Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo



Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

13ª Câmara de Direito Público

Apelação Cível 557.074-5/2-00 – São Paulo

Apelantes: Fazenda do Estado de São Paulo e Ministério Público do Estado de São Paulo

Apelados: Miguel Calderaro Giacomini, Benoni Paro Antunes Rodrigues, Antonio Miguel Silveira Bueno e Amauri Rodrigues

Egrégio Tribunal,

Colenda Câmara:

1. O Ministério Público aforou, na Comarca de São Paulo (Processo 1236/99, 2ª Vara da Fazenda Pública), ação civil pública contra Miguel Calderaro Giacomini, Benoni Paro Antunes Rodrigues, Antonio Miguel Silveira Bueno e Amauri Rodrigues, servidores públicos estaduais que ocupavam cargos de chefia em órgão público, acusando improbidade administrativa consistente em enriquecimento ilícito no exercício de função pública pela aquisição de bens de qualquer natureza cujos valores eram desproporcionais à evolução de sua renda ou de seu patrimônio (art. 9°, VII, Lei n. 8.429/92), postulando, em conseqüência, as sanções correspondentes (art. 12, I, Lei n. 8.429/92), a partir de dados e elementos coligidos em inquérito civil (fls. 08/2019) incluindo informações bancárias, financeiras e fiscais captadas mediante ordem judicial e parecer técnico (fls. 02/07).

2. Ordenada e efetivada a citação (fls. 2020, 2024/2025, 2038/2043, 2065/2070), foi intimada a Fazenda do Estado (fl. 2391).

3. Benoni Paro contestou alegando preliminares de prescrição, restrição à defesa e inépcia em razão do caráter genérico da petição inicial, inépcia também pela impossibilidade de cumulação de pedidos e de ritos, inconstitucionalidade das sanções de perda da função pública e suspensão dos direitos políticos por invasão de matéria administrativa, e, no mérito, pretende a improcedência sustentando exercício de suas funções em curto período em 1995, sendo inadmissível abranger a investigação o período de 1992 a 1997, inexistência de conluio, aquisição de rendimentos de outras fontes e de auxílios familiares (fls. 2076/2093).

4. Antonio Miguel Silveira Bueno secunda as mesmas preliminares e exceções de mérito, observando o exercício da função de 1994 a 1995, (fls. 2123/2139).

5. Miguel Calderaro Giacomini contestou alegando prescrição, dado que o exercício da função foi de 1991 a 1995, repete as preliminares argüidas pelos litisconsortes e argumenta a irretroatividade da Lei n. 8.429/92 na medida em que a investigação alcançou o ano de 1991. No mérito, alega que além de seus vencimentos de servidor público percebia rendimentos de empresa da qual é sócio, cujo montante é superior ao apurado, e tinha aplicações financeiras antigas, observando que a quebra de sigilo abrangeu contas conjuntas, nega conluio e infirma a retroatividade da Lei n. 8.429/92 (fls. 2173/2195).

6. Amauri Rodrigues argüiu carência da ação e inépcia da inicial, e, no mérito, infirma a imputação alegando rendas provenientes de familiares (fls. 2328/2334).

7. A Promotoria de Justiça ofereceu réplica (fls. 2356/2360, 2395). Em atenção ao despacho que concitou as partes à especificação motivada de provas (fls. 2361), o autor pediu julgamento antecipado da lide (fl. 2361v.) e juntou parecer técnico complementar (fls. 2363/2368). Amauri Rodrigues manifestou interesse em prova testemunhal, documental e pericial (fl. 2373) e Miguel Calderaro Giacomini em prova documental (fl. 2381), requerendo, também, desconsideração da prova acrescida pelo autor (fls. 2384/2386).

8. A decisão saneadora rejeitou as preliminares e a argüição de prescrição, deferindo prova pericial e documental e indeferindo prova testemunhal (fls. 2397/2400). A Fazenda do Estado aderiu ao pólo ativo da demanda (fl. 2402), indicou assistente técnico e formulou quesitos (fl. 2404). Miguel Calderaro Giacomini ofereceu quesitos (fls. 2406/2407) e indicou assistente técnico (fl. 2485). O agravo por ele interposto contra o saneador não foi provido pela colenda 4ª Câmara de Direito Público deste egrégio Tribunal (AI 235.024-5/7-00, São Paulo, Rel. Des. Coutinho de Arruda, v.u., 29-11-2001 – fls. 88/91, Apenso B).

9. Consultadas as partes sobre a honorária pericial (fls. 2488/2491), Amauri Rodrigues desistiu da prova pericial em razão de não ter condições para seu custeio (fls. 2494/2495), requerendo Miguel Calderaro Giacomini a preclusão da prova pericial (fls. 2497/2501). Fixada a honorária (fl. 2504), foi reiterada sua manifestação (fls. 2510/2514).

10. A decisão afastou a preclusão salientando tratar-se de prova determinada pelo juízo diante de sua necessidade e caber aos réus seu custeio porque apresentaram justificativas contrárias à tese da inicial (fl. 2515). A colenda 4ª Câmara de Direito Público deste egrégio Tribunal deu provimento a agravo de Miguel Calderaro Giacomini, postergando o pagamento da honorária para o final do processo pelo vencido (AI 263.390-5/6-00, São Paulo, Rel. Des. Coutinho de Arruda, v.u., 08-08-2002 – fls. 76/80, Apenso C).

11. O perito recusou-se ao recebimento de seus salários ao final do processo (fl. 2553), sendo nomeado outro expert (fl. 2567) que também manifestou impossibilidade (fls. 2569, 2592). O Ministério Público requereu a dispensa da perícia e, subsidiariamente, a nomeação de profissional da Universidade de São Paulo ou do Contador do Juízo (fls. 2573/2575).

12. O douto Juiz de Direito dispensou a perícia considerando a impossibilidade de sua realização da prova e o desinteresse das partes e encerrou a instrução (fl. 2593), apresentando as partes suas alegações finais (fls. 2595/2606, 2608/2614, 2621/2627).

13. A respeitável sentença que julgou a ação improcedente (fls. 2631/2639) está censurada por apelações da Fazenda do Estado (fls. 2642/2651) e do Ministério Público (fls. 2655/2667), recebidas (fls. 2653, 2668) e contrariadas por Miguel Calderaro Giacomini (fls. 2674/2688), decorrendo in albis o prazo dos demais (fl. 2690).

14. As preliminares alçadas e a argüição de prescrição foram rejeitadas no julgamento de agravo de instrumento, não havendo motivo para bisá-las, bastando ponderar que as sanções da Lei n. 8.429/92 decorrem de expressa previsão constitucional (art. 37, § 4°, Constituição Federal) cuja aplicação é da competência exclusiva do Poder Judiciário (STF, RMS 24.699-9-DF, 1ª Turma, Rel. Min. Eros Grau, 30-11-2004, v.u., DJ 01-07-1995; STJ, MS 7.330-DF, 3ª Seção, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, 09-11-2005, v.u., DJ 06-03-2006, p. 149) e a prescrição não ocorreu pela interrupção promovida pela ordenação da citação dentro do qüinqüênio legal.

15. A sentença julgou improcedente a ação porque considerou que era ônus do autor provar, sob o contraditório, os fatos alegados, não servindo a tanto o inquérito civil, além do que o autor requereu o julgamento antecipado da lide.

16. Não parece correta a exegese dada em torno do arts. 130, 131, 330, I e II, 333, I e II, do Código de Processo Civil e do art. 9°, VII, da Lei n. 8.429/92.

17. Sem prejuízo de impressões sobre o tumultuado andamento do processo, notadamente por causa da necessidade ou não da prova pericial e da responsabilidade por seu custeio (matéria esta que teve solução nesta instância ao ensejo de agravo), a petição inicial imputa aos réus recorridos enriquecimento ilícito previsto no art. 9°, VII, da Lei n. 8.429/92.

18. Para tanto, o autor alicerçou responsavelmente o ônus da acusação após desenvolver inquérito civil em que amealhou informações patrimoniais e salariais e dados e documentos fiscais, financeiros e bancários (estes obtidos mediante competente autorização judicial), submetidos a parecer técnico-contábil de órgão de sua assessoria. Essa prova revelou que todos os réus movimentaram recursos superiores aos seus vencimentos declarados (fls. 770/782, 783/791, 792/812, 813/847), constando, ainda, a aquisição de imóveis por Amauri Fernandes (fl. 795) e Miguel Calderaro Giacomini (fls. 815/817), merecendo destacar quanto a este que, como aos demais, essa prova técnica sopesou as declarações prestadas para fins do imposto de renda e suas outras fontes declaradas de renda (fl. 816), sendo ratificadas suas conclusões (fls. 2364/2369).

19. Os réus fizeram acompanhar suas contestações e demais manifestações nos autos documentos para comprovação da origem lícita dos rendimentos adquiridos em descompasso.

20. Por essa razão, decisão salientou que a perícia era prova determinada pelo juízo diante de sua necessidade porque apresentaram justificativas contrárias à tese da inicial (fl. 2515), causando espécie, posteriormente, outra decisão posterior dispensá-la (fl. 2593), ainda que houvesse, em maior ou menor medida, concordância das partes. A dispensa, como se viu, se deu mais pela recusa dos peritos à elaboração da perícia sem antecipação da respectiva honorária.

21. Ora, afigura-se acertada a proposta da recorrente Fazenda do Estado, contida em sua apelação (fls. 2647/2651), à luz do art. 130 do Código de Processo Civil, de conversão do julgamento em diligência para colheita da prova pericial, porquanto ela foi considerada como diligência do juízo (fl. 2515).

22. Se assim não se entender, o caso inculca a anulação do decisum para o mesmo fim diante do cerceamento de prova. Com efeito, não é dado ao Magistrado julgar improcedente a ação sob o fundamento de fragilidade probatória se outrora havia reconhecido a necessidade de sua produção ou indeferido sua oportunidade, sob pena de ofensa aos arts. 130, 131, e 330, II, do Código de Processo Civil. Competia ao julgador determinar a instrução contraditória seja porque considerada outrora (sem impugnação, gerando preclusão, portanto) diligência ex officio seja porque, a posteriori, na sentença estimou inválida a prova apresentada pelo autor. Essa premissa é corroborada pelo art. 427 do Código de Processo Civil, cuja interpretação a contrario sensu revela que se o juiz considera insuficientes os pareceres técnicos trazidos pelas partes é obrigatória realização de perícia.

23. Este egrégio Tribunal, em acórdão da colenda 2ª Câmara de Direito Público, relatado pela eminente Des. Vera Angrisani, anulou sentença de improcedência entendendo incabível julgamento antecipado da lide se o julgador, mesmo diante da revelia do réu, expressa insuficiência probatória, porque o julgamento antecipado pressupõe a desnecessidade de produção probatória e é dever do juiz determinar sua realização se a entende necessária (AC 435.012-5/0-00, Quatá, v.u., 05-12-2006).

24. No caso, à míngua de profissional que se dispusesse à empreitada pericial, com pagamento de sua honorária ao final do processo, justificava atender ao pedido subsidiário do Parquet (fls. 2573/2575), designando para o encargo, gratuito, os órgãos referidos no art. 115, XXIX, da Constituição do Estado, mantendo coerência com decisão anterior (fl. 2515).

25. Não obstante, anima o debate o enquadramento da valia probante do inquérito civil. Abordando a reputada imprestabilidade da prova coligida no inquérito civil, o Superior Tribunal de Justiça perfilha entendimento absolutamente oposto, reputando que essa prova deve ser valorada pelo julgador, e somente pode ser alijada se produzida outra, na instrução contraditória, com igual ou superior valor:

“A ação civil de que ora se cuida – reparação de danos por ato de improbidade – foi julgada improcedente em primeiro grau, ao entendimento de que o inquérito civil que a instruiu é inválido por não ter sido produzido sob os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Assim, concluiu-se que, sendo o inquérito inválido e não havendo outras provas, a ação era improcedente.

Já o Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu que o inquérito civil, regido pelo princípio inquisitivo, não tem que compreender o contraditório, e, como ato de investigação, não exige defesa. Todavia, exatamente por ter natureza inquisitiva, sustentou-se, no acórdão recorrido, que o inquérito não se presta como prova dos fatos que sustentam a ação proposta, in verbis: 

‘Sobre a questão, friso mais uma vez que, em que pese entender que o inquérito civil não é imprestável por não respeitar o princípio do contraditório, contrariamente ao posicionamento adotado pelo MM Juiz a quo, ressalto todavia que aquele procedimento, por ser inquisitivo, não se presta para ser utilizado como prova única nos autos suficientes à instauração do procedimento judicial’ (fl. 896).

Observo que, em razão de tais entendimentos (sentença e acórdão),  a prova constante dos autos, consubstanciada nos documentos que instruem o inquérito civil, não foi valorada, uma vez que nem sequer foi apreciada.  Ocorre que os elementos constantes dos autos, observadas suas peculiaridades, indicam o equívoco de tal posicionamento e a necessidade de que essa prova seja devidamente apreciada, levando-me à conclusão de que o presente recurso merece ser provido.

Cabe destacar, primeiramente, que o inquérito civil é procedimento informativo e destina-se à formação da opinio actio do Ministério Público. Assim, ao buscar fundamentos para a propositura da ação civil, o Ministério Público coleciona uma série de documentos que demonstram, no mínimo, fortes indícios de ocorrência do ilícito, justificando, assim, a necessidade e o interesse na propositura da ação de improbidade. E, indiscutivelmente, tais documentos devem instruir a inicial da ação.

Rogério Pacheco Alves, em sua obra intitulada ‘Improbidade Administrativa’, 2a edição, págs. 582⁄583, ao versar sobre a finalidade do inquérito civil, esclarece:

‘Tal aspecto, o de servir o inquérito como suporte probatório mínimo da ação civil pública, já havia sido notado por José Celso de Mello Filho quando, na qualidade de Assessor do Gabinete Civil da Presidência da República, assim se pronunciou no procedimento relativo ao projeto de que resultou a Lei n. 7.347⁄85:

'O projeto de lei, que dispõe sobre a ação civil pública, institui, de modo inovador, a figura do inquérito civil. Trata-se de procedimento meramente administrativo, de caráter pré-processual, que se realiza extrajudicialmente. O inquérito civil, de instauração facultativa, desempenha relevante função instrumental. Constitui meio destinado a coligir provas e quaisquer outros elementos de convicção, que possam fundamentar a atuação processual do Ministério Público. O inquérito civil, em suma, configura um procedimento preparatório, destinado a viabilizar o exercício responsável da ação civil pública. Com ele, frusta-se a possibilidade, sempre eventual, de instauração de lides temerárias. (grifos nossos).'’

Os arts. 283 e 396 do Código de Processo Civil estabelecem que a petição inicial seja instruída com documentos indispensáveis à propositura da ação. Assim, embora o inquérito não constitua pressuposto à propositura da ação de improbidade (art. 8o, §§ 1o e 2o, da Lei n. 7.347⁄85), quando realizado, é de se esperar que contenha documentação suficiente para instruir o feito judicial. Portanto, o inquérito é válido e eficaz para o Judiciário, não havendo necessidade, a priori, de que seja repetido em juízo, possibilidade que, em se tratando de documentos, como no caso, nem sequer se apresenta razoável.

Não obstante a desnecessidade de repetição das provas em juízo, certo que as  colhidas no inquérito têm valor relativo se confrontadas com outras produzidas sob o manto do devido processo legal e dos demais princípios informadores do processo.

Esta Turma já decidiu dessa forma em oportunidade pretérita, conforme dessume-se do seguinte precedente:

‘PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – INQUÉRITO CIVIL: VALOR PROBATÓRIO – REEXAME DE PROVA: SÚMULA 7⁄STJ

1. O inquérito civil público é procedimento facultativo que visa colher elementos probatórios e informações para o ajuizamento da ação civil pública.

2. As provas colhidas no inquérito têm valor probatório relativo, porque colhidas sem a observância do contraditório, mas só devem ser afastadas quando há contraprova de hierarquia superior, ou seja, produzida sob a vigilância do contraditório.

3. A prova colhida inquisitoriamente não se afasta por mera negativa, cabendo ao juiz, no seu livre convencimento, sopesá-las.

4. Avanço no questão probatória que esbarra na Súmula 7⁄STJ.

5. Recursos especiais improvidos’ (REsp n. 476.660-MG, relatora Ministra Eliana Calmon, DJ de 4.8.2003).

In casu, observa-se que o Ministério Público, amparando-se no que foi apurado no inquérito civil público (fundamento mediato), propôs a presente ação de reparação de danos. Na inicial, apontou como fato delituoso a apropriação pelos réus das verbas de subvenção liberadas pelo Estado de Minas Gerais, por meio de suas diversas secretarias, a entidades filantrópicas, todas dirigidas por pessoas ligadas diretamente ao deputado Amílcar Padovani. Descreveu diversos créditos repassados a tais entidades e seus respectivos débitos, bem como posteriores créditos nas contas bancárias dos réus beneficiados. E, com o fim de comprovar os fatos constitutivos do direito perseguido, instruiu a inicial com os documentos constantes desse inquérito, em atenção ao estabelecido nos arts. 283 e 396 e inciso I do art. 333, I, todos do Código de Processo Civil.

Por sua vez, o referido deputado, em sede de contestação,  reconheceu que realmente houve os  depósitos indicados; todavia, afirmou: ‘nada mais foram que compensações, restituições, devoluções ou pagamentos de empréstimos feitos pelo contestante diretamente aos seus funcionários’ (fl. 406). Também os réus Paulo Antônio Novais Ribeiro e Tereza Cristina Nascimento Rennó Ribeiro afirmaram: ‘Tais transferências, referidas pelo Ministério Público com muito ênfase, destinaram-se, contudo, a reembolsar o Dep. Padovani de adiantamentos por ele feitos, por poucos dias (as subvenções estavam prestes a serem liberadas), às instituições suso indicadas, ... ’(fl. 433).

Ora, uma vez reconhecida a existência dos depósitos e⁄ou transferências para a conta do deputado, cujo montante era oriundo das entidades filantrópicas, haveria de os réus comprovarem que tais transações advieram de quitações feitas ao Deputado Padovani por ‘seus funcionários’  (observo que se tais provas existem, não foram mencionadas nos julgamentos anteriores), uma vez que isso constitui fato impeditivo do direito do autor; porém, a parte ré não apresentou essa contraprova (juntou apenas exíguos documentos que não dizem respeito diretamente aos fatos controvertidos), de forma que nos autos constam, basicamente, os documentos juntados com a inicial.

Pois bem, nos termos do art. 333, I, do CPC, incumbe ao autor provar o fato constitutivo do direito perseguido, de forma que, a não-desincumbência adequada desse ônus pode acarretar à improcedência da ação. Contudo, nos termos do inciso II desse dispositivo legal (art. 333), compete ao réu provar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito contra ele posto. E essa inversão do onus probandi verificou-se na presente ação, uma vez que dois dos réus (justamente os que teriam sido os maiores beneficiados dos ilícitos indicados na inicial) apresentaram exceções materiais, ao tempo em que os outros réus deixaram de infirmar os fatos aduzidos e impugnar a documentação trazida.

Veja-se doutrina de Fábio Tabosa, in Código de Processo Civil Interpretado, 2004, pág. 1004:

‘Coisa diversa, entretanto, é cogitar a parte não propriamente de negar o fato porventura afirmado pela outra, mas de afirmar um segundo fato ou circunstância, contemporâneo ou posterior àquele, que ao invés de excluir o primeiro tome por pressuposto sua realidade, mas que de alguma forma sobre ele interfira, impedindo a produção de seus efeitos naturais, modificando-os ou mesmo extinguindo-os (não por outro motivo, fala o art. 333, II, em limitações relativamente ao direito alheio, partindo-se pois de sua potencial existência, e por conseguinte da do fato que lhe serviu de base); nesses casos, o ônus da demonstração do aspecto secundário será da parte que o tenha alegado.’

Assim, servindo o inquérito como prova dos fatos constitutivos do direito perseguido pelo autor; não tendo havido nenhuma contraprova; não tendo os réus comprovado os fatos que apontaram como impeditivos; não tendo infirmado objetivamente os fatos contra eles indicados; e ainda: considerando que o Ministério Público instruiu a ação com 12 (doze) volumes de documentos; considerando que fez a correlação deles com os fatos narrados; que, não obstante o inquérito civil prescinda do contraditório, não precisa ser repetido em juízo, mormente em se tratando de documentos, todos esses elementos indicam a necessidade de que a prova existente nos autos seja devidamente analisada e valorada, pois:    

‘Pertence às partes a iniciativa de enunciar os fatos e de produzir as provas de suas alegações. Ao juiz cabe atribuir-lhes o valor que merecem, daí decidindo sobre a procedência ou improcedência do pedido. Por mais complexa que seja a norma jurídica a ser aplicada ou por mais complexa que seja a situação de fato não pode o juiz declinar da jurisdição.

O juiz deve avaliar as provas e julgar a ação procedente ou improcedente, aplicando o direito ao caso concreto.’ (Vicente Grego Filho, pág. 212, item 438.)

Há mais um fator que corrobora o entendimento de que as provas produzidas nos autos devam ser avaliadas.  É que, uma vez produzidas, não importa por quem, incorporam-se ao processo.

Por fim, verifico que, no acórdão recorrido, sustentou-se que a desistência da prova pericial pelo Ministério Público fulminou a possibilidade de que fossem comprovados os fatos denunciados na peça vestibular.

Entretanto, o Ministério Público, embora tenha afirmado que pretendia produzir a prova pericial (fl. 576-v), não sustentou essa pretensão. E, não obstante, na peça vestibular e em todas as contestações constar o protesto pela realização daquela prova, ela somente foi requerida expressamente pelos réus Paulo Antônio Novais Ribeiro e Tereza Cristina Nascimento Rennó Ribeiro, mediante a petição de fls. 579, de forma que o Ministério Público nem sequer tinha a faculdade de desistir de tal prova, uma vez que não a requereu. 

Na verdade, os réus acima indicados não fizeram o depósito dos honorários periciais, e, em razão disso, conforme consta da decisão de fls. 709, a realização da prova pericial foi indeferida pelo Juiz.

Ademais, impende ressaltar que o destinatário da prova é o próprio Juiz, que poderia ter determinado, de ofício, a produção de  prova questionada (art. 130 e 342 do CPC), se julgasse necessária, como pareceu pelo exposto nos fundamentos da sentença, acompanhada pelo acórdão recorrido. E por isso, não me parece razoável que o julgador  sustente como um dos fundamentos de sua decisão de improcedência da ação a falta da prova cuja realização foi por ele indeferida.

Por esses fatos, conheço do recurso especial e dou-lhe provimento para anular o acórdão e determinar que seja proferido outro julgamento, a fim de que se aprecie o mérito da lide, analisando-se e valorando-se toda prova constante do processo, mormente a que consta dos volumes anexos” (STJ, REsp 644.994-MG, 2ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, 17-02-2005, v.u., DJ 21-03-2005 – g.n.). 

26. Assim sendo, não havia como se reputar inválida, insuficiente ou desvaliosa a prova obtida no inquérito civil, ainda mais considerando que os réus não quiseram prova pericial.

27. Não bastasse, à luz dos arts. 9°, VII, da Lei n. 8.429/92, e do art. 333, II, do Código de Processo Civil, a reforma da sentença se impõe para julgar procedente a ação e aplicar aos réus as sanções do art. 12, I, da Lei n. 8.429/92.

28. Não se trata de aplicação retroativa da Lei n. 8.429/92. O fato de os dados sigilosos captados no inquérito civil e os pareceres técnicos ali produzidos sopesarem período anterior à sua vigência ou antecedente ou superveniente à investidura dos réus não significa desvalia da prova nem aplicação retroativa da lei. Tratou-se, apenas, de promover ao cotejo amplo das riquezas e do patrimônio dos réus para verificar se a evolução era ou não compatível ou proporcional, o que permite segurança aos próprios réus e a inicial se refere ao período da investidura, não a outros.

29. Com efeito, os réus negaram a imputação, aduzindo, em resumo, que tinham outras fontes de rendimentos. Portanto, o ônus da prova lhes incumbia, segundo o art. 333, II, do Código de Processo Civil, pois articularam fato impeditivo do direito do autor.

30. Deve-se ter em mente, como exposto nas apelações, que para configuração do enriquecimento ilícito tratado no art. 9°, VII, da Lei n. 8.429/92, não se requer a prova da prática ou da abstenção de ato por agente público nem a ligação direta da vantagem indevida amealhada, bastando ao autor provar que o réu exerce função pública e a evolução de seu patrimônio ou de sua renda é desproporcional ou incompatível à vista de suas próprias declarações oficiais de sua movimentação financeira, de seu acervo, de sua massa de rendimentos; competindo ao réu a prova da origem lícita de recursos ou bens excedentes (Wallace Paiva Martins Junior. Probidade Administrativa, São Paulo: Saraiva, 3ª ed., 2006, pp. 235-241; Fábio Medina Osório. Improbidade Administrativa, Porto Alegre: Síntese, 1997, p. 124; Sérgio Monteiro Medeiros. Lei de Improbidade Administrativa, São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, pp. 59-62; Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves. Improbidade Administrativa, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 3ª ed., 2006, p. 347).

31. O art. 9º, VII, censura o comportamento daquele que amealha patrimônio incompatível com a evolução de seu patrimônio ou renda, considerando a ilicitude do enriquecimento porque, tendo o agente público fonte exclusiva de rendimentos os vencimentos de seu cargo, tudo aquilo que não vem dessa origem (ou de alguma outra origem lícita, como herança), é fruto de vantagem econômica indevida. A evolução desproporcional do patrimônio é caso residual de enriquecimento ilícito, pois se não há prova de que a vantagem econômica percebida é relacionada ou conexa à prática de ato ou a abstenção da execução de ato de ofício, afastando a incidência de outra modalidade de enriquecimento ilícito, mesmo assim se afigura inidôneo o enriquecimento do agente público, porque adquiriu bens ou valores desproporcionais e incompatíveis com a evolução de seu patrimônio ou renda. Sua razão repousa na idéia de uma presunção da ilegitimidade do enriquecimento, pois não deriva de justa causa, aproximando do ilícito o enriquecimento sem causa.

32. A lei presume a inidoneidade do agente público que adquire bens ou valores incompatíveis com a normalidade do seu padrão de vencimentos, bastando provar que o agente público exercia função pública e que os bens e valores (mobiliários ou imobiliários) adquiridos são incompatíveis ou desproporcionais à evolução de seu patrimônio ou sua renda. A lei também censura os sinais exteriores de riqueza e a aquisição de bens ou valores para outrem, e pune igualmente artifícios empregados para dissimular o enriquecimento ilícito, de modo que atinge a aquisição direta ou indireta (simulação, triangularização, utilização de esquema de lavagem de dinheiro, de testas-de-ferro, membros da família, etc.).

33. A inidoneidade financeira gera a ilicitude do enriquecimento. Quem não tinha disponibilidade econômica para ter um patrimônio desproporcional e incompatível com a evolução da renda ou patrimônio, não tem justificativa hígida para sua aquisição, advindo esses recursos de origem ilícita. A exigência da apresentação de bens e sua atualização anual (art. 13 da Lei n. 8.429/92 e Lei n. 8.730/93) proporciona o exercício de um controle permanente e automático do enriquecimento de agentes públicos, competindo à Administração Pública e ao Tribunal de Contas verificar a ilicitude do enriquecimento a partir das informações prestadas pelo agente público, de modo que, se cumprida a legislação, os resultados serão profícuos no campo da legitimidade do enriquecimento dos agentes públicos. A previsão legal não é novidade no direito brasileiro (Decreto-lei n. 359/68, arts. 6° a 8°; Decreto-lei n. 3.240/41, art. 6°). Percebendo que esta era uma das formas mais engenhosas e eficientes de enriquecimento ilícito, cuja prova é tormentosa e que contornava os requisitos caracterizadores da legislação precedente, esta modalidade foi contemplada desde o processo legislativo da Lei n. 8.429/92. Não obstante a eliminação da regra explícita da inversão do ônus da prova, o texto aprovado não aboliu esse instrumento, porque para o autor da ação, repita-se, basta prova de que o agente público exercia alguma função pública e adquiriu bens ou valores incompatíveis e desproporcionais com a evolução de seu patrimônio ou renda, constatação que é feita a partir das informações constantes das declarações de bens prestados por ele próprio, de informações patrimoniais ou de rendimentos em seu nome existentes em instituições bancárias, serviços notariais e de registros públicos, repartições públicas, etc., de modo que sempre caberá a ele provar a origem lícita dos recursos empregados na aquisição. Neste sentido, explicitamente, e provocando ipso facto a inversão do ônus da prova, dispõem o Decreto n. 978/93 (art. 5º) e a Lei n. 8.730/93 (arts. 2º, §§ 5º e 7º, e 4º, § 2º). É nessa exata medida que se dá a inversão do ônus da prova.

34. É cediço que o autor da ação não tem o dever de demonstrar específicos atos de corrupção que deram origem ao acréscimo patrimonial do agente público, porque a mens legis prevalece sobre a legislatoris e, diante da redação do art. 9º, inc. VII, estará obrigado a provar “apenas a desproporção entre patrimônio e renda do funcionário! É a partir desse ponto que se inverte o ônus da prova” (Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz e Antônio Herman Vasconcelos Benjamin. A inversão do ônus da prova na lei da improbidade administrativa, in Cadernos-Temas Institucionais, São Paulo: Associação Paulista do Ministério Público, 1995, p. 37 - 38), apontando-se a existência de uma presunção de enriquecimento ilícito (Marcelo Figueiredo. Probidade Administrativa, São Paulo: Malheiros, 1ª ed., p. 44; Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 28ª ed., 2003, p. 478), bastando a constatação de variação patrimonial incompatível com os vencimentos do agente público no exercício de sua função (Luiz Fabião Guasque. A responsabilidade da Lei de Enriquecimento Ilícito, in Revista dos Tribunais, nº 712/359). É uma presunção juris tantum, regra decorrente do dever funcional de probidade (Carlos Alberto Ortiz. Improbidade Administrativa, in Cadernos de Direito Constitucional e Eleitoral, nº 28/16, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo) ou “mera consideração legal de que se mostra suficiente, não presumível, a prova da ausência de origem para tornar ilícita a renda assim obtida”, bastando a desconformidade para viabilizar a incidência no art. 9º, VII (Juarez Freitas. O Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais, São Paulo: Malheiros, 1997, pp. 112-113).

35. Entendimento contrário não prevalece porque significaria uma reflexa repristinação dos requisitos exigidos pela legislação revogada na caracterização do enriquecimento ilícito (prática de ato de ofício). Se o enriquecimento ilícito decorreu de algum ato ou de abstenção, do agente público tratar-se-á de outra modalidade do art. 9º que não a do inciso VII, que é residual. Basta apenas a prova de que a variação patrimonial é incompatível com a disponibilidade financeira do agente público e que ele exerce ou exerceu, alguma função pública. A lei presume a inidoneidade daquele que percebe seus vencimentos e tem bens ou valores absolutamente incompatíveis e desproporcionais, considerando ilícito esse enriquecimento, porque foi conseguido no exercício de função pública.

36. Essa orientação encontra apoio na jurisprudência. Em ação civil pública julgada improcedente em primeira instância sob o fundamento de que cabe ao autor que o enriquecimento ilícito do agente público decorreu de determinado ato de improbidade praticado no exercício da função pública, a sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sustentando o acórdão que a simples leitura revela que o aludido preceito legal presume o enriquecimento ilícito quando houver a aquisição, pelo funcionário público (em sentido lato), de bens cujo valor seja desproporcional à evolução de seu patrimônio ou renda. Nesse caso, o ato de improbidade é legalmente presumido. A decisão registra que:

“basta a análise de todos os demais incisos do artigo 9º do referido diploma legal, cada um deles descrevendo a prática de um determinado ato reputado como de improbidade administrativa, para se perceber que o inciso VII excepcionalmente se satisfaz com a aquisição de bens cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou renda do agente público, pouco importando a inexistência de prova da prática de qualquer ato, senão do próprio ato de acumular fortuna sem justa causa. Trata-se, pois, de caso de responsabilidade objetiva, em que é suficiente, para a caracterização da presunção de enriquecimento ilícito, o exame dos chamados sinais de fato exteriores de riqueza – aquisição de bens e movimentação financeira – que conduzam à evidência da evolução desproporcional do patrimônio à renda do agente público, cabendo a este demonstrar a origem lícita de seu patrimônio desproporcional, com inversão do ônus da prova” (TJSP, AC 35.570-5/0, São José do Rio Preto, 9ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Gonzaga Franceschini, v.u., 17-05-2000).

37. Deste modo, tendo o agente público aumento expressivo de seu patrimônio, incompatível com os seus rendimentos, consoante o que ficou satisfatoriamente indicado nos autos sem qualquer demonstração séria de que os altos valores movimentados tiveram origem lícita, julgou procedente a ação, pois, salienta o acórdão:

“a regra do inciso VII do artigo 9º da Lei nº 8.429/92, traduz a responsabilidade objetiva e presume o enriquecimento ilícito – estando implícito o prejuízo ao patrimônio público – quando houver a aquisição de bens cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou renda do agente, independentemente de demonstração do nexo entre os atos de improbidade administrativa e o aumento do patrimônio, provocando a inversão do ônus probatório” (TJSP, AC 35.570-5/0, São José do Rio Preto, 9ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Gonzaga Franceschini, v.u., 17-05-2000).

38. A grande vantagem do art. 9º, VII, é que ele é norma residual para punição do enriquecimento ilícito no exercício de função pública. De fato, se não se prova a prática ou a abstenção de qualquer ato de ofício do agente público que enriqueceu ilicitamente, satisfaz o ideário de repressão à imoralidade administrativa provar que seu patrimônio tem origem inidônea, incompatível, desproporcional, sendo manifestamente insólito à normalidade da evolução de sua riqueza e absolutamente incongruente com a sua disponibilidade financeira, porque foi construído a partir das vantagens proporcionadas pelo exercício de sua função pública, ou seja, da condição de agente público.

39. Ora, cumprido o ônus da prova pelo autor e desatendido o dos réus – lembrando-se que eles são, como agentes públicos, portadores do dever legal de comprovação da legitimidade de seu enriquecimento -, resulta incontestável a ilicitude dos acréscimos de bens ou valores constante da acusação deduzida na petição inicial. Neste contexto, pouco importa que os réus tenham exercido concomitantemente funções no órgão público determinado por período pequeno, porque a análise levou em conta toda sua evolução funcional no período indicado na inicial. Este argumento rui a alegada inexistência de conluio, pois, o preceito legal não o exige. De outra parte, competia-lhes provar, de modo idôneo, aquisição de rendimentos de outras fontes e de auxílios familiares, não bastando meras alegações isoladas e desprovidas de prova documental e não sujeitas à perícia. Assim, por exemplo, as alegações de Miguel Calderaro Giacomini não têm fundamento: o parecer técnico considerou os rendimentos declarados para o imposto de renda e a movimentação financeira, destacando contas conjuntas, de todas as suas fontes. Por oportuno, frise-se que a lei abrange aquisição de dinheiro, pois, se refere a bens de qualquer natureza.

40. Opina-se pelo provimento parcial dos recursos para conversão do julgamento em diligência ou para anulação da sentença a fim de que se proceda à prova pericial (nomeando qualquer dos órgãos referidos no art. 115, XXIX, da Constituição do Estado), e, no mérito, pelo provimento dos apelos para procedência da ação, condenando os réus nas sanções do art. 12, I, da Lei n. 8.429/92.

É o parecer.

São Paulo, 27 de abril de 2007.

Wallace Paiva Martins Junior

Promotor de Justiça

Designado em Segundo Grau

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