurais do nordeste era analfabeta. Como converter camponeses analfabetos em mercado para um produto escrito? Os temas precisavam fazer sentido para o público rural, mas tinham que trazer para esse público os fatos que eram importantes na nação e no mundo. Os vendedores precisavam ser muitos nos picos de venda, e dispensáveis na entressafra. Precisavam ser letrados, e ao mesmo tempo comunicar-se com o público de compradores. A estrutura comercial precisava ser flexível, atuando com rapidez, e alimentada diretamente pelo gosto público - publicar na hora errada podia significar a perda do investimento.

O estes problemas foram resolvidos pela indústria cultural dos folhetos nordestinos. O sistema constituído estava em funcionamento em meados dos anos 70, quando eu o estudei, e quando apresentava ligeira reanimação após uma década de recessão.

A conclusão principal é que a chave para o êxito da indústria dos folhetos foi a descoberta e utilização do mercado rural para mercadorias culturais. Esse mercado era atingido através da rede de feiras. Ele era formado por habitantes de sítios e de fazendas nordestinas - meeiros, moradores, pequenos proprietários, almocreves, artesãos, funileiros, mascates e palhaços; pelos que freqüentavam as praças onde folhetos eram vendidos ao lado de farinha, feijão, bode, panelas, lamparinas e outros produtos da pequena produção agrícola e da pequena indústria nordestina que esteve em plena expansão entre os anos 40 e 60. Esse mercado rural foi também a base principal para o recrutamento do pessoal de distribuição e produção - com exceção dos empregados gráficos. Dessa maneira, a indústria dos folhetos foi um dos elos de articulação da população rural nordestina ao mercado regional, quer como consumidores, quer como trabalhadores - ela constitui o lado cultural desse processo que foi, em outras áreas, intensivamente estudado por historiadores e economistas.[7]

Voltemos ao tema da “pobreza”. Operar com baixos custos, em escala variada e flexível, com editores independentes e pequenos, era condição para que o sistema fosse eficiente. Os primeiros poetas produziram centenas de títulos de alta qualidade e procura, que constituíram, juntamente com a infraestrutura gráfica que acumularam, o capital herdado posteriormente pelas principais editoras. Mas outros editores podiam, a partir da venda de originais e da revenda de folhetos prontos, entrar no sistema como editores, explorando outras faixas do mercado - assuntos locais, política, putaria. Não havia barreiras à entrada para novos editores. Para os menores editores, havia alternativas de sobrevivência. Eles podiam suportar margens mais baixas de lucro.

Uma chave crucial em tudo isso eram os vendedores - os chamados folheteiros. Esses eram os intermediários entre os editores e o público das feiras. Esse público era em sua maior parte analfabeto, mas acostumado a ouvir. Os folheteiros liam os folhetos em voz alta, ou conforme o caso, cantavam-nos, de acordo com modelos tradicionais. Bastava que alguns elos da cadeia de distribuição fossem alfabetizados - outros podiam decorar. O folheto circularia, nos elos resultantes, de forma oralizada, acentuando no ouvinte urbano a impressão de “folclore”. Era necessário, para que isso funcionasse, que o poeta, autor do texto escrito, fosse competente nas formas convencionais - e esse senso da oralidade do texto, essencial para seu êxito no mercado, era adquirido quando o poeta era ainda público, nos anos de infância. Os vendedores alternavam o seu trabalho agrícola, assalariado ou não, com o bico sazonal da venda de folhetos, atividade que exigia deles um treinamento mínimo, já que competência básica já fora adquirida na infância e adolescência, ao ouvir e decorar histórias lidas nos sítios por outros. Dessa maneira, a produção e venda de folhetos criava seu próprio exército potencial de vendedores e treinava outros poetas. Ela produzia seu público. Esse exército de vendedores podia ser rapidamente mobilizado exatamente por não ser sustentado como um quadro fixo e assalariado, nem depender de um sistema de consignações.

Para as grandes editoras, entrar no circuito da indústria cultura pobre não era vantajoso, assim como a agro-indústria do açúcar não compete com o feijão e a mandioca produzidos a baixo custo pelo agricultor pobre.

Ser pequeno era bom, portanto. E, para os poetas e empresários que entrevistamos, a verdade dessa asserção é indiscutível, pois foi aos pequenos que Deus deu o dom da poesia, o acesso ao mistério da natureza que é também o mistério do crescimento natural. E, prosseguindo, dizem ainda os poetas que um dia o pequeno será maior que o grande: “a roda grande passará por dentro da roda pequena”. Interprete-se como se quiser o sentido dessa fórmula profética que lemos num folheto. Uma das interpretações é que pequenos produtores terão “um dia” acesso ao poder. Foi esse, pelo menos, o projeto de alguns editores e poetas nos anos 50. Esse projeto, contudo, foi abortado muito cedo, e convém comentar como. Qual foi a causa do fim da “idade de ouro” dos folhetos? A TV, a Rádio Nacional, as bancas de jornais? A resposta que ouvimos na região foi outra. A causa principal foi o golpe de 1964, e, em seu bojo, o arrocho salarial aos agricultores assalariados, a censura, a prisão de poetas, a recessão que destruiu não só essa como outras pequenas indústrias. Folhetos haviam sido utilizados para propaganda política, muitos em conexão com as Ligas Camponesas. Daí em diante, passou a haver repressão à simples leitura oral feita em feira, bem com censura ou auto-censura a textos[8]. O custo do papel já subira no governo Jânio Quadros, em conseqüência da Instrução 204, elevando o preço do folheto. E enquanto no período Arraes trabalhadores da zona da Mata nordestina viam-se de bolso cheio, em conseqüência da regulamentação do pagamento a tarefas, no período subsequente, de violenta repressão sindical, “o pobre não ia deixar de comprar um quilo de farinha para comprar um folheto, e não podia comprar os dois”. Mais do que isso, era o próprio projeto dos trabalhadores rurais nordestinos de se tornarem um campesinato que era destruído pela vitória dos patrões rurais. Em meados da década de 70, alguns editores reabriam suas portas, e editoras sobreviventes ampliavam a escala de produção - conseqüência do fim da recessão rural, da diminuição do medo à repressão nas feiras, da reativação do mercado, da continuidade da micro-produção agrícola no Nordeste.

O exemplo da indústria cultural em seus anos áureos mostra que ela prescindiu do paternalismo de que está entranhada a ideologia dualista da “cultura popular” para prosperar. A literatura de folhetos precisou e exigiu, através de representantes e associações de classe, de subsídios ao preço do papel, de espaço e liberdade para vender em locais públicos, bem como de salários que dessem poder de compra a seu público. É a moral da nossa história.

Editores e Folheteiros

A pesquisa sobre a literatura de folhetos baseia-se em uma pesquisa realizada no nordeste brasileiro, nos meses de julho de 1974 e março de 1975. Durante esse período, entrevistei poetas, folheteiros, editores e agentes, além de familiares e conhecidos seus. O objetivo da pesquisa era investigar o sistema responsável pela criação, publicação e distribuição de folhetos. Essa investigação, por sua vez, foi provocada por um análise anterior sobre texto de folhetos

Foram quarenta e uma entrevistas. Em alguns casos consistem em uma rápida conversa com folheteiros numa feira, no intervalo de seu trabalho; noutros, são estudos mais demorados, prolongando-se por alguns dias ou até por uma semana. Elas são numeradas e citadas dessa maneira, o que permitirá a alguém referir-se aos textos originais. Os folhetos foram comprados durante esse período, perfazendo cerca de 600 títulos. Além dos folheteiros, comprei folhas soltas (113), horóscopos (12) e orações. Comprados em mercados municipais, feiras e em folhetarias, esses folhetos refletem a oferta corrente na região. Naturalmente, observei folheteiros em feiras, agentes de mercados e aspectos da produção em tipografias.

Estou consciente das limitações. A pesquisa durou muito pouco tempo, não sendo suficiente para nada além de um mapeamento inicial de temas que mereceriam maior aprofundamento, seja numa direção etnográfica - o sistema editorial, as redes de folheteiros, o consumo rural - , seja numa orientação histórica - expansão do sistema, biografia dos principais editores, relações com a política, a repressão e instituições. De qualquer forma, esse mapeamento produziu algumas perguntas e alguns resultados.

Em síntese, procuro mostrar como o campesinato nordestino (numa acepção que esclarecei mais adiante) gerou um sistema cultural articulado à transmissão oral e simultaneamente à economia de mercado, contando com seus próprios intelectuais e capaz de produzir uma certa visão da história na qual as relações sociais são comentadas sob um ponto de vista camponês. Dessa forma, não vejo os “folhetos” como resíduo de uma cultura “arcaica”, mas como fenômeno dinâmico; e não vejo seu conteúdo como mera ilusão alienada imposta pelas classes dominantes (cf. Fausto Neto 1969); considero seu público formado por camponeses parcialmente assalariados e envolvidos no mecanismo das feiras rurais.

Articulando esses aspectos, podemos dizer que o sistema editorial dos folhetos desenvolveu-se nas cidades de maneira dinâmica ao longo da primeira metade do século XX, voltado para o público camponês das feiras rurais, e tendo como personagens ex-camponeses. Essas circunstâncias têm influência sobre os próprios folhetos, mas para considerá-las é preciso levar em conta o papel peculiar desempenhado pelos poetas; eles provêm do campo, mas são intelectuais autodidatas que se orgulham, ante pessoas cultas, de não serem mais “matutos”, enquanto por outro lado sua subsistência provém precisamente do fato de falarem ao “matuto” numa linguagem que lhe é inteligível e verossímil.

Nos tópicos seguintes, abordarei primeiro a situação que como chamo de “camponesa”, e sua associação com os folhetos através da leitura no sítio. Em seguida, tratarei do sistema editorial, com um rápido esboço de sua história e de sua configuração, procurando mostrar as razões de sua eficiência ao longo de décadas. Num terceiro momento, falo dos poetas de origem rural. Finalmente, comentos alguns folhetos. Como cada tema é muito amplo por si mesmo, eles só poderão ser tratados superficialmente. Mas acredito ser necessário indicar todas essas diferenças coordenadas para dar substância à visão que esbocei acima e que vou procurar esclarecer.

a) Quem são poetas, editores, folheteiros

Quando se perguntava a um poeta, folheteiro ou editor o lugar onde nasceu, a resposta indicava um “sítio”. Em alguns casos o folheteiro permanecia trabalhando no campo. Outras vezes é filho de trabalhadores rurais.

Quadro I

| |Origem |Até que idade |Ocupação dos Pais |

|E-1 |rural |8 anos |roça (terra do primo) |

|E-2 |rural |15 anos |moradores/assalariados, vaqueiro|

|E-3 |urbana | |operária, pedreiro |

|E-4 |rural | |“roça” |

|E-5 |urbana | |roça em terra do pai até o |

| | | |casamento |

|E-6 |cidade | |sítio |

|E-7 |rural | |sítio (terra do primo), mestre |

| | | |carpina |

|E-8 |rural |14 anos |sítio (terra própria) |

|E-9 |urbana | |sítio |

|E-10 |____ | |____ |

|E-11 |rural |27 anos |foreiros |

|E-12 |rural |18 anos |sítio (terra própria) |

|E-13 |rural |até hoje |sítio |

|E-14 |rural |até hoje |___ |

|E-15 |rural |___ |___ |

|E-16 |rural |19 anos |foreiros |

|E-17 |___ | |___ |

|E-18 |rural |8 anos |foreiros/assalariados |

|E-19 |rural | |sítio(terra própria) |

|E-20 |rural | |moradores |

|E-21 |rural | |___ |

|E-22 |___ | |___ |

|E-23 |rural |até hoje |___ |

|E-24 |rural |17 anos |sítio (terra própria) |

|E-25 |rural |27 anos |___ |

|E-26 |rural |20 anos |morador |

|E-27 |urbano | |pedreiro |

|E-28 |___ | | |

|E-29 |rural |17 anos |___ |

|E-30 | | | |

|E-31 |rural | |___ |

|E-32 |___ | | |

|E-33 |rural | | |

|E-34 |rural | | |

|E-35 a E-40: dados insuficientes | | |

Os dados são fragmentários, mas a sugestão é clara. Os trabalhadores do ramo do folheto têm origem predominantemente rural.

As indicações não significam que os entrevistados tenham vivido no campo apenas do “sítio”. Elas mostram apenas que o meio rural, através da imagem da roça de subsistência, seja no passado ou ainda no presente (pois alguns ainda trabalham na terra), é invocado pelos entrevistados como a parte importante de sua experiência. Na verdade, muitos foram também trabalhadores assalariados, sem falar os cacimbeiros, palhaços, mascates, almocreves, marceneiros, ???, (término?).

Por outro lado, é preciso notar que a atividade rural aqui referida como vinculada de um modo ou de outro a um “sítio” não é homogênea. Há os pequenos proprietários (menos de 5ha, com uma exceção de 30 ha). Há o caso dos “moradores” (de sujeição e de condição), os “foreiros” e os “alugados” (assalariados). Essas categorias apresentam-se articuladas. Os pequenos proprietários e moradores, assim, empregarão como “alugados” durante parte do ano nas plantações do litoral. Moradores viam-se reduzidos à situação de comprar o “barracão” do engenho como “alugados”. Enfim, o quadro é móvel. Ainda a título de indicação, eis as combinações nas entrevistas:

Quadro II

Situação de trabalho e combinações

(parênteses indicam coexistência, e barra indica transição)

(pequeno proprietário)

(pequeno proprietário, assalariado rural) _ (morador)

(pequeno proprietário) _ (morador, assalariado rural)

(morador, assalariado rural)

(morador de sujeição ou condição)

(foreiro)

(foreiro) _ (morador)

(foreiro, assalariado rural)

Em conjunto, esses trabalhadores migraram para a cidade onde desempenharam diversas atividades, após um trânsito pelas feiras. Podemos indicar ainda essa transição do campo para a cidade, em termos de atividade, pelo quadro seguinte.

Quadro III

|pequeno proprietário |ferroviário, folheteiro |

|pequeno proprietário, assalariado, morador |editor com gráfica |

|pequeno proprietário |pequeno proprietário, folheteiro |

|pequeno proprietário, assalariado |pequeno proprietário, folheteiro |

|pequeno proprietário, morador |folheteiro |

|morador, assalariado |folheteiro |

|morador |cacimbeiro, gráfico - editor |

|morador |poeta, folheteiro |

|morador |palhaço, mascate - folheteiro |

|morador, foreiro |poeta, editor |

|foreiro |almocreve, marceneiro - violeiro - poeta, editor |

|foreiro |gráfico, poeta |

|foreiro |operário de construção - poeta, folheteiro |

|pequenos proprietários |folheteiros |

|trabalhadores urbanos |gráficos, bicheiro, comércio |

Notamos que há algo comum à gama de situações: é a posição de acesso à terra expressa pela idéia de um “sítio”. Antes de comentar esse elemento comum, convém ilustrar mais concretamente o que estamos dizendo, através de uma entrevista escolhida ao acaso.

Firmino nasceu no agreste pernambucano, em 1927. O sítio ficava perto da linha do trem. Nele plantava milho, feijão e maniva. Criava também cabra, galinha e animais (besta, cavalo), pouca coisa. Pois “o que a terra dava era pra comer”. Caso a safra fosse boa, parte dela seria vendida em julho ou agosto, na feira. Mas nesses meses a produção de alimento não alcançava preço, e vendia-se muito para apurar pouco. Mesmo a terra valia pouco, o que tinha valor era o animal. Para conseguir dinheiro em caso de necessidade, vendiam uma galinha, uma cabra. No verão, meses sem chuva, trabalhavam os homens como diaristas ou por empreitada em carvoaria e cerâmica. Desde menino Firmino ajudou os homens, fazendo o mesmo serviço que eles na roça. Quando já era mais crescido, o pai separou na terra um rancho para ele ganhar para si no inverno. Com isso já podia vestir-se com “seu trabalho”. Deixou a lavoura com 27 anos para viajar com viola e vender folheto em feira.

Note-se que nessa situação, o entrevistado trabalha ainda criança em uma unidade familiar onde os homens trabalham como assalariados (na época seca), onde parte da produção agrícola é vendida. Conforme o ponto-de-vista da entrevista, ela visa produzir o que comer em primeiro lugar, e tanto o comércio como o trabalho assalariado parecem subordinados a esse fim para o agricultor.

Variações desse padrão ocorrem em muitas entrevistas. Uma fonte de variação é a localização: agreste, sertão e mata tem diferentes formas de trabalho. Um poeta que viveu na infância no sertão conta um relato passado numa fazendo de gado onde pai era vaqueiro. A entrevista acima representa o agreste, onde o pai de Firmino, possuía um sítio de cerca de 1,2 ha (convém lembrar que no agreste pernambucano, a área média dos arrendamentos é de 3,4 ha, o que corresponde à área cultivada de ¾ dos estabelecimentos rurais; em outras palavras, é área de minifúndios e de foreiros). Relatos da mata falam do trânsito de “moradores” para “alugado”.

Quando o agricultor tem acesso à terra, ele planta milho, feijão, maniva se o terreno for apropriado. Essa lavoura de “legumes” é essencial, mas é pouco lucrativa comercialmente. Se a safra de “legumes” for boa, ela poderá ser vendida (separando a parte para plantio e consumo no “inverno” seguinte, quando a terra estiver sendo preparada novamente), mas nessa ocasião os preços são baixos. A finalidade básica da produção é, para o produtor, a própria subsistência da família (que representa, por outro lado, o trabalho empregado nela). Como diz uma entrevista, “alegria do agricultor é barriga cheia”, e o momento principal de alegria é a sagra de milho verde e feijão verde, que bem sucedida significa que será reduzida ao mínimo a necessidade de trabalho fora do sítio. Esse trabalho será contudo sempre necessário, no caso dos pequenos proprietários de minifúndios, ou de foreiros: ele permitirá a compra de produtos necessários. Na entrevista de F. (Firmino?) ele trabalha como diarista; outros vão trabalhar “alugado” nas usinas, e há os que aproveitam a época sem chuvas para comerciar nas feiras, sendo esse o caso dos folheteiros que aproveitam precisamente os compradores que acorrem às feiras com dinheiro de pagamento no bolso.

Em muitas entrevistas, além de lavoura de subsistência e do trabalho sazonal assalariado, menciona-se uma lavoura comercial em pequena escala: algodão ou mamena principalmente. Enquanto feijão e milho são para comer, algodão é para negócio.

Essa articulação entre atividades se dá ao longo de ciclos. Assim, a safra de “legumes” é no meio do ano, e a sagra de produto comercial é no fim do ano. Ambas dirigem-se à reprodução dos trabalhadores. A “fartura” do meio do ano é assinalada pelo milho verde. O “lucro” do fim do ano (que não pode ser confundido com o lucro de um empresário) é assinalado pelas “festas” (e compra de artigos manufaturados necessários). Esse ciclo é marcado pela alternância de “inverno” (chuvas) e “verão (seca), safra de alimento e safra de mercadoria, trabalho autônomo e trabalho assalariado, trabalho no agreste e trabalho na mata. Como veremos mais adiante, a ocasião para vender o folheto é precisamente a época da safra comercial, quando os salários começam a ser pagos e as feiras da zona da mata aumentam de movimento. É também quando os pequenos agricultores estão liberados dos trabalho de preparar e colher em sua terra, podendo trabalhar como folheteiros.

Resumindo as sugestões anteriores, podemos dizer que o sítio presente na história de vida dos personagens do sistema de folhetos aparece seja como terra própria, como terra de “morada” (em um engenho), seja como terra “aforada”. Vimos também que o trabalho no sítio não basta para assegurar a subsistência familiar, mesmo no caso da terra própria. Essa circunstância torna os pequenos proprietários e os foreiros assalariados parciais. Quanto aos moradores, o trabalho assalariado estará incluído como parte das condições para o acesso à terra. Desse ponto de vista, essa população é parcialmente camponesa e parcialmente assalariada. A existência de comércio e de uma lavoura “comercial” entre esses pequenos produtores é enganosa, pois de fato essa lavoura destina-se a formar uma renda monetária a ser convertida em subsistência ou no pagamento do foro: ela é na verdade complemento da lavoura de subsistência.

Cabe observar que, do ponto de vista da economia regional, essa população consiste num contigente de mão-de-obra a serviço da grande propriedade e da agricultura de exportação (em sua qualidade assalariada); ao mesmo tempo, essa população abastece, enquanto contingente de pequenos produtores, as feiras e mercados regionais de bens de consumo que por seu menor teor de lucro são ignorados pela empresa agrícola capitalista. Ao operar como provedora de alimento para as cidades, contudo, a camada camponesa não se apropria dos lucros, já que estes são carreados pela rede de intermediários e atacadistas que de fato controla a distribuição, comprando no local de produção.

Nesse sistema, a população camponesa-assalariada é explorada simultaneamente mediante a extração de renda (caso dos foreiros e moradores) e de mais-valia (caso dos assalariados), além de ser também espoliado em suas transações comerciais. Já que o camponês precisa vender para comer, ao invés de vender para acumular, ele venderá por preços inferiores aos que um empresário aceitaria. Ao mesmo tempo, essa população é vítima, como as próprias entrevistas indicam, de um processo de expulsão da terra e proletarização. (“Na época o dono deixava para o morador uma cinqüenta de terra. Já hoje não se pode criar um bode: o fazendeiro planta cana até a borda da casa. Não deixam mais chupar cana”. “A vida é apertada. O roceiro sofre demais. Tudo é difícil. O remédio, o transporte, o ganho. O que lucra é vendido barato demais. Quem ganha é o comerciante, o roceiro não ganha nada não. O patrão, quando passava de vinte anos, ficava com medo de perder a terra. Aí cortava a cerca, botava bicho dentro. E quando fazia aquilo, era combinado com as autoridades”.)

Vemos que em vários casos a história narrada destaca a transição do passado para o presente como transição do campo para a cidade através da passagem de um “bom patrão” (que perdoava o foreiro de pagar a renda em anos de seca) para um “mau patrão” (decidido a tirar o maior lucro possível da propriedade); às vezes é o mesmo patrão que se torna “mau”, perseguindo por exemplo o vaqueiro que conseguiu acumular seu próprio gado e forçando-o a vender tudo e sair da terra; ou é uma seca que obriga o trabalhador a procurar emprego na cidade.

Até agora procuramos localizar o que havia de “comum” na história da vida dos profissionais do ramo do folheto, chegando finalmente a caracterizá-los como um conjunto ocupado parcialmente em uma forma camponesa de trabalho. Por trabalho camponês entendo aqui um processo de trabalho envolvendo uma unidade familiar (na qual o trabalho é dividido em termos de sexo e idade, cabendo a autoridade ao pai), trabalhando na terra e com instrumentos próprios; na qual o controle do processo de trabalho pertence, ao menos formalmente, à própria unidade familiar, sendo a produção voltada primariamente para a reprodução do grupo doméstico. A essa unidade que produz para subsistência corresponde uma organização social específica, onde são enfatizados os laços de parentesco (“real” ou ritual), relações de vizinhança etc. Como vimos, esse tipo de trabalho está de fato articulado a um sistema muito mais amplo. Assim, historicamente o campesinato nordestino expandiu-se como substituto à mão-de-obra escrava, na medida em que constitui uma mão-de-obra que “planta” seu próprio salário.

Nosso principal interesse, contudo, não é aprofundar essa caracterização, mas empregá-la para captar, no fenômeno cultural que iremos descrever, um “ponto-de-vista”. De fato, a compreensão do sistema dos folhetos exige, não apenas o reconhecimento de uma realidade, ainda que parcial, correspondente ao que chamamos aqui de “trabalho camponês”, mas exige também o reconhecimento de um “ponto-de-vista” correspondente. (parágrafo?)

Podemos exemplificar isso através do exame de um produto cultural vendido junto com folhetos em verso nas feiras: os horóscopos. Esses horóscopos nordestinos contém previsões dirigidas ao “agricultor”. Vejamos por exemplo: O Nordeste Brasileiro - Almanaque para o Ano de 1975, por Manoel Luiz dos Santos.

Esse horóscopo, se resumido, expressa uma série de ciclos de duração diversa: anual, secular, mensal. Ao longo de cada ciclo é organizado um aspecto da experiência camponesa. Os três primeiros ciclos dividem o ano em quatro partes, numa seqüência que vai de um primeiro ciclo “europeu” até um terceiro “nordestino”.

|Ciclo 1 |inverno |primavera |estio |outono |

|Ciclo 2 |“lucros” |“sucesso” |“aberrações... catástrofe |obstáculos vencidos |

|Ciclo 3 |1o trimestre: quentíssimo,|2o trimestre: temperado, |3o trimestre: chuvas nos |4o trimestre: úmido |

| |trovoadas |chuvas |agrestes | |

Os ciclos seguintes seguem um modelo de mês a mês.

|Mês |Temperatura |Regime de Chuvas |Localização |Lavoura |

|Dezembro | |trovoadas |partes do NE | |

|Janeiro | |chuvas |partes | |

|Fevereiro | | | | |

|Março |Quente |trovoadas |interior do NE | |

|Abril | |enchentes |“partes” | |

|Maio | |“medo” | | |

| | |chuvas espaçosas | | |

|Junho |Frio |neblina |Agrestes | |

|Julho | |chuvas |Alto sertão | |

|... | |chuvas variadas |Agrestes | |

|Novembro | | |Goiás, MG, Maranhão | |

Ao longo de toda a metade “quente”, há conselhos relativos à lavoura: Dezembro: “Aconselho que o agricultor prepare seus terrenos cedo. Plante no seco milho, feijão, principalmente caroços de algodão. Regue a terra, plante palma. Não venda seu terreno. Aumente sua propriedade.” Março/Abril: “Importantes lavouras. Noto a passagem de um verão perigoso no nordeste! Ninguém desanime! Coragem! Avance com muita fé!” Maio: “Denota um pequenino verão”. “Se o verão não chegar em Abril, de Maio não passará. Avança com fé.”

O período comentado pelo horóscopo é exatamente a metade do ano em que o nordestino prepara a terra e espera as chuvas habitualmente irregulares, consumindo o que produziu na safra interior. Em particular, o ano de 1975 foi de ameaça de seca, com ameaças de saque a armazéns no Rio Grande do Norte. As chuvas chegaram finalmente apenas no fim de Abril (Hall 1978).

O próximo ciclo também é anual e de preços.

|D J F M A M J J A S O N D |Produto |

|melhora alta dúvida melhora sem confiança |milho, feijão |

| alta |algodão |

| alta |?????? |

| compre aqui alto |sapato etc. |

Note-se que todos os cinco ciclos vistos até agora são modelados sobre o ciclo agrícola. Os dois primeiros tratavam-no na linguagem tradicionalmente respeitada do Lunário; o terceiro adaptava este esquema ao ritmo de chuvas nordestino; o quarto dizia o que plantar, e o quinto quando vender e quanto comprar (dizendo o que o camponês nordestino já sabe: que o preço do milho e do feijão é alta antes da safra e baixo depois dela, e que o preço do sapato é baixo até setembro e sobe em seguida, quando estão sendo pagos os salários nos canaviais).

Há ainda dois ciclos. Um é mais amplo que o ano, e é o ciclo da carestia progressiva. O ano de 1975 pertencia ao “ciclo da lua dominando a prata”, o que teria como conseqüência aumento contínuo de preços até 1980 (“Antes de 1980 um quilo de carne custará C$ 30,00 etc.”), combinado a mudanças políticas e sociais (“Daí por diante os homens se afastarão de DEUS e o Anti-Cristo começará a dominar o mundo...”).

Noutro extremo, há o ciclo mensal das fases da lua, ritmo cósmico que governa um sem número de pequenas atividades segundo a alternância do crescente/minguante.

|Minguante |Crescente |

|compra |venda |

|plantar grãos acima da terra |plantar grãos abaixo da terra |

|castrar, cortar madeira |deitar galinha |

|quebrar milho |Escrever e imprimir folheto |

Vemos dessa maneira que, a partir de sua experiência, trabalhadores rurais organizam a experiência num padrão coerente. No caso, esse padrão aparece como um modelo de mudanças cíclicas e de caráter cósmico, às quais a natureza e os homens se subordinam, e que opera em vários planos (lavoura, comércio, poesia, etc.) e em várias escalas (tempo secular, anual, mensal). Por enquanto, gostaria apenas de lembrar que ela expressa, sob o “ponto-de-vista” camponês, os aspectos da situação camponesa que descrevemos anteriormente. O “ciclo anual” corresponde à articulação entre trabalho camponês e assalariado, inverno e verão, agreste e mata, preços baixos e preços altos. Os ciclos mais abrangentes, como o da carestia crescente, expressam de outra maneira aquilo que havíamos descrito através das entrevistas como um processo de empobrecimento, perda da terra, passagem da subsistência para o “alugado”.

Esse tema básico, que se repete assim das histórias de vida para os horóscopos, será também, assunto dos folhetos: a passagem pelo incerto espaço entre o sítio pobre e o trabalho assalariado num engenho; a crise progressiva em que se encontra o conjunto da “pobreza” nos dias de hoje.

b) A indústria cultural pobre

Consideraremos o sistema de produção e distribuição de folhetos para um público pobre tal como ele existe atualmente, mostrando como ele depende de um mecanismo muito eficiente de distribuição rural, baseado em ex-camponeses. Antes disso, porém, penso ser necessário indicar sumariamente alguns aspectos da história desse sistema.

Ao contrário da imagem de arcaísmo às vezes associada aos folhetos, sua produção, iniciada no começo do século, expande-se no Nordeste continuamente até a década de 50, chegando a um apogeu nesse período e declinando em meados da década de 60. Essa expansão é representada pelo aumento de gráficas-folhetarias conhecidas, bem como de agentes distribuidores. Falta uma pesquisa detalhada para todo o período (a de Ruth B. L. Terra vai até 1930), mas algumas indicações confirmam essa curva. Até a Segunda década deste século o principal editor era o poeta Leandro Gomes de Barros (cf. Terra 1977). Este poeta publicava folhetos em tipografias não especializadas, sobretudo de Recife e Paraíba, e os distribuía pessoalmente, utilizando o trajeto da ferrovia (Terra 1977). Dentre as numerosas tipografias utilizadas, ainda segundo os dados de Ruth Terra, quatro delas já publicavam folhetos “preferencialmente” por volta de 1920; todas elas de propriedade de poetas populares (a Popular Editora de F. C. Batista, Paraíba; a Tipografia de J. M. de Athayde, Recife; a Tipografia de Pedro Batista, Guarabira; e a Tipografia Guajarina, Belém), sendo uma delas fundada em 1913 e outra em 1918. O negócio parecia estar “pegando”. Nos anos 20 surge de fato uma editora especializada em folhetos, quando João Martins de Athayde compra em 1921 o acervo enorme de Leandro Gomes de Barros (falecido em 1918), convertendo-se daí em diante no principal editor nordestino até 1949. Sua gráfica expandiu-se, utilizando até 10 empregados, entre os quais um poeta. A tipografia distribuía folheto por via terrestre, marítima e aérea para estados longínquos como o Amazonas. “Livro de Ataíde” tornou-se sinônimo de folheto de feira. Nesse mercado em expansão havia espaço para outros. Os dados são muito esparsos, mas certamente em 1940 várias folhetarias se espalhavam pelo nordeste (Proença refere-se, além dos folhetos de Juazeiro do Norte editados por José Bernardo da Silva, a uma tipografia em Guarabira e outra em Itabaiana. (Proença 1944). No início dos anos 50 haviam várias editoras prosperando, surgidas nos anos 40 de folheteiros e poetas. Em Guarabira (“Estrela da Poesia”, de Manoel Camilo dos Santos), em Fortaleza (“Tipografia da Fátima”, de Joaquim Batista de Sena), em Recife (“Juazeiro do Norte”, de João José da Silva). Fora do Nordeste, além da “Guajarina” de Belém, havia a penetração da “Prelúdio”, de São Paulo, no ramo dos folhetos, à base de edições-pirata de romances de êxito certo entre o público de origem nordestina. Nessa ocasião, as máquinas e o acervo da tipografia de Athayde são adquiridas pelo editor José Bernardo da Silva, de Juazeiro. José Bernardo da Silva viera do agreste para a cidade do “padrinho Cícero” em meados de 1930, ganhando a vida com comércio de folhetos e ali criando seu próprio negócio. A partir dessa transação, Juazeiro do Norte será o principal centro produtor de “romances” (com um acervo que reúne as obras de Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde, Delarme Monteira – empregado de Athayde – e Expedito Sebastião da Silva – empregado de José Bernardo -, entre outros). Aparentemente nesse período surgem na Bahia editores importantes de folheto, desenvolvendo-se ali uma tradição própria.

É preciso notar que essa menção às principais folhetarias deixa de lado os numerosos poetas que, vivendo basicamente da venda direta de folhetos, editavam suas próprias obras. É difícil então avaliar o volume efetivo da produção, sendo possível apenas adiantar sugestões extraídas de depoimentos pessoais. Todos estão de acordo sobre o fato de que folheto era bom negócio nos anos 50 (o começo e o fim do período varia: às vezes recua até 45, e não passa de 64). Um artigo de Liedo Maranhão sobre a praça do Mercado São José em Recife, ponto natural de concentração de agentes e folheteiros, retrata vividamente essa conjuntura em que vendedores se sentiam vivendo em “opulência” (Maranhão 1974). Enquanto na década anterior Athayde fazia tiragens de 4.000 exemplares (E-27), José Bernardo fazia tiragens regulares de até 20.000 exemplares (E-25). Por ocasião da morte de Getúlio Vargas, os editores falam de 150.000 exemplares produzidos na máquina, sem dobrar ou cortar. “Época boa, formidável, teve saída monstro” (E-20). “Havia grande influência de poesia popular” (E-19). “... a lógica era ser poeta.”

A crise vem nos anos 60. Durante essa década, apenas uma das editoras mencionadas tem existência contínua: a “Tipografia São Francisco”. A “Folhetaria Graças Fátima” foi vendida em fins dos anos 60 para um ex-empregado, o poeta Manoel Caboclo e Silva, que funda nos anos 70 sua própria folhetaria. A “Luzeiro do Norte” fecha as portas após 64, sendo vendidas suas máquinas a um ex-empregado (este passará a publicar folhetos de vários poetas em Guarabira, na “Tipografia Pontes”). A “Estrella da Poesia” fechou antes, sendo arrendada em 1962 a um ex-empregado e depois vendida (a tipografia ainda existe em Campina Grande, mas não faz folhetos). Outros poetas deixaram o “ramo” durante o período, no qual a “Prelúdio” paulista faliu (esta editora, ao contrário das demais, não é especializada em folhetos).

Como vemos, a crise não foi absoluta, pois nos anos 70 o negócio é retomado por vários antigos produtores que haviam deixado o ramo, muitas vezes simplesmente reativando velhos acervos (é o caso de Manoel Camilo dos Santos e João José da Silva).

Qual o significado dessa crise? A explicação dada pelos envolvidos é, primeiro, que o aumento do custo de produção do folheto, provocada principalmente pela alta de preço do papel no governo Jânio Quadros, encareceu demasiado o folheto (“E quem compra o folheto é o pobre. O pobre não pode comprar, e por isso o folheto decaiu”). “O custo de vida impede um, dois contos para o pobrezinho alugado. Um quilo de farinha rende mais”. “O matuto não vai deixar de comprar um quilo de farinha para comprar folheto”. Na ocasião, os editores reclamavam da situação de sua “pequena indústria”. Mas devemos considerar, que, por outro lado, o período 1963-63 assistiu à regulamentação do pagamento de tarefas agrícolas no Estado de Pernambuco, refletido diretamente no aumento no movimento de feiras locais. A partir de 1964, ao contrário, podemos admitir que ao mesmo tempo que os custos continuavam a aumentar e a situação piorava para a “pequena indústria”, os ganhos eram comprimidos. É conveniente lembrar também a repressão política que atingiu sobretudo pequenos poetas e folheteiros que teriam tido participação no processo de divulgação e mobilização camponesa anterior.

Essas sugestões indicam também a natureza da expansão havida até os anos 50. Estava sendo criada uma “pequena indústria” cultural à base do mercado regional. Como já foi sugerido, as áreas de folheto são áreas de feiras e de população camponesa. A inspeção de mapas de editores (Mapa I) ou de origem dos entrevistados (Mapa VII ?) sugere uma associação entre folhetos e áreas de pequena produção rural; o vale do Cariri, o agreste pernambucano paraibano. Essas são zonas de alta densidade populacional, e de atividade comercial intensificada, através do tecido de feiras. Essas áreas, sobretudo o agreste, serão reduto da “cultura tradicional”: é da área serrana da Paraíba que saem os cantadores e poetas mais célebres, formando ali verdadeiras linhagens. Mas que significa de fato “cultura tradicional” aqui? Tomemos o exemplo do artesanato. As feiras nordestinas mostram em abundância certo tipo de produto artesanal ou da pequena indústria local, e que se expandiu em função do mercado proporcionado pelas feiras locais. A expansão do comércio, abrindo um espaço para essa produção local e barata, está certamente associada aqui à dinamização da produção de alimentos por pequenos produtores nos anos 40 e 50. São anos de crescimento populacional, representando maior procura de bens de subsistência “ignorados” pela grande lavoura de exportação. O pequeno produtor, em conseqüência, verá uma parte crescente de seu tempo (incluindo a família) dedicado a produzir para um mercado. (Sá Jr. 1972). Esse processo foi estudado por Antônio Barros Castro em conexão com a expansão, comprovada por dados censitários, da produção agrícola de gêneros de subsistência e de matéria-prima industrial, durante todo esse período, como se o caráter “arcaico” da estrutura agrária não representasse impedimento para a expansão em certos limites. A explicação para esse dinamismo é encontrada por esse autor precisamente na existência de um potencial inexplorado de “excedente” entre os pequenos produtores. Esse excedente tornava-se comercializável pela abertura de novas estradas, permitindo integrar novos áreas “antieconômicas” para a lavoura exportadora à função de abastecer o mercado urbano. Esse período corresponde a uma expansão global de pequenas indústrias regionais, como as de alimento, bebidas, papelão e tecidos, apoiadas no mercado regional e em insumos também locais.

Nesse contexto, ao qual só é possível aqui fazer uma alusão superficial, torna-se compreensível que a “cultura tradicional” se amplie, desde que ela seja entendida como um “artesanato” ou como pequena indústria. Essa ampliação significa aqui expansão do poder de compra do campesinato, de tal maneira que sua incorporação progressiva ao mercado das feiras locais criava simultaneamente uma oferta de bens de baixo custo produzidos também localmente. Como já foi mostrado, a pequena indústria de fato combina-se e superpõe-se à atividade rural na região (Aguiar 1977). (Não estabeleço aqui uma distinção entre “artesanato” e “pequena indústria” do ponto de vista de produto, mas da escala e da forma de produção; assim, o editor que possui um prelo operado por ele e sua família será em certo sentido “artesão”, enquanto o editor que emprega cinco operários, será dono de uma “pequena indústria”; para Manoel Correa de Andrade esse último caso seria definido como “artesanato”, cf. Andrade s.d., p. 116).

Porque essa produção local não foi desde o início sufocada pela empresa “moderna”? Parte da explicação dever estar no seguinte. Como vimos no capítulo 1(?), quando o camponês vende mercadoria, a finalidade básica da venda é assegurar-lhe a subsistência. Ele venderá então abaixo de um “lucro capitalista” mínimo, desde que aquela finalidade o imponha. O mesmo se aplica à atividade artesanal. Na lógica econômica camponesa, pequeno comércio e artesanato estarão a serviço da subsistência. O resultado são bens de baixo preço. No caso do produto agrícola, isso redunda em altos lucros para o comerciante atacadista, que revendo aquele produto a preços de mercado nos centros urbanos. No casa da venda direto em feira, o resultado são bens acessíveis ao consumidor também camponês ou assalariado.

Seguindo essas sugestões, impõe-se a conclusão de que o crescimento do negócio dos folhetos apoiou-se na expansão mais ampla da economia de mercado regional no sentido de explorar seu “mercado interno”, à base de uma incipiente industrialização e apoiada na oferta agrícola oriunda do campesinato: foi o mercado “pobre” constituído pelo próprio campesinato que alimentou a indústria cultural também “pobre” dos folhetos (e também das colheres-de-pau, etc.). Desse ponto de vista, a crise do folheto após os anos 50 talvez mereça uma explicação mais profunda, baseada em investigações mais detalhadas. Pois ela estaria refletindo a crise do processo em seu conjunto, e os limites àquele modelo de expansão.

Isso também deveria sugerir certa prudência na interpretação da recente retomada do negócio de folhetos, em escala inferior contudo à atingida nos seu apogeu. Parte dessa expansão parece dever-se à formação de um novo público, urbano e intelectualizado, que consome folhetos como produto “folclórico” e que os novos produtores têm em conta; parte dela deve-se à atuação de organismos públicos e empresários, estimulando e revitalizando a produção e levando antigos produtores a voltarem ao “ramo”. Contudo, penso que a nova expansão reflete também a permanência da estrutura básica de pequena produção e a reprodução de um público “camponês” no nordeste. Assim, embora se admita que ocorreu nos anos 60 um processo definido de proletarização na região da mata, com a substituição dos “moradores” por assalariados, a população camponesa não diminuiu no Agreste, bem como seu papel de fornecedora de bens de subsistência e braços temporários (agora competindo com os assalariados que habitam as “pontes de rua”, ou seja, as cidades).

Vejamos agora um pouco mais de perto o sistema dos folhetos. Ele compreende três personagens principais: o editor, o agente e o folheteiro. Essa simplificação ajudará a pensar a trajetória da produção para a distribuição por atacado e desta para o varejo.

Por ocasião de minha pesquisa, em 1974-75, haviam três núcleos editoriais nordestinos. Um no Agreste (Pernambuco-Paraíba), outro no Vale do Cariri (Ceará), e outro no litoral da Bahia.

(Mapa I) Eis os editores correspondentes:

Ceará

Tipografias

“Literatura de Cordel – José Bernardo da Silva” (ex-folhetaria São Francisco)

“Tipografia e Folhetaria Casa dos Horóscopos”, de Manoel Caboclo e Silva

Editores sem gráfica

Abraão Batista

Pedro Bandeira

Paraíba

Tipografias

“Tipografia Pontes” (Guarabira), de José Alves Pontes

Editores sem gráfica

“A Fonte da Poesia Nordestina”, (João Pessoa), de José Severo (Cícero). Utiliza a Tipografia Pontes.

“Estrella da Poesia” (Campina Grande), de Manoel Camilo dos Santos. Utiliza uma gráfica da cidade

Pernambuco

Tipografias

José Borges (Bezerros)

“Folhetaria Jardim da Poesia” ou “Folhetaria Olegário” (Caruaru), de Olegário da Silva

Dila (Caruaru)

“Gráfica Casa do Folheto” (Olinda)

Editores sem Gráfica

“Luzeiro do Norte” (Recife), de João José da Silva

Utiliza a Tipografia Pontes

“A Fonte da Poesia Nordestina” (Condado), de José Costa Leite. Utiliza a Tipografia Pontes

José Soares (Recife)

Bahia

Editores sem gráfica

Rodolfo Coelho Cavalcanti (Salvador)

Minelvino Silva (Itabuna) (não visitei essa cidade)

Erotildes, Miranda dos Santos, João Ferreira da Silva e Alípio Bispo dos Santos (Feira de Santana)

Outros Estados

“Luzeiro” (Ex-“Prelúdio”). São Paulo. Publica revistas de música sertaneja do centro-sul, livros de humor, boas-maneiras etc. Seus folhetos são distinguidos pelo formato e pelo colorido das capas

“...axado Nordestino” (São Paulo)

Jota Barros (São Paulo)

(Não tenho dados sobre o Rio de Janeiro)

Esses editores são, como se vê, diferentes entre si. As folhetarias de Juazeiro do Norte distribuem sua produção para toda a região. No caso de maior delas, a “José Bernardo da Silva”, folhetos seus são encontrados em toda parte. Já a produção da região serrana da Paraíba e do agreste pernambucano, abrigando uma grande densidade de folheteiros e poetas, “exporta” em menos quantidade, equilibrando o consumo de folhetos vindos do Ceará com a variada produção local. Por fim, a produção baiana é consumida lá mesmo. Quando ao conteúdo, os “romances” editados pela “José Bernardo” são os reputados como melhores. No agreste se produzem as histórias de “valente” (fato observado pela primeira vez por Renato Carneiro Campos, 1959). Sempre falando aproximadamente, os folhetos da Bahia seriam “de época”. Mas essa associação entre a área de Juazeiro e os “romances”, a área do agreste e os “valentes” e a área do litoral baiano e o “jornalismo” é apenas uma sugestão de diferenças que deveriam ser investigadas, já que em todos esse núcleos a produção é diferenciada.

As diferenças mencionadas refletem o fato de que a maior editora de Juazeiro do Norte ( atualmente administrada por uma filha do falecido José Bernardo da Silva, que comprou o acervo de romances “permanentes”, cuja venda é segura, embora lenta, e que exigem maior investimento inicial (pois são maiores). Já os pequenos editores de “fundo de quintal” de Pernambuco precisam publicar folhetos menores e de venda rápida, tais como histórias de “valente” ou notícias contemporâneas. Comparemos rapidamente uma editora “grande” e uma “pequena”. Os editores que visitei em Pernambuco não se distinguiam em nada da vizinhança pobre. Usavam uma ou duas máquinas manuais com pequena capacidade (imprimindo duas páginas de folheto de cada vez), e tipos velhos, nem sempre suficientes. A ajuda era dada por filhos. O editor poderia também vender folhetos, e a casa seria ponto de encontro de folheteiros da região. Em contraste, a “José Bernardo da Silva”, ocupa uma área própria, separada da residência, contendo um salão de atendimento ao público com balcão, um depósito de folhetos e uma ampla oficina com três máquinas impressoras. Ao contrário do “prelo de fundo de quintal” que vi funcional em Bezerros e que imprimia duas páginas, essas máquinas imprimiam simultaneamente 16 páginas (ou seja, dois folhetos pequenos inteiros). A empresa contava com oito empregados (dois deles primos da proprietária), sem contar com o filho, um “relações públicas”.

Note-se que, em função da “divisão de mercado” que já mencionei acima a propósito dos diferentes tipos de folheto que cada editor produz, essas editoras relativamente maiores não tendem de nenhuma maneira a esmagar os pequenos auto-editores. Ao contrário, estabelece-se maneira a esmagar os pequenos auto-editores. Ao contrário, estabelece-se uma complementaridade. Uma editora maior edita “romances” com distribuição constante, e sempre procurados pelos “agentes” revendedores. Mas ela não pode editar folhetos de interesse local. Cabe aos pequenos editores ou auto-editores publicar folhetos “de época” narrando eventos miúdos, como um desastre de ônibus, um crime importante, um “boato” sobre um “castigo” nas vizinhanças.

Uma conseqüência da diferenciação está no modo de distribuir. Um pequeno editor poderá vender ele mesmo a mercadoria, ou entregá-la diretamente a folheteiros de sua região. Mas o maiores editores a distribuição também através de “agentes”, isto é, revendedores. Os agentes formam uma rede estendida por todas as capitais nordestinas. Eles ficam localizados em geral num compartimento de Mercado Municipal. Ali os compradores do interior adquirirão folhetos “permanentes” a serem revendidos em percursos no interior. Na primeira metade do século, os agentes estavam também na região norte: Amazônia, Pará, Territórios do Acre e Guaporé. Atualmente, há agentes no Rio de Janeiro e em Brasília.

É um fato interessante que os agentes sejam a única rede de distribuição por atacado dos folhetos, e sejam também autônomos e independentes entre si. Não há uma “distribuidora” de folhetos. Cada agente estabelece acordos diretos com as folhetarias e com folheteiros, baseados em amizade e às vezes em laços de compadrio. Assim, um agente paraibano de João Pessoa referia-se a viagens de compra em Juazeiro do Norte como visitas ao compadre (E-5, E-18).

Em sua banca de mercado o agente atende também a fregueses que buscam um título determinado. São fregueses de “procuração”, da cidade. Mas é fácil perceber que o público da cidade é de fato outro. A banca do agente vende em primeiro plano, na maioria dos casos, não folhetos mas livros de bolso com histórias de faroeste, além de revistas semanais, etc., sempre usados. São esses os produtos buscados mais freqüentemente. Por outro lado, em torno de sua banca agrupam-se antigos folheteiros, conhecedores de folheto, profissionais afastados do ramo.

Abaixo dos agentes, estão os folheteiros. Enquanto os agentes formam uma rede ampla, distribuída pelas capitais, os folheteiros cobrem a região com uma rede de pequenos trajetos, partindo dos centros de produção ou de agentes. Eles distribuem a mercadoria em feiras, percorrendo um certo número delas em trajetos regulares. Há assim trajetos longos, seguindo a linha de trem ou ônibus, e os trajetos curtos, cobrindo um grupo de feiras próximas à localidade do vendedor-editor.

c) Folheteiros

O personagem básico da venda de folhetos é o folheteiro. (Maranhão 1974). Um modo de ilustrar sua atuação é comentar um dia de feira.

Feira de Guarabira, Paraíba, Quarta-feira. É um dia de “feira de fora”: é quando vem gente do sertão comprar no agreste. Num intervalo das barracas que vendem alimento, quatro folheteiros trabalham alternadamente, em um grupo de inclui ainda um tirador de embolada que é também contorcionista, e um vendedor de remédios. Nas proximidades, um velho vende folhetos velhos, espalhados na calçada ao lado dos espelhos, imagens religiosas e remédios caseiros, além de outras bugigangas.

Os folheteiros do grupo usavam um alto-falante acoplado a um amplificador de vitrola, alimentado por uma bateria de automóvel. É uma “máquina”. Um deles, Zé, dispunha de cerca de vinte exemplares de Geraldo e Silvina, adquiridos da Tipografia Pontes, ali mesmo em Guarabira. Eram guardados numa maleta onde haviam ainda “poemas” e “canções” (folhas soltas contendo textos em versos curtos, musicados e divulgados pelo rádio na região). O folheto, com 32 páginas, era vendido a C$ 3,00 (1975). Zé cantava ao microfone (preso ao pescoço), segurando o folheto. A audiência era a princípio de cerca de meia dúzia de ouvintes, mas ia crescendo pouco a pouco. De vez em quando o folheteiro interrompia a leitura, separando assim os episódios do enredo. Entre um trecho e outro Zé interrompia e comentava: “_ Agora é que o pau vai comer! Agora a moça via dar uma surra de cambito nele!”. Tratava-se de uma história de “valentia”, onde um sertanejo valente desafia o dono de um engenho e obriga-o a conceder-lhe a filha. Nessa história, a atenção era despertada pela moça que dava uma “surra de cambito” no próprio pai, tomando o partido do jovem “valente”. O círculo ia crescendo, até atingir mais de trinta assistentes. Ao retomar a leitura, após uma interrupção, Zé às vezes alterava a linha melódica utilizada, ou a tonalidade. A leitura, dramatizada, provocava risos no público, que se manifestava sempre com exclamações de encorajamento ou de incredulidade. Em duas ocasiões o folheteiro pediu que a assistência lhe comprasse folhetos, como condição para continuar a ler.

Essa interrupção para venda chama-se “tranca”. Um antigo folheteiro, em Maceió, assim explicava:

“É, agora a gente começava assim, quando era na maior parte da maior emoção, quando diz tá-tá-tá-tá-tá-tá, os risos e tal, a gente diz: _ Bem, meus senhores, o negócio é o seguinte. Eu vivo viajando no mundo, sou profissional nisso, meu emprego é vender isso. (...) Mas eu não quero dinheiro, eu quero vender minha mercadoria, que eu sou muito pobre, não tenho emprego. Isso aqui, esse romance, custa apenas um cruzeiro! (...) Cobrar pela mercadoria que estou vendendo eu acho que todos os senhores vão dar. Vão me ajudar. Se os senhores comprarem logo, aí eu continuo a ler o folheto até o fim. O folheto é muito bonito, a história é muito boa, mas só posso continuar se os senhores me ajudarem.” (E-40).

É claro que essa frase é “enfeitada”, mas ela expressa bem certa ambigüidade entre o comércio de folheto na feira e o espetáculo em troca de uma “contribuição” (como é o caso com o “tirador de coco” que passa o chapéu pelo círculo de ouvintes). Vemos que o folheteiro, no caso de cantar, de fato realiza um espetáculo.

Os folheteiros são diversificados. Num extremo está o velho vendedor de calçada, acocorado ao chão, silencioso _ tipo que vi, isolado, não apenas em Guarabira, mas em Juazeiro do Norte e também em Timbaúba. Em Guarabira, esse vendedor fora agricultor até a velhice. Outro tipo de vendedor também não canta, mas percorre a feira anunciando um título “no grito” ou oferecendo o folheto de mão-em-mão. Em Feira de Santana Alípio Bispo dos Santos oferecia assim dois folhetos de sua autoria. Um terceiro tipo trabalha com bancas, onde espalham os folhetos. Em Aracaju havia um pequeno grupo, em torno de uma maleta montado sobre tripé, sem cantar ou anunciar. Um quarto tipo são os que cantam, como no caso de um grupo em Guarabira. É comum o folheteiro utilizar, nesse caso, uma “máquina” alto-falante. A máquina pertencia a um dos membros do grupo. Esse dono da máquina ostentava melhor situação que seus colegas, gabando-se de sustentar “mulher de cabaré”. Seus colegas de profissão utilizavam-se gratuitamente da máquina, segundo disseram. Ao contrário do proprietário, que dizia viver exclusivamente da venda de folhetos, os demais tinham outras atividades. Um repartia o tempo entre a feira e a agricultura: tinha um pedaço de terra e percorria as feiras das vizinhanças com folhetos. Havia um outro pequeno proprietário, e um funileiro.

Como diz um depoimento, “cada folheto tem sua espécie de vender”. E cada folheteiro conhece uma ou mais delas. “A maior parte é lido cantado: dá mais aconchego. O povo vai escutando e gostando”. Para isso, porém, o folheteiro deve ter voz bonita e senso dramático: sair “ir gesticulando, explicando direitinho” os episódios. “Por exemplo, eu pego o folheto e canto. Tem um alto-falante, um trabalha com alto-falante, outro sem alto-falante, quer dizer: nesta toada, o trovador vai cantando, então faz aquele círculo de pessoas e ele pára no meio (...) e então vende cem, duzentos exemplares, trezentos numa feira”. O modo cantado de vender, exigindo mais habilidade, é adequado as narrativas. (“Agora, quando o folheto é um romance, é um folheto de bravuras, de aventuras, de moças, de princesas, então é cantado, prá poder dar mais emoção”. Já o folheto “gritado” é tipicamente o de época, como “A Morte de Cosme de Faria” ou “A Homem que foi à Lua”. Um folheto como esse pode ser vendido sem que o folheteiro tenha experiência alguma. Dessa maneira, em ocasiões especiais, quando uma notícia justifica um folheto “de época”, não é difícil conseguir vendedores. Um editor conta como funcional o processo:

Quando botei capa nuns cinqüenta, chegou um cidadão aqui me pedir uma esmola prá ele dar de comer à família, que estava morrendo de fome (era tempo de seca, ano de 1970, em Juazeiro do Norte). Eu digo: ‘Você sabe vender folheto?’ Ele disse: _ ‘Não sei não, mas se o senhor me ensinar eu vendo’. Eu digo: _ ‘Eu vou lhe dar duas dúzias de folhetos, é Nossa Senhora quem vai lhe dar, você vai vender e com o dinheiro você vem comprar mais. Você hoje vai almoçar. Confie em Deus que você é o primeiro. Você tem coragem?’ Ele disse: _ ‘Eu tenho!’ _ ‘Você quando chegar no meio da rua se ajoelhe, sacuda o chapéu no chão e diga que Nossa Senhora está chorando, falou uma menina de dez anos’. Aí o cabra saiu. O cabra fez mesmo. Bateu o chapéu no chão. Quando ele leu o primeiro folheto os caras voaram em cima, e a conta de réis, e o cara apurou vinte e quatro cruzeiros. Na hora. Ele chegou, e disse: _ ‘Está aqui o dinheiro’. Era um dia de feira. Eu digo: _ ‘Vendeu?’. Disse: _ ‘Vendeu’. _ ‘Pronto, então está aqui: você com o dinheiro que eu lhe dei, agora compre um bocadinho de mim’. Aí ele comprou cinqüenta. Levou, quando foi mais tarde voltou, veio comprar mais um cento. Aí nesse mesmo dia vendi um milheiro prá rua (...)”

Como mostra esse exemplo, o princípio geral segundo o qual a época de boa safra e de salários é a melhor para a venda de folheto nem sempre se aplica. Uma seca, como no exemplo acima, é ocasião para vender. Se as safras aumentam a capacidade de compra, a crise aumenta a necessidade de saber.

Voltando aos folheteiros, é fácil ver que o sistema de distribuição é notavelmente elástico e flexível. Contando com um corpo mais permanente de folheteiros “especializados”, ele pode incorporar sem nenhum esforço um contingente adicional de vendedores, escoando sem ônus a oferta.

Por outro lado, esse mecanismo mostra como se entre no ramo do folheto. Em 1952 houve seca. Um agricultor do agreste foi buscar trabalho nos canaviais do sul do Estado. Passou ali um ano cortando e limpando cana, mas ao mesmo tempo começou a trabalhar com maneira, fazendo brinquedo de criança: “mané gostoso”, “mané pequeno”, e vendendo em feira. Três anos depois já tinha juntado dinheiro para começar negócio. Trabalhava então durante a semana fazendo colher-de-pau, e no Domingo vendia folheto. Para os que já liam em casa, para os outros, a única dificuldade será “perder o cinismo”. Diz outros poeta-folheteiro:

“Então eu comecei vendo _ todo mundo vendendo suas coisinhas por aqui, um vendia amendoim, outro vendia pipoca. Cada um vendia uma coisa diferente. (...) Pois então, eu vendo esse povo comerciando tudo isso, resolvi ganhar a vida também (...) Então eu fui por aqui, conversando, me dei com um camarada que vendia (folheto) e aí fiquei trabalhando como pintor (...) sábado e Domingo (...) como eu gostava do negócio (de folhetos) então comecei ir nas feiras com eles, então fui vendo a aceitação (...) E eu comecei, me dei bem no negócio e veio aquela estimativa, um prazer. Já gostava: fiquei”

(Anexo)

O efeito desse processo é que ele resulta em uma oferta de bens produzidos por camponeses para consumo camponês, incluindo, além de comida, objetos de uso doméstico (colher-de-pau, panela de barro, utensílios de lata), brinquedos e “folhetos”. A feira nordestina impõe a impressão de comércio microscópio e antieconômico, já que é menos visível a ação dos atacadistas e atravessadoras. O que aparece é uma pilha de pimenta aqui, umas coisinhas ali. Para esse comércio pobre o mercado é de compradores pobres. Um comércio-agricultura, onde se inicia o negócio com um “baú de miudezas: alho, cebola, chapéu de palha, abano, semente de embira, urucuba, novelinhos de meia, aniz e outras coisas mais...”. O campesinato é o mercado mais pobre para isso. Ele é vinculado de um lado a bens industrializados, produzidos por indústria regionais ou nacionais, como as têxteis e alimentícias, incluindo bebidas (por exemplo, indústrias de vinho de jurubeba, de caju, etc.). Por outro lado, alimenta uma produção de artesanato e pequena indústria que deve ser compreendida como atividade de subsistência, parcialmente incluída na economia camponesa, como ressaltou Neuma Aguiar. O resultado disso parece ser a reprodução de um modo de pobre de consumo, relativamente autocontido. É esse o lugar do folheto. Ele é muito barato, o que sempre é enfatizado: “A não ser gênero alimentício, era (a mercadoria) mais barata que existia no uso (...) jornal era prá rico”. “A burguesia não dá valor à poesia popular, pois dá o nome de cordel. Quem dá valor é a classe-plebe, que está fracassada...”.

A associação entre folheto e pobreza rural aparece ainda na identidade de seus ciclos. “Agosto, dezembro, o matuto está com dinheiro, da venda do algodão, da agave, do fumo”. O folheteiro, então, “... viaja na época da sagra, de setembro a dezembro. Nessa época, os folhetos podem ser vendidos nas feiras, pois não chove. O sertanejo gasta o dinheiro, mesmo pouco, com folheto. No resto do ano, não dá prá isso”. “A época boa para a poesia de setembro a dezembro. Porque o matuto tem mais dinheiro, com o apurado da sagra”. Já no final do ano, o dinheiro é desviado para as festas, o melhor período é aquele que, na safra, se situa antes das festas de dezembro.

(Parágrafo?) Quando estive na região em março de 1975, a “época estava ruim”: o sol tinha já arruinado a primeira planta e o povo estava sem dinheiro. Pairava ameaça de seca. Como um editor de Juazeiro explicou: “Época de inverno, a chuva não deixa, os folheteiros estão trabalhando nas roças, como os compradores, e aquilo faz a gente então se afastar. Trabalham na roça quase todos. Quando é época de inverno. Agora, no verão é que vão vender folhetos”. Como já dissemos, o folheto pode se valer da penúria, como ocorreu na seca de 70, quando bandos de camponeses estavam decididos a tomar a pulso a farinha dos armazéns, e o folheteiro passava “folgado”.

Uma metáfora desse ciclo anual, que nos leva de volta ao tema do capítulo um (?), aplicada agora do ponto-de-vista do folheteiro-camponês, servirá de fecho para essas observações:

“(o teiú no inverno, ele entra num buraco e não sai: fica dentro de casa e não sai com medo da chuva. Sabe o que ele faz? Se alimenta da cauda. Come o rabo dele mesmo. Então, quando chega o verão, terminou a chuva, ele tá com o rabinho já encostado nas pernas, não é? Já no fim da linha. Aí é justamente quando ele pára de comer o rabo e sai prá comer alguma coisa, batatinha e tal. (...) É bom isso _ quer dizer que é uma natureza desgraçada, não é? Quer dizer: que come o rabo mas não sai de dentro do buraco. Chovendo, ele trancado ali, ó. Então é justamente esse pessoal que trabalha com papel. Não morre de fome porque Deus protege...”

Procuramos mostrar até agora que a eficácia do ramo dos folhetos como negócio está ligada a sua rede de distribuição apoiada em circuitos de feira, e à forma como é feita essa distribuição. Ao mesmo tempo, indicamos que os vendedores são recrutados com facilidade no meio constituído pelo próprio público consumidor. Vejamos melhor esse aspecto, mencionando o que dizem os entrevistados sobre as condições de consumo.

“Portanto, no mato, nas roças, antigamente, se juntavam muitas pessoas em uma casa, aquelas casas daqueles homens mais conhecidos, de mais critérios, de mais consideração. Na casa de seu Fulano! E lá, como não havia diversão, não havia nada por lá, iam ler folheto, romance, romance importantíssimo”

“Antigamente, reuniam-se vinte, trinta pessoas para ouvir alguém ler uma boa história. no Domingo, de meio-dia às nove de noite, ficavam ouvindo”

Quando menino, o autor desse depoimento era chamado para ler. Conforme lia, diz ele, ia parando e explicando, enquanto a assistência comentava.

“Juntava quatro, cinco, dez pessoas de casas diferentes então iam para uma casa, então lá, vamos dizer num Domingo, assim num feriado, seria às vezes até de manhã _ tinha aqueles que cantavam mais bonito. (...) Quer dizer: um troço assim como um esporte, mas era o que existia por lá. Televisão ninguém se falava, então era o que folheto mesmo. Jornal era só prá o rico. Eu achava que já tinha prática de pegar e cantar folheto nas casas de familiares e dos conhecidos.”

“A grande maioria dos nosso fregueses lêem o livro cantando. Como a gente lê, eles aprendem as músicas dos violeiros, e eles cantam aquilo. (...) É, em casa reúnem a família, três, quatro, e cantam aquilo, como violeiro mesmo...”

É óbvia a similitude da leitura do folheto, com a cantoria. Ambas parecem ser fenômeno rural, coletivo, embutido em uma rede de vizinhos, associado a música e a verso. Vê-se assim que a preexistência de um “gosto” para a cantoria, e de uma competência poética e musical a ela associada, é capitalizado no folheto. Embora produto impresso, ele assume no ato de consumo a forma da tradição. Tradição, porém, sempre renovada e alimentada pelo mercado.

Pois o gosto pelo folheto é alimentado pela própria feira. Dessa forma, no contato com a feira é que se desenvolve o próprio leitor de sítio, o qual, por sua vez, será um potencial folheteiro. De fato, muitos depoimentos evocam a feira como o local onde os folhetos eram primeiramente ouvidos, antes de serem comprados para serem cantados na vizinhança. “Fulano, eu passei na feira, tava um folheteiro cantando um folheto de muita importância. Quando eu vier, para a semana, eu te arrumo”. Muitas vezes, o comprador não sabe ler, identificando o folheto apenas pela referência à leitura oral: “Aquele folheto que o senhor estava cantando naquele dia, assim-assim-assim, eu quero comprar ele hoje...”. Isso, aliás, permite que alguns folheteiros iludam a boa-fé de “matutos” quando estão sem estoque... A leitura é dramática, e pode levar o público a chorar como um romance, ou a cair de joelhos ante uma profecia, ou a rir diante de um folheto de gracejo.

Ao ler na feira, o folheteiro fornece um modelo. Segundo um deles, o comprador irá ler “como a gente lê”, aprendendo as músicas dos violeiros. Outro evoca seu tempo de infância, quando “já cantava folheto, cantava como um próprio vendedor”. O poeta Manoel de Almeida Filho ouviu ainda criança a leitura de um folheto em feira, e ficou impressionado. Chegando em casa, pediu ao pai dinheiro para comprar um folheto. Pedindo para lerem um folheto, perguntando uma letra a uma pessoa, uma letra a outra, terminou aprendendo a alfabeto e depois comprou um livro de leitura, decidido a aprender em decorrência do folheto. A feira tem assim uma função pedagógica:

“Os garotos vêm prá feira, os pais levam os filhos especialmente prá comprar folheto. Primeiro a carta do ABC, depois da carta do ABC é o folheto. (...) Quer dizer que o folheto fica entre a carta do ABC e a cartilha. Antigamente, não é, que era assim.”

Torna-se compreensível dessa maneira, a partir do papel dos folheteiros nas feiras, o aparente paradoxo de uma indústria cultural impressa numa área rural com baixo nível de escolaridade formal. O folheto não apenas chega ao público por intermédio de leitores públicos, como ele forma esses próprios leitores, constituindo assim como que um circuito fechado de reprodução cultural.

Intelectuais Camponeses

a) O Dom

Ser poeta é uma das atividades de um profissional de folheto. Há poetas em todas as posições da profissão, embora não existam poetas que vivam exclusivamente de escrever. A habilidade de poeta desenvolve-se também com o progresso na profissão. E, não obstante, ser poeta é uma condição que antecede o negócio: é um dom que nasce com o leitor do sítio.

Entrar no ramo de folhetos significa não apenas optar por um meio de vida ligado ao comércio, mas também por uma atividade intelectual e ligado à beleza. De um lado fazer folheto é uma atividade instrumental: escrever, publicar, vender, visando a ganhar dinheiro e assegurar ou complementar a subsistência. Por outro lado, fazer folheto e cultivar uma sabedoria. O lado específico da mercadoria-folheto, associado a beleza e saber, é de fato reiterado pelo comércio, na medida em que é exigido por um “gosto” do público reafirmado sempre. Vamos justificar essas afirmações neste capítulo.

Começar a fazer poesia foi para muitos poetas um passo simples, a partir da familiaridade prévia dos folhetos. Manoel Camilo dos Santos nunca foi à escola, mas aprendeu sozinho “as letras” na cartilha do irmão, que teve professora durante seis meses. Mesmo antes disso, porém, já decorava folhetos desde os oito anos de idade. Gostava de cantar a História do Boi Misterioso enquanto trabalhava na roça. Outros contam um processo análogo, onde o contato com a poesia cria “inveja pela letra”. A partir dessa familiaridade é criado o primeiro folheto.

“Apreciava ler o folheto já pronto, e daí veio a idéia de escrever. (...) Fazia muito tempo que lia, e achava bonito a rima”. Quando esse poeta escrever a primeira história, viu que “estava certo”, embora com “erros de português”. Levou-a então a uma tipografia, imprimiu um milheiro de folhetos e a vendeu, passando a “tomar gosto”.

Aqui, dois aspectos envolvidos na poesia são mencionados. a capacidade de escrever, e a possibilidade de vender o produto como mercadoria. Quanto ao primeiro aspecto, ele também envolve duas dimensões. Por um lado o poeta é dotado de uma habilidade “espontânea” (não decorre de aprendizado formal) para fazer um folheto “certo” (e que venderá bem). Por outro lado, o poeta se vê não apenas em relação a um público camponês, mas também em relação a um padrão de “correção” e de sabedoria que o aproxima da cultura erudita e formal. Antecipando um pouco o tema de um tópico futuro, esse saber acumulado é um símbolo de poder. Quando o antigo camponês realiza tal percurso, ele deixa de ser “matuto”. Embora continue admirado pelo “matuto”, ele terá agora acesso a domínios da cultura, como a Constituição, a Bíblia, as “Ciências”, a “Gramática”, que são tradicionalmente monopólio dos doutores e dos poderosos. Em suma, a condição de poeta é móvel e contraditória. Ela pressupõe uma habilidade espontânea incorporada à sua experiência rural, ao contato com as feiras, às leituras de sítio. Mas essa habilidade é desenvolvida e completada ao longo da atividade profissional por novos conhecimentos que o fazem sentir-se participando de uma instância culta. Vamos agora tratar do aspecto “espontâneo” e de como o poeta o vê e que significado atribui a ele.

Antes de mais nada, a poesia é dom. O dom explica a capacidade espontânea de fazer versos, independentemente de saber e de estudar. Há várias lendas sobre essa capacidade, sobretudo a respeito dos maiores poetas. Veja-se, por exemplo, a narrativa feita por Manoel Camilo dos Santos a respeito de Leandro Gomes de Barros, o “rei dos poetas populares”:

“Leandro Gomes de Barros, o rei dos poetas populares, até então, com sete anos de idade, não sabia ainda as primeiras letras, seus pais eram rurais. E certa manhã o encarregaram de por para fora da casa as criações domésticas que a invadiam. Ele, depois de as ter tangido várias vezes, viu junto do fogo onde se aquecia que a casa estava cheia dos referidos animais. Levantou-se zangado e saiu dizendo:

Deixei a porta fechada

Já mesmo por um capricho

prá ver se não entra bicho

porém foi mesmo que nada

sempre acha uma entrada

é bicho grande e miúdo

de vez em quando eu acudo

aos gritos de xê galinha

porém da sala à cozinha

é porco é guiné é tudo

Seu pai maravilhado pelo que acabava de ouvir, mandou-o repetir, lembrando-lhe algumas palavras, e escrevera a estrofe na porta da cozinha e depois no papel, o que mostrava aos parentes e vizinhos com a maior admiração”. (Santos s.d.)

Ainda segundo Manoel Camilo, com o cantador Zé Duda passou-se algo análogo. Aos oito anos de idade, Zé Duda fez numa casca de aroeira seu primeiro verso, ao saber que era enjeitado. Rodolfo Coelho Cavalcante conta que, aos sete anos de idade, seu avô foi acidentado, e ele tirou a seguinte “peça” de reisado:

“Mas num dia de Sábado

às cinco horas da tarde

se deu um horror

O trem que vinha de Maceió

na marcha pior

matou meu avô...

Isso é reisado _ quer dizer que com seis prá sete anos eu já tinha essa tendência prá inspiração”.

É claro que nem sempre os poetas foram assim precoces. O que é sim verdade é que em quase todos os casos os poetas têm um grau mínimo de escolaridade, em geral alguns meses de professor particular, um primeiro livro de leitura, e muitas vezes nem isso. Mas “esse negócio de escrever verso é um dom da natureza”.

Com isso concorda Manoel Camilo, afirmando que a poesia emana da natureza. O dom que o poeta possui é assim natural. Examinando outros comentários, vemos a razão para essa assimilação. A natureza também cresce espontaneamente, assim como a poesia, sem ninguém plantar. Nesse sentido, natureza e poesia exemplificam um crescimento que ninguém controla, que é uma dádiva divina. Como diz outro: “... é um dom da natureza, é um dom de Deus, da coisa chamada Deus, da natureza”. Deus, segundo outro, pode ser visto justamente no modo como as árvores e plantas úteis, como a piaçava e o dendê, frutificam no mato sem que ninguém cuide delas. O crescimento de vários feijões a partir e um único caroço, sem que o lavrador possa cuidar da lavoura por estar ganhando “alugado”, também é um exemplo, assim como o crescimento de meninos “sem ninguém cuidar”. Vemos que todos esses processos de crescimento natural são parte essencial da reprodução da vida camponesa.

A poesia é então subordinada à metáfora do crescimento da natureza, sendo portanto regulada pelos mesmos ritmos que a controlam.

A poesia como atividade espontânea partilha essas propriedades. Ela, portanto, será regulada pelos ritmos de crescimento da natureza, particularmente as fases da lua, espécie de relógio cósmico do crescimento de plantas, de palavras. O folheto deve ser iniciado na lua cheia para ser bem sucedido, isto é: para ter uma boa “colheita”. Nos horóscopos nordestinos as fases da lua são, como vimos em capítulo anterior, relacionadas com diversas categorias de processos de trabalho.

“O folheto tem mistério. Quando escreve o folheto na lua nova... tem que escrever no crescente. Na lua nova só dá rama. É porque a lua influi sobre a terra. A lua germina tudo, faz crescer e faz minguar. A luz faz chocar, faz nutrizar. Nutrifica. (....) Por isso o escrito, o escrito do homem _ a lua impera”.

Outra entrevista completa o âmbito de ação da natureza, estendendo-o à publicação, pois o folheto não é só atividade concreta de crescimento natural do verso, mas também objeto de comércio como tal é “aumento” natural de ganho para o autor:

“... tem que ser feito no crescente, e publicado na cheia. Ser for no minguante, fracassa...”

Crescimento natural, processo de trabalho, reprodução familiar, lucro (no sentido camponês, de produto da terra), associam-se sob a noção da “natureza”. O poeta é descrito como um agricultor, que “... vai colhendo a inspiração que vem do alto. Aí vem o verso. Daí fez a boca do serviço, pronto!”

Mas a poesia não é apenas um caso particular da lógica camponesa, que vimos sob o prisma dos almanaques no capítulo inicial (?). Ela tem a particularidade de, emanando “do alto” por um dom, encerrar em si um conhecimento. O poeta tem uma “dupla visão” que o capacita a enxergar nos processos naturais uma natureza invisível. Esses são os poetas propriamente ditos, à diferença dos “poetaços” que apenas recombinam o que já foi feito (“jogam parte de um e de outro”). O porta verdadeiro sabe ler “no livro imenso que Deus desdobra” graças a sua “visão imaginária”. Por essa razão a poesia é “sagrada”.

Essa intuição não significa, evidentemente, que o poeta não proceda como um bom negociante ao manipular a crença alheia no “sagrado” a fim de vender bem. As indicações apenas sugerem uma explicação para o sentimento público de que a profecia que ele escreve de fato tem fundamento “sagrado”; parte dos poetas pelo menos compartilha esse sentimento. Um poeta abandonou o gênero da “profecia” quando elas começaram a “dar certo”. Outros argumentam em favor da capacidade de partilharem os poetas, em princípio, o conhecimento do invisível com os profetas propriamente ditos, com as crianças e outros inspirados aceitos pelos senso comum religioso. Pois, diz um deles, quando o poeta escreve “... não é ele quem está fazendo; é o pensamento”. O poeta apenas recebe esse pensamento.

“O pensamento do homem é justamente o espírito dele, junto com o bafo que é o assopro de Deus. Pois bem: ele está escrevendo aqui, invade uma onda de pensamento, vai chegando, vai chegando, e vai e escreve a profecia. Ele nem sabe que chega aquilo. Vai chegando isso assim, vai escrevendo, escrevendo, e o pensamento vai desenvolvendo, e ele escrevendo, ele escreve o que não sabe. É uma ciência muito bem feita isso. E donde é que vem esse pensamento? É da natureza mesmo. É o ser divino”

Essa onda de pensamento que se apodera do poeta é tão forte que, na calada da noite, é preciso parar para tomar fôlego da inspiração.

Talvez esse tipo de experiência explique em parte a difusão que encontrei entre os poetas mais intelectualizados de uma concepção espírita da religião (não externada nos folhetos, que permanecem feitos por esses mesmos poetas ao estilo do catolicismo popular).

Poderíamos perguntar porque esse dom de criar espontaneamente ocorre precisamente aos desprovidos de escolaridade (pois é comum se referirem os poetas aos esforços laboriosos dos eruditos para escrever um soneto em seu escritório). Uma explicação dada para isso afirma que esses “dom” é dado precisamente aos pobres, aos que moram no campo, aos que não têm estudo: é como uma compensação. Os ricos têm dinheiro e saber formal, mas os pobres têm um “senso” espontâneo de beleza e verdade.

“Onde a poesia mais reina é no nordeste. Agora você pergunta: Mas por que reina no nordeste? (...) Pois bem: lugar de poesia é no nordeste, que é lugar de sofrimento. (...) Então é por isso que sou trovador, sou trovador desde pequeno”

A idéia é expressa de maneira mais ampla por Manoel Camilo dos Santos:

“Os poetas e trovadores, sendo filhos em parte dos mesmos rincões _ isto é, sítios, províncias _, porém filhos de pais pobres, não puderam ouvir a voz do ensinamento. Contudo, pelo gênio aculeiforme de que são dotados, Deus lhe fala pelo silêncio contemplativo dos bosques e das montanhas, pela solidão dos ermos e pela necessidade dos que os cercam, uma linguagem muda porém simbólica, e eles, poetas, vêem e ouvem como num idioma claro e místico e, revestindo de um pensamento abstrato o incógnito, cantam e decantam as maravilhas cósmicas e astrais, enaltecendo o divino e grande mestre, que sabe dar ao pequeno aquilo que não tem o grande, que é a poesia” (Santos, s.d.)

Reunindo vários pontos mencionados anteriormente (relação entre natureza, poesia e conhecimento do invisível), esse trecho relaciona-os com a oposição entre “pequeno” e “grande”, e mais especificamente com a pobreza e dos sítios e “rincões”. A oposição entre sítio e cidade, pobres e ricos, natureza e cultura, invisível e visível delimita o lugar da poesia.

b) Técnica

Ser poeta não é apenas ter dom. Implica também em outros tipos de competência, a saber: o domínio de uma técnica relacionada com o versar, bem como a aquisição de conhecimento aprendidos nos livros, através do estudo. Além disso, para que o folheto seja vendável, o poeta deve também ser capaz de apreender o gosto do público. Sobre essas três dimensões da poesia, não poderemos estender à maneira do que foi feito com o dom, tratado no capítulo anterior à base de citações extensões. Isso não se deve a ausência de material, que é na realidade mais extenso, e sim à necessidade de limitar o tamanho desse livro. Dessa forma, apenas indicaremos traços gerais acerca da técnica, do gosto do povo e do conhecimento, enquanto componentes, da competência de um poeta.

Um bom folheto é descrito por poetas como aquele que obedece às seguintes exigências: dever ser bem rimado, bem metrificado, bem orado. A capacidade de realizar bem essas exigências é o bem versar. Versar bem é qualidade de um bom poeta, e não depende do tema que é escolhido. A escolha do tema está ligada à classe do folheto.

Podemos distinguir essas exigências em dois tipos: a exigência de métrica-e-rima, de um lado, e a oração de outro. Métrica e rima são “ritmos da poesia”, são características formais do folheto responsáveis pela sua beleza, pela “doçura” do verso. O metro e a rima estão associados a essa doçura assim como a música. Já a “oração” tem a ver com a concentração dos versos num mesmo sentido. Um folheto na “oração” é aquele que tem coerência, sem afastar-se do sentido. Essa capacidade é testada nos desafios, onde o cantador deve improvisar sobre um tema mantendo a coerência, isto é, “sem sair da oração”. No caso do folheto, como se trata de um “roteiro”, manter a oração significa permanecer em torno de um “caso”: isto é, de personagens determinados, relacionados entre si. O problema que aparece é a introdução de novos personagens, de novos lugares e de transições temporais _ problema que o folheto trata inserindo geralmente um “verso” (que na linguagem dos poetas populares corresponde a uma estrofe) anunciando ao leitor a transição.

Para que a oração se mantenha, portanto, é importante um “roteiro” articulado. Um roteiro é formado por episódios, que devem então ser bem divididos, sem confusão (E-19). Esse roteiro, que pode ser apanhado pelo poeta das histórias que os “avôs contavam”, tem seus artistas e episódios (o que corresponde à análise feita por Propp, segmentando o conto popular em personagens e ações). Esses componentes devem ser articulados num “reflexo”, numa “imagem, espécie de síntese da história, e que é muitas vezes apresentada na primeira estrofe (“Quando o caramada lê o primeiro verso, já está vendo o fim da história. Aí tem a origem”. E-19). Finalmente, um folheto pode comportar episódios pertencentes a “partes” ou “classes” diversas: “partes de aventura”, “de mistério”, de “gracejo”.

Trabalhando com todas essas variáveis, o poeta encontrará problema de inovar, sem repetir histórias anteriores. Como ao mesmo tempo ele deve respeitar regras que delimitam cada classe (história de valente deve ser de tal e tal maneira: um rapaz rouba a moça, há uma briga, etc.), isso pode ser difícil. A solução é comparada ao processo de abrir uma estrada: seguindo um rumo determinado, o construtor retira terra e adiciona terra, pedindo emprestado e cortando, combinando “de um e de outro”. (E-21)

A respeito das “partes” do folheto, que podem ser de mistério, luta, gracejo, etc., convém fazer uma observação. Freqüentemente essa distinção é tomada como uma classificação rígida dos próprios folhetos, separando um do outro. Contudo, no sentido em que empregamos o termo acima, baseados nos comentários de poetas sobe a arte de fazer um folheto, fica claro que esses são aspectos e dimensões que se combinam num mesmo folheto. São elementos de construção. Nesse sentido, se esses “blocos” de construção forem usados para “classificar”, eles não separarão os folhetos, já que tanto um folheto de “mistério” como um de “amor” podem ter “gracejo”, digamos. Haverá sempre uma superposição.

Na realidade, a classificação realmente utilizada pelos folheteiros tem um sentido pragmático: ela se vincula ao uso a ser dado ao folheto. Os folhetos de época serão “gritados”, e de pequeno tamanho e baixo custo. Os de “amor e sofrimento” serão permanentes, cantados, e de grande tamanho e maior custo. Enquanto os primeiros serão “acontecidos”, os últimos serão “imaginários”, isto é, criação. Dessa forma, na maneira usual de agrupar os folhetos há um aspecto pragmático (modo de ler, tamanho e preço), relacionado a um aspecto de “verossimilhança” (acontecido/inventado), e relacionado a “partes” predominantes (o que distinguiria um folheto de “amor e luta” de outro de “amor e sofrimento”).

Encerrando aqui esse tema extremamente amplo, é necessário lembrar que fazer folheto não é absolutamente coisa fácil, como pareceria à primeira vista. Por sobre a “espontaneidade” com que os poetas descrevem o processo de criação, há uma série de regras mais ou menos conscientes. É a partir delas que se pode discriminar um bom folheto de uma imitação mal feita (as imitações são tipicamente mal versadas e mal oradas). Essas regras foram testadas ao longo de repetidas leituras públicas, correspondendo a esquemas de apreensão e de compreensão enraizados num público determinado.

c) Gosto Popular

Tratemos agora do “gosto do povo”. Esse aspecto da habilidade do poeta é essencial, como foi dito, na medida que é da correta apreensão desse “gosto” que dependerá o êxito do folheto (e que não contradiz a teoria da influência da lua).

O poeta insiste em que o mercado para o folheto é o povo, a “classe-plebe”, a “classe humilde” (21). Mais ainda: o poeta deve fazer o que o “povo” quer, e não o que ele gosta. Ele se auto-define assim, não como um “criador” livre, no sentido de um poeta erudito, mas como um artesão que atende a uma procura.

Para ser capaz de atender a essa demanda, o poeta deve conviver com o povo, e perceber o que dizem a respeito dos fatos do cotidiano, ou “modas”, notícias e assim por diante. Isso é base para o folheto “de época”. Muitos poetas descrevem sua entrada do ramo dos folhetos justamente em situações favoráveis a um folheto “de época” formulando e interpretando coisas “do povo” (boatos sobre o “castigo” ao uso da pintura e de “sobrancelha raspada”; boato sobre “Nossa Senhora chorando” por ocasião de uma seca; “conversa” sobre uma mulher que virou porca porque bateu na mãe, etc., E-2, E-36, E-8). O poeta deve apreender “o sentido de uma coisa” a partir da observação, e ampliá-lo: se o rádio anuncia um boato falando de um boi profeta, o poeta será capaz de dizer a profecia, e escrevê-la. Pois ele, para interpretar o “sentido de uma coisa”, deve não apenas conviver com o povo, mas também compartilhar com este uma determinada visão interpretativa, moldada numa lógica que podemos chamar de “mística” (no sentido da lógica dos horóscopos já comentada), se concordamos em entender esse termo no sentido da Antropologia Social. Note-se que a existência de uma conexão “mística” entre certos fatos para a consciência de um agente não implica em que ele não reconheça conexões causais de outro tipo.

De posse dessa capacidade de “ver o sentido” comum do povo, o poeta poderá não apenas comentar eventos socialmente significativos, mas inventá-los em ocasiões em que eles tenham uma forte significação em sua mera afirmação simbólica. Assim, se falta assunto para um folheto na sexta-feira da Paixão, o poeta poderá inventar um exemplo a respeito de uma pretensa ação de profanação filial ou contra Frei Damião, seguida de castigo. É claro que essa estratégia pode fracassar: certa vez um poeta fez, a propósito do noticiário sobre a venda de cabelos femininos em 1969, um folheto sobre A moça que fez promessa de dar o penteado ao diabo, mas quando o folheto ficou pronto houve uma cheia e o folheto se perdeu, pois o tema de interesse era outro! (E-24), Note-se portanto que, na presença de um elemento imprevisível, tem sentido que o poeta também raciocine, a respeito da previsão de venda, tanto a partir da lógica “empírica” acerca do gosto popular, como em termos da lógica mística das fases da lua...

Afirmamos que o poeta, empregando modelos e esquemas formais, capta o “sentido” presente no povo e aplica-o a eventos. Talvez um processo análogo opere no caso dos demais gêneros. O povo, segundo o poeta, prefere certos gêneros (que nem sempre coincidem com o gosto dele, poeta). Assim, atualmente a preferência recai sobre histórias de “valentia”, bem como de “gracejo”. Essas narrativas contém outra espécie de “lógica”: nelas o fraco vence o forte pela valentia ou pela astúcia, assim como, nos romances de “mistério”, o fraco triunfa graças a um dom mágico.

Para concluir essas observações , lembremos que ao falar para um “intelectual”, o poeta tenderá a distinguir seu gosto do “gosto do povo”. Contudo, há uma maneira de conciliar as duas ordens de exigências, que são corresponder ao “sentido” popular, e não parecer “matuto” ante a esfera dos intelectuais. O poeta declara-se, nesse caso, um educador. Diz um poeta:

“A gente faz o que o povo quer... Não o que o povo quer, mas aquilo que tenha um princípio de moral, que tenha um exemplo”

(E-21)

Na realidade, o que o poeta faz aqui, ao justificar folhetos “místicos”, é indicar que nessas histórias, sob a capa das conexões “irreais” de fatos, há um sentido social que é de fato o que importa na história. Assim, por exemplo, no folheto sobre A moça que virou cachorra porque bateu na mãe na Sexta-Feira da Paixão, diz ele: “Isso não pode ter acontecido, que uma moça não vai virar cachorro, nós sabemos disso”. Mas o que interessa é o “fundo moral da história”: ela bateu na mãe – virou cachorra. O poeta poderia dizer: o que importa é que as relações entre filha e mãe são sagradas, e sua distupção (?) equivale a desordem natural. O mesmo raciocínio se aplicaria às profecias sobre “o fim do mundo” e sua conexão com a “corrução” generalizada na humanidade no tempo presente.

O que o poeta diz aqui é que dois planos devem ser distinguidos na situação narrativa exigida pelo gosto do público: um é o da causalidade mística, e outro é o da ordem moral. O poeta percebe que a linguagem mística expressa afirmações sobre a ordem moral da sociedade.

d) Saber e Poder

Descrevemos como o poeta se caracteriza enquanto dotado de um dom, e enquanto tal se assimila à pobreza rural. Vimos como a competência profissional do poeta associa-se a um aprendizado que o afasta do horizonte de imediata identificação com essa pobreza: ele opera com uma técnica (métrica, rima, oração); e finalmente, vimos como ele opera com o sentido do povo enquanto referências para produzir um bom folheto. Enquanto a primeira categoria enfatizava a espontaneidade (origem), a segunda enfatiza a instrumentalidade (forma) e a terceira, o lado moral (fim). Mas, como vimos no final do capítulo anterior, isso coloca um problema ao poeta: ele tem espontaneidade enquanto “matuto”, mas ao mesmo tempo na medida em que é poeta tende a afastar-se dessa categoria, e a afirmar-se como pessoa culta. É como se se reconhecesse que a verdade sobre o camponês está fora dele. No presente capítulo, concluindo esses comentários sobre a relação dos poetas com a poesia, vou desenvolver essa questão um pouco mais, mostrando como alguns poetas tentaram resolver esse dilema, expressando politicamente a “verdade” camponesa, no contexto da expansão da “pequena indústria” dos folhetos.

A função pedagógica do folheto vai além do conteúdo moralizante mencionado atrás. O folheto serve à alfabetização, e uma conseqüência imediata é que o folheto forma cidadãos, ou seja, eleitores. Essa linguagem era falada nos anos cinqüenta, que como vimos são época de expansão das folhetarias, como argumento de reivindicação ante o governo. O poeta alegava em seu favor, na condição de editor de representante da “pequena indústria” do folheto, a dose de conhecimentos científicos, históricos e literários que deixaria passar como um “sedativo” ou “droga natural” ao leitor (de um discurso de Manoel Camilo dos Santos). Outro editor compara o folheto à televisão em sua função de ensinar “o que se passa”. Ao pesquisador, esse editor fez um apelo explícito:

“Então eu acho que de qualquer maneira, o senhor que trabalha nas letras, o senhor que está escrevendo um livro sobre a sabedoria humana – porque isto é sabedoria humana, não é? -, Cordel, a literatura de cordel, aí quando escrever vocês toda a vida botem uma crasezinha lá numa partezinha no sentido de que a literatura está ajudando, de que é uma centelha do progresso, é uma integridade do povo, é ajuda aos governos. Porque a gente ajudar o governo não é só pagando impostos não”

(E-8)

Em outras palavras, durante o período posterior a 1950 pelo menos, editores começaram a pensar sua atividade também sob o prisma de sua função cultural. Esse raciocínio, naturalmente, vinculava-se à necessidade de expressar suas reivindicações em uma linguagem aceitável pelas esferas de poder. Convém insistir que esse espaço de reivindicações ante o governo por um status de agentes culturais, baseara-se na aquisição efetiva de conhecimentos por parte do poeta. Essa exigência pode estar de em conflito com o gosto popular, como se pode ver pelo seguinte caso: o poeta de um lado aprimora a ortografia, e procura escrever certo o folheto, (coisa habitual nos melhores poetas); por outro lado, o folheto bem versado exigirá que o poeta escreva “errado”, de modo a compatibilizar-se com a rima e com a prosódia locais. (Uma solução é escrever “errado” num lugar e “certo” no outro, de modo a atestar que se conhece o certo) (E-36).

Na realidade, normalmente a linguagem do folheto jamais corresponde à “prosa matuta tal qual a representou certa literatura “regionalista”. A linguagem do folheto é guiada por regras específicas, que mesmo quando divergem na norma culta escrita, não coincidem com a “fala matuta” (ao contrária: cf. C. PROENÇA). Alguns folhetos focalizam especificamente a “fala errada” do matuto, acentuando a inadequação do matuto face ao meio urbano precisamente através do uso da linguagem.

Assim, o matuto aparecerá ante o fiscal, ante o padre, o delegado ou o juiz, autoridade formais, como alguém ridículo por ser incapaz de expressar-se corretamente. A inadequação verbal é equacionada a sexualidade e a escatologia: erro = palavrão (o matuto dirá que “correu prá acudir ela”, etc.).

Como é possível tal caracterização, se é verdade, como estamos admitindo, que o público é o “matuto”, e que o poeta-folheteiro deve interpretar um “ponto-de-vista” rural? Aqui mais uma vez é necessário ver o fenômeno como um jogo de tendências contraditórias. De fato, o folheto “correto” funciona para o próprio “matuto” como padrão de literatura, mas não o faria para o leitor urbano, que o vê como coisa “folclórica”. Assim, mesmo entre os poetas a questão se coloca: uns serão mais ou menos instruídos, a começar pelo poeta-folheteiro que mal se distingue do público, e a terminar pelos poetas-editores com muita experiência e aprendizado. (...há uns colegas que não progridem... Antigamente eu não sabia! Mas procurei saber”) (E-36). Essas diferenças são mencionadas pelos poetas maiores em forma de crítica a seus colegas “menores”, alegando que hoje em dia “os trovadores não são mais aqueles trovadores analfabetos não (...) E depois o senhor veja os livros principais nossos.” (E-21) Essa distinção aparece na seguinte polêmica em versos. (Está faltando algum parágrafo?)

Manoel Camilo recusava ser fotografado, e demorei a entender porquê: os jornais haviam publicado reportagens sobre ele, mostrando-o com uma imagem de maltrapilho, em vez de utilizar o clichê do qual ele realmente se orgulha: uma fotografia de terno e gravata, à altura de seu título de “Galã dos Poetas Populares”. Assim, Camilo demorou a admitir nunca ter ido à escola, o que aliás só seria motivo de orgulho, dada sua capacidade de escrever corretamente e mesmo de maneira preciosa (Manoel Camilo é autor de um dos folhetos mais reproduzidos em antologias, Viagem a São Saruê, e na minha opinião de fato um dos textos mais belos da literatura de folhetos). A vida de Manoel Camilo teve uma inflexão quando, ainda marceneiro, “experimentou a viola” (isto é, participou de um desafio de cantadores) e foi derrotado de maneira humilhante. Conta que ficou doente e tomou purgante. Vendeu então a viola e comprou quatro livros: Ciências Físicas e Naturais, Lunário Perpétuo, Atlas Universal e Bíblia. Estudou esse material durante seis meses, transpondo-o à noite em versos e decorando-os durante o dia à mesa de carpinteiro, sua mulher acordava no meio da noite para surpreender o marido lendo depois de um dia de trabalho. Assim preparado, derrotou o adversário e adquiriu confiança em si. (Muitos poetas mencionam seus livros preferidos, indicando preferência pelos “históricos”). Assim, daí em diante, Manoel Camilo menciona várias ocasiões em que era capaz de derrotar uma autoridade que o julgava um “matuto”, um folheteiro sem instrução. Ao contrário, ele era capaz de exibir ao delegado seu conhecimento da Constituição (em defesa de folhetos que a autoridade queria repreender), ou exibir ao pastor protestante seu conhecimento minuciosa da Bíblia (outros poetas contam episódios análogos, envolvendo o jornalista arrogante, ou delegados arbitrários).

Parte desse trajeto de afirmação como cidadão graças ao domínio do saber oficial consistiu, durante os anos 50, na criação de associações de poetas, que poderiam funcionar como instrumento de legitimação (conferindo diplomas, flâmulas, carteirinhas), de reivindicação e de cooperação. Manoel Camilo dos Santos foi convidado a representar a Paraíba pelo fundador da primeira associação de “poetas e violeiros”, Rodolfo Coelho Cavalcante. Nessa ocasião Manoel Camilo era um editor próspero, e o convite lhe proporcionava a oportunidade para afirmar a importância cultural de sua atividade. Ele comenta com detalhe a opinião de bacharéis que diziam: “Congresso de trovadores? Prá que isso? Esse povo nascido e criado nos pés das serras, gente atrasada e sem cultura, devia procurar os seus redutos de atraso e ignorância, e não Congresso!”. E é exatamente a propósito que Manoel Camilo desenvolve sua argumentação acerca do “dom” espontâneo dos poetas, comentado por nós acima.

É importante levar em conta que a imagem que os editores procuravam mostrar aos poderosos estava relacionada com reivindicações concretas às quais cumpria dar legitimidade. Como exemplo da linguagem utilizada na defesa do negócio dos folhetos, cito passagens de um discurso realizado quando da inauguração da nova sede de sua folhetaria em Campina Grande, 1957:

“Não é fácil comerciar com letras num país de cultura limitada. Neste país de mil e quinhentos, onde a literatura é mito e fábula, as possibilidades de muitos que escolheram por comércio as letras oferecem progresso lento e lucro mínimo (...) Concluímos portanto o teor administrativo e a envergadura comercial do laborioso poeta Manoel Camilo dos Santos, que não é somente exímio poeta, como um jornalista de largos recursos culturais e científicos...”

O discurso, provavelmente escrito pelo próprio Camilo, continua lembrando a necessidade de apoiar-se as “pequenas indústrias” como a dele, prejudicadas pelo preço do material gráfico e pelos impostos sufocantes. Formula em nome desta e de muitas outras pequenas indústrias um apelo:

“Se pudéssemos falar diríamos: os responsáveis pela grandeza dessa terra deviam lançar um olhar, embora furtivo, a essa indústria.” (Santos, s.d.)

Ao passo que Rodolfo Coelho organizava a própria “classe poética” numa associação, Camilo optou pela participação direta na política partidária. Em 1959, integra o diretório do Partido Rural Trabalhista, e surge a proposta de sua candidatura como vereador:

“A esse tempo, a classe poética, a classe gráfica, e uma boa parte da classe agrícola do Estado faziam questão e pediam para candidatar-me vinculado a elas” (idem)

Camilo mostra-se assim associado a poetas, editores e à “classe agrícola”. Que significa aqui essa categoria? Temos uma explicação em discurso de Manoel, que havia entrementes recebido um telegrama de apoio de Jânio Quadros (em reconhecimento pela atividade de cabo eleitoral que Camilo desempenhara em seu favor). O discurso em questão é centrado na defesa da pobreza rural, do agricultor pobre que “... à falta de auxílio, de amparo e de estímulo por parte dos proprietários e governadores estão abandonando os sítios e indo para as cidades”, onde estão condenados a viver de “apanhar papéis velhos”, no caso dos homens, e à prostituição, no caso das mulheres. O discurso continua:

“Todos estes ex-camponeses que miseravelmente estão mourejando pelas terras do sul querem trabalhar e trabalharão... desde que se providencie a volta e fixição do homem serviçal ao campo lavoureiro, sendo que lhes sejam bonificados os meios iniciais para que o mesmo se equilibre...”

O Resultado, prossegue, seria a baixa no preço dos alimentos, “a ponto de fazer desaparecer as idéias perniciosas do comunismo, visto que elas são baseadas a fome, na miséria e em toda sorte de sofrimentos que passam os pobres e no não cumprimento das promessas falhas e fictícias dos politiqueiros e demagogos” (idem).

Camilo afirma ter sido o único candidato que defendia a pobreza e que saíra da pobreza.

Quanto à eleição, o resultado foi desastroso, talvez porque Camilo decidiu candidatar-se, não ao modesto cargo de vereador, mas a deputado estadual. Nesse tempo abandonou a editora, vivendo a partir de então do arrendamento das máquinas a um ex-empregado. Depois de 65, quando a “poesia decaiu muito”, vendeu tudo, sem ter conseguido relacionar-se com os novos poderosos. Manoel Camilo perdera não só a tipografia, mas também as promessas de emprego público anteriores a 64. Doente e na miséria, vendia folhetos no mercado de Natal, solitário e à espera da morte que o Lunário Perpétuo profetizava para aquele período. Quando o encontrei, em um subúrbio afastado de Campina Grande, o poeta declarava-se ressuscitado, e a “Estrella da Poesia” existia novamente com poucos folhetos editados, reduzida a uma estante e uma mesa de trabalho na sala de visitas.

No início deste capítulo, dissemos que o poeta vivia uma situação dual: ele compartilhava o horizonte do “matuto”, mas tendia a afastar-se desse horizonte ao procurar afirmar-se como pessoa culta. A história acima mostra como, pelo menos em princípio, teria sido possível contornar essa dualidade, e, além de falar para o matuto, falar também por ele, assumindo assim nos dois planos o ponto-de-vista da pobreza*. De qualquer forma, a conjuntura política que permitiu esse projeto durou pouco. O “saber dos pobres” pôde apenas sonhar com uma alternativa real de poder.

Nesse ponto, lembramos a associação feita entre dom (matéria-prima e pobreza rural), entre técnica (forma) e aprendizado urbano, entre gosto (fim) e moral camponesa: o poeta aparecia como a unidade dessas “causas”. O papel político do poeta, implicaria em realizar na prática esse modelo.

Transformações na literatura dos folhetos

a) Gêneros e tempos na literatura dos folhetos

Como vimos no capítulo V(?), uma classe de folhetos não se determina por um critério único e temático. Vamos agora considerar rapidamente a questão dos temas. Convém deixar claro que não irei descrever aqui os “gêneros” de folheto (ver o livro de Liêdo Maranhão sobre a “classificação popular”, 1977). Meu objetivo é indicar como essa “classificação”, que pelas razões já comentadas anteriormente não pode ser tomada como um critério para distinguir rigidamente um folheto do outro, tem uma importância de fato muito maior. Ou seja, a de indicar como os poetas e leitores vêm em conjunto os folhetos. A minha sugestão a respeito é que, a partir das noções utilizadas pelos poetas para descrever folhetos, pode-se captar em parte essa visão de conjunto, e em particular a relevância de uma visão de história.

Nos comentários acerca das classes, noções de tempo e de espaço são importantes. Quando cada tipo de folheto é assim situado ( a partir da “classificação” espontânea, não através de perguntas diretas), eles passam a relacionar-se numa certa lógica.

Para começar, há uma clara distinção entre dois grupos de folheto (para uma descrição de problemas de classificação, ver Arantes Neto 1977). Há folhetos “permanentes” e os de “época” (E-36 etc.). Que significa essa distinção? Já sabemos que os livros “permanentes” têm formato maior e vendagem constante, ao contrário dos folhetos de “época”. O que nos interessa aqui são distinções de conteúdo. Em primeiro lugar, esses dois grupos distinguem-se segundo os poetas porque o Livro “permanente” é criado (imaginário, inventado), enquanto o livro “de época” é ocorrido. Contudo, é curioso que a preferência recaia sobre os livros “permanentes”, como se houvesse predileção pelo “inventado”. Mas a que se refere essa “invenção”? Ao considerar as fontes do livro “permanente”, vemos que ele de fato corresponde a relatos do passado. Como tal ele se baseia em histórias tradicionais (E-19), na “mitologia”, “histórias antigas” (E-40), filmes, romances “históricos” etc. Esse “passado”, que visto assim parece simplesmente uma colagem caótica de fontes heterogêneas, na realidade pode ser considerado como segmentado em dois grandes momentos, de acordo com o gênero em questão. Assim, para os folhetos de “mistério”, o passado corresponde a um “tempo de reino”, associado à “mitologia” e ao “troncoso”. Já para os folhetos de “valentia”, o passado corresponde definidamente à história sertaneja dos últimos dois séculos (... uma história de uns cem anos atrás... mil oitocentos e tantos e tal..., E-8). Esse tempo novecentista é descrito como “tempo sem lei”, “tempo do carrancismo”.

Note-se agora que a “criação” aplicada a esse passado não é descrita como simples mentira, globalmente. Assim, há uma distinção entre os romances (isto é, folheto de formato igual ou maior a 32 páginas) do tempo do “reino”, que tratam do fantástico, e as histórias do sertão, que são concretas. Episódios fantásticos são aqueles onde está presente um mistério; episódios concretos põem em jogo atributos comuns, como valentia e astúcia. (Note-se ainda que “mistério” não significa inverdade: “O povo... a grande maioria acredita que existiu aquilo... O próprio poeta afirma que seres fantásticos poderiam talvez ter existido no passado, como existiram também monstros pre-históricos hoje desaparecidos... “Mistério danada!”).

A criação, digamos aquela “concreta” e passado no sertão, se baseia freqüentemente em fatos (“uma família Garcia da criação, tais fatos se ordenem num modelo aceitável pelo público. Assim, por exemplo, um caso de rapto e casamento por si mesmo é “comum” (“A verdade a gente tá vendo na rua, não adianta”, E-27). Para ele convir ao folheto, precisa ser transformado: o característico é colocar em jogo uma diferença de classe, onde o rapaz será pobre e o pai será um “patrão”. Essa operação corresponde, assim, àquela que o poeta “de

época” realiza quando observa um fato cotidiano e o interpreta segundo o “sentido” do povo. Continuando com esse exemplo, o poeta e o leitor têm plena consciência de que na realidade as coisas não se passam assim (“E tem se dado. Conheço um caso, o rapaz foi preso. Mexeu com a filha do patrão”).

Recapitulando, a partir da dimensão de tempo/espaço, distinguimos nos folhetos “permanentes” um tempo “antigo” e um tempo “do sertão”. Ambos se opõem, por seu lado, ao tempo presente. O primeiro é domínio do “mistério”; o segundo é domínio da “bravura”; o terceiro é domínio de quê? A resposta poderia ser: de crise e “corrupção”. Esses folhetos que falam do “presente” interpretam-se também (como o fazem os folhetos “permanentes” com o material da história ou da tradição) segundo um “modelo”, a que aludimos ao comentar a competência do poeta em trabalhar segundo o “gosto do povo”. Por exemplo, numa época de seca, fala-se do achado de “pedras de carvão” numa localidade. O poeta publica o folheto “explicando” o achado: assim como seca e fome, as pedras de carvão fazem parte da profecia, que afirma a iminência do fim do mundo presente. Os folhetos que falam do presente não precisam ser necessariamente dessa forma. Incluem os “exemplos” (como no caso citado da “Moça que virou cachorra”), a “corrupção” (onde se comenta a desordem moral do mundo presente, expressa como inversão de papéis sociais, e sobretudo como comportamento feminino abusivo e rebelde). Assim, quando o folheto de “época” fala da carestia, da diferença do rico para o pobre, da seca etc., ele está associado na “lógica camponesa” à noção de desordem moral, de crise nas relações sociais; e mais geralmente ainda a uma noção de crise da própria natureza.

b) Tempo antigo: reino e sertão

Ao procurar apreender o sentido da visão de conjunto que as classificações conferem diferentes folhetos, chegamos a uma visão de movimento e temporalidade: passado antigo/ passado próximo/ presente: reino/ sertão/ cidade: mistério/ valentia/ corrução.

Mais uma vez lembro que esse esquema é uma simplificação, para que possamos avançar em nossas questões sobre o universo extremamente complexo dos folhetos. Se o poeta, a despeito do que diz enquanto intelectual com idéias próprias, é um intérprete de um “sentido”, qual é o sentido desse conjunto? Assim formulada a questão é talvez excessivamente ampla, mas há alguns pontos que merecem atenção particular. Assim, vimos que para que uma história “antiga” seja do gosto do público, convém que ela faça intervir uma “bravura” envolvendo um rapaz pobre e um patrão rico. Qual é o sentido dada a essa relação? Como ficam então os folhetos de época, onde essa relação desaparece (embora permaneçam folhetos falando da “Diferença do Rico para o Pobre”)? Por que os papéis femininos são aqui realçados para expressar uma crise material na sociedade? (Veja a capa de “O Fim do Mundo Presente”).

O nosso comentário passará sumariamente por vários folhetos, sendo impossível por razões de espaço e de tempo deter-se em uma análise de profundidade que não corresponde aos objetivos desse trabalho, mais voltado para sugerir hipóteses do que para “prová-las” exaustivamente. As conclusões, contudo, baseiam-se sempre em uma análise de certo número de folhetos de cada tipo.

Vamos tomar primeiro os romances de mistério. O “componente” de mistério aparece numa história de “reino” na forma de algum tipo de entidade (“dragão”) ou de objeto, com o qual se relaciona um herói.

Um objeto “misterioso” intervém particularmente em histórias onde um personagem central, o herói, realiza uma viagem ou um deslocamento. (“Então ele pedia comida à toalha, a toalha dava comida. Negócio de mistério, não é? Mistério. (...) Agora ele adquiriu os objetos por mistério, também, não é? Na viagem. Uma viagem que ele fez.” (E-19).

Nessas histórias, o herói afasta-se de um local de origem e desloca-se até um “reino”, onde realiza tarefas extraordinárias e finalmente se casa com a filha do rei. O componente de “mistério” intervém no êxito obtido pelo herói na realização das tarefas.

Esse esquema narrativo, correspondente a um esboço de enredo ou “roteiro”, se quisermos utilizar a terminologia dos poetas, foi estudado pelo folclorista Vladímir Propp e já foi aplicado ao estudo formal de folhetos nordestinos (Terra e Almeida, 1975). Não se trata da descrição de uma história em particular, e sim de um modelo que permite “inventar” histórias ao infinito (é esse o problema dos poetas). Note-se que o modelo comporta aproximadamente três fases. Há um modelo inicial: o herói está no local de origem, mas há uma carência qualquer. Há um período de ações, com o herói colocado fora de sua família e de sua terra, em trânsito; período onde contrai novos laços, realiza tarefas difíceis, mostra-se merecedor de um objeto “mágico”. E há um estado final, onde o herói está novamente incorporado a uma situação, a uma nova família e a uma nova terra; estado onde a carência originária é reparada. Abstraindo mais ainda, vemos que o herói passa de um estado de solteiro para um estado de casado, e que transita também da pobreza para a riqueza. (Como é fácil perceber, no interior desse modelo o componente de “mistério” é uma peça importante, mas estão aí presentes também “amor” e “valentia”.)

Uma história típica pertencente a esse tipo e considerada como “bom folheto” (foi citada em cinco entrevistas como exemplo de excelência) é a História de Juvenal e o Dragão, para cuja análise em termos da teoria de Propp remetemos o leitor (Terra & Almeida. O que gostaria de destacar aqui é que a forma dessas narrativas exibe uma transição entre posições sociais, e mais ainda: mostra uma mudança social efetuada magicamente. Essa transição se dá simultaneamente no plano do parentesco e no plano do poder (o herói se casa; o herói torna-se rico). Antes de comentar essa dupla transição, convém mostrar num diagrama o movimento formal do conto; seguindo aqui idéias de Van Gennep e de Leach:

|Condição inicial |Transição |Condição final |

|Status inicial |sem Status definido |Status final |

|solteiro |em viagem |casado |

|pobre |objeto mágico |rico |

|lugar de origem | |lugar de chegada |

|tempo 1 | |tempo 2 |

Deve-se notar que a mudança de status se dá pela unificação de duas famílias, acompanhada simultaneamente pela união material que as iguala em riqueza. Ora, na realidade esses dois planos não caminham juntos. Um rapaz pobre poderia tornar-se afilhado do rico (com que as fronteiras de poder e riqueza estariam preservadas), mas não casar-se com sua filha. Minha sugestão é que a coisa “misteriosa” do conto reside em mostrar essa passagem como conseqüência de um estado “mágico”, de um “dom”. Como havíamos visto ao comentar a noção de “dom” entre os poetas, o dom é atributo da pobreza, e está associado de um lado a uma dádiva divina e por outro é meio de conhecimento da verdade. Esse dom falta ao rico. De fato, considerando melhor as histórias de “reino”, percebemos que o herói , graças a um dom (no caso um “objeto misterioso”) possui algo que falta ao rei: um conhecimento, ou meio para enfrentar alguma ameaça igualmente misteriosa (dragões). Em outras palavras, o conto sugere que os pobre têm um poder próprio, e que os poderosos são fracos. (Cf. Turner 1974). Essas idéias iluminam a linguagem falada nesses contos antigos tão louvados e amados pelos nordestinos dos pés-de-serra: é uma linguagem de relações entre pessoas que contraem laços (se tornam parentes), num mundo polarizado entre outras coisas sagradas (é a esfera do “dom”) e profanas, entre fracos e poderosos. Poder-se-ia dizer que, com a “lógica camponesa” (dom, laços pessoais moldados pelo parentesco) é pensada uma situação real de diferença social.

O fato de que essa situação, que é vivida cotidianamente pelos leitores, seja objeto de reflexão mostra que ela não se justifica por si mesma. Pensemos aqui noutro romance: a História da Princesa da Pedra Fina (também analisado formalmente como “conto proppiano” em Terra e Almeida, 1975). Aqui a situação inicial mostra uma família camponesa: o pai, a mulher e três filhos. O primeiro episódio mostra os filhos em um intervalo do trabalho agrícola, conversando sobre seus “desejos”. Ora, enquanto seus irmãos manifestam o desejo prosaico e real de comida, José, ao contrário, diz que “quer ver as pernas das moças de Pedra Fina”. Esse desejo é tomado por toda a família como uma séria ameaça para todos. Parece óbvio que esse é um desejo interdito: ele viola a regra de correspondência entre parentesco (com quem possa casar) e poder (quais são meus “iguais”). No decorrer da história, José encontra um “objeto mágico”. Por intermédio dele, e após uma série de sucessivas transições, ele finalmente assume dinheiro, nobreza e o controle das “moças de Pedra Fina”, que estavam encantadas, tornando-se rei.

Essa narrativa, segundo comentário detalhado de um poeta, põe em cena um componente de “gracejo”. Pois nela a transição está formulada na forma direta de um comentário sexual, de alusão à nudez das moças: comentário este que simboliza por sua vez a quebra de um tabu político. (... A Princesa da Pedra Fina: como ainda hoje, não é? As autoridades. A gente fala nas autoridades; é preciso respeitar.” E-40). (Seria possível comentar a ocorrência de nudez em princesas, rainhas e filhas de fazendeiro com vários exemplos!).

Esse gracejo que o povo “gosta”, então, tem aqui uma função paralela à do “mistério”: ambos são instrumento de reflexão acerca da legitimidade de fronteiras sociais.

Passemos agora a um outro grupo de romances do “tempo antigo”: o de Amor e Sofrimento. Enquanto a história de Mistério contém uma “bravura” (no sentido de “bravura de triunfo”), a história de Amor e Sofrimento contém uma temporária derrota. São histórias “penosas”. Vejamos um tipo particular, que é o Sofrimento com Falso. Esse caso nos indica novamente o significado da relação entre parentesco e poder na lógica dos folhetos. Nas histórias de “falso”, a situação inicial mostra um casal (nobre, rico). A passagem consiste na perda de status por parte da mulher: ela é repudiada em conseqüência de uma (falsa) traição do marido. Na verdade, o marido manda matá-la. A situação final mostra a recuperação de status por parte da mulher. No período de transição, a mulher sobrevive (escapando à morte ordenada) graças à intervenção de fatores “misteriosos”. (Estar sofrendo inocento: um dizendo que não foi, e outro que aconteceu. Perdida no bosque... O povo gosta, é um negócio sentimental, como aquilo quase aconteceu...” E-26).

Assim como nas histórias de “triunfo” o herói transitara pelos limites entre um reino e outro, aqui a heroína vive seu “sofrimento” exilada em um bosque. Em Martírios de Genoveva, a heroína é abandonada em solidão, vivendo ali sete anos por uma pele de carneiro e alimentada por uma corça (animal “misterioso” nessa narrativa). Rosa de Milão vive numa lapa acompanhada por uma anta, e é encontrada nua por seu marido – sem ter “o menor receio”, já que essa é uma relação legítima. O caso contrário era o desejo de ver a “perna da princesa” por parte de um pobre. Da mesma maneira, o perigo que ameaça as rainhas e princesas casadas é representado pela intromissão em sua intimidade (“Mas ela quase despida/ estava na ocasião/ pois ela não esperava/ tamanha indiscrição...”, diz o narrador a respeito de Genoveva surpreendida pelo cunhado.)

Notemos que, a despeito de um esquema construtivo diverso, as histórias de “triunfo” e de “sofrimento” (ambas de “reino”) têm em comum a vinculação de parentesco e poder. Num caso, uma aliança eleva o status do herói. No outro, a suspeita de uma quebra de aliança rebaixa temporariamente o status da heroína. Em ambos os casos, a figura feminina tem uma importância peculiar. Esse papel da mulher reflete o fato de que, em sociedades organizadas em torno do princípio da propriedade da terra, como no caso nordestino, o casamento carrega consigo o poder e a própria propriedade. As mulheres são assim portadoras ou depositárias da propriedade (Goody 1976, p. 120). Qualquer reflexão sobre a diferença de poder e propriedade entre as pessoas, nesse caso, deverá implicar em discussão das relações de obrigação e dever a que a mulher está sujeita. É o que fazem os folhetos, tratando de várias maneiras a crise e o equilíbrio nas relações sociais através das vicissitudes do papel feminino. É fácil ver que do ponto de vista da personagem feminina, um conflito potencial e às vezes insolúvel é o que opõe a fidelidade ao pai (enquanto filha de um proprietário) e a fidelidade a um pretendente (enquanto futura esposa).

Lembremo-nos do comentário de um poeta. Os casos de rapto “são coisa comum”. Isso significa que eles fazem parte da experiência direta ou indireta dos ouvintes (“... esta sextilha fez jorrar copiosas lágrimas nas faces melancólicas daquele auditório matuto... mães que recordavam as tragédias de suas próprias filhas! Noivos que tinham sido perseguidos pelos parentes de suas amadas!”. Em Lima s.d.). Por outro lado, a diferença social é também coisa “que todo mundo vê”. A criação do poeta, isto é, a reflexão com que ele introduz algo que nem todo mundo vê, está na junção desses dois planos, e no emprego da linguagem e da emoção de um para comentar os problemas do outro.

As histórias de rapto constituem em boa parte o tema dos folhetos situados no tempo do sertão. As histórias passadas no cenário sertanejo têm em comum com as de “reino” um repertório básico: há heróis ousados, uma filha (de rei, de patrão), um casamento (Renato C. Campos chamou a atenção para essa relação, 1959). É preciso reparar contudo em diferenças básicas. A visão dos folhetos não consiste em confundir toda e qualquer situação sob um “esquema” (como alguns intérpretes sugeriram). Ao contrário, como mostraremos com esse exemplo, tal visão apoia-se em elementos preexistentes (no caso, contos tradicionais, e a tradição oral sobre o sertão) e os emprega para expressar distinções; o mundo não é sempre igual. A diferença básica está em que o tempo do “reino” tinha um mistério que, nas histórias do tempo do carrancismo, se desvaneceu, dando lugar a um tempo de valentia. Isso fica claro no modo como, nas duas modalidades de enredo, o herói efetua o trânsito para um estatus elevado. No reino, essa transição se efetua pela mediação de um dom; além disso, ela é reconhecida como legítima pela pai da moça, rei que admite ser carente daquilo que o rapaz pobre possui. A origem social do reino, como efeito, parece ao rei ser ameaçada de “fora”, por um dragão que está fora de qualquer espaço social. Dessa forma, a diferença entre o rei e o camponês pobre se atenua: eles contraem um pacto, sendo a ordem global da sociedade restabelecida quando a “moça” (depositária dessa ordem) é reincorporada à ordem do reino.

No tempo do “carrancismo”, ao contrário, o herói rapta a filha do patrão pela violência. Por outro lado, o poder deste se apoia exclusivamente no exército de capangas que pode mobilizar em defesa da filha/propriedade. Nesse mundo desencantado, não há “mistério” mediatizando as relações sociais.

Qual a função desse quadro comparativo? Uma sugestão é a seguinte. Antes do “tempo do carrancismo” (associado pelos próprios poetas à segunda metade do século XIX em diante), há ainda referência a um tempo sertanejo onde as relações sociais não são marcadas pela violência legítima. Esse tempo remoto aparece nas histórias do “boi”. Nele havia ainda mistério. Um exemplo é a História do Boi Misterioso. Esse é um tempo de vaqueiros e donos de gado, onde a ordem da fazenda é posta em cheque por um boi rebelde (cf. Pontes 1972). Podemos dizer que nesse período não é a propriedade da terra e sua transmissão o problema, e sim o controle da natureza (essa formulação simbólica presente nas histórias corresponde ao fato histórico de que no sertão oitocentista a terra não tinha valor, e sim o gado no qual se media a riqueza). Como é bem sabido, as relações entre vaqueiro/patrão foram amplamente “idealizadas” na literatura erudita; e essa idealização correspondia também a um ponto-de-vista camponês sobre o que deveriam ser as relações de trabalho. Isto é: um vínculo moral entre pessoas, baseado no reconhecimento de uma capacidade no pobre, e de domar o gado, absolutamente necessária ao rico no controle que este exerce sobre a “natureza”. Essa relação, além disso, poderia em princípio transformar-se em igualdade, já que o vaqueiro poderia idealmente acumular riqueza na forma de gado (um dos entrevistados narrou uma experiência como seu pai como vaqueiro: aqui o patrão passa a invejar o progresso do vaqueiro e o expulsa da fazenda, não diretamente e rompendo explicitamente um trato, mas indiretamente utilizando capangas para roubar a “criação” do vaqueiro). O espaço das histórias de “reino” concorda em linhas gerais com esse modelo. Uma análise detalhada poderia mostrar como a História do Boi Misterioso caracteriza o poder do fazendeiro enquanto um poder profano limitado por uma instância sagrada, presente nos fenômenos da natureza e acessível aos olhos de indivíduos “marginais” (no caso o índio Benvenuto).

Há folheto de briga “pura” e folheto de “amor e luta”. A valentia pode estar ligada a várias razões: uma delas é a vingança (do pai assassinado, da mãe ou da irmã violentadas). Esse caso é semelhante ao caso da violência em “defesa” (um herói é “defensor”, por exemplo, quando combate um “negrão” que ameaça a honra de uma moça). E há a valentia pura, como na História do Valente Vilela. A existência dessa valentia (o valente Vilela, bandido perseguido pela política, morreu, foi santo, salvou-se) indica uma vez mais a natureza “desencantada” no sertão. Aqui os vínculos morais entre pessoas estão em crise: roubo, violência de valentões, prepotência de maus patrões. Nesse quadro, onde o “dom” não penetra estavelmente as relações sociais, a valentia é a única garantia da própria integridade enquanto pessoa moral (cf. Franco 1969).

Nas palavras de um poeta:

“...o tempo dos fazendeiros no interior do sertão, daqueles mais poderosos. Tomavam as propriedades dos mais fracos, e que compravam as autoridades, e que as autoridades lhes davam direitos. E esse rapaz, a família dele foi toda morta por um fazendeiro e o fazendeiro tomou a propriedade dele. Ele estudava. E ele abandonou os estudos e foi ser vaqueiro. E depois numa vaquejada o fazendeiro que tinha morto o pai dele se agradou dele por ele ser um bom vaqueiro e contratou ele prá trabalhar com ele. Ele foi trabalhar e lá num passeio, na tapera da casa dos pais ele disse quem era e matou o velho em luta igual...” (E-36).

Essa versão em prosa mostra que, para o “pobre”, a autoridade do patrão torna-se, no “tempo do carrancismo”, desprovido de legitimidade. É assim “legal” ao empregado desafiá-lo. Isso será expresso tipicamente na linguagem do parentesco: o herói desejará ver as “pernas” da filha do fazendeiro. Ele o fará graças à valentia pessoal.

“A moça é filha de senhor de engenho ou de barão. O rapaz se mete a casar. O velho vai atrás, por não querer que a filha se case com um pobre, auxiliado por cangaceiros. No fim o velho se acovarda.” (E-25).

“... o sujeito prá casar com ela foi preciso matar quase todos os cangaceiros do mundo – do rico, do patrão dela, do pai dela...” (E-1)

“Um rapaz brigar por causa de uma moça, matando dois terços dos cabras. O patrão vai atrás da moça, mas peão não teme.” (E-9. Também em E-29, etc.)

Voltando à distinção inicial entre os vários tipos de valentia, tínhamos arrolado os seguintes: a valentia pura, a valentia por vingança, a valentia por defesa. O caso expresso nas histórias acima é um quarto: valentia em agressão.

A valentia em “defesa” é o que fazia o herói do reino livrando o “fazendeiro” de uma agressão (um dragão). Já o herói do sertão é ele mesmo o agressor. (O poeta que me explicou a distinção reprovava esse tipo, que segundo ele “dá má instrução”, ao contrário do outros, que dá “boa instrução”.)

É aqui que realmente a vinculação entre parentesco e propriedade se torna crucial. Para voltar ao contraste com o tempo do “boi”, o momento do “carrancismo” é aquele em que a economia sertaneja deixara de ser uma fronteira aberta e em expansão, para converter-se em um sistema já delimitado, onde a terra se valoriza e a agricultura algodoeira é introduzida em combinação com a lavoura de subsistência. Citemos novamente Goody a respeito das implicações disso para o casamento:

“A necessidade de preservar (...) o status parece ser ligada à agricultura desenvolvida, a uma economia que produz um excedente significativo e uma ordem social hierárquica onde cada grupo procura manter ou melhorar sua posição. A conseqüência no nível doméstico foi o casamento “igual” ou “acima”, isto é: a homogamia ou a hipergamia” (Goody 1976, p. 120).

No caso nordestino, a estratégia a ser seguida necessariamente pelo proprietário é evitar o fracionamento da terra. O casamento se dá sob comando paterno. A única alternativa é o roubo da moça. Estratégias endogâmicas seriam a conseqüência dessa política de controle feminino (Dória 1974), mas sua conseqüência é uma tensão interna: as moças são perigosas.

O ponto que quero ressaltar é que os folhetos tomam precisamente esse problema crucial e o comentam amplamente, convertendo-se mesmo no tema central dos folhetos mais vendidos e populares na área Pernambuco/Paraíba, a se crer no depoimento de folheteiros e poetas. Os poetas sabem muito bem que relações “familiares” não têm uma aura inerentemente pacífica. Ao contrário, elas são fonte potencial não apenas de aliança mas também de conflito (a crônica das lutas de família indica muitas rivalidades entre ramos de uma mesma família, algumas relacionadas com roubo de moça). Mas enquanto as histórias de família enfatizam cisões horizontais e equilibradas (por isso os conflitos perduram por décadas), os folhetos reformulam o problema expressando o conflito em termos verticais e desequilibrados: a história se resolve num prazo curto. Esse ponto-de-vista toma a forma de um casamento por rapto que é também casar “acima” para o herói (e portanto viola a regra de casar “acima” para o fazendeiro). Deve-se notar que uns poucos folhetos tratam também o primeiro padrão: o do casamento homogâmico (entre filhos de fazendeiros), ocorrido na forma de rapto (face à forma exacerbada de controle paterno). O exemplo é um clássico da literatura de folhetos: História do Valente Sertanejo Zé Garcia. (Citado cinco vezes como folheto modelar em minhas entrevistas). Já o segundo caso, que se transformou no modelo de inúmeras variantes, é exemplificado pelo também clássico História de Mariquinha e José de Souza Leão. (Os folhetos podem ser lidos na excelente antologia Literatura Popular em Verso, I, 1964).

José de Souza Leão é um sertanejo que veio trabalhar, tangido por dificuldades, numa fazenda do “brejo”. Só ele se faz respeitar pelo patrão prepotente. Para ele, o trabalho no engenho é uma temporada no inferno. Tangido pela seca, ele vê o trabalho alugado como carência. Por outro lado, o patrão é duplamente abusivo. Respeitando José (por ser valente), no entanto ele é abusivo com outros empregados (que mata e sangra), além de ser abusivo no controle sobre a filha (impedindo que ela namore). O problema moral de José, contudo, é que o patrão é para ele um “lindo patrão”, que lhe concede toda sorte de favores. E, nessa situação, quem rompe de fato esse limite é a moça. É dela a iniciativa. Esse padrão é geral para o sertão: as mocinhas sertanejas serão uma fraqueza na dominação dos patrões. O amor passa a assumir o papel de romper barreiras, legitimando a valentia.

Se observarmos em conjunto várias histórias sertanejas de “amor e luta”, vemos que o tratamento dado ao comportamento da mocinha transita de um moderado grau de independência (como no caso de Mariquinha, que faz a corte ao rapaz e estimula-o nas dificuldades que atravessam) até um extremo de autonomia em relação ao pai. Nesse sentido ela é totalmente diversa da heroína dos romances de “reino”; quer das filhas do rei, quer das esposas de barões. Mocinhas sertanejas são atrevidas. (Lembrar, no Capítulo III ?, que um aspecto de interesse público pela história era a atuação da mocinha, armada de um “cambito”.). Esses folhetos tendem no extremo ao recurso da ostentação de intimidade (a mocinha beija o rapaz de modo sensual, etc.) durante a luta contra o patrão. Em outras palavras, aqui o “gracejo” passa a combinar-se com a “valentia” da caracterização do poder como ilegítimo. O “gracejo”, nesses casos, não é mais como no caso do herói de A Princesa da Pedra Fina apenas um desejo a ser realizado após um longo percurso de tarefas; o gracejo é exibido imediatamente. Há um folheto de engenho que ilustra essa mudança diretamente. Um “valente” (Rogaciano e Angelita) chega às terras de um engenho de um capitão “valente”, acompanhado por dois amigos. Os três manifestam “desejos” e , como na História da Princesa da Pedra Fina, dois dos rapazes querem comida, mas o herói quer a filha do proprietário. Nesse folheto a transição é absolutamente imediata: o capitão, admirado da ousadia do rapaz, manda buscar a “cana” (que um deles queria chupar) e as três filhas, para testar a valentia na frente dos seus oitenta e dois capangas. Como o rapaz mantém a posição, o capitão oferece as filhas aos rapazes! Essa linha é continuada em folhetos onde o patrão oferece aos heróis não apenas a filha, mas a mulher e até a mãe; e não apenas como esposa, mas como amante se o herói quiser (“Se quer casar, case/ se não quiser leve ela”).

Considerando o que foi visto até agora, percebe-se como o gênero “permanente”, associado a uma “criação” ligado ao passado, é na verdade um laboratório de reflexão sobre relações sociais. Nesse laboratório vários modelos são apresentados, havendo entre eles oposições e gradações. Vimos dessa perspectiva, embora apenas na forma de indicações sumárias, elos entre o “reino” (e dentro dele entre o “mistério” e o “sofrimento”) e o “sertão” (e dentro deste, um sertão do “boi” e um sertão do “carrancismo”, este por sua vez com uma gradação em casamento homogâmico e casamento hipergâmico, e, dentro do último caso, com diferentes graus de “abuso” no comportamento feminino). Ao longo dessas diferenças que atestam a capacidade dos poetas de, interpretando um “gosto popular” e fazendo uso de seu próprio “dom”, dar forma concreta a uma variedade enorme de fontes heterogêneas, utilizando-as para refletir e interpretar situações vividas no cotidiano.

Se pensarmos agora o que há de comum nesses modelos todos, é preciso voltar mais uma vez ao esquema com que iniciamos esses comentários: o esquema do conto como uma transição de um herói entre posições diferentes, através de ações determinadas. Esse esquema manteve, mas mudaram as ações: do mecanismo com ênfase no “mistério”, passamos para a passagem social baseada na “valentia”. E, ao longo de ambos, o “gracejo” passou de uma leve sugestão de desrespeito ao poder, para uma forma exagerada – dito de outra forma, a personagem feminina muda de comportamento, indicando assim uma perda de legitimidade nas relações entre poderosos e fracos.

Agora torna-se possível interligar esse conjunto de histórias “permanentes” com o presente, no qual sabemos que precisamente o papel das mulheres e o abuso sexual adquire um papel central, na forma do tema da “corrução”. O tempo presente mostra motivo para “gracejo” no grau máximo: a nudez está à mostra. Ele é centrado, além disso, não mais no campo, e sim na cidade.

c) Sexualidade, poder e legitimidade

Em lugar de pensar a esse outro vasto grupo de folhetos, contudo, gostaria de comentar ainda algumas implicações do que foi visto. Isto é: implicações da noção de “legitimidade” tal como ela apareceu tratada em diferentes modelos de narrativa. É comum a afirmação de que o folheto é “alienado”, de que é incapaz de pensar uma situação social fora da ótica imposta pela ideologia dominante, etc. Um erro simétrico seria querer encontrar nele uma ideologia revolucionária. Procuremos ver a questão a partir da noção de legitimidade. A diferença entre “ricos” e “pobres”, que é tematizada como vimos numa enorme gama de narrativas, apoia-se, nos quadros que o folheto considera, na propriedade da terra. Mas o que ensinam esses mesmos folhetos é que essa propriedade da terra aparece na forma do controle sobre a mulher que dela é “portadora”. Isto é: o folheto trata da propriedade dinamicamente. E essa dinâmica é vinculada à estratégia de controle sobre a herança. Não se trata de herança consumada na morte, e no sentido formal e jurídico. Trata-se do direito consuetudinário do “marido da filha” a trabalhar na terra do “pai da esposa”; herança que começa a se consumar com o casamento portanto. Nesse conjunto de regras, a própria mulher é nos folhetos o símbolo isolado principal para o poder legitimamente reconhecido, na medida em que ela é socialmente “filha de um pai” e “esposa de um marido”, e portadora de terra e poder.

Considerando a legitimidade sob esse prisma, vemos que mesmo ao “desafiar” o patrão (?) o folheto conserva-se num plano de respeito profundo à intocabilidade da propriedade. O herói jamais toma pura e simplesmente a terra do patrão. Ele tampouco se alia a vários “pobres” para derrotar pela força o mau patrão (segundo Moacir Palmeira, os nordestinos pequenos-proprietários relutam a aderir ao sindicato, já que é covardia “muitos contra um”; em compensação, quando entram são os mais persistentes. Palmeira 1979). Dentro desses termos, ele primeiro estabelece um “vínculo” com o patrão (como empregado), e em seguida com a filha do patrão; depois disso é que ele poderá transformar-se num aliado do patrão pelo casamento, e em conseqüência em herdeiro da terra – se for individualmente bastante valente para enfrentar a oposição do patrão ao casamento, e se contar com o amor da filha deste.

Poder-se-ia ver aqui um respeito último às relações sociais de subordinação, e assim uma legitimação latente à dominação de classes baseada na diferença de propriedade e na força.

Contudo, a meu ver essa redução do ponto-de-vista expresso nos folhetos a uma ideologia de legitimação do patrão esquece um ponto fundamental. A associação entre ordem moral, parentesco e apropriação da terra não implica em existir ou não patrão: ela é expressão do funcionamento e da reprodução do modo de vida camponês. Não importa que esse modo de vida não seja presente em forma “pura”, ou que apenas disfarce no nordeste a dependência face a um proprietário que cede uma parcela ao seu trabalhador. O que importa no caso é que, no seu trabalho familiar de ganhar o próprio sustento, o trabalhador se pensa basicamente em termos do acesso à terra e reconhece assim as regras “camponesas” ligadas a ele. Esse modelo pode estar presente apenas na memória, como no caso dos trabalhadores assalariados estudados por Ligya Sigaud (1977b). Neste caso, a ordem vivida é inaceitável, e isso pode ser pensado pelo trabalhador como significado que essa ordem o priva de condições para a reprodução como camponês: o priva de um sítio, de autonomia, etc. Estudos sobre camponeses brasileiros (Moura 1978) mostram como, sob a linguagem jurídica do Código Civil, opera na prática dos camponeses outro sistema de regras, baseado no parentesco e no costume. Para um membro do grupo que se torna adulto, a passagem à nova condição implica em acesso à terra de trabalho e a uma esposa. O direito à terra para trabalho aparece como advindo da filiação (herança) e/ou casamento. É claro que há tensões potenciais. No caso de um “filho mais novo”, a idade adulta pode significar abandonar a terra paterna (caso de alguns entrevistados) e tornar-se migrante: como os heróis do folheto, um rapaz pobre, em trânsito, separado das conexões com parentes. Essa carência aparece assim como de carência de terra e mulher: necessidade de uma aliança.

Se é assim, as regras que o folheto respeita têm a ver com a importância do acesso à terra do ponto de vista camponês. Como isso implica em respeitar também tais regras para o patrão, a expressão crítica face à dominação baseada na relação de classe precisa respeitar o processo descrito acima: ela aparece no estado inicial, e depois é transformada com um casamento hipergâmico do herói. O que os folhetos dizem implicitamente, na linguagem do parentesco, é: a situação de classe seria legítima se fosse compatível com a lógica de reprodução camponesa, onde tornar-se adulto é converter-se em pessoa autônoma, em senhor de seu trabalho e marido de uma mulher. O trabalho de engenho, ao contrário, trata o indivíduo como “pessoa alugada”, sem nenhuma transição possível. O “matuto” expressa uma reflexão crítica utilizando as regras “costumeiras” em seu favor (assim como o patrão casa “igual” ou “acima”, o valente sertanejo casa igual ou hipergâmicamente, no último caso com a filha do patrão: é claro que há uma contradição insolúvel entre um e outro, embora estejam usando a mesma regra!).

Esse exercício, resumindo, implica no seguinte: a legitimidade para folheto, tal como é tratada nos folhetos “permanentes”, respeita a divisão de trabalho com base na idade e sexo, e a organização da produção e do consumo com base na unidade doméstica.

Esse ponto-de-vista permite também compreender o significado do “esquema” formal presente nas narrativas. O herói (seja do “reino”, seja do “sertão”) aparece inicialmente num estado de carência e menoridade; depois numa situação de trânsito; e finalmente é incorporado a uma esposa e a uma propriedade. Essa passagem corresponde à experiência de vida de um camponês ao longo de um ciclo quer vai da situação de “filho” até a situação de membro pleno de uma comunidade. (Cf. Heredia 1979; Arantes Neto 1975). Nas palavras de Heredia, que estudou uma comunidade de camponeses em Minas Gerais, os meninos trabalham na terra desde os 8 ou 9 anos. Quando adultos, com cerca de 18 anos, são emancipados ganhando um pedaço de terra para “trabalhar para si”. Nesse período “... o jovem atravessa um período em que suas aptidões para a maturidade são testadas”. Finalmente, com o casamento, e só então, esse adulto será um adulto pleno. Essa plenitude concretiza-se com a construção de uma nova unidade de produção e consumo: uma “casa de morada” no terreno do pai. Esse é o padrão que encontramos também com freqüência nas nossas entrevistas, embora na forma de alusões fragmentárias. Ele indica a importância do ciclo que é no caso simultaneamente de status de parentesco e de status de reprodutor. Assim, a situação inicial é assimétrica, já que o “filho” está subordinado a um pai, mas essa assimetria é transformada ao longo do ciclo.

Vemos agora porque o monopólio da terra, por si só, não é fonte de legitimidade. Ele não é transformado. As diferenças de posição social envolvidas não são transitáveis (como idealmente seriam no sertão do “gado”, onde vaqueiros se tornavam fazendeiros). Isto é: não há um ciclo do “camponês” do tipo afilhado-empregado que se torna genro-camponês autônomo. Pois cumprir esse ciclo implica em quebrar a endogamia dos patrões.

Quando há uma situação-limite, o limite respeitado pelo folheto não é o monopólio, e sim a reprodução camponesa (por isso o rapaz “casa” com a filha o patrão).

d) Tempo de hoje: profecia

Vamos comentar agora o “tempo de hoje”, através da referência a três tipos de folhetos: os exemplos, a corrução e a profecia.

As histórias de “exemplo” falam de uma transição social. Um fazendeiro que coloca um rosário bento no pescoço de um cavalo perde toda a fortuna (História do Cavalo do Ateu), o Rapaz que virou bode porque profanou Frei Damião e muitos outros concordam em mostras transições e/ou metamorfoses de um sujeito social, em conseqüência de ações negativas. Essas ações são de profanação: profanação de um objeto sagrado (no caso do cavalo do ateu), profanação de um vínculo “sagrado” (no caso, entre numerosos folhetos, da moça que “virou cachorra” porque bateu na mãe). Nesses folhetos, portanto, o mundo aparece dividido em esferas sagradas e profanas, e a ação incorreta (por exemplo, de violação de normas de âmbito do parentesco) aparece como “profanação”.

Se considerarmos os folhetos de “corrução”, eles mostram basicamente ações abusivas (mocinhas “quentes”, mulheres casadas que botam “galho” no marido; viúvas quentes e enxeridas; homens “cornos” e rapazes “gaviões”) e que, mesmo tratadas no tom de “gracejo”, indicam que a profanação aparece de forma generalizada, ainda que sem um “exemplo” imediato como no caso da profanação de um espaço, de uma pessoa ou de uma data claramente sagrados (bater na mãe na sexta-feira da paixão, etc.).

A consideração de outros folhetos mostra além disso que a “corrução” está associada a carência material, particularmente a carestia. (“Os sinais do fim do mundo / vê-se quase todo dia / filhos amaldiçoados / corrupção e carestia”).

A corrução, vista dessa forma como parte de um quadro mais amplo que inclui a carestia, conduz à visão do presente como um momento de crise. Assim, passamos às profecias.

Convém lembrar que o tema da crise no presente poderia ser rastreado em outros folhetos. Seja sobre A Boa Vida do Rico e a Triste Vida do Pobre, seja sobre a carestia em si mesmo (“Chora o pobre hoje em dia / ganhando pouco quantia”, em Tudo Agora Levantou), sobre os “lamentos sertanejos” (evocando o trabalho agrícola), ou mesmo, por contraste, num folheto utópico como Viagem a São Saruê (onde alimento e crianças crescem naturalmente, bem como objetos de consumo, num mundo de dom generalizado).

Sem entrar nessas ramificações, é fácil ver a conexão entre a crise do presente e a profecia. Vejamos melhor, entretanto, a questão da “corrução”. A corrução foi mostrada como inversão ou abuso nos papéis sexuais. Essa perturbação é apresentada como causa de uma carência material do presente. Ela aparece assim mesmo pé que as secas e as enchentes: como perturbação da natureza. O comportamento feminino, que no “tempo passado” assinalava as bases da ordem social, aparece aqui identificado à própria ordem natural. As profecias mostrarão, portanto, a mudança social como mudança da própria natureza. (Se a ordem social = ordem natural, então mudança social = catástrofe!).

Ao comentar o “gosto do povo” em capítulo anterior, mencionamos como um poeta interpretava num folheto, em época de seca, o boato que corria na cidade sobre o achado de “pedras de carvão” num quintal das redondezas. Essa interpretação se insere na lógica da profecia, que relaciona uma série de sinais no mundo presente à iminência da transformação final. Do ponto de vista da profecia, a própria corrução e a carestia são parte desses “sinais”, já que a profecia os antecipa e prevê. Para que o fiel se proteja ante a iminência do “fim do mundo”, ele deve mostrar-se identificado aos “filhos de Deus”, mostrar-se do lado do Frei Damião. Ao contrário do “ateu” que profana um rosário, ou dos que não respeitam a sexta-feira da paixão, deve reafirmar sua devoção, e os folheteiros têm em alguns casos estoques de “orações” que não apenas invocam proteção contra perigos e doenças prosaicas e profanas, mas também servirão para proteger o portador nos “três dias de escuro” que virão. Dirão folheteiros que, ao ler uma profecia em terra de devotos (como Alagoas), é possível conseguir que o público tire o chapéu e até que se ajoelhe ante o leitor.

Há um tipo de profecia que não comenta a conexão entre corrução, fome e carestia (“quando o vestido era grande, se plantava um litro de milho e secava no roçado”, de A Vaca Misteriosa que Falou Profetizando), mas simplesmente arrola o curso das coisas, à maneira dos horóscopos. Nessas profecias, como A Voz de Frei Damião, o curso dos anos mostra uma piora crescente, expressa ano a ano em termos de fome, crise, carestia, guerra, peste e agonia. Há anos de fartura, mas neles reina a “carestia em toda mercadoria, muito pranto e amargura”, num “mistério” que o folheto enfatiza. Finalmente, começam a haver mudanças sociais, caracterizadas pela inversão ou ruptura de relações normais: o “pobre com fome” toma do rico para comer. Essa transformação nas ações sociais é acompanhada por inversões cósmicas: o clima muda, os rios invertem o curso, o sol nasce no poente. É quando “sofre quem nunca sofreu” e “briga quem nunca brigou”:

“perde quem nunca perdeu

mente quem nunca mentiu

sofre quem nunca sofreu

briga quem nunca brigou

chora quem nunca chorou

e geme quem nunca gemeu”

Esse período de inversão natural e social é expresso concisamente numa expressão muitas vezes em profecias:

“A roda grande vai passar dentro da roda pequena”

Dou aqui a palavra para um poeta:

“Quando eu era criança já ouviu isso, a Bíblia está aí para mostrar essas coisas. Quer dizer que a roda grande – é bom compreender isso -, porque a roda grande é o rico, e o pobre ele hoje sempre está se julgando, e se levantando e sendo forte, cheio de positivez! Então a roda que ele pensa que não passa dentro da menor, prá passar é serviço grande, a roda grande passar dentro da menor, mas passa. Passa sem saber como é mas passa. Depois é que vê que passou. Porque o pobre vive oprimido, é verdade, mas quando (...), embora pelo rico. A roda grande passa dentro da menor” (E-2).

Poderíamos indicar agora que, assim como a “profecia” constitui um modelo de mudança, há folhetos de “época” que podem formular interpretações concretas de mudança. Assim, por exemplo, um folheto sobre Getúlio Vargas (comprado por mim de um folheteiro de calçada, em Juazeiro do Norte) mostra como o político, à maneira de um “valente”, defende a “ classe fraca” contra os “ricos prepotentes / rodeados de capangas”. (A entrada triunfante de Getúlio Vargas em Recife). O ponto é delicado, já que no presente “o povo tem medo de escrever, os poetas ficaram como medo de escrever política”, mas essa alusão é suficiente para sugerir que a linguagem “mística” na qual a profecia formula a mudança não é incompatível com alternativas concretas e específicas. O que os folhetos de corrução, de exemplo, de profecia sugerem é que a vida tal como ela é hoje vivida não pode continuar assim; que há uma desordem profunda na sociedade hoje como um todo.

Gostaria nesse ponto de voltar aos comentários feitos anteriormente sobre folhetos do “tempo passado”. Ali, tratava-se de modelos de mudanças que atingiam o status de pessoas, sem que a ordem social mesma fosse alterada. Procuramos mostrar como esse era um modelo de reprodução da ordem camponesa (conflitando por isso com relações de classe). Já os folhetos do “tempo presente” que se projetam para o futuro na forma de profecias tratam da mudança sob um prisma mais geral. Agora, é toda a sociedade que passa por uma “transição”. Nessa transição, para usar palavras de Turner, torna-se possível examinar “os valores e os axiomas centrais da cultura” (Turner 1974). Esse exame, que fora feito nos folhetos do passado sob o ponto-de-vista camponês, agora é aplicado de uma maneira mais global, não mais em um sentido afirmativo (reiterar as regras “adequadas” de reprodução social), mas num sentido negativo (reitera que o mundo que aí está não é adequado para a vida).

Nos folhetos, o “tempo do reino” aparecia como uma espécie de “tipo ideal” (Moacir Pereira sugere que é nesse sentido que os camponeses evocam o “tempo antigo”), ante o qual o “tempo do sertão” apontava para uma sociedade de conflitos; contra esse quadro de referência, o “tempo de hoje” simplesmente “não presta mais”, ele aponta para um futuro. No caso dos folhetos sobre a vida rural no passado, procuramos mostrar como a linguagem camponesa do parentesco podia ser utilizada para exprimir o conflito. No caso do presente, trata-se de perceber como a linguagem também camponesa das conexões “místicas” (para usar a palavra ambígua, porque poderia ser entendida no sentido negativo de mera ausência de conhecimento real, e não no sentido aqui empregado, de presença de um conhecimento de outra espécie).

Talvez convenha comentar um pouco mais essa questão do “místico” como forma de expressar uma ordem naquilo que é vivido. A idéia que tenho em mente foi exposta com brilho por um antropólogo (Evans-Pritchard) mas o essencial pode ser exemplificado por uma história que me foi contada por uma senhora nordestina de origem rural. Ela viu-se atirada ao mar, próxima ao barco que a conduzia. Não sabia nadar e logo perdeu de vista a embarcação, passando-se três horas até que fosse reencontrada e a custo reconduzida para o barco. A questão é: como sobreviveu? A narradora forneceu duas explicações. Ela usava uma saia rodada, de pregas e muito pano. Ao cair na água esta saia inflou-se como um balão, permanecendo submersa, de tal maneira que a parte superior do vestido foi apenas molhada pelas ondas. Ao ver-se na água, essa senhora avisou aos tripulantes que não sabia nadar, e juntou os braços rente ao peito, com as mãos estendidas para cima e a cabeça voltada para o céu, pedindo ao padrinho Cícero que não a deixasse morrer “alagada”. Tranqüilizou-se em seguida ao ver-se circundada por botos que não a abandonaria mais, e naquela posição permaneceu durante três horas e até o escurecer (botos protegem mulheres grávidas, e ela estava com três meses de gravidez).

A história me foi contada para exemplificar a “força da fé”. A circunstância do vestido tornava plausível a ocorrência do milagre, em vez de desmenti-lo. Da mesma maneira, a notícia do jornal sobre a “chegada do homem à lua” deu credibilidade ao folheto de época que a interpretava “misticamente”. Vejamos as coisas do ponto-de-vista daquela senhora. Ela permaneceu quieta, permitindo que o corpo se equilibrasse com o vestido convertido em flutuador. Dessa forma, o comportamento conforme a uma fé foi para ela condição real para a salvação. Não do ponto de vista de um observador externo com os olhos da “ciência”, mas do ponto de vista da ação concreta da pessoa envolvida numa situação que exigia um comportamento dotado de sentido. A “fé” liga, para essa pessoa, uma visão da ordem do mundo a uma ação determinada. Estamos aqui pensando, com as palavras de Gramsci, na religião como unidade de fé entre uma concepção do mundo e uma norma de conduta correspondente.” (Gramsci 1975:1978).

Generalizando essa idéia, e voltando ao nosso assunto, é o caso de pensar que o reconhecimento de processos de mudança “reais” (atendendo reivindicações da pobreza) não é, para os camponeses, necessariamente incompatível com a apreensão dessa mudanças sob um ponto-de-vista que toma uma forma profética ou ritualizada.

Imaginem-se os folhetos ordenados numa seqüência do “passado” ao “futuro”. Imagine-se além disso que essa seqüência está dividida em duas colunas. Numa estarão as histórias inventadas e na outra estarão os fatos “acontecidos”. Os acontecidos estarão então encontrados no “tempo presente”. No passado próximo também aparecerão, já filtrados (por exemplo o cangaço, Padre Cícero). No passado antigo quase desaparecerão: assim, para o tempo do “reino” a figura semi-histórica, é a de Carlos Magno. (cf. Pereira de Queiroz, que fala de uma dinastia ouvida por ela de camponeses, ligando Carlos Magno a D. Pedro II). Note-se agora que nessa série de figuras que a memória herda dos “acontecidos” do passado, a única de caráter “moderno” é Getúlio Vargas. A pergunta é: que “sentido” faz ele nessa história? Como indicamos numa rápida citação, a figura permanece ligada na memória à idéia de que o tempo do “carrancismo” dos coronéis sertanejo está limitado, pelo advento de uma esfera de poder mais forte, em escala nacional. O trabalhador reconhece a si próprio como detentor de direitos (Sigaud 1979), associando a eles não apenas a figura de Getúlio, mas também de Miguel “Arraia”. Dessa maneira, o folheto pode, (ou poderia, já que o único exemplar em que me baseio, encontrado quase por acaso na calçada de um velho folheteiro, apenas indica uma possibilidade) absorver questões nacionais, relacionando-as à crítica ao presente que ele constrói com meios “místicos”. Note-se que a alusão a Getúlio não significa que o presente seja pensado como justo: a figura de Getúlio evoca aqui os “direitos” em princípio, mas não de fato. O presente ainda é de carência, a pobreza sofre na mão dos tubarões e sob o facão da carestia. A profecia permanece assim eficaz e sua ambigüidade, poderosa.

Terminamos essas reflexões evocando o ponto de partida desse trabalho, ou seja, a situação dos entrevistados e envolvidos na criação, distribuição e leitura de folhetos como parte de um campesinato. Se repetimos agora os processos que apareciam ali através da experiência “vivida” e evocada nas entrevistas, podemos ver como os folhetos formulam um tratamento de traços básicos dessa experiência, com os materiais da fábula, da lenda, da tradição, do boato, da profecia, do jornal. Um aspecto da reflexão assim construída são os ciclos que permeiam a vida do camponês-assalariado. Ciclo anual no qual o trabalhador atravessa fronteiras de espaço e também de diferentes relações sociais: vai do sítio para o trabalho “alugado”, do agreste para a mata. O outro aspecto é o ciclo longo através do qual esse camponês transita por um percurso de carência crescente, de saída do campo, travessia essa sem retorno, mas pensada com categorias anteriores.

O fato de que esses ciclos seja conceitualizados sob um ponto-de-vista camponês (com sua lógica de parentesco e com a lógica das conexões “místicas”), a despeito do fato de que o poeta sinta-se incorporado como cidadão a um saber de outra ordem, atesta a importância do “sentido” do povo em seu trabalho intelectual. O peso dessa junção entre intelectual e público, por fim, deve ser buscado na forma pela qual todo o sistema dos folhetos se encontra imerso no campo.

e) Sexo, catástrofes e revolta no tempo e no espaço

(não tem?????)

O ensaio que dá título a esse livro começou com uma tese da qual ele é uma versão condensada. Por quê razão publicar em 1987 um ensaio de 1979, baseado em pesquisa de 1974? A resposta é que, apesar da enorme literatura sobre a poesia popular nordestina, nem as questões que perguntei nem as respostas que achei foram postas por outros.

A questão básica é: há alguma unidade na multiplicidade de histórias, temas e formas que constituem literatura de cordel nordestina? A segunda questão é: qual o motivo dessa unidade?

A resposta à primeira questão é que a unidade na multiplicidade de “enunciados” que compõem a literatura de cordel aparece quando as várias categorias narrativas são vista como transformações de um ritual. As narrativas de cordel, vistas em conjunto, pensam ritualmente a sociedade e a natureza - essa reflexão aparece somente quando se consideram como uma totalidade. O universo dos folhetos deixa assim de ser heteróclito, congérico, bric-à-brac. Ele constrói, por bricolagem, uma visão do mundo - basta ligar as partes.

O que é um ritual? A essência do rito é a representação de uma mudança: crianças viram adultos, solteiros viram casados, vivos viram mortos. Essa representação é feita em atos e símbolos, carregada de emoção; ela se projeto no espaço e no tempo. Nos processos usados como exemplo, as mudanças são mudanças de estatuto social. Uma pessoa torna-se outra pessoa - um indivíduo muda de lugar e de personalidade social. O ritual o torna público; o simboliza; marca-o emocionalmente; pensa-o, fora das contingências do momento, como repetição, re-apresentação, algo que sempre foi e será sempre.

Dizer portanto que a unidade dos folhetos está na sua forma de rito é afirmar que, vistos como um conjunto, eles representam passagens, mudança social. O romance moderno, em agudo contraste, é outra coisa. Primeiro, é individual - rejeita a fórmula. O folheto, ao contrários, cabe em máquinas - a exemplo do conto policial, da ficção científica, da aventura em quadrinhos, do mito, o folheto é língua.

Mas, principalmente, o romance modero trata, diz Lúkacs, de um herói livre - de um jogo sem cartas marcadas: é não-ritual por excelência. Já o folheto, mostra destinos presos. É hora de exemplificar.

Vê-se, comparando folhetos de cordel de um gênero - e o de “amor e mistério” - que os vários exemplares de história são variantes de um modelo único, estudado exaustivamente por Vladimir Propp[9]. Esse modelo formal é o seguinte: há um estado inicial que é uma situação social. Há um pobre camponês que habita com a família; num reino. Pobres e ricos; fracos e poderosos; casados e solteiros...

Há uma carência - um problema. O jovem não tem recursos; não tem mulher. O reino é ameaçado por um dragão, ou por um maldição. Ou alguém - o rei, o jovem - transgrediu uma regra-tabu; ofendeu alguém. A ordem social, dada uma pequena flutuação, lança-se na instabilidade (a bruxa que não foi convidada para a festa).

A partir daí, o herói se movimenta. Ele se desloca - sai de sua família do reino - vaga pelo mundo, sem parentes, sem nada. Ele se destituiu de uma posição anterior. Sua missão, da qual é inconsciente, é restabelecer o equilíbrio da ordem social. Ele passa por provas - e recebe um dom. Marcado por um traço sagrado, ele volta a se agregar a uma sociedade.

Luta contra um opositor; derrota-o e elimina a ameaça que pairava. O herói ganha uma moça, filha do rei.

O herói é integrado noutro reino; noutra família (pois casou-se com a filha de outro homem); e tornou-se rico e poderoso (pois a filha é do rei).

Rever parágrafo:

Assim, a transição entre o status inicial (jovem solteiro, sem propriedade) para o estatus final (adulto casado, com propriedade); e marcada pelo abandono da casa paterna e agregação da casa do pai da esposa (uxorilocalidade + hipergamia), é marcada por um “dom”. O sagrado permeia essa transição. (cf. “História de Juvenal e o Dragão”) uma moça é o objeto que o herói recebe em ??? dom. Sobre o “dom” que distingue a pobreza, e que falta aos ricos, ver o capítulo do ensaio principal correspondente.

Mas outras histórias mostram heróis que atacam, eles mesmos, a propriedade de seus futuros sogros. Onde a moça é ativa contra os interesses do pai. Onde o herói não adquire dom mágico, e sim comprova atributos de valente. (cf. “História Zezinho e Mariquinha”).

Vemos esse tipo de história como transformação do primeiro tipo. Essa transformação deixa algo invariante: a representação da mudança de posição social, do casamento fora da casa paterna, acompanhado de mudança de pobre para rico - em virtude de um atributo pessoal. O sagrado abandona essas histórias; a “ordem” é vista como ilegitimidade; as moças se tornam incontroláveis pelos pais.

Já outras histórias mostram não valentes, mas “sabidos”.

Há histórias de sofrimento - onde rainhas, já casadas, são postas sob suspeita após um afastamento do marido. (cf. “História da Princesa Rosa”). Esse o dano inicial. A reparação é a morte - que toma a forma de exílio na mata, nos rochedos; de nudez. Nesse espaço intermediário, a virtude da heroína lhe permite (via um dom vindo dessa vez da Virgem Maria) sobreviver longos anos. O dano é reparado, com a reintegração da heroína à família inicial - fim do ciclo riqueza/pobreza/riqueza.

Essas histórias fazem parte do mesmo universo que as anteriores. Nas primeiras, um pai corre o risco de perder o controle da filha - e se alia a um forasteiro que será seu genro. Na segunda, um marido corre o risco de perder seu controle da mulher - e destrói um familiar que seria seu sucedâneo.

Os folhetos “de época” falam também de castigos a transgressão de datas santas, de desrespeito a pai e mãe; de mulheres, velhas e moças abusivas em seu comportamento sexual.

O problema é que esses folhetos não têm “narrativa” muitas vezes. (A estrutura própria ? é aqui esgarçada ao extremo - e se anula, por assim dizer, num ponto). É possível ver neles o seguinte modelo simplificado - a transgressão a regras do ritual e do parentesco gera degradação social: um único fato e sua conseqüência. Alguém que não se comporta adequadamente perde o caráter humano, ou cai na miséria[10]. Nessa transformação que anula a narrativa, continua invariante a idéia de que a ordem social, antes instável, é agora transformada por transgressões no código sexual em particular.

Ao ampliar assim o universo das transformações admissíveis - estamos “invertendo” e “reduzindo” a narrativa - surge como invariante “desordem”, a mulher como signo metonímico da ordem e do poder.

Mas há ainda folhetos de carestia; e os de profecia... Aqui, é preciso voltar nossos passos e reconsiderar as transformações prévias. Um herói que recebia um dom mágico (um rei que possuía uma filha obediente); um herói que provava ser valente/sabido (um patrão que era abusivo e prepotente e possuía uma filha desobediente); um herói jocoso e insultuoso (um patrão abusivo e opressor); uma anti-heroína sexualmente abusiva... Cada história tem uma dimensão “ritual”, desdobrada no tempo e espaço. Mas, vistas em conjunto, essas histórias também têm uma dimensão temporal e espacial: começam num passado equilibrado (“tempo do reino”, e num lugar utópico - “Europa”), onde mulheres são fiéis aos pais/maridos; passam por um passado recente instável onde filhas são rebeldes com os pais (“tempo do ....?/sertão, engenho”); chegam ao presente caótico onde filhas/mulheres são adúlteras. Nesse conjunto, o presente é marcado com instabilidade e carência. Espacialmente, as histórias do tempo antigo se passam na “Europa”; as do tempo recente, no “sertão”; as do tempo presente, na “cidade”. Esses macro tempos estruturam-se assim como: situação inicial, dano, ....?

Lembremos a forma de um rito: simbolizava uma mudança social. Ao tratar como um todo os folhetos, o presente aparece como marcado por uma crise metonimicamente indicada pelo abuso sexual feminino - pelo descontrole do bataclan moderno, pelas “mocinhas fogosas”, “mulheres galheiras”, “viúvas quentes” [Resumido: no presente, carestia crescente, crise natural (seca), anemia ?? social (mulheres sem controle) indicam um ponto de dano numa história que no passado, permitia um ciclo camponês de reprodução). Seria de esperar um momento de reparação posterior - é, exatamente, o que dizem os folhetos de profecia. Eles profetizam a inversão da ordem cósmica e social, e a ocorrer no futuro, via mediação do sagrado.

Se o passado era uma posição de equilíbrio, o presente - na cidade, lugar de passagem - é uma flutuação no equilíbrio, onde somos “testados” - e o futuro é um novo equilíbrio. Voltamos, assim, ao modelo ritual.

Segunda questão: qual a razão dessa unidade?

A resposta: ideologia camponesa. À luz dela fazem sentido as transformações acima. O ciclo de desenvolvimento doméstico “deveria” levar à reprodução - um filho sai da casa paterna e torna-se um marido.

Mas não há terra para essa reprodução; a mera obtenção de comida é problemática;

é inviável o projeto camponês. Todos os folhetos refletem, de uma maneira ou outra, sobre isso. E, visto em conjunto, refletem “historicamente” sobre a situação. No presente, ou seja, no plano real, a ordem ideal (do passado) é inoperante. Parentesco e natureza estão em crise: desastre cósmico é igual a abuso sexual. Isso diz: não “funciona” o mecanismo de reprodução social que o rito de casamento descreve. No futuro, a ordem presente será transformada - “a roda grande passa dentro da roda menor”, rios correm para cima, mente quem nunca mentiu e rouba quem nunca roubou. A mudança torna-se catástrofe. Na ideologia camponesa, a inviabilidade do modo presente aponta para uma rebelião no futuro: de novo pobres superarão os ricos, não agora pelo “casamento”, mas pela disposição da ordem cósmica.

Terceira questão: qual a causa dessa representação?

Uma pobre “indústria cultural” operada por ex-camponeses, operando no circuito de feiras nordestinas, no espaço livre dos domingos e dias de compra, de riso, de reuniões noturnas nos sítios. Um mercado de semicamponeses (cf. capítulo do ensaio), lutando por se verem como tais.

Esse quadro permite explicar, para camponeses, a carestia, Getúlio Vargas, secas e cangaceiros, incêndios, a chegada do homem à Lua, cangaceiros ? - e integra numa unidade as fontes tradicionais de contos populares medievais, tradições da pecuária, histórias do sertão, emergência de engenhos, o fait divers urbano, Padim Cícero e o apocalipse; o modelo de vida no sítio, de saída da unidade doméstica para obter trabalho fora, de casamento, de filiação (rever ordem das frases). Mecanismo de seleção e recombinação operado por intelectuais de origem camponesa, cuja saída individual do círculo rural foi reafirmar, para animar os outros, a ideologia camponesa.

Resumindo então todo o raciocínio:

Os folhetos fazem parte de um único sistema significativo. A articulação entre os folhetos como um todo não é apreendida conscientemente e sim ao nível dos gêneros. Esses gêneros são marcados por traços distintivos relativos à:

- tempo (antigo/sertão/mata de hoje/futuro)

- espaço (Europa Reino/sertão/cidade/ ___)

- mulheres (filhas, esposas controladas/filhas descontroladas/ filhas, esposas abusivas/ ____)

- relações de classe (legítimas/ilegítimas/___/invertidas)

- ................ (casamento/rapto/orgia/____)

- natureza (ordem/anomalias: secas/catástrofe)

- sociedade (hipergamia/miséria/inversão social)

- gêneros (mistério, sofrimento/valentia/exemplos carestia/profecia)

Como interpretar essas relações? A resposta é: como expressão de uma visão camponesa da sociedade e da história. No capítulo sobre a indústria cultural dos folhetos vimos como esses são produzidos por poetas, para um público. Vimos, no capítulo sobre os poetas, que estes se vêem forçados por um gosto do “povo” - se vêem como instrumentos de um gosto público, que vimos que é tomado de semicamponeses; e vimos que esses camponeses são ao mesmo tempo reproduzidos e destruídos. No plano ideal, esses camponeses desejariam reproduzir-se como grupos domésticos - com acesso à terra por herança. Os folhetos mostram como êsse poderia ser feito por casamento com a filha de um proprietário - no passado. No presente, o folheto fala da carestia e da vida urbana como algo negativo. E no futuro, da inversão da relação entre pobre e rico. A implicação é que essa inversão constituiria no livre acesso à terra; via apocalipse.

Como vimos no capítulo dos poetas, dizer que os folhetos refletem essa visão camponesa da sociedade não quer dizer que os poetas a compartilhem. Pelo contrário, muitos poetas têm uma visão progressista do mundo.

Mas tudo indica que, por volta dos anos 50-70, certo público rural queria se enxergar como camponês: vendo o passado como história e ritos de passagem rurais, o presente como carência urbana, e o futuro como apocalipse; imagem mal acabada, lacunar, mas demasiadamente sugestiva.

Textos

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Folhetos Citados

A boa vida do rico e a triste vida do pobre. José Costa Leite.

A entrada triunfante de Getúlio Vargas em Recife. José Bernardo da Silva (Juazeiro do Norte, s.d.).

A Vaca Misteriosa que falou profetizando. José Costa Leite.

A voz de Frei Damião. José da Costa Leite.

História da Mariquinha e José de Souza Leão. João Ferreira Lima. Juazeiro do Norte, Tipografia São Francisco, s.d.

História da Princesa da Pedra Fina. João Martins de Athayde. Juazeiro do Norte, Tipografia São Francisco, 1973.

História de Juvenal e o Dragão. João Martins de Athayde. (+ Leandro Gomes de Barros, autor da versão inicial, e Delarme Monteiro). Juazeiro do Norte, Tipografia São Francisco, 1974.

História do Boi Misterioso. Leandro Gomes de Barros. Juazeiro do Norte, Literatura de Cordel – José Bernardo da Silva.

História do Cavalo do Ateu. José da Costa Leite. (Condado, A Voz da Poesia Nordestina, s.d.).

O fim do mundo presente. José da Costa Leite. Condado, A Voz da Poesia Nordestina, s.d.

O rapaz que virou bode porque profanou Frei Damião. José da Costa Leite.

Os Martírios de Genoveva. Leandro Gomes de Barros. Juazeiro do Norte, Tipografia São Francisco, 1974.

Os sinais do fim do mundo e as 3 pedras de carvão. José da Costa Leite.

Suspiros de um sertanejo. João Martins de Athayde. Juazeiro do Norte, Literatura de Cordel – José Bernardo da Silva, 1975.

Tudo Agora Levantou. José da Costa Leite.

Viagem a São Saruê. Manoel Camilo dos Santos. Campina Grande, A Estrella da Poesia, s.d.

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[1] Revista de Ciências Sociais, volume 8, número 1-2. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, 1982.

[2] Arte em Revista. Ano 2, Número 3. São Paulo, Kairós. 1980.

[3] Folhetos - A Literatura de Cordel no Nordeste Brasileiro. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, 2 volumes (360 p.)

[4] Terra, R.B.L. e Almeida, M.W. 1975. "A análise morfológica da literatura popular em verso: uma hipótese de trabalho" . Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 16. 1975.

[5] Os livros e artigos dos autores mencionados são listados no final do volume, para evitar o excesso de notas de rodapé.

[6] Escrito em 1987. Inédito.

[7]Por exemplo, Neuma Aguiar, Francisco de Sá Jr., Francisco de Oliveira, (completar?)

[8]Sobre tudo, isso ver o livro de Antônio Augusto de Arantes Neto.

[9]Terra, R.B.L. e Almeida, M. “A análise morfológica da literatura popular em verso: uma hipótese de trabalho”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, no 16, São Paulo, 1975.

[10]cf. Neuma Aguiar sobre esses folhetos, numa análise estrutural inspirada em Lévi-Strauss.

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