EXMO .br



EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA VARA FEDERAL DE SANTO ÂNGELO – SEÇÃO JUDICIÁRIA DO RIO GRANDE DO SUL

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da República signatário, vem, perante V. Exa., com fulcro nos artigos 5º, XXXII, 127 e 129, III da Constituição Federal de 1988; artigo 6º, inciso VII, alínea "c" e “d” da Lei Complementar n.º 75/93; e artigo 1º da Lei n.º 7347/85, ajuizar a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA,

contra UNIMED IJUÍ – Sociedade Cooperativa de Serviços Médicos Ltda., inscrita no CNPJ sob o n.º 87.647.756/0001-05, com sede na Rua Siqueira Couto, nº 93, CEP 98700-000, em Ijuí/RS;

pelos fundamentos de fato e de direito a seguir expostos:

OBJETIVO DA AÇÃO:

A presente ação busca declarar a nulidade das cláusulas constantes do parágrafo 2º, do artigo 9º e nas alíneas “a” e “c” do artigo 18, ambos do Estatuto Social da requerida, bem como, do art. 6º, § 1º, do Regimento Interno da Entidade, com a conseqüente abstenção da prática, pela requerida, de excluir da Cooperativa todo cooperativado que não aderir à cláusula de fidelidade societária.

DOS FATOS

No dia 08.03.2005 foi instaurado procedimento administrativo, em razão de representação formulada pela Associação Hospital de Caridade Ijuí (fls. 02/15), onde se noticia que a UNIMED IJUÍ vem, há algum tempo, adotando a prática de pressionar os médicos cooperados para que não prestem qualquer atendimento através de outros planos de saúde. Para atingir tal objetivo, a requerida notificou todos os médicos cooperados para que, até o dia 15 de fevereiro de 2005, firmassem um termo de compromisso, aderindo à fidelidade societária, sob pena de serem excluídos da Cooperativa.

Diante deste fato, o Ministério Público Federal expediu o ofício PRDC nº 082/2005 à UNIMED IJUÍ (fl. 104) para que a mesma justificasse sua ação, ao pretender aplicar penalidades e adotar medidas discriminatórias aos cooperativados que não firmassem o termo de compromisso de opção pela fidelidade societária, previsto no parágrafo 2º do artigo 9º e nas alíneas “a” e “c” do artigo 18, todos do Estatuto Social da Cooperativa:

“ Art. 9º. Poderão associar-se à Cooperativa, salvo se houver impossibilidade técnica de prestação de serviços por parte desta, os médicos que, tendo a livre disposição de sua pessoa e bens concordem e preencham os requisitos do presente Estatuto Social e do Regimento Interno:

§ 2º – Não exerçam atividade que possa prejudicar ou colidir com os interesses e objetivos da Cooperativa;

Art. 18 - Além dos motivos de direito, o Conselho de Administração é obrigado a eliminar o associado que:

a – venha a exercer qualquer atividade considerada prejudicial à Cooperativa ou que colida com seus objetivos;

c – deixe de cumprir disposições estatutárias ou do Regimento Interno e as deliberações tomadas pela Cooperativa.” (grifos da Cooperativa)

Em resposta ao ofício expedido, a requerida informou que os procedimentos adotados pela Cooperativa, fundamentam-se na expressa disposição constante de seu regimento interno e estatuto, bem como em razão de decisões oriundas do Superior Tribunal de Justiça (fls. 105/106).

Em decorrência de tais fatos, o Parquet Federal expediu recomendação (fls. 212/214) a fim de que a UNIMED IJUÍ se abstivesse de aplicar qualquer penalidade e de adotar medidas discriminatórias ao cooperado que não firmasse o termo de compromisso de opção pela “fidelidade societária” e/ou ao cooperado associado a outro plano de saúde mantido por empresa, sociedade ou entidade diversa, solicitando que a Cooperativa médica se pronunciasse, em um prazo de cinco (05) dias, sobre medidas adotadas para atender aos termos da recomendação.

A Cooperativa se pronunciou sobre a recomendação efetuada, aduzindo ter atendido aos termos da mesma (fls. 261/262 e 264). No entanto, o Hospital de Caridade de Ijuí, bem como vários médicos daquela cidade, informaram ao MPF que a prática adotada pela UNIMED persistia, isto é, a entidade continuava a exercer forte pressão sobre os médicos cooperados, no sentido de proibir qualquer atendimento médico através de outros planos de saúde, sob pena de exclusão.

Os fatos supramencionados foram determinantes para que os médicos associados à UNIMED não prestassem atendimento através de outros planos de saúde. Dessa forma, verifica-se a necessidade do ajuizamento da presente ação, para ver restabelecida a legalidade no setor de atendimentos médicos em Ijuí, pólo médico regional.

A documentação trazida aos autos pela Associação Hospital de Caridade Ijuí (fls. 272/285) comprova a veracidade dos fatos, demonstrando-se a conduta da UNIMED, de coagir seus cooperados a não prestarem atendimento à outros planos de saúde, pedindo aos médicos o desligamento, como credenciados, do plano de saúde do HCI.

Ressalte-se que, mais contundente é a declaração prestada pelos médicos (fls. 284/285), onde informam estarem sendo pressionados, pela UNIMED, no sentido de que, caso atendam ao plano de saúde do HCI, poderão ser punidos, até mesmo com a exclusão do quadro da referida Cooperativa.

Outrossim, torna-se definitivamente exaurida a conduta ilegítima da requerida, com a prova consubstanciada na representação formulada pelos médicos que estão sendo prejudicados (fls. 288/427), demonstrando-se a GRAVIDADE da situação, pois se os mesmos atenderem à coação da UNIMED/Ijuí, tendo em vista esta não ter credenciado atendimento pelo SUS – que sem dúvida atende o maior número da população, aqueles sem condições de pagar um plano de saúde – sendo o HCI o único hospital a prestar este atendimento, não poderão mais prestar atendimento no HCI e, consequentemente, aos usuários do SUS, deixando, assim, a população regional completamente desamparada, violando-se, expressamente, o direito fundamental à saúde, constitucionalmente assegurado à pessoa humana.

A CARTA CIRCULAR 10/2005 (fls. 275/283), QUE IMPÕE AOS MÉDICOS O DESLIGAMENTO DO PLANO DE SAÚDE DO HCI, COMO CONDIÇÃO PARA PERMANECER COOPERADO DA UNIMED, COMPROVA A ATITUDE DA REQUERIDA – NÃO ATENDENDO AOS TERMOS DA RECOMENDAÇÃO EXPEDIDA PELO MPF – AO CONTRÁRIO DO QUE ADUZ À fl. 264, AO AFIRMAR QUE NÃO PRATICA AS AÇÕES QUE LHE SÃO IMPUTADAS E QUE SEUS COOPERADOS PODEM ATENDER O PLANO DO HCI.

Por fim, a UNIMED decidiu, conforme documentos de fls. 430/456, excluir os médicos do quadro social da cooperativa, em evidente afronta à recomendação do Ministério Público Federal, às Leis supramencionadas e às normas fundamentais da Constituição da República Federativa do Brasil.

LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

O Ministério Público, elevado à categoria de instituição permanente, nos termos do art. 127 da Constituição de 1988, tem como função precípua a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

A Constituição Federal assevera que cabe ao Ministério Público a defesa da ordem econômica, dos direitos dos consumidores e dos interesses difusos e coletivos, verbis:

“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

(...)

II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;” (destacamos)

O Ministério Público está legitimado a assegurar o efetivo respeito aos direitos assegurados na Constituição Federal, exigindo dos prestadores de serviços considerados de relevância pública o seu cumprimento, como é o serviço suplementar de assistência à saúde ofertado pela requerida no mercado de consumo, ex vi do artigo 197 da Constituição Federal, ora transcrito:

"Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da Lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado."

Acrescente-se, também, o disposto no artigo 29 da Lei n.º 8.884, de 11 de junho de 1994, que assim dispõe:

"Art. 29. Os prejudicados, por si ou pelos legitimados do art. 82 da Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990, poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independentemente do processo administrativo, que não será suspenso em virtude de ajuizamento de ação."(grifamos)

A citada Lei n.º 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor – concedeu expressamente ao Ministério Público a legitimidade (art. 82, inciso I) para promover a defesa dos direitos dos consumidores atingidos pelos atos praticados na relação de consumo direta – prestador do serviço e o usuário -, ou indiretamente, como no caso da concorrência desleal que os alcancem (art. 4º, inciso VI).

Em suma, os interesses públicos, a autorizar a intervenção ministerial, são a normalidade da ordem econômica e a relevância pública dos serviços de saúde, prestados pela assistência suplementar, assim como o direito do consumidor e do livre exercício profissional.

COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL

Por outro lado, a competência federal é justificada pela Constituição Federal, que dispõe em seu artigo 109, inciso I, caber aos Juizes Federais processar e julgar as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, requeridas, assistentes ou oponentes.

O artigo em questão deve ser analisado sob dois aspectos. O primeiro, refere-se a quando o interesse do ente federal é direto e imediato, porque a União, a autarquia federal ou a empresa pública federal são diretamente atingidas e se tornam partes do feito. O segundo aspecto para a análise do inciso I, do artigo 109, da Constituição Federal é no sentido de que existem interesses indiretos e mediatos, uma vez que a União, apesar de não ser diretamente atingida, tem interesse no deslinde da questão.

É o que ocorre no presente caso. Esta ação visa ao restabelecimento da legalidade na ordem econômica e à proteção dos direitos do consumidor, o que, indiretamente, configura interesse da União. Assim, a presente ação é proposta no âmbito federal por existir interesse indireto da União no feito, interesse este que reside na manutenção da ordem econômica, principalmente.

   Tanto é assim, que a Lei n.º 8.884, de 11 de junho de 1994, tendo em vista o interesse público primário da União com a normalidade da ordem econômica, legitimou o Ministério Público Federal, nos exatos termos do comando normativo ora transcrito:

"Art. 12. (...)

Parágrafo único. O CADE poderá requerer ao Ministério Público Federal que promova a execução de seu julgados ou compromisso de cessação, bem como a adoção de medidas judiciais, no exercício da atribuição estabelecida pela alínea "b" do inciso XIV do art. 6º da Lei Complementar n.º 75, de 20 de maio de 1993.(grifamos)

Ademais, é questão pacífica que a competência federal é fixada sempre que o Ministério Público Federal for parte legítima. No presente caso, o MPF é o legitimado a atuar em virtude do disposto na Lei Complementar 75/85:

“ Art. 5º. São funções institucionais do Ministério Público da União:(...)

II - zelar pela observância dos princípios constitucionais relativos: (...)

c) à atividade econômica, à política urbana, agrícola, fundiária e de reforma agrária e ao sistema financeiro nacional; (...)

V - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos da União e dos serviços de relevância pública quanto:

a) aos direitos assegurados na Constituição Federal relativos às ações e aos serviços de saúde e à educação;” (grifamos)

Neste sentido a orientação jurisprudencial:

“PROCESSUAL – MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – PARTE – COMPETÊNCIA – JUSTIÇA FEDERAL.

Se o Ministério Público Federal é parte, a Justiça Federal é competente para conhecer do processo." (CC n.º 4.927-0-DF, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 1ª Turma, STJ, v.u., j. em 14.09.93, DJ 04.10.93 – sem grifos no original).

Igualmente, neste sentido, recente decisão do Ministro Teori Albino Zavascki, do Superior Tribunal de Justiça:

RESP 440002 / SE ; RECURSO ESPECIAL 2002/0072174-0 Relator(a) Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI (1124) Órgão Julgador T1 - PRIMEIRA TURMA Data do Julgamento 18/11/2004 Data da Publicação/Fonte DJ 06.12.2004 p. 195

Ementa

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA DE DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS. MEIO AMBIENTE. COMPETÊNCIA. REPARTIÇÃO DE ATRIBUIÇÕES ENTRE O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL E ESTADUAL. DISTINÇÃO ENTRE COMPETÊNCIA E LEGITIMAÇÃO ATIVA. CRITÉRIOS.

1. A ação civil pública, como as demais, submete-se, quanto à competência, à regra estabelecida no art. 109, I, da Constituição, segundo a qual cabe aos juízes federais processar e julgar "as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, requeridas, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidente de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e a Justiça do Trabalho". Assim, figurando como autor da ação o Ministério Público Federal, que é órgão da União, a competência para a causa é da Justiça Federal.

3. Não se confunde competência com legitimidade das partes. A questão competencial é logicamente antecedente e, eventualmente, prejudicial à da legitimidade. Fixada a competência, cumpre ao juiz apreciar a legitimação ativa do Ministério Público Federal para promover a demanda, consideradas as suas características, as suas finalidades e os bens jurídicos envolvidos.

4. À luz do sistema e dos princípios constitucionais, nomeadamente o princípio federativo, é atribuição do Ministério Público da União promover as ações civis públicas de interesse federal e ao Ministério Público Estadual as demais. Considera-se que há interesse federal nas ações civis públicas que (a) envolvam matéria de competência da Justiça Especializada da União (Justiça do Trabalho e Eleitoral); (b) devam ser legitimamente promovidas perante os órgãos Judiciários da União (Tribunais Superiores) e da Justiça Federal (Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais); (c) sejam da competência federal em razão da matéria — as fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional (CF, art. 109, III) e as que envolvam disputa sobre direitos indígenas (CF, art. 109, XI); (d) sejam da competência federal em razão da pessoa — as que devam ser propostas contra a União, suas entidades autárquicas e empresas públicas federais, ou em que uma dessas entidades figure entre os substituídos processuais no pólo ativo (CF, art. 109, I); e (e) as demais causas que envolvam interesses federais em razão da natureza dos bens e dos valores jurídicos que se visa tutelar.

6. No caso dos autos, a causa é da competência da Justiça Federal, porque nela figura como autor o Ministério Público Federal, órgão da União, que está legitimado a promovê-la, porque visa a tutelar bens e interesses nitidamente federais, e não estaduais, a saber: o meio ambiente em área de manguezal, situada em terrenos de marinha e seus acrescidos, que são bens da União (CF, art. 20, VII), sujeitos ao poder de polícia de autarquia federal, o IBAMA (Leis 6.938/81, art. 18, e 7.735/89, art. 4º ).

7. Recurso especial provido.

Outro fator a firmar a competência da Justiça Federal encontra-se na possibilidade de intervenção da União - através da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça - SDE, no pólo ativo da ação, como litisconsorte ativa, por ser o órgão administrativo da estrutura estatal responsável pela aplicação das disposições constitucionais e legais de defesa da concorrência, como explicitado pela Lei n.º 8.884, de 11 de junho de 1994:

“Art. 14. Compete à SDE:

I – zelar pelo cumprimento desta Lei, monitorando e acompanhando as práticas de mercado;

III – proceder, em face de indícios de infração de ordem econômica, a averiguações preliminares para instauração de processo administrativo;

VI – instaurar processo administrativo para apuração e repressão de infrações da ordem econômica;

VIII – remeter ao CADE, para julgamento, os processos que instaurar, quando entender configurada infração da ordem econômica;

XI – adotar medidas preventivas que conduzam à cessação de prática que constitua infração da ordem econômica, fixando prazo para seu cumprimento e o valor da multa diária a ser aplicada, no caso de descumprimento;

Assim, o reconhecimento da co-legitimação da SDE, emerge, não só em razão da sua competência para o monitoramento e acompanhamento das práticas de mercado, como também por sua prerrogativa de proceder investigações, instaurar processos administrativos e adotar medidas preventivas, visando à cessação de infração da ordem econômica, ou seja, o pleno exercício do poder de polícia na defesa econômica da população.

Na hipótese dos autos, cabe ressaltar que a UNIMED IJUÍ é parte requerida em processo administrativo que tramita no CADE sob o n.º 08012.003211/98-17, o qual versa, precisamente, sobre a questão da fidelidade societária atacada nesta ação, instaurado precisamente pela Secretaria de Direito Econômico, que concluiu pela existência de abuso do poder econômico por parte da requerida.

Desse modo, é de ser reconhecida a possibilidade de a União – Secretaria de Direito Econômico - participar do processo na qualidade de litisconsorte ativa, o que tem o condão de fixar a competência ratione personae da Justiça Federal, na hipótese versada nos autos.

Finalmente, definida a competência cível da Justiça Federal ratione personae, e, por isso, absoluta, determinada em razão das pessoas que figuram no processo como autoras, requeridas, assistentes ou oponentes, bem como sendo a Agência Nacional de Saúde, autarquia federal, incumbida, entre outros, de adotar medidas necessárias para estimular a competição no setor de planos privados de assistência à saúde (art. 4º, XXXII, Lei nº 9.961/2000), aplica-se o art. 109, da CF/88, determinando-se a competência da Justiça Federal para processar e julgar a ação.

DA ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA:

A ação civil pública é a via adequada para a proteção de quaisquer direitos difusos ou coletivos, nos termos do artigo 1º, inciso V, da Lei nº 7.347/85.

O jurista Motauri Ciocchetti de Souza[1], conceitua interesse difuso como sendo aquele pertencente a um número indeterminado de pessoas, titulares de um objeto indivisível e que estão ligadas entre si por um vínculo fático. De outra banda, por interesse coletivo, o mesmo autor[2] entende como sendo aquele que pertence a um número determinado de pessoas, integrantes de um grupo, categoria ou classe, titulares de um objeto indivisível e que estão ligadas entre si por um vínculo jurídico.

Das conceituações anotadas, verifica-se que os interesses que se buscam tutelar com a presente ação são, por um lado, difusos, e, por outro, coletivos. Senão vejamos.

Apreciando a questão por um aspecto, tem-se que os prejudicados pela conduta da requerida em exigir a chamada “unimilitância” de seus cooperativados, são os consumidores clientes das outras empresas que prestam serviços de assistência médica suplementar. Isso se justifica, uma vez que muitos médicos que estavam cadastrados e aptos a atender consumidores através de tais empresas, estão sendo compelidos ao descadastramento. Com isso, os quadros médicos dos demais planos de saúde existentes estão sendo reduzidos de forma drástica, deixando a descoberto várias especialidades. Assim, tem-se aqui o interesse coletivo do grupo de consumidores clientes das demais empresas de assistência médica suplementar, que nesta região totalizam, aproximadamente, 30.000 pessoas.

Por outro lado, a conduta da UNIMED IJUÍ se revelou uma prática monopolista destinada à dominação de mercado relevante, levando-se em consideração o total de médicos cadastrados no Conselho Regional de Medicina que atuam na região e o número de médicos cooperativados da UNIMED. Verifica-se que a proporção é demasiado alta, compelindo os consumidores da região a contratar com a requerida, o que efetivamente ocorre, tendo em vista que em diversas especialidades apenas a UNIMED conta com médicos titulados. Portanto, essa prática conduz ao monopólio da requerida na prestação de serviços de atendimento médico na região, causando lesões à ordem econômica, sendo um interesse difuso por excelência a repressão à formação de monopólios com o incentivo à concorrência.

Vê-se com facilidade que o bem tutelado, no presente caso, é de natureza transindividual e indivisível, atribuído a pessoas indeterminadas, sendo direito pertencente a todos os cidadãos a livre escolha de seus planos de saúde, sejam os consumidores residentes ou apenas transeuntes no Brasil, que utilizam ou possam vir a utilizar os respectivos serviços de assistência privada de saúde suplementar, com atuação na região.

Ademais, a Lei n.º 8.884/94 vem sendo afrontada pela conduta da requerida:

"Art. 1º. Esta lei dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.

Parágrafo único. A coletividade é titular dos bens jurídicos protegidos por esta lei."

Desta forma, constatada a existência de interesses difusos e coletivos a serem tutelados, induvidoso o cabimento da ação civil pública para a obtenção do provimento jurisdicional que se busca.

DO MÉRITO:

Esclarecidos preliminarmente os fatos, bem como a legitimidade das partes litigantes e a adequação da via escolhida para a tutela visada, passa-se à análise jurídica dos fatos.

DAS CARACTERÍSTICAS DA UNIMED IJUÍ E DO MERCADO SETORIAL NA REGIÃO:

Cuida-se a requerida de empresa privada, estruturada com base na Lei n.º 5.764/71, que define a Política Nacional de Cooperativismo e institui o regime jurídico das sociedades cooperativas. Presta serviços na área de medicina, arregimentando consumidores, com venda de planos de saúde, mediante elaboração de contratos individuais e coletivos, ora envolvendo pessoas físicas, ora jurídicas, sempre com indiscutível natureza econômica. Atua em Ijuí e cidades da região conforme disposto em seu estatuto, artigo 1º, “c” (fl. 34), disputando com as demais empresas de medicina de grupo e com seguradoras de saúde o mercado comum.

Verifica-se que a UNIMED IJUÍ ocupa posição dominante no mercado da saúde suplementar na região, tendo como clientes/alvo quase a totalidade dos consumidores, pelo fato de não permitir que seus associados prestem serviços à outras empresas do ramo médico.

Com a finalidade de atender a clientela contratada, a requerida conta em seus quadros 311 (trezentos e onze) médicos cooperados na região de abrangência[3], sendo perto de 180 (cento e oitenta) em Ijuí, absorvendo cerca de 90% da totalidade de profissionais inscritos no Conselho Regional de Medicina, 211 médicos (fl. 216) que atuam na cidade.

No que concerne às especialidades, verifica-se que a UNIMED absorve a totalidade de médicos especialistas em algumas áreas (angiologia e cirurgia vascular, cardiologia, cirurgia plástica, dermatologia, fisiatria, gastroenterologia, ginecologia, medicina intensiva, medicina ocupacional, neurologia, oncologia, ortopedia, pneumologia pediátrica, proctologia, reumatologia).

DA NÃO APLICAÇÃO AO CASO DO ARTIGO 29, § 4º, DA LEI N.º 5.764/71:

A empresa requerida afirma a legalidade de sua conduta, fundamentando-se em interpretação equivocada do seguinte dispositivo da Lei n.º 5.764/71:

“Art. 29. (...)

§ 4°. Não poderão ingressar no quadro das cooperativas os agentes de comércio e empresários que operem no mesmo campo econômico da sociedade.”

No entanto, é sabido que o médico não pode ser caracterizado como agente do comércio, nem como empresário, mas como profissional liberal, dotado de autonomia, cuja liberdade de exercício de profissão é assegurada pelo artigo 5º, inciso XIII, da Lei Maior. Além disso, as normas e as cláusulas restritivas de direitos, como é o caso da cláusula de unimilitância, devem receber interpretação restritiva - e neste ponto incide em equívoco a interpretação da UNIMED, ao equiparar profissionais liberais a agentes de comércio e empresários.

O médico pode trabalhar em outra empresa, nem por isso será empresário. Menos ainda agente de comércio. Não há como emprestar aos termos entendimento abrangente, para alcançar hipóteses por eles não compreendidas.

Compreensível e justificável é a disposição estatutária que veda a chamada “dupla militância” quando se tratar de médico cooperativado que tenha participação societária em operadora de plano privado de assistência à saúde, pois aí ele é responsável pelo gerenciamento dos negócios desta e pelos seus resultados. A colisão de interesses é manifesta. Os objetivos sociais da empresa conflitam com os objetivos específicos da cooperativa, enquanto operadora de plano privado de assistência à saúde também.

Esta lógica, todavia, não poderá ser aplicada ao direito do cooperativado de prestar serviços profissionais (como pessoa física) a outra operadora de plano de saúde, tenha ela fins lucrativos ou não. Neste campo encontra-se o médico no exercício constitucional da liberdade de trabalho, de ofício, de desenvolver sua atividade profissional livremente e sem impedimentos.

Ademais, se a atividade precípua da empresa requerida é a aproximação direta do prestador de serviços ao usuário, com “eliminação de qualquer forma de intermediação econômica”, conforme se depreende de seu estatuto social, não se pode excluir que a aproximação dos profissionais e usuários ocorra por outras formas que não apenas a Cooperativa, sem que daí resulte em exercício de atividade que prejudique os interesses da Associação.

DA APLICAÇÃO DA LEI N.º 9.656/98:

Além do exposto acima, a conduta da requerida encontra óbice em disposição expressa da Lei n.º 9.656/98:

“ Art. 18. A aceitação, por parte de qualquer prestador de serviço ou profissional de saúde, da condição de contratado ou credenciado de uma operadora de planos ou seguros privados de assistência à saúde, impõe-lhe as seguintes obrigações e direitos:

(...)

III - a manutenção de relacionamento de contratação ou credenciamento com quantas operadoras de planos ou seguros privados de assistência à saúde desejar, sendo expressamente vedado impor contratos de exclusividade ou de restrição à atividade profissional.”

A alegação da UNIMED seria no sentido de que o dispositivo em questão vincula apenas operadoras de serviços e seus contratados ou credenciados, não incidindo, pois, em relações societárias, que são institucionais e não contratuais. Entretanto, a própria lei em análise dispõe da seguinte forma:

“ Art. 1º. Submetem-se às disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos ou seguros privados de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade.

§ 1º. Para os fins do disposto no caput deste artigo, consideram-se:

I - operadoras de planos privados de assistência à saúde: toda e qualquer pessoa jurídica de direito privado, independente da forma jurídica de sua constituição, que ofereça tais planos mediante contraprestações pecuniárias, com atendimento em serviços próprios ou de terceiros;” (grifamos)

Verifica-se, assim, que as cooperativas, guardadas as características que lhes imprime a lei própria, são operadoras de planos privados de assistência à saúde, eis que a conceituação legal é bastante clara ao dizer “independente da forma jurídica de sua constituição”.

A exemplo das instituições filantrópicas e sem fins lucrativos, tais como as Santas Casas que operam planos próprios de saúde, as Cooperativas a elas se equiparam para o cumprimento dos dispositivos da Lei n.º 9.656/98.

Sem dúvida alguma, o direito preservado e garantido pela lei ao vedar os “contratos de exclusividade” ou de “restrição à atividade profissional” é o direito constitucional da liberdade de trabalho. Direito que deve ser muito mais preservado no cooperativismo, tendo em vista os seus princípios, todos eles voltados para a valorização do trabalho livre e democraticamente exercido.

Logo, o estatuto social não pode contrariar previsões legais expressas. Mesmo que os cooperados estipulem, unanimemente, a prática da unimilitância, esta não poderia prosperar, por ser manifestamente contrária à disposição do inciso III do artigo 18 da Lei n.º 9.656/98.

Não há como excluir as cooperativas da incidência da Lei n.º 9.656/98. Não é possível aceitar argumentos que utilizem a natureza da pessoa jurídica para descaracterizá-la como operadora de plano de saúde. Deve-se inferir, isto sim, a realidade concreta. E os fatos revelam, tão somente, que a UNIMED IJUÍ é uma empresa que tem por finalidade propiciar assistência, nos termos dos contratos que celebra, contratos de assistência médica, hospitalar e de serviços, com pessoas físicas, empresas particulares, industriais ou comerciais, entidades bancárias, fundações, autarquias e repartições da Administração Pública. E, como realiza atividades específicas de operadora de planos de saúde privados, como tal deve ser tratada.

As cooperativas, como se sabe, se formam como importante coalizão de interesses, com o objetivo inicial de integração dos associados no mercado. As cooperativas de trabalho visam a incluir mais facilmente no mercado um grupo de profissionais, ou, nos termos do estatuto social da requerida, aproximar o prestador de serviços do usuário. A fidelidade não é um elemento essencial à natureza das cooperativas. Pode ser incentivada, pois pode incrementar os benefícios econômicos gerados pela cooperativa, e, sob este aspecto, pode ser bastante interessante para a sociedade.

No entanto, a requerida não pode ser tratada somente como cooperativa de trabalho. A empresa requerida é operadora de planos de saúde privados, e, por essa razão, deve ter o mesmo tratamento dispensado às demais operadoras. Assim, embora as cooperativas em geral possam exigir fidelidade de seus cooperativados por meio de cláusulas estatutárias, o mesmo não pode ser deferido à empresa requerida, em virtude de sua atividade principal: é uma operadora de planos de saúde e existe vedação legal à cláusulas de exclusividade entre operadoras e seus médicos, sendo irrelevante a natureza do vínculo que os une. Logo, sendo a operadora em questão uma cooperativa de médicos, o vínculo que une médicos e entidade é o estatuto social. E, segundo a lei em comento, o vínculo estabelecido não pode conter exigência de exclusividade. Dessa forma, resta terminantemente ilegal a estipulação de fidelidade societária aos profissionais médicos ligados à cooperativa UNIMED IJUÍ, em virtude de suas peculiaridades já analisadas. Neste sentido a jurisprudência, que diferencia os atos praticados pela cooperativa, emprestando-lhes efeitos diversos conforme se trate de ato cooperado ou ato mercantil, desconsiderando, nestes últimos, as peculiaridades da cooperativa:

TRIBUTÁRIO. ISS. COOPERATIVAS MÉDICAS. INCIDÊNCIA.

1. As Cooperativas organizadas para fins de prestação de serviços médicos praticam, com características diferentes, dois tipos de atos:

a) atos cooperados consistentes no exercício de suas atividades em benefício dos seus associados que prestam serviços médicos a terceiros;

b) atos não cooperados de serviços de administração a terceiros que adquiram seus planos de saúde.

2. Os primeiros atos, por serem típicos atos cooperados, na expressão do art. 79, da Lei 5.764, de 16 de dezembro de 1971, estão isentos de tributação. Os segundos, por não serem atos cooperados, mas simplesmente serviços remunerados prestados a terceiros, sujeitam-se ao pagamento de tributos, conforme determinação do art. 87 da Lei 5764/71.

3. As cooperativas de prestação de serviços médicos praticam, na essência, no relacionamento com terceiros, atividades empresariais de prestação de serviços remunerados.

4. Incidência do ISS sobre os valores recebidos pelas cooperativas médicas de terceiros, não associados, que optam por adesão aos seus planos de saúde. Atos não cooperados.

5. Recurso provido.(RESP 254549. Rel. Min. José Delgado. 1ª Turma, STJ, j. em 17.08.2000, DJ 18.09.2000, p.105 – sem grifos no original)

O aspecto formal da natureza jurídica da requerida, não pode servir como fato jurídico capaz de gerar imunidade à incidência de aplicação da Lei 9.656/98. Ao revés, deve-se olhar através de sua forma para encontrar seu objetivo, idêntico ao das demais empresas que atuam no ramo da saúde suplementar.

A doutrina pátria, ao comentar o dispositivo citado, também tem se posicionado sobre a proibição de exclusividade ou restrição à atividade profissional, por parte das cooperativas de serviços médicos:

"3.3.2.8 Liberdade de exercício profissional. O art. 18 estabelece a igualdade de tratamento aos consumidores vinculados a qualquer plano ou seguro, devida pelos serviços contratados ou credenciados, bem como a vedação do regime de exclusividade contratual entre o profissional ou a empresa prestadora de serviço e a administradora ou seguradora.

As cooperativas de serviços médicos opuseram-se à proibição do exclusivismo contratual, por contrariar o seu estatuto padrão, que só admite o ingresso do médico que não exerça atividade colidente ou prejudicial à cooperativa, sendo entendido como tal o credenciamento profissional por outra organização do mesmo campo econômico. Pretendem as cooperativas abrigar-se no regime jurídico peculiar à citada Lei 5.765/71, considerando os médicos como sócios cooperados. É fácil, data vênia, verificar a impropriedade do argumento. A Lei 5.764 não reconhece a especificidade das cooperativas de serviços assistenciais de saúde, pois prevê a existência particular de duas espécies de cooperativas apenas, as de crequeridadito e as habitacionais, sendo inespecíficas quaisquer outras. Essa posição de residualidade não é mais compatível com a função social que as cooperativas de serviços médicos exercem hodiernamente. Muito menos que elas sejam fiscalizadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, como prevê o art. 92, para todas as cooperativas inespecíficas. A Lei 5.764 serve apenas de modelo de organização social às cooperativas médicas, CABENDO A DISCIPLINA DOS SEUS FINS À LEI 9.656. ACERTOU A LEI NOVA AO GARANTIR AOS MÉDICOS LIBERDADE DE EXERCÍCIO PROFISSIONAL, PERMITNDO-LHES QUE SE VINCULEM A MAIS DE UM OPERADOR."[4]

Frise-se que a UNIMED IJUÍ já foi autuada pelo CADE, em virtude da violação aos artigos 20, incisos I, II e V c/c 21, incisos IV, V, VI da Lei n.º 8.884/94, sendo aplicada a penalidade de multa pecuniária, no valor de R$ 63.846,00 (sessenta e três mil, oitocentos e quarenta e seis reais), conforme cópia da decisão (fls. 232/260).

A aplicação da cláusula de fidelidade societária pela requerida, revela-se ilegal sob vários aspectos. Inicialmente, indo de encontro ao disposto na lei n.º 9.656/98, conforme acima exposto. Além disso, a prática atacada por esta ação civil pública fere, a um só tempo, a ordem econômica, estando fora dos ditames da disciplina jurídica da concorrência, bem como o direito do consumidor pois, embora o estatuto social não seja contrato celebrado com o consumidor, ele interfere sobremaneira nas possibilidades de escolha de que o consumidor dispõe. Isto porque os consumidores não possuem, com a requerida, qualquer relação jurídica fundada no cooperativismo, de sorte que ela não pode invocar, em seu favor e em detrimento daqueles, regras que disciplinam apenas suas relações com os cooperados.

INFRAÇÃO À ORDEM ECONÔMICA:

No sistema jurídico pátrio há a livre concorrência, a defesa dos consumidores e a liberdade do exercício profissional, entre outros, como princípios próprios da ordem econômica, nos seguintes termos, da Constituição Federal:

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

IV - livre concorrência;

V - defesa do consumidor;”

O perfil adotado para a ordem econômica na Magna Carta se fundamenta na livre iniciativa, mas tal princípio deve ser conjugado com valores de justiça social e bem estar coletivos, nos moldes do caput, do art. 170, da CRFB, valores que normalmente o interesse egoístico do empresariado desrespeita.

Conforme a própria Constituição Federal determina, a prestação de serviços médicos e hospitalares desempenhada pela requerida, através de Convênios e Planos de Saúde é, indubitavelmente, atividade econômica, devendo ser regulada pelos dispositivos legais aplicados à espécie:

“Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.”

Assim, a referida atividade (prestação de serviços médicos e hospitalares mediante convênios e planos de saúde) não se desvirtua pelo fato de estar sendo efetivada através de sistema cooperativo, ou seja, continua sendo uma atividade econômica e, portanto, há que se reger pelos princípios aplicáveis à espécie. Aliás, o próprio texto constitucional está a indicar que o cooperativismo, nas suas relações decorrentes do fornecimento de produtos e serviços à população (consumidores), está inserto no contexto de atividade econômica. Veja-se que em vários dispositivos tratou-se do assunto, como por exemplo o art. 5.º, inciso XVIII; art. 146, inciso III, alínea “c”; art. 174, §§ 3.º e 4.º; art. 192, inciso VIII; § 7.º do art. 47 do ADCT. Mas foi no âmbito do Capítulo I do Título III : “DOS PRINCÍPIOS DA ATIVIDADE ECONÔMICA” - § 2.º do art. 174, que restou consignado o associativismo e o cooperativismo como instrumentos para a atividade econômica.

Outrossim, evidente que na nossa Carta Política o cooperativismo recebe tratamento especial, justamente por sua importância no contexto da Ordem Econômica pátria.

No entanto, o quadro desenhado, neste contexto de tempo e de espaço, produz efeitos que extrapolam os limites internos da cooperativa e ferem de morte os princípios básicos da ordem econômica, insculpidos na Constituição Federal.

Ao exigir que os médicos cooperativados não prestem serviços a outras empresas concorrentes, considerando-se que 90% dos médicos da região são cooperados da UNIMED, a empresa Requerida atua em discordância dos princípios da ordem econômica, principalmente o princípio da livre concorrência (sem falar no princípio da defesa do consumidor, sobre o qual se discorrerá adiante). Além disso, a empresa requerida absorve diversas especialidades médicas, que ficarão sem cobertura por todos os demais planos de saúde existentes na região. Com isso, percebe-se que a concorrência restará reduzida, senão aniquilada, pois, ressalte-se, a UNIMED IJUÍ já detém praticamente 60% do mercado consumidor sem a cláusula de fidelidade.

Deste modo, ante tais considerações e dados fáticos, forçoso concluir que a vedação imposta pela cláusula atacada do Estatuto da UNIMED IJUÍ, afronta os dispositivos específicos da ordem econômica da Constituição da República, bem como a lei regulamentadora, a chamada Lei Antitruste.

Assim dispõe o artigo 173, §§ 4.º e 5.º da Constituição Federal:

“Art. 173. (...)

§ 4.º A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

§ 5.º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.” (grifamos)

Acerca de tal dispositivo, disse o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Fábio Ulhoa Coelho:

“Em suma, a Constituição Federal, em seu art. 173, § 4.º, delineou as modalidades de exercício do poder econômico que podem ser consideradas juridicamente abusivas. São aquelas que põem em risco a própria estrutura do livre mercado. De modo específico, aquelas que podem ocasionar a dominação de setores da economia, eliminação da competição ou aumento arbitrário de lucros.” [5]

Acrescenta o douto professor da PUC/SP, que restringir a concorrência é “barrar total ou parcialmente, mediante determinadas práticas empresariais, a possibilidade de acesso de outros empreendedores à atividade produtiva em questão”[6].

E foi isso o que ocorreu no caso concreto, pois o consumidor que quiser contratar com outra entidade, que preste serviços de convênios e seguro saúde em Ijuí e cidades daquela região, restará seriamente prejudicado no atendimento médico e hospitalar, já que não encontrará profissionais para atendê-lo, diante dos fatos acima mencionados.

Esse é o entendimento da Secretaria de Direito Econômico a respeito das cláusulas de fidelidade, frise-se, mesmo antes da edição da Lei n.º 9.656/98, consoante decisão proferida por este órgão, ao analisar representações formuladas em face das UNIMEDs de Cuiabá e Vitória, conforme suas ementas:

“Concluo, portanto, que a atuação da Representada prejudica a livre competição do mercado de prestação de serviços médico-hospitalares, incorrendo nas infrações previstas no art. 20, inciso I, II e IV, combinado com o art. 21, incisos IV e V do citado diploma legal, por limitar o acesso de novas empresas e dificultar o funcionamento ou o desenvolvimento de concorrente. Em conseqüência, determino o envio destes autos ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, para julgamento simultâneo de ambos os processos, na forma do art. 105 do Código de Processo Civil.” (SDE. Despachos do Secretário n.º 340. Ref. Proc. Adm. N.º 08012.007631/97-65)

O próprio Conselho Administrativo de Defesa Econômica assim se manifestou a respeito:

“Processo Administrativo. Descredenciamento pela Representada de Profissionais da área médica, sob alegação de dupla militância. Infração ao disposto nos artigos 20, incisos II e IV, e 21, incisos IV e V, da Lei n.º 8.884/94. Subsistência de prática à ordem econômica. Condenação e imposição de multa. Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, na conformidade dos votos e das notas eletrônicas, acordam os conselheiros do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, por maioria, entender comprovada a infração determinando a imediata cessação da prática abusiva objeto do processo, impondo multa de 60.000 (sessenta mil) Unidades Fiscais de Referência – UFIR, bem como multa diária de 6000 (seis mil) UFIR em caso de continuidade da prática.”(Ministério da Justiça. CADE. Proc. Adm. N.º 147/94, j. em 18.02.1998)

Ressalte-se que a própria UNIMED IJUÍ é parte em processo administrativo que tramita no CADE, que versa, precisamente, sobre a questão da fidelidade societária atacada nesta ação. O processo foi remetido ao CADE pela Secretaria de Direito Econômico, que concluiu pela existência de abuso do poder econômico por parte da requerida.

Ressalte-se, de outro lado, serem incontáveis os feitos que tramitam atualmente em outras circunscrições judiciárias contra as UNIMEDs locais, visando a impedir o mesmo abuso ora atacado. Verifica-se, assim, que grande parte da sociedade insurge-se, justificadamente, contra a prática adotada pelas UNIMEDs, já existindo, inclusive, decisões favoráveis ao ponto de vista ora defendido.

A doutrina especializada também é categórica em valorizar a livre concorrência. O consagrado jurista Celso Ribeiro Bastos[7] cita Carlo Barbieri Filho, em obra monográfica sobre o assunto:

“A concorrência é elemento fundamental para o democrático desenvolvimento da estrutura econômica. É ela a pedra de toque das liberdades públicas no setor econômico.”

Concorrência é disputa, em condições de igualdade, de cada espaço com objetivos lícitos e compatíveis com as aspirações nacionais. E continua o ilustre constitucionalista:

“Ela consiste essencialmente na existência de diversos produtores ou prestadores de serviços.”

Assim, a multiplicidade de alternativas é extremamente salutar, pois permite ao consumidor avaliar as cláusulas, as condições, os preços, as vantagens e desvantagens que um e outro seguro-saúde lhe oferecem. De outra banda, é a concorrência que instiga os agentes econômicos a se aperfeiçoarem, buscando melhor qualidade e melhor preço na prestação de seus serviços. Sem a concorrência, este ânimo se arrefeceria, pois, sem outras empresas que concorram em igualdade de condições, os consumidores se veriam na obrigação de contratar com a empresa dominante. E, com os clientes garantidos, a busca por melhorias diminuiria drasticamente.

A prática adotada pela requerida atinge diretamente o funcionamento das empresas concorrentes. Além disso, dificulta o seu funcionamento e sem dúvida, por tais atitudes, tem-se caracterizada a concorrência desleal. Para se avaliar o efeito prático desta concorrência desleal, basta observar o número crescente de médicos que tem aderido à fidelidade societária, face ao rompimento com outros planos de saúde.

Acresça-se a tais considerações que hoje, os profissionais médicos (cooperados), tornaram-se extremamente dependentes da relação estabelecida com a Unimed. Poderia se argumentar que os médicos são livres para contratar e, portanto, não haveria qualquer problema em manter a cláusula regimental ora atacada, visto que bastaria ao profissional que não quisesse se submeter a tal restrição, desligar-se dos quadros da Cooperativa. Entretanto, face aos dados mencionados, fácil constatar que o profissional que assim agisse ficaria seriamente comprometido financeiramente, pois é cediço que a maior parte dos atendimentos e serviços contratados na área se efetiva através dos convênios. Logo, como a situação hoje não propicia que os consumidores optem por outros planos e convênios, o profissional médico se veria privado da maior parte de sua clientela.

Gera-se, assim, um círculo vicioso que impede qualquer possibilidade de concorrência, já que a grande maioria dos consumidores não opta por outros planos ou convênios porque a maioria dos médicos estão credenciados exclusivamente na Unimed, e os médicos, por sua vez, continuam credenciados à Unimed, apesar da limitação, porque a maioria dos consumidores contrata os serviços desta cooperativa.

Por conseguinte, essa vedação regimental estabelecida pela UNIMED IJUÍ claramente impõe, de forma abusiva, a eliminação, ainda que parcial, da concorrência no setor, não possibilitando que outras entidades possam prestar serviços de mesmo nível aos consumidores da região, que desta forma ficam privados dos benefícios naturais que a livre concorrência e a saudável competição podem propiciar, como, por exemplo, a redução dos preços dos produtos e serviços.

Ainda, é de bom alvitre refutar qualquer argumento de defesa de que em virtude do fato de ser uma cooperativa sem fins lucrativos, seus atos não poderiam ser considerados como contrários à ordem econômica, mais precisamente à livre concorrência, por não perseguir lucros, pois se a requerida oferta seus serviços no mercado de consumo, não pode de maneira alguma se distanciar das normas de direito público que o regulamentam.

Neste sentido, faz-se salutar trazer à análise a ementa do Acórdão da Quarta Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais – Processo n.º 0275064-9 – Apelação – julgado por unanimidade em 28/04/99, como se constata, verbis:

"Ementa: SERVIÇO MÉDICO – UNIMED – PLANO DE SAÚDE – LIVRE CONCORRÊNCIA – ART. 170, IV E 173, PARÁGRAFO 4 DA CF – LIVRE INICIATIVA – DEFESA DO CONSUMIDOR – AINDA QUE A UNIMED SEJA, FORMALMENTE, UMA COOPERATIVA SEM FINS LUCRATIVOS, QUE PRATICA ATOS COOPERATIVOS ENTRE SEUS ASSOCIADOS, NÃO SE PODE DESCURAR QUE ELA, QUANDO OPERA COM TERCEIROS, PRATICA ATOS COMERCIAIS COMO QUALQUER OUTRA EMPRESA DO MERCADO. ASSIM, DÚVIDA NÃO HÁ DE QUE A SUA PRATICA É MERCANTILISTA, O QUE CONTRARIA DE CERTO MODO O ESPÍRITO DA LEI 5764/71, QUE NÃO FOI EDITADA PARA POSSIBILITAR O MAQUEAMENTO DE EMPRESAS MERCANTILISTAS POR UNIDADES COOPERADAS. ADEMAIS, O QUE DEVE SER CONSIDERADO É A FORMA REAL DE ATUAÇÃO DA UNIMED E A REPERCUSSÃO DE SUA AÇÃO NO MERCADO E NÃO O SEU REVESTIMENTO FORMAL-JURÍDICO. – SOMENTE QUEM DESCONHECE A REALIDADE ECONÔMICA DO MERCADO RELEVANTE DE PLANOS DE SAÚDE, PODE ACREDITAR QUE O INTUITO DA UNIMED, AO PROIBIR A DUPLA MILITÂNCIA, SEJA A DEFESA ECONÔMICO-SOCIAL DOS INTEGRANTES DA PROFISSÃO DE MÉDICO, ATRAVÉS DO APRIMORAMENTO DO SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA MÉDICA, SOB FORMA COLETIVA OU INDIVIDUAL. NA REALIDADE, O QUE VISA A UNIMED E DOMINAR O MERCADO RELEVANTE DOS SERVIÇOS DE PRESTAÇÃO À SAÚDE, DE MODO A ELIMINAR A LIVRE CONCORRÊNCIA E RESTRINGIR A LIVRE INICIATIVA, O QUE É VEDADO PELOS ARTS. 170, IV, E 173, PARÁGRAFO 4 DA CF. – SE NÃO BASTASSE MACULAR O PRINCÍPIO CONSTITU-CIONAL ECONÔMICO DA LIVRE CONCORRÊNCIA, A CONDUTA DA UNIMED, DE PROIBIR SEUS COOPERADOS DE ATENDEREM A OUTROS CONVÊNIOS MÉDICOS, SOB A ALEGAÇÃO DE DUPLA MILITÂNCIA, VIOLA TAMBÉM, DE FORMA DIRETA, O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE INICIATIVA, AQUI ENTENDA COMO A LIBERDADE DE TRABALHO, ATRIBUTO INALIENÁVEL DO HOMEM, E, DE FORMA REFLEXA, O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR."(grifamos).

A infração à ordem econômica resta perfeitamente configurada, nos exatos termos da Lei n.º 8.884/94, chamada Lei Antitruste, que protege a livre concorrência e reprime o abuso de poder econômico:

"Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;

II - dominar mercado relevante de bens ou serviços;

(...)

§ 2º. Ocorre posição dominante quando uma empresa ou grupo de empresas controla parcela substancial de mercado relevante, como fornecedor, intermediário, adquirente ou financiador de um produto, serviço ou tecnologia a ele relativa.

§ 3º. A posição dominante a que ser refere o parágrafo anterior é presumida quando a empresa, ou grupo de empresas, controla 20% (vinte por cento) de mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo CADE para setores específicos da economia.

Art. 21. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no art. 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:(...)

V - criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços;”(grifamos)

Conjugando-se o disposto na Constituição Federal e na Lei Antitruste, verifica-se que as regras estatutárias que ensejaram as noticiadas incursões monopolistas configuram abuso do poder econômico e infringem a ordem econômica, vez que têm por indisfarçável objeto a limitação da livre concorrência e da livre iniciativa, ou, de qualquer modo, acabam por conseguir o efeito de prejudicá-las, alcançando a dominação do relevante mercado dos serviços relacionados com planos de saúde.

A definição de mercado relevante é feita em dois níveis: geográfico e material. No que concerne à delimitação geográfica, sabe-se que não há necessidade de abranger todo o território nacional, podendo restringir-se à dominação do mercado setorial de uma região, no caso, Ijuí e cidades vizinhas. Já a delimitação material é feita a partir da perspectiva do consumidor, pois o mercado relevante deve abranger todos os produtos/serviços alternativos na mesma espécie.

Dos dados obtidos, tem-se que a requerida atua com posição dominante, pois, conforme já exposto, tem como seus cooperados 90% dos médicos que atuam na região, sendo que grande parte dos médicos já aderiram à fidelidade societária. De outro lado, a Requerida atende a quase 60% dos usuários de tais serviços da região. Logo, diante de tais números, imperioso reconhecer que a UNIMED IJUÍ ocupa posição dominante, controlando larga fatia de mercado relevante.

Ainda, é inarredável que o agigantamento da UNIMED IJUÍ, absorvendo na totalidade várias especialidades médicas e impedindo os profissionais de prestar serviços para outras empresas de saúde, conduz, não só à eliminação da concorrência, como limita ou impede o acesso de novas empresas do ramo no mercado, ou ainda, cria dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente, constituindo a hipótese infracional elencada no artigo 21, incisos IV e V, da Lei Antitruste, e ofende direito dos consumidores, por traduzir-se em cláusula abusiva, contida no Código de Defesa do Consumidor (artigo 51, XV).

Em resposta a ofício expedido por este Ministério Público Federal, a UNIMED IJUÍ declarou que aguardaria o desfecho judicial das ações em andamento. Além disso, afirmou estar amparada em posicionamento do Superior Tribunal de Justiça. De fato, o STJ possui precedente no sentido de considerar legal a cláusula da exclusividade, porém, condicionando tal legalidade ao fato de que daí não resulte a dominação do mercado ou eliminação, ainda que parcial, da concorrência. Falta à empresa requerida tal condicionante. O julgado referido (RESP 367627/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 24.06.2002, p.299) afirma que, naquele caso específico, as empresas que se dedicam ao mesmo ramo de atividade, poderiam valer-se de outros médicos para lhes prestarem os serviços. No entanto, no caso de Ijuí e região, conforme já foi demonstrado, não existe esta possibilidade, pois mais da metade dos profissionais são cooperados da UNIMED, além de absorver, como já foi referido à exaustão, a totalidade de profissionais especializados em diversas áreas.

Para isto contribuiu de forma abissal a construção do hospital pela UNIMED, pois exigindo que seus médicos cooperativados prestem atendimento somente neste nosocômio, priva grande parte da população de Ijuí e região, de um tratamento médico adequado, pela impossibilidade destes profissionais atenderem em outro hospital que não o seu, como é o caso do HCI (único a prestar atendimento pelo SUS na cidade).

Logo, o julgado em que se ampara a UNIMED IJUÍ a ela não é aplicado, pois a cláusula de exclusividade aqui, implica na dominação de mercado relevante e eliminação, ainda que parcial, da concorrência. O voto é claro em sua justificativa: a cláusula de exclusividade não implicava monopólio naquele caso. Neste caso, a contrario sensu, a exclusividade leva ao monopólio da requerida, e, por conseguinte, não deve ser admitida.

INFRAÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR:

As práticas referentes a abusos do poder econômico enumerados pela lei, se destinam à proteção dos interesses coletivos das agressões contra o social, das lesões ao consumidor e do desequilíbrio nas relações de consumo.

Por isso, a dominação do mercado pela requerida é, por si só, prejudicial ao consumidor, uma vez que este, desprovido de condições de suportar os custos normais com saúde, vê-se compelido a contratar com ela, de acordo com as cláusulas que a requerida impõe.

O Código de Defesa do Consumidor define:

“Art. 2.º - Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único - Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.”

“Art. 3.º - Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestações de serviços.

§ 2.º - Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”

A obrigação dos médicos cooperados de não celebrarem outros convênios, impõe aos consumidores a contratação com a requerida, pois simplesmente não há outra opção satisfatória. Assim, todos precisam aderir às condições e cláusulas postas pela requerida, sob pena de não terem acesso ao denominado “seguro-saúde”.

Seria despiciendo dizer que o bem da vida “saúde”, por dizer respeito diretamente a um dos direitos da personalidade, merece especial proteção, de modo que não é sequer razoável sustentar que as pessoas são livres para, discordando das regras da requerida, deixar de aderir a seus planos. É elementar que o acesso aos mecanismos de proteção à saúde deve ser oportunizado amplamente, pois raras são as pessoas que podem dar-se ao luxo de custear particularmente seus gastos com médicos e hospitais.

Observa-se que muitos consumidores filiaram-se a outras empresas afins, sendo que o fizeram em razão do quadro de médicos então existente (muitos com especialidades médicas), encontrando-se, agora, prejudicados pelo esvaziamento do rol de profissionais, ocasionado pela conduta da requerida. Muitos médicos já aderiram à fidelidade societária, compelidos pela ameaça de exclusão da Cooperativa, sendo lamentável que os médicos que não concordaram com a exigência da requerida tenham sido excluídos de seus quadros.

O Código do Consumidor prevê no art. 4º, inciso III, o delineamento da Política Nacional das Relações de Consumo:

"Art. 4º - A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo:(...)

III – Harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio entre os consumidores e fornecedores."(grifamos)

A conduta da requerida importa restrição ao direito de escolha do consumidor, uma vez que, embora existam na região médicos (em menor número) não cooperativados e que continuarão a atender a outras empresas de saúde suplementar, existem muitas especialidades nas quais restará inviável a tais empresas cadastrar profissionais especializados, pois, nestas áreas, a totalidade dos especialistas é cooperada. Desta forma, se o consumidor não quiser se ver a descoberto em tais áreas, e é duvidoso que algum queira, terá de contratar os serviços da UNIMED, inevitavelmente, sem outra opção.

Aqui ficou demonstrado, sem qualquer margem de erro, que o consumidor é o maior prejudicado com a concorrência desleal praticada pela requerida.

DO PROVIMENTO BUSCADO:

A completa proteção ao consumidor e à ordem econômica só será atingida mediante a integral proteção do cooperado. Por isso, deve ser assegurada a permanência do cooperado na Cooperativa, ao mesmo tempo em que se garanta a livre escolha quanto à eventual vinculação com outras empresas, do ramo da saúde complementar. Também deve ser assegurada a reintegração ao quadro da Cooperativa de qualquer cooperativado que haja sido excluído, sob o fundamento da dupla militância. A requerida, descumprindo a RECOMENDAÇÃO proferida pelo Ministério Público Federal, ameaçou, coagiu, instaurou procedimentos administrativos e excluiu de seus quadros os médicos que não se submeteram à imposição da unimilitância.

De outra parte, não é suficiente impedir a aplicação de penalidade ao médico que decidir celebrar outro convênio. É necessário que a requerida fique igualmente proibida de premiar aqueles que não o façam. Sim, porque a requerida poderia, por via transversa, acabar frustando a atuação jurisdicional, concedendo benefícios aos cooperados que não celebrassem outros convênios. Não eliminaria de seus quadros o médico que celebrasse outro convênio, mas beneficiaria, de algum modo, aquele que lhe permanecesse fiel.

É necessário, pois, que se vede a adoção, pela requerida, de qualquer procedimento discriminatório, baseado no fato de determinado médico assinar outro convênio ou celebrar contrato com plano de saúde diverso, sob pena de se contrariar o disposto no artigo 4º da Lei n.º 5.764/71, acima mencionado.

DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA:

A prova inequívoca da verossimilhança do pedido, segundo os ditames do artigo 273 do Código de Processo Civil, encontra-se caracterizada, de acordo com os fatos e fundamentos que foram expostos, bem como, nos moldes da documentação juntada aos autos, que demonstra, de forma inequívoca, a conduta abusiva da requerida.

Por outro lado, o receio de dano irreparável ou de difícil reparação é manifesto. A conduta da requerida, flagrantemente inconstitucional e ilegal, pode causar danos irreparáveis a todos os consumidores de serviços médicos e hospitalares que estão privados da concorrência sadia no setor, o que ordinariamente provoca redução nos preços de tais serviços e a busca de aprimoramento na qualidade do atendimento.

Desta forma, verifica-se a relevância dos fundamentos e o justificado receio de ineficácia do provimento final, a merecer a antecipação dos efeitos da tutela, nos termos do artigo 84, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor, que possui o mesmo comando do artigo 461 do Código de Processo Civil.

Assim, tendo em vista o dano irreparável que será ocasionado pela demora na tutela judicial, requer o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL a concessão da antecipação dos efeitos da tutela para obrigar a UNIMED IJUÍ a se abster de aplicar penalidade ou de adotar qualquer medida discriminatória ao cooperativado que se associar a outro plano de saúde (ou assemelhado) mantido por empresa, sociedade ou entidade diversa, como também a não conferir prêmio ou estímulo de qualquer espécie ao cooperado que não o fizer, bem como que haja a reintegração, aos quadros da Cooperativa, de todos os médicos excluídos, estabelecendo, para tanto, o ilustre Juízo, pena de multa diária que se sugere ser de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) por ação ou omissão tendente a frustar o direito ora reconhecido.

A antecipação dos efeitos da tutela, no caso ora em exame, deve ser conferida de imediato, pois, enquanto não se decidir acerca do objeto desta ação, tanto os médicos excluídos como os consumidores estarão sendo seriamente prejudicados, em virtude, sobretudo, da falta de acesso aos serviços prestados por outras entidades, nesta área de convênios e planos de saúde, além do dano causado ao direito da concorrência, que vem sendo causado diuturnamente.

INTIMAÇÃO DO CADE:

O CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) é autarquia federal, regida pela Lei n.º 8.884/94, que defende o normal funcionamento da ordem econômica, de acordo com os preceitos constitucionais e legais.

De acordo com o artigo 89 da referida lei, nos processos judiciais onde se discuta a sua aplicação, o CADE deve ser intimado para intervir no feito, na qualidade de assistente.

Como o presente feito fundamenta-se no Código de Defesa do Consumidor, na Lei n.º 9.656/98 e também na Lei n.º 8.884/94, requer-se a intimação do CADE para intervir como assistente no feito.

DOS PEDIDOS:

Em face do exposto, requer o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL:

a) a concessão de tutela antecipada para tornar ineficazes as cláusulas contidas no § 2º, artigo 93º, e letras “a” e “c”, do artigo 18, ambos do Estatuto Social da requerida, bem como para que seja determinada a reintegração dos médicos excluídos nos quadros da Cooperativa;

b) seja determinado à requerida, às suas expensas, que publique o extrato da decisão concessiva da liminar pleiteada, em meia página nos jornais de grande circulação deste Estado e de Ijuí, elencados na decisão liminar, por dois dias seguidos, de uma a três semanas consecutivas, por indicação do preceito contido no art. 24, inciso I, da Lei 8.884/94;

c) seja publicado edital para que os consumidores interessados possam intervir no feito;

d) a juntada do processo administrativo n.º 1.29.010.000038/2005-11, que tramitou na Procuradoria da República do Município de Santo Ângelo, e que segue anexo a esta, em dois volumes;

e) a citação da Requerida, na pessoa do Presidente do Conselho de Administração, Sr. Ibrahim El Ammar, no endereço indicado na qualificação da Requerida, para, querendo, contestar a presente, sob pena de revelia;

f) a intimação do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), na pessoa de sua Procuradora-Geral, Dra. Maria Paula Dallari Bucci, com sede na SCN Quadra 2, Bloco C, Brasília (DF), CEP 70754-510, fax (61) 3269733, para intervir como assistente, nos termos do art. 89 da Lei n.º 8.884/94;

g) a intimação da UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público interno, representada por seu(a) Procurador(a) Seccional, na Rua Paissandu, nº 141, sala 01, em Passo Fundo/RS, para intervir no feito, em virtude das atribuições da Secretaria de Direito Econômico definidas pela Lei n.º 8.884/94, bem como, da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, autarquia federal vinculada ao Ministério da Saúde, com sede na Av. Augusto Severo, 84, Glória, Rio de Janeiro/RJ;

h) seja, ao final, a ação julgada procedente para condenar a requerida a se abster de aplicar qualquer penalidade (não somente a exclusão da cooperativa) e de adotar qualquer medida discriminatória ao cooperado que se associar a outro plano de saúde (ou assemelhado) mantido por empresa, sociedade ou entidade diversa, como também condenando a requerida a não conferir prêmio ou estímulo de qualquer espécie ao cooperado que não o fizer, além de reintegrar ao quadro societário todos os cooperados que foram excluídos da Cooperativa, com fundamento nas disposições estatutárias atacadas;

i) seja determinado à Requerida, às suas expensas, que publique o extrato da decisão condenatória definitiva, em meia página nos jornais de grande circulação deste Estado, indicados na sentença, por dois dias seguidos, de uma a três semanas consecutivas, por determinação do preceito contido art. 24, inciso I, da Lei n.º 8.884/94;

j) seja cominada pena de multa diária que se sugere ser de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) para cada ação ou omissão da Requerida, tendente a frustar o direito ora reconhecido;

l) seja, ainda, condenada a Requerida na proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação tendo por objeto aquisições, alienações, realização de serviços junto à Administração Pública Federal, Estadual, Municipal, bem como em entidades da administração indireta, por prazo não inferior a cinco anos (art. 24, inciso II, da Lei n.º 8.884/94);

m) seja inscrita a Requerida no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor (art. 24, inciso III, da Lei n.º 8.884/94);

n) seja condenada a requerida nos ônus da sucumbência.

Protesta pela produção posterior de outras provas juridicamente admitidas.

Dá-se à causa o valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), para fins fiscais.

Santo Ângelo, 26 de agosto de 2005.

ANA LÚCIA NEVES MENDONÇA

Procuradora da República

-----------------------

[1] SOUZA, Motauri Ciocchetti de. Interesses Difusos em Espécie. São Paulo: Saraiva, 2000. p.146.

[2] Idem, p. 149.

[3] Fonte: sítio da web unimedijuí.com.br

[4] Saúde e responsabilidade: Seguros e Planos de Assistência Privada à Saúde / Alberto Pasqualotto – Artigo: A regulamentação dos Planos e Seguros de Assistência à Saúde: uma interpretação construtiva - obra coordenada por Cláudia Lima Marques e outros – RT, São Paulo, 1999, páginas 60/61 – sem grifos no original.

[5] Direito Antitruste Brasileiro: Comentários à Lei n. 8884/94, Ed. Saraiva, São Paulo, 1995, pág. 51.

[6] Idem, p. 56.

[7] Comentários à Constituição do Brasil, 7º vol., p. 25.

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download