Folha de São Paulo



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Folha de São Paulo. Mais! São Paulo, 04 de fevereiro de 2007.

O aristocrata radical

Estudiosos analisam as controvérsias acerca das teses de Caio Prado Jr. sobre o Brasil e a primazia do historiador sobre o filósofo

Acervo Brasiliense/Divulgação

O historiador Caio Prado Jr. na cidade de Campos do Jordão (SP), nos anos 1950

OSCAR PILAGALLO

ESPECIAL PARA A FOLHA

Inaugurador da análise marxista para explicar a história do Brasil, Caio Prado Jr. (1907-1990), cujo centenário de nascimento se comemora no próximo domingo, viveu sob o signo da adversidade – e é assim que sua obra sobrevive.

Quando o comunismo tinha influência, o militante enfrentava o jugo da polícia; agora, que o comunismo perdeu o prestígio, seu legado enfrenta o crivo da intelectualidade.

A adversidade está associada às duas rupturas que marcam sua biografia. Na primeira, Caio Prado, pertencente a uma das famílias mais ricas e tradicionais de São Paulo, corta os vínculos de classe para abraçar a causa da revolução proletária. Na segunda, uma vez instalado no novo ambiente, as fileiras do Partido Comunista Brasileiro, afasta-se da hegemônica ortodoxia stalinista.

O rompimento com a aristocracia causou “frisson” na sociedade paulistana dos anos 30. Para evitar embaraços, Caio Prado até deixou de aparecer nos almoços formais na residência dos avós maternos, para os quais eram expedidos convites impressos.

Pedradas

O jovem comunista tornara-se “socialmente indesejável, quando não temido”, observa Paulo Iumatti numa biografia intelectual de Caio Prado, escrita a partir de sua tese de doutoramento e que neste ano será publicada pela Brasiliense, editora que Caio Prado fundou em 1943. “Eu me lembro de jogarem pedra em nós na rua. [...] O pessoal gritava “filha de comunista'“, lembra Yolanda Prado em entrevista ao autor.

A guinada ideológica se deu pouco antes de completar 25 anos. Até então Caíto, como era chamado, tivera a trajetória escolar de um garoto de elite. Estudou em casa sob a tutela de governantas alemãs, freqüentou o rigoroso colégio jesuíta São Luís, ingressou na faculdade de direito do largo de São Francisco.

Na política, seguiu a orientação paterna e filiou-se ao Partido Democrático, onde se refugiava a burguesia descontente com o Partido Republicano Paulista, um dos pilares da política do café-com-leite da República Velha. Na Revolução de 30 esteve ao lado de Getúlio Vargas, mas logo se decepcionou com a inconsistência ideológica do novo governo. Foi então que, em 1931, entrou para o PCB. Seu primeiro livro, “Evolução Política do Brasil”, publicado dois anos mais tarde, já reflete a formação marxista.

Nunca antes o materialismo histórico havia sido usado como instrumento para interpretar o Brasil. Não se tratava da mera transposição mecânica das teses da cartilha soviética. Isso o Partidão, subserviente a Moscou, já fazia.

A grande contribuição de Caio Prado foi adaptar o método de Karl Marx à realidade brasileira, enfoque que ele aprofundaria na década seguinte com “Formação do Brasil Contemporâneo”, considerado consensualmente o ponto alto de sua produção.

Nesse livro, Caio Prado anima o debate intelectual ao rejeitar a noção de que tivesse havido feudalismo no Brasil Colônia. A tese feudal constava da apostila do PCB. Assim era explicada a origem do atraso do Brasil, o que projetava a necessidade de uma revolução burguesa, etapa intermediária para se chegar ao comunismo. Mas, se o Brasil já apresentava traços capitalistas desde o início, então tal revolução seria prescindível. Daí a polêmica.

É mais fácil concordar com o que Caio Prado rechaça do que com o que ele propõe. A concepção de um Brasil feudal está hoje descartada. “Ele destruiu o esquema intelectualmente preguiçoso do Partidão”, afirma o doutor em filosofia Leandro Konder, que também militou no PCB. Mas nem todos estão de acordo sobre o tipo de capitalismo que havia naquele passado remoto, se é que podia ser chamado de capitalismo.

Sentido da colonização

Caio Prado estabelece a diferença entre as colônias de povoamento, como a dos EUA, que reconstituem no Novo Mundo uma sociedade à semelhança do modelo europeu, e as colônias tropicais, como a do Brasil, onde surgirá uma sociedade original.

Ele explica: “A colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial (...) destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização”.

A relevância de “Formação do Brasil Contemporâneo” não é objeto de disputa. O livro colocou Caio Prado ao lado de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre como um dos grandes intérpretes do Brasil.

Tornou-se um clássico, no sentido de obra que ainda é viva e que, portanto, dialoga com historiadores contemporâneos. O reconhecimento da enorme importância do autor, entretanto, não inibe as críticas. O cientista político Carlos Nelson Coutinho, um dos fundadores do PSOL, apontava, no início dos anos 90, uma limitação no enfoque de Caio Prado.

“Ele quase nem percebeu a industrialização e, quando o fez, foi para subestimá-la, tratando-a como uma aparência que não alterava a essência colonial”, afirmou, no resumo de José Carlos Reis em “As Identidades do Brasil” (ed. FGV).

Florestan Fernandes, que daria continuidade à sua obra, lhe faz crítica semelhante. Na introdução a “História e Desenvolvimento”, um livro menor de Caio Prado, do final dos anos 60, Florestan ressalva que o historiador ignora a metamorfose que engata o capital mercantil da Colônia ao capital industrial. “Aí, fica patente que Caio se prende demais à lógica dos conceitos que são essenciais em seu esquema descritivo e interpretativo.”

Mercado colonial

Alguns historiadores são de opinião que Caio Prado falha ao não identificar a importância de um mercado interno na Colônia. Para Pedro Puntoni, professor da USP, sua obra, que permanece conceitualmente, foi superada por trabalhos posteriores sobre mercados regionais. João José Reis, autor de “Rebelião Escrava no Brasil” (Companhia das Letras), vai na mesma linha.

Ao prever o resgate do historiador, Reis diz, numa entrevista que integra o livro “Conversas com Historiadores Brasileiros” (editora 34): “Eu só espero que não seja retomado o famoso sentido da colonização, que não permitiu a algumas gerações de historiadores perceber a importância do mercado interno, da acumulação endógena, dos setores sociais que foram se formando ao lado de senhores e escravos”.

Mas não há consenso. No mesmo livro, Fernando Novais, considerado o principal herdeiro de Caio Prado, afirma: “Caio diz que a economia não consegue produzir para a exportação sem fazer crescer o mercado interno ao mesmo tempo. Logo, o mercado interno é um pressuposto do sistema”.

Mais polêmico ainda que “Formação do Brasil Contemporâneo” é “A Revolução Brasileira”, de 1966. Aí o debate foi além do meio acadêmico. O que estava em jogo era a estratégia da esquerda no período que precedeu a derrubada do governo de João Goulart, em 1964. O Partido Comunista é o alvo principal.

Segundo Caio Prado, o Partidão identificava uma aliança entre o proletariado e a burguesia progressista, que supostamente faria frente a interesses imperialistas e latifundiários.

Em nome dessa aliança, interpretou como avanço revolucionário o período pré-64. A burguesia progressista, porém, mostraria ser sócia menor do imperialismo. Assim, aquele “período malfadado” teria servido apenas para preparar o golpe. Com uma retórica agressiva, Caio Prado desautoriza os pseudo-revolucionários perdidos em “abstrações inspiradas em modelos apriorísticos”.

Resistência

Apesar das polêmicas, ou talvez por causa delas, o historiador Caio Prado continua sendo estudado. O mesmo não se pode dizer do filósofo, que escreveu, entre outros livros, “Notas Introdutórias à Lógica Dialética” e “O Estruturalismo de Lévi-Strauss, o Marxismo de Louis Althusser”. São obras sem ressonância.

Só o historiador resiste. Ele resiste à comparação desfavorável com os dois grandes estilistas de seu tempo, Freyre e Buarque de Holanda. Resiste à crise da historiografia marxista. Resiste ao desprestígio da história econômica, “diante do ataque avassalador da história cultural”, como diz o historiador José Murilo de Carvalho.

Resiste, enfim, ao tempo, embora possa não estar na moda. Como diz Carvalho: “Provavelmente será recuperado em algum momento, quando as coisas se reequilibrarem”.

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OSCAR PILAGALLO , jornalista, é autor de “A História do Brasil no Século 20”, “O Brasil em Sobressalto” e “A Aventura do Dinheiro” (todos pela Publifolha).

Historiador foi acusado de incitar luta armada

ESPECIAL PARA A FOLHA

Caio Prado Jr. esteve preso várias vezes por conta da militância. Em duas ocasiões, passou longos períodos na cadeia. Na primeira, tinha pouco menos de 30 anos; na segunda, pouco mais de 60.

Em 1935, quando integrava a Aliança Nacional Libertadora, ocorreu a fracassada tentativa de revolução comunista. Com a repressão que se seguiu, Caio Prado, junto com toda a cúpula do Partidão, passaria os dois anos seguintes na prisão.

Devido à posição de sua família – seu tio Fábio Prado era prefeito de São Paulo na época –, teve no cárcere algumas regalias, “as quais procurou, quando possível, compartilhar com os companheiros”, diz Paulo Iumatti, organizador de seu acervo.

A segunda prisão prolongada se deu nos chamados anos de chumbo da ditadura militar. Caio Prado foi preso no início de 1970, acusado de incitação subversiva devido a uma entrevista dada mais de dois anos antes. Em 1967, ele falara a estudantes de filosofia da USP que editavam a revista “Revisão”, uma publicação datilografada e de circulação restrita.

Respondendo a perguntas, o historiador, então, tratou hipoteticamente da luta armada.

Se existissem operários dispostos a pegar em armas, argumentou, então a tarefa seria arranjar armas e ajudá-los a tomar o poder.

“Mas não adianta programar a luta armada se não existem os elementos capazes de concretizá-la.” A ressalva não evitou sua condenação, e ele passaria um ano e meio na cadeia, até ser absolvido pelo Supremo Tribunal Federal.

Culpa

No presídio Tiradentes, onde a historia dora Maria Odila da Silva Dias lhe levava almoço, Caio Prado encontrava nos horários de pátio e fins de semana o jovem Antônio de Pádua Prado Filho, diretor da revista que publicara a entrevista e que fora preso na mesma época. “Eu tinha a impressão de que ele se sentia culpado por nós termos sido presos”, afirma.

Mas Paeco, como é chamado o cientista político que hoje faz pesquisa para os tucanos, estava lá por outro motivo: fora preso por estar ligado ao grupo guerrilheiro VAR-Palmares, uma organização de origem trotskista. Os dois não tiveram muito contato no cárcere, mas o suficiente para Paeco guardar a lembrança: “Ele era um preso tranqüilo”. (OP)

+ Obras

Evolução Política do Brasil (1933) A história do Brasil, do período colonial ao final do Império, é analisada do ponto de vista do materialismo. A cadeia de acontecimentos históricos é reinterpretada com ferramentas marxistas.

URSS - Um Novo Mundo (1934) Defende a sociedade sem classes, baseando-se em sua experiência na então URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), que visitara em 1933.

Formação do Brasil Contemporâneo (1942) Capítulos dedicados a “Grande lavoura”, “Mineração” etc. esmiúçam o modo de produção escravista e seus reflexos na sociedade brasileira do século 20.

História Econômica do Brasil (1945) Meio geográfico, infra-estrutura e produtos da economia brasileira até os anos 1930 aparecem em capítulos divididos cronologicamente.

O Mundo do Socialismo (1962)

Análise da experiência socialista em Estados como União Soviética e na China.

A Revolução Brasileira (1966)

Crítica tanto ao capitalismo quanto à esquerda brasileira que o combatia, rendeu ao historiador o prêmio de intelectual do ano pela União Brasileira de Escritores.

História e Desenvolvimento (1972) Tese, de 1968, para a cátedra de História do Brasil, na USP. O concurso não se completou e o autor foi aposentado pela ditadura.

A Questão Agrária no Brasil (1979) Ao buscar especificidades que distinguem a situação brasileira da européia, diverge da interpretação marxista tradicional do problema.

O que É Liberdade (1980)

O conceito de liberdade é analisado no contexto da disputa entre socialismo e capitalismo.

A Cidade de São Paulo (1983)

Defende como se desenvolveu a metrópole industrial em condições geográficas teoricamente desfavoráveis.

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Os livros estão no catálogo da Brasiliense.

Da excrescência à modernidade

Inovação de Caio Prado Jr. foi tentar demonstrar que Brasil não era marginal ao capitalismo europeu, mas sim sua realização integral, uma criação destinada a um determinado fim: acumular lucro na metrópole

FRANCISCO ALAMBERT

ESPECIAL PARA A FOLHA

Pensar o Brasil hoje (como ontem) é pensá-lo em um novo espaço de problemas contraditórios. Por um lado, uma nova fase do capitalismo (chamada globalização) na qual a idéia de nação é dissolvida. Por outro, um novo arranjo global que reforça nacionalismos e produz periferias em massa por toda parte.

O importante seria entender que se a idéia de nações em formação (ou dissolução) está viva (sua morte anunciada é uma estratégia de quem lucra nesse novo estado de coisas), novas compreensões são necessárias.

O “intérprete do Brasil” de hoje seria aquele que pensa (e critica) nosso lugar na nova conformação histórica e não se conforma a ela. Se algo nessas afirmações tem valor, então a contribuição de Caio Prado é atual. Caio Prado foi um pensador múltiplo. Descendente da aristocracia decadente, virou comunista e nunca saiu do PCB. Foi talvez o primeiro aristocrata-burguês a “trair” sua classe de origem.

Formou-se em direito em 1928, ingressou no curso de história e geografia da USP recém-nascida e nunca os concluiu (porque foi preso em 1935). Mas foi o suficiente para que apreendesse o método crítico dos professores franceses (especialmente Fernand Braudel) que ele iria incorporar criativamente ao marxismo.

Tudo isso já foi discutido por alguns dos principais historiadores brasileiros que se debruçaram sobre sua obra, desde Dante Moreira Leite, Fernando Novais, Carlos Guilherme Mota, Maria Odila Dias e Amaral Lapa até, mais recentemente, Paulo Henrique Martinez e Bernardo Ricupero.

Seu primeiro livro foi “Evolução Política do Brasil” (1933), que – segundo Carlos Guilherme Mota – introduziu o conceito de classe social para analisar a história brasileira. Mais recentemente, Paulo Martinez mostrou que a formação deste livro devia tanto ao marxismo (especialmente ao “18 Brumário” de Marx) quanto às discussões que ele assistiu no Clube dos Artistas Modernos, ao lado dos modernistas mais radicais: Flávio de Carvalho, Oswald de Andrade, Mário Pedrosa.

Seu trabalho mais importante é “Formação do Brasil Contemporâneo” (1942). Neste livro espetacular – cuja linguagem aparentemente fria contrasta com o ensaísmo de Gilberto Freyre e de Sérgio Buarque, mas não é isenta de um movimento e de uma dicção que tematizam seu conteúdo – arranja um esquema guiado pelo conceito de formação: uma análise da marcha dos fatos que vai do passado para o presente, e vice-versa, buscando as causas verdadeiras do comprometimento do processo. E o que dava dinâmica à nossa formação? Seu “sentido” era que nossa vida econômica (e social, e cultural, e política) estava dirigida para completar as necessidades do capitalismo europeu, do qual éramos parte ativa e dependente.

O Brasil era parte do movimento do capital mercantil, uma realização dos interesses europeus, o que nos propiciou a condição de alternar momentos de enorme prosperidade com outros de “aniquilamento total” (segundo Amaral Lapa).

Novais notou que a inovação do sentido da formação em Caio Prado permitiu que ele, de maneira original, pudesse estabelecer as relações dialéticas entre a parte e o todo em um movimento que se inicia no recorte do objeto, passa pela apreensão de seu sentido e chega à reconstrução da realidade.

Assim, ele demonstrou que não era o clima ou a raça que explicavam os desocupados na colônia (como a historiografia anterior repetia), mas o sistema econômico global dentro do qual girávamos e que nos destinava a ser uma sociedade inorgânica (a dialética entre o orgânico e o inorgânico é uma das inovações mais atuais e precisas do historiador).

Por isso, em Caio Prado não há sinal de qualquer determinismo do “destino” ou do “caráter” nacionais. Ao contrário, como as características de nossa formação não foram impostas pelo destino, elas podem ser modificadas pela ação. Nele há uma idéia de história que se constrói e reconstrói sobre as suas bases, como luta política.

Por isso, a contribuição de Caio Prado para a compreensão do processo da formação histórica brasileira é ainda fundamental. Ao contrário da moda recente (que valoriza Sérgio Buarque e supervaloriza Gilberto Freyre), creio que é mesmo a mais significativa. Ele demonstrou que não éramos uma excrescência do capitalismo europeu, mas sua realização integral.

“Nascemos” modernos, dentro da modernidade e como uma criação dela. Mas uma criação acertada para um determinado fim (no sentido de finalidade): acumular lucro na metrópole, que para isso poderia até mesmo reinventar uma forma bárbara de exploração que a modernidade havia marginalizado, a escravidão.

Além disso, percebeu que a forma da colonização definia seu conteúdo e seu sentido: a colônia de exploração (o Brasil, por exemplo) servia para uma coisa, e a colônia de povoamento (o norte dos EUA), para outra. Se continuarmos pensando por aí poderemos entender como nos localizamos (e esse “nós” envolve toda a América Latina) no mundo atual. É um caminho melhor do que o culturalismo, hoje tão em moda.

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FRANCISCO ALAMBERT é professor de História Contemporânea da USP.

Omissão gerou abalo com Furtado

ESPECIAL PARA A FOLHA

Acostumado ao debate público, Caio Prado Jr. não tomava as críticas pessoalmente. Uma única vez, que se saiba, uma atitude intelectual o abalou. E não foi uma crítica. Foi uma omissão.

Caio Prado escreveu “História Econômica do Brasil” em 1945. Doze anos mais tarde, Celso Furtado publicou “Formação Econômica do Brasil” e não o citou. Caio Prado desabafou com o amigo Paul Singer. “Quando ele cita outros autores, a não-citação do Caio só pode ser proposital. Ele estava amargurado com o Furtado porque se sentiu inteiramente ignorado”, conta Singer.

O economista Francisco de Oliveira chegou a cobrar Furtado publicamente, num colóquio em Paris. Disse que era uma falha, posto que deveria conhecer a obra de Caio Prado. “Ele engoliu seco e agüentou o tranco.” (OP)

Eventos para o centenário incluem exposição e instituição de prêmio

DA REDAÇÃO

Os eventos de comemoração do centenário de nascimento de Caio Prado Jr. incluem debates, exposição e um prêmio. A editora Brasiliense anunciou a criação do Prêmio Literário Caio Prado Jr., dividido em duas categorias: projeto gráfico e texto – artigos sobre o tema “Brasil contemporâneo”.

Será organizada uma exposição sobre sua obra, prevista para maio. Carlos Zibel Costa, curador do projeto, pretende reunir objetos como cadernos de viagem e fotografias. Haverá também instalações de artistas plásticos.

A Brasiliense planeja, ainda, um seminário com especialistas, em abril. O Instituto de Estudos Brasileiros também organiza debates. Segundo o professor Paulo Iumatti, os participantes do evento, previsto para setembro, “não serão especialistas em Caio Prado Jr.; ele aparecerá como referência para temas atuais”.

Marxismo próprio

Historiador distingue o pensamento do autor entre os marxistas brasileiros

LINCOLN SECCO

ESPECIAL PARA A FOLHA

Até os anos 1960, o marxismo no Brasil foi uma cópia malfeita da produção teórica autorizada pela União Soviética. O próprio conhecimento das obras de Marx era muito pequeno e sua interpretação era invariavelmente mecanicista.

Caio Prado Jr. foi uma notável exceção porque foi capaz de combinar suas leituras de Marx com o meio cultural dos anos 20 e 30, caracterizados pela rejeição de tudo aquilo que parecia oficial e autorizado em termos estéticos, políticos e científicos.

Como primeiro marxista brasileiro, ele só teve antecedentes em figuras menos conhecidas e que tentaram, sem o mesmo sucesso que ele, interpretar a realidade brasileira à luz dos conceitos de Marx.

Esse fora o caso de Octávio Brandão, autor de “Agrarismo e Industrialismo” (ed. Anita Garibaldi) e dos trotskistas Lívio Xavier e Mário Pedrosa, autores do “Esboço de uma Análise da Situação Econômica e Social do Brasil”. Caio Prado Jr. tentou desde cedo interpretar sem copiar.

Teoria e prática

Numa carta ao próprio Lívio Xavier de 20 de setembro de 1933, ele escreveu: “É um critério absolutamente errado este de procurar enquadrar artificialmente os fatos brasileiros nos esquemas que Marx traçou para a Europa”. E foi isso que procurou evitar em sua obra.

Como marxista engajado e virtualmente excluído da vida acadêmica regular, ele tinha que unir teoria e prática. Por isso, além de escrever livros de história, Caio Prado se envolveu em muitas outras atividades em que procurava contribuir para uma atitude política radical em face de um Brasil que teimava em reproduzir suas mazelas coloniais.

Relatos de viagens aos países socialistas, artigos sobre questão agrária, livros sobre filosofia marxista e economia nacional foram escritos enquanto o autor dava palestras para públicos amplos e participava da vida partidária, fosse pela Aliança Nacional Libertadora, fosse pelos comitês de ação em São Paulo (ligados ao Partido Comunista Brasileiro) durante a fase em que o partido esteve praticamente sem nenhuma direção, já que Luís Carlos Prestes estava na prisão.

Finalmente, ele foi deputado estadual em São Paulo (em 1947), mas seu mandato logo seria cassado juntamente com o próprio Partido Comunista.

Disputa com historiador

Apesar de toda essa militância ele nunca teve sua obra bem aceita pelo partido. Historiadores mais afinados com a política oficial do PCB não deixaram de o criticar em diferentes épocas, fosse por não explicitar o uso de conceitos marxistas, fosse por disputas no campo da historiografia engajada.

Assim, Leôncio Basbaum, que, ao contrário de Caio Prado, tinha sido um importante teórico do partido no início dos anos 30, considerava algumas páginas de sua “História Econômica do Brasil” (referentes à colonização dos EUA) dominadas pelo determinismo geográfico e opostas à visão de Marx, como afirmou em sua “História Sincera da República” (Alfa-Omega).

Nelson Werneck Sodré, por outro lado, admirava a “Formação do Brasil Contemporâneo” como o melhor livro já escrito sobre o nosso período colonial, conforme disse no seu livro “O Que se Deve Ler para Conhecer o Brasil” (Bertrand Brasil), mas não o considerava marxista, e sim um exemplo de ecletismo (no jargão dos comunistas da época isso queria dizer que se tratava da pior das filosofias).

Sodré era oficial militar de carreira e tinha se tornado, simplesmente, a única voz “autorizada” em matéria de história no interior do partido, embora não fosse um membro filiado. A relação com Caio Prado Jr. era honesta e cordial, mas eles divergiam totalmente na caracterização do passado colonial do Brasil.

Assim como Sodré, o próprio partido acreditava na vigência de um passado feudal no Brasil, enquanto Caio Prado Jr. já considerava a América Portuguesa, desde o início, inserida em relações dominadas pelo capital mercantil europeu.

Mas agora ele não era mais apenas um comunista politicamente marginal no interior do partido – situava-se no centro de uma polêmica sobre as razões da derrota da esquerda.

Isso porque sua leitura do Brasil encontrava um novo ambiente cultural, e o próprio marxismo cedia lugar a uma era de vários “marxismos”.

Desse modo, Caio Prado Jr. tornou-se o novo paradigma das leituras críticas do nosso passado e passou da condição de herege à de mais brilhante pensador marxista brasileiro.

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LINCOLN SECCO é professor do departamento de história da USP.

País sempre mercantil

Para cientista político, trabalho do intelectual levou a sociedade brasileira a perder a idéia de nação

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

COLUNISTA DA FOLHA

Caio Prado Jr. foi um dos grandes intelectuais que pensaram o Brasil em uma época em isto ainda se fazia – até os anos 1960. Desde o começo do século 20, grandes figuras como Silvio Romero, Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Guerreiro Ramos, Ignácio Rangel, Raymundo Faoro e Celso Furtado buscaram a identidade do Brasil e pensaram o processo de sua afirmação nacional. Denomino o grande ciclo político da sociedade brasileira dessa época, que termina com o golpe militar de 1964, “Ciclo Nação e Desenvolvimento”.

Caio Prado faz parte desse ciclo por meio de três grandes livros de interpretação do Brasil: “Evolução Política do Brasil”, “Formação do Brasil Contemporâneo” e “História Econômica do Brasil”. Entre todos os autores citados, porém, ele talvez tenha sido o que menos se identificou com o nacionalismo dominante entre os intelectuais brasileiros do seu tempo.

Materialismo histórico

Seu marxismo dificultava identificação nacional maior; os marxistas, como os liberais, são internacionalistas. Ele foi o primeiro grande intelectual marxista brasileiro, porque soube aplicar o materialismo histórico para pensar o Brasil sem transformá-lo em uma camisa-de-força teórico-ideológica, mas usando-o de forma criativa como um método crítico, aberto e dialético.

Sua análise da natureza da colonização brasileira – uma colonização de exploração mercantil em vez de uma colonização de povoamento como ocorreu no Nordeste dos Estados Unidos – é uma das análises mais esclarecedoras do Brasil e dos fundamentos do seu atraso econômico.

Caio Prado Jr., entretanto, jamais compreendeu o Brasil industrial – o Brasil que começa a nascer no final do século 19 e entra em processo de transformação revolucionária a partir de 1930. Ele não soube reconhecer o papel decisivo que tiveram, de um lado, a crise do sistema imperial mundial com a Grande Depressão dos anos 1930, e de outro, a liderança de Getúlio Vargas e de todo um grupo de nacionalistas que assume o poder então para viabilizar as revoluções industrial e nacional brasileiras que ocorrem entre 1930 e 1960.

Reação indignada

Embora a industrialização tenha mudado o país naqueles 30 anos, ele iria afirmar, em “A Revolução Brasileira” (1966), que a formação social brasileira continuava sempre mercantil.

Embora os empresários industriais tenham se originado de imigrantes de classe média, ele assegurou nesse livro que esses empresários tinham origem fundamentalmente nas famílias ligadas ao café.

Talvez suas origens aristocráticas, ligadas ao café, estejam na base dessas posições. “A Revolução Brasileira”, porém, só se explica como uma reação indignada contra 1964 – que o levou a fazer uma aliança com os jovens sociólogos de esquerda da USP que, nos anos 1960, criticavam Vargas e a estratégia nacional-desenvolvimentista.

Essa crítica contribuiu para a implantação da democracia brasileira, mas foi um fator importante que levou a sociedade brasileira à perda da idéia de nação desde então – algo pelo qual ela paga caro até hoje.

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LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda, da Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia, é autor de “As Revoluções Utópicas dos Anos 60” e “Desenvolvimento e Crise no Brasil” (ambos pela ed. 34).

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