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“Olhares Cruzados sobre a Revolu??o de Abril: metrópole e retorno em Dulce Maria Cardoso”Isabel Cristina MateusUniversidade do Minho/ Cehum1. Retorno: breves notas para a crónica de uma mudan?a anunciada 25 de Abril de 1974 é reconhecidamente para os portugueses a data mais emblemática do século XX, como sublinharam os meios de comunica??o social em Portugal ao longo deste mês de Abril, decorridos quarenta anos, com base nos resultados de um inquérito realizado junto da popula??o: a histórica manh? de Abril foi a madrugada de todas as manh?s e de todos os futuros, o dia dos tanques avan?ando pelo Terreiro do Pa?o, dos cravos nas espingardas e nas lapelas, do povo em festa enchendo de palavras e de flores as ruas. A Revolu??o de Abril foi para nós, como o haveriam de dizer para sempre os versos de Sophia Andresen, “o dia inicial inteiro e limpo // Onde emergimos da noite e do silêncio// E livres habit[á]mos a subst?ncia do tempo”, (2010:68). Ou ainda, na evoca??o à dist?ncia de um dos seus arautos e construtores, o poeta Manuel Alegre, “um Abril comigo Abril contigo// ainda só ardor e sem ardil// (…) Abril de vinho e sonho em nossas ta?as” (2014: 67). Uma promessa de sonho e de esperan?a bem diferente, é certo, dessoutro Abril desencantado que, vinte anos depois, há-de lembrar ao mesmo poeta um caranguejo em marcha: Vinte anos depois a história escreve-se ao contrário//Abril é uma data do avesso e os tanques//est?o a voltar em marcha-atrás a Santarém. (…)Um caranguejo p?s-se a caminhar//um caranguejo dentro de palavras.// Vinte anos depois há um erro de calendário//alguém anda a querer virar a página//vinte anos depois a história escreve-se ao contrário” (2014: 69).Entre o “dia inicial” de Sophia e o caranguejo andante de Manuel Alegre n?o foi apenas o tempo que passou. Muita coisa mudou no país e na sociedade portuguesa, muito se ganhou, muito se perdeu pelo caminho. Como em todas as Revolu??es. Mas Portugal é hoje, seguramente, um país bem diferente do país cinzento e isolado de há quarenta anos atrás . Procurarei aqui brevemente reflectir sobre um dos agentes dessa mudan?a tomando como ponto de partida o romance O Retorno de Dulce Maria Cardoso, publicado em 2011, cujo sucesso editorial veio chamar a aten??o em Portugal para uma escritora que já vinha sendo reconhecida internacionalmente e premiada pelos seus romances anteriores. Poderia escolher vários romances de autores portugueses contempor?neos sobre o 25 de Abril ou que têm o 25 de Abril como pano de fundo da narrativa (desde O Esplendor de Portugal (1997) de António Lobo Antunes ao já longínquo O Dia dos Prodígios (1980), em contraponto com o recentíssimo - e a vários títulos, memorável- romance Os Memoráveis, ambos de Lídia Jorge). Escolho O Retorno por ter como tema central, explícito no título do romance, o regresso à metrópole dos portugueses das ex-colónias, chamando a aten??o para aquele que foi um dos maiores influxos e agentes de mudan?a na sociedade portuguesa pós-Revolu??o. O retorno é, com efeito, um dos aspectos mais marcantes do 25 de Abril no que concerne o processo de independência das antigas colónias, um aspecto que tem sido apontado como único, exemplar, em todo o mundo: lembro, com Eduardo Louren?o, que entre os imperativos da Revolu??o, os famosos “3 dês” (Democratizar, Desenvolver, Descolonizar), “aquele que se imp?s como prioritário foi o último”. Refiro-me àquilo que tem sido destacado como o sucesso da integra??o de mais de meio milh?o de retornados das ex-colónias na sociedade portuguesa em pouco mais de quatro meses, sublinhando que, naturalmente, ao utilizar as palavras “exemplar” e “sucesso”, n?o estou a esquecer ou minimizar os dramas pessoais e familiares desses portugueses, a amargura que trouxeram nas malas e nos contentores de viagem, nem t?o-pouco a branquear a dor da perda e o sentimento de desterrritorializa??o. Da mesma forma, n?o ignoro ou sequer pretendo p?r em causa a finura de análise de Eduardo Louren?o quando afirma, provocadoramente, n?o ter existido entre nós, em rigor, uma “descoloniza??o” pela simples raz?o de que, para o ensaísta, o “Império nunca existiu”:Pode chamar-se a esta derrocada do último império colonial europeu “descoloniza??o”, mas se esse conceito sup?e a existência prévia de um projecto e de um processus de convers?o do antigo estatuto colonial para um outro, de autonomia e independência, maduramente pensados e controlados na sua emergência, n?o houve entre nós, nenhuma “descoloniza??o” (2014: 253). Limito-me aqui a sublinhar o êxodo for?ado, e dolorosamente real, desse meio milh?o de portugueses retornados, com a serenidade e o distanciamento crítico que só o tempo tornou possíveis. Procurando ancorar o meu olhar no testemunho de algumas vozes autorizadas de vários sectores e quadrantes ideológicos que, ao longo deste mês de Abril, na imprensa e nos meios de comunica??o social portugueses, foram un?nimes em reconhecer esta singularidade positiva: entre elas, Vasco Louren?o, um dos capit?es de Abril, o historiador Fernando Rosas ou o empresário Alexandre Relvas, nascido em Luanda, de quem colho, no jornal Público, a afirma??o de que o movimento de integra??o dos retornados “correu t?o bem que n?o é suficientemente valorizado, a sociedade portuguesa n?o valoriza essa capacidade enorme que teve”, como se lhe tivesse passado despercebida. Para Alexandre Relvas, o sucesso de integra??o ter-se-á ficado a dever n?o só ao que classifica como a “extraordinária generosidade” da sociedade portuguesa mas também ao papel “extraordinário” que o Estado ent?o desempenhou, nomeadamente ao p?r no terreno um conjunto de medidas como a ponte aérea entre Portugal e Angola, o programa de alojamento dos retornados, a reintegra??o no trabalho de todos os funcionários do Estado nas ex-colónias ou a cria??o de um Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais (IARN). O sucesso da integra??o dever-se-á também, diria antes sobretudo, à “capacidade de iniciativa e de luta do conjunto de portugueses que regressaram e que trouxeram o conhecimento e a mais-valia de serem os últimos colonos portugueses em ?frica” (Almeida 2014:16). O sociólogo Rui Pena Pires, autor da única grande investiga??o sobre a temática da integra??o, real?a igualmente este aspecto positivo em declara??es ao jornal Público, ao considerar que “houve uma boa integra??o” dos retornados na medida em que n?o há hoje na sociedade portuguesa “marcas que se percebam”, marcas visíveis de diferen?a em rela??o a qualquer outro cidad?o português. O que é, para o sociólogo, um facto notável, na medida em que estamos a falar da maior desloca??o populacional na Europa no século XX: nem o repatriamento no pós-II Guerra Mundial, nem a descoloniza??o brit?nica atingiram um valor percentual t?o elevado. Os retornados est?o hoje em todos os sectores da sociedade portuguesa, desde o governo às institui??es, públicas ou privadas, da academia às empresas e aos meios de comunica??o social que, em alguns casos, eles próprios fundaram ou ajudaram a fundar. A eles e ao seu espírito empreendedor, à sua largueza de vistas e abertura mental, se devem um dos contributos mais decisivos na mudan?a da sociedade portuguesa, na sua moderniza??o e na constru??o de um Estado democrático. Evocar o vento de mudan?a que eles significaram para o país é porventura hoje uma das melhores formas de homenagear Abril. 2. Ao encontro das raparigas com brincos de cerejas De retornados e de integra??o fala o romance de Dulce Maria Cardoso, um romance que vem possibilitar um olhar diferente sobre a independência das antigas colónias portuguesas e sobre o regresso for?ado à metrópole dos últimos representantes do império daquela que foi a primeira e última na??o colonizadora europeia. N?o sendo uma temática nova na fic??o mais recente, um dos méritos da autora foi certamente o de conseguir dar um novo enfoque a um tema fracturante na sociedade e na cultura portuguesas, ao fazer dos “retornados” n?o o cenário mas o próprio assunto e ac??o do romance e colocando em primeiro plano uma temática inédita: a dos refugiados em hotéis (numa clara alus?o ao programa de alojamento dos retornados desencadeado pelo Estado português). Mérito também pelo tom certo encontrado: sem nostalgia ou idealiza??o, sem rasuras ou branqueamento emotivo, mas também sem ressentimento ou acusa??o, sem estremecimento de pele, numa clara demarca??o daquilo que Eduardo Pitta chamou "literatura do eterno retorno", uma literatura nostálgica que se compraz (salvo raras excep??es) em re-escrever a memória de “um paraíso perdido" (2011:10). Por todas estas raz?es, importa dizer que O Retorno é, como destacou a revista Ler na capa da edi??o de Outubro de 2011, do “primeiro grande romance sobre quem regressou de ?frica”.O Retorno conta a história de Rui e da sua família que, apanhados no turbilh?o dos acontecimentos que marcam o ruir do império e a autonomia das colónias, regressam à "metrópole" na "ponte aérea" de 75 onde se descobrem, de um momento para o outro, sem terra, sem casa e dentro de uma pele que n?o é a sua. O Retorno é a narrativa dessa perda dolorosa, do espanto adolescente perante o súbito estranhamento do mundo, mas também do desejo indomável de edifica??o a partir das ruínas. Longe de ser um olhar nostálgico sobre o passado, o romance é antes um olhar intrépido, luminoso, sobre o futuro: mais do que um “retorno”, trata-se de um “re-come?o”. Importa dizer que O Retorno é, antes de mais, um romance de aprendizagem, de descoberta de um mundo em mudan?a, construído a partir da perspectiva instável e da voz narrativa de um adolescente, ele próprio palco de mudan?as várias. Uma op??o formal relevante pelo que de inocente, de ideologicamente descomprometido ou em constru??o esta voz possa implicar (ou de alegadamente light, como certa crítica mais ligeira pretendeu), dela decorrendo em parte o registo diferente, neutro, deste romance. E este tom maior, lucidamente maior, que perpassa O Retorno é uma das raz?es de o ter escolhido para celebrar uma data que deve ser de esperan?a, de esperan?a apesar dos e contra os tempos de chumbo.No último dia que passa em Luanda, naquele que viria a ser o último almo?o em família antes de embarcarem no avi?o que os há-de trazer de “regresso” a Lisboa, Rui detém-se nos sons e no cortante dos gestos familiares: a cesta do p?o derrubada sobre a mesa, o tilintar contido dos talheres, a m?o do pai rasgando com a faca de cortar a carne a toalha das dálias bordada pela m?e, o indizível dos gestos. Como um sensor, Rui regista todos os sinais, a tens?o suspensa no ar, os tiros lá fora, o silêncio apenas rasgado pelo ruído da ventoinha, anunciando o roncar dos motores do avi?o.Abandonar a casa é uma ferida, fechar a porta do passado, uma perda irreparável, a viagem, uma linha de separa??o, a metrópole, o desconhecido. Todavia, o olhar de Rui procura distrair a angústia na beleza sedutora de uma imagem: a imagem das raparigas com brincos de cereja:Mas na metrópole há cerejas. Cerejas grandes e luzidias que as raparigas p?em nas orelhas a fazer de brincos. Raparigas bonitas como só as da metrópole sabem ser. As raparigas daqui n?o sabem como s?o as cerejas, dizem que s?o como as pitangas. Ainda que sejam, nunca as vi com brincos de pitangas a rirem-se umas com as outras como as raparigas da metrópole fazem nas fotografias (2011:7). A imagem erotizada das raparigas com brincos de cereja que abre o romance e se constitui em leit-motiv estruturante da narrativa é assim o pórtico de entrada no mundo desconhecido que em breve se abrirá para Rui. As raparigas com brincos de cerejas s?o indissociáveis da sua representa??o do Outro, no caso, da metrópole longínqua e mitificada, um território de sedu??o, em certa medida utópico: uma representa??o construída a partir de uma pluralidade de imagens, de narrativas familiares, do álbum de fotografias da m?e e consolidada (ou hipertrofiada) pela iconologia da cultura de massas, em particular, das revistas e da cultura cinematográfica europeia e ocidental. As cerejas s?o, enquanto ponto focal do olhar de Rui, metáfora da alteridade, instaurando a diferen?a entre um "lá" idealizado e um "aqui" real, entre "cerejas" e "pitangas", entre dois mundos ou continentes, europeu e africano, até este dia confortavelmente distintos, incluindo esse desconhecido continente feminino apenas entrevisto na polpa rubra dos brincos de cerejas. As raparigas da metrópole encarnam um estereótipo de beleza e de sensualidade que n?o encontra tradu??o no “aqui” e no “agora” em que Rui se situa: as raparigas “daqui”, comenta, “n?o sabem como s?o as cerejas", n?o riem umas com as outras e, principalmente, nota, n?o usam "brincos de pitangas”. A imagem dos brincos de cerejas irá acompanhar Rui ao longo do seu processo de aprendizagem, um percurso identitário fortemente abalado pelas convuls?es provocadas pela descoloniza??o, desde logo pelo abandono for?ado da terra que o vira nascer: “Ainda que gostemos de nos enganar dizendo que voltamos em breve, sabemos que nunca mais estaremos aqui. Angola acabou. A nossa Angola acabou” (2011:14). Na mala de viagem deixada para trás na precipita??o da fuga, ficar?o, sem que Rui o saiba, a cren?a e as certezas inabaláveis, o conforto e a seguran?a de um mundo de oposi??es, a preto e branco, um mundo que literalmente rui com a pris?o do pai pelos soldados angolanos poucas horas antes do embarque e com o retorno do que resta da família à metrópole. Embora a express?o seja inadequada ou pouco rigorosa no caso de Rui (nascido em Angola), “retornar” à metrópole significa transpor o limiar da porta de entrada num mundo outro, de certa forma estrangeiro, significa “regressar” à casa-Europa e a proximidade do mundo de imagens e de ícones acentuadamente europeus que habitam os seus sonhos de adolescente; daí a diferen?a do seu olhar nem verdadeiramente exterior nem interior, desterritorializado. Retornar significa entrar num mundo de desejo onde as fotografias ganham cor, textura, cheiro, sabor. Significa entrar num mundo em que as cerejas e os cravos se indistinguem no vermelho da revolu??o nas ruas, no rubro da revolu??o interior: “[o] que quero agora – dirá Rui ao chegar a Lisboa - é conhecer as raparigas da metrópole, as raparigas dos brincos de cereja. Ainda n?o vi nenhuma que fosse linda como as das fotografias mas tem de haver, n?o as inventaram só para a fotografia” (2011:106-107).A vis?o do Outro e, sobretudo, a constru??o da utopia do Outro, s?o indissociáveis desta representa??o do mundo feminino, através da qual a metrópole e a Europa se configuram como corpo ou território de sedu??o. Todavia, em busca da sua própria identidade, Rui acabará por interrogar e desconstruir, por dentro e simultaneamente de fora, com um olhar desenraizado, equidistante, aquilo a que Eduardo Louren?o chamou a nossa “estrutura de hiperidentidade”, e em particular, a imagem hipertrofiada de Portugal, pequena-grande na??o colonizadora, veiculada pelo antigo regime, ao mesmo tempo desconstruindo a imagem épica, auto-mitificadora, da Revolu??o de Abril.3. “Uma ilha no mar da revolu??o”O Retorno é assim a narrativa do choque cultural vivido por Rui ao chegar à metrópole, do desmoronar da utopia do Outro, sintetizado na única frase que constitui o terceiro capítulo do romance: “Ent?o a metrópole afinal é isto.” Isto é a medida do desencanto de Rui no percurso entre o aeroporto e o Estoril, a forma como traduz em imagens o desabar da representa??o hegemónica da "metrópole", o confronto com um país improvável, pequeno, pobre, triste que a Revolu??o n?o alterou:N?o, a metrópole n?o pode ser como hoje a vimos. A prova de que Portugal n?o é um país pequeno está no mapa que mostrava quanto o Império apanhava da Europa, um império t?o grande como daqui até à Rússia n?o pode ter uma metrópole com ruas onde mal cabe um carro, n?o pode ter pessoas tristes e feias, nem velhos desdentados nas janelas t?o sem serventia que nem para a morte têm interesse" (2011:84). Isto traduz igualmente a estranheza de se pisar uma terra a que n?o se pertence, simultaneamente familiar e desconhecida, próxima e distante, a incredulidade perante a contradi??o que o luxo do hotel torna evidente: “A metrópole tem de ser toda como este hotel, o que vimos hoje até aqui chegar só pode ser um engano. A metrópole tem de ser como este hotel que até no elevador tem uma banqueta forrada a veludo (2011:83). Isto é a experiência da diferen?a de hospitalidade num hotel e numa sociedade em revolu??o onde há hóspedes “normais” que “n?o podem ser incomodados” e “têm de ser tratados de acordo com o que pagam” e os “outros”, os “retornados”, que devem estar agradecidos por lhes ter calhado em sorte um hotel de cinco estrelas (Id:68-69). Isto é ainda a tens?o latente entre o discurso conservador da directora do hotel para quem “os tempos conturbados” - ou, como lhes chamará mais tarde, perante a progressiva degrada??o do hotel, os “tempos funestos” (2011:237)- da Revolu??o justificam o original apart-heid entre hóspedes de primeira e de segunda, e o ardor revolucionário do taxista para quem “os tempos n?o s?o conturbados, (…) s?o tempos bons, nem mais um soldado para as colónias, nem mais um caix?o das colónias, camaradas” (Id:83). Isto é ainda sentir na pele essa discrimina??o e perceber que, cá ou lá, continuam a ser portugueses de segunda e que, no fim de contas, "os de cá ainda gostam menos de nós do que os pretos de lá" (Id: 219).Ainda que Rui o n?o possa adivinhar à chegada ao hotel, o choque cultural e o drama que ele e a família come?am a viver passará pela palavra retornado (ou entornado, no dizer corrosivo de alguns) que h?o-de tentar colar-lhes como uma segunda pele, passará por um “isso” sem aderência, um pro-nome, mais do que demonstrativo, indefinido e indefinível: "Agora somos retornados. N?o sabemos bem o que é ser retornado mas nós somos isso. Nós e todos os que est?o a chegar de lá" (2011:77). Da mesma forma que passará por uma palavra misteriosa, a palavra IARN, omnipotente e omnipresente: Em quase todas as respostas uma palavra que nunca tínhamos ouvido, o IARN, o IARN, o IARN. O IARN paga as viagens para a terra, o IARN p?e-nos em hotéis, o IARN paga o transporte para os hotéis, o IARN dá-nos comida, o IARN dá-nos dinheiro, o IARN ajuda-nos, o IARN aconselha-nos, o IARN pode informar-nos. Nunca tinha ouvido tantas vezes uma palavra, o IARN parecia mais importante e mais generoso do que Deus (2011:77).Afinal, a sigla correspondente ao Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais, a palavra que melhor expressa o programa de acolhimento dos retornados ent?o desenvolvido pelo governo português. Mesmo se esse processo de integra??o n?o se faz sem escolhos e sem a discrimina??o, mais ou menos visível, da sociedade portuguesa, dos portugueses da metrópole. Discrimina??o que se torna ostensiva na recusa do direito a um nome, a uma identidade individual fora do rótulo colectivo e pejorativo de “retornados”: atitude que a professora de matematica tomará relativamente a Rui, desencadeando desse modo a fúria do adolescente: um dos retornados que responda, a puta nunca diz os nossos nomes, um dos retornados que responda era o que faltava (…) Custa assim tanto decorar o meu nome, se me chamasse Kijibanganga ainda tinha desculpa, mas Rui, porra, é um nome fácil, e mesmo que me chamasse Kijibanganga a puta tinha a obriga??o de decorar (2011:141).Sem terra, sem casa, sem nome, Rui inicia um percurso de sobrevivência, sua e da família, que é simultaneamente um lugar de exílio mas também um percurso de aprendizagem e afirma??o identitária, de conquista do direito à cidadania. O hotel e a experiência de desterrado ser?o desta forma para Rui a sua escola de vida, a sua ilha no meio do mar da Revolu??o, uma terra de ninguém entre dois continentes, o seu manual de sobrevivência. ? semelhan?a de Robinson Crusoe, Rui aprenderá que “as coisas terríveis est?o sempre a acontecer, cá, lá, em todo o lado” (2011:261) e que é possível n?o gostar “do frio da metrópole” mas gostar “da mudan?a de esta??es” (Id:165). Aprenderá que a vida se constrói afinal no constante balan?o entre perdas e ganhos, dando provas ao longo do romance de um pragmatismo e de um optimismo que cativam o leitor: “nem todos os dias no hotel foram maus, também tiveram coisas boas”, resumirá Rui no final do romance, acrescentando “n?o po[der] evitar que umas coisas tragam outras ou fa?am perder outras” (Id:267) e que, no fim de contas, “as noites da metrópole também podem ser bonitas e cheias de estrelas” (Id:126). A aprendizagem, em última inst?ncia, será recíproca, de Rui e da sociedade em mudan?a que o acolhe, na medida em que a integra??o destes “retornados” veio desassossegar o imobilismo conservador do país, provocar uma certa acultura??o e abertura de mentalidades. Os retornados foram agentes de um sobressalto positivo, introduzindo um tempo e um ritmo que sacudiram a sonolência do país orgulhosamente só, uma nota de cor na cinzenta gravidade nacional, uma descompostura na pose oficial de “país engravatado todo o ano” (1982:243), para utilizar os versos do poeta Alexandre O’Neill que t?o bem o soube retratar. Um desafio patente nos mais pequenos gestos do quotidiano, gestos simples, como beber Coca-Cola, sentar-se na relva ou usar roupa colorida:Quando já n?o consigo olhar mais para o mar (…) fico a ver o jardim do Casino cheio de retornados (…). A maior parte das vezes n?o se consegue encontrar um banco livre e é proibido sentarmo-nos na relva, na metrópole tudo o que é bom é proibido, até a Coca-Cola, os de cá até têm raz?o para serem t?o embirrentos. (…) O Tozé Cenoura (…) traz miúdas do hotel e dá-lhes ordens em quimbundo para os de cá saberem que é retornado. N?o é preciso nada disso porque basta olhar para as roupas que tem, os de cá n?o mandam banga como nós e têm a pele branca como o leite ou cinzenta-esverdeada, uma pele de cor estragada. Os de cá s?o gente esquisita que nos topa à légua (2011:109).Desafio ou sobressalto igualmente patentes numa certa liberdade sexual até ent?o desconhecida na metrópole moralista e recatada; Gaby, uma das namoradas de Rui, há-de saborear deliciada no beijo que este lhe dá um travo diferente, irresistível, estrangeiro:A Gaby, uma a quem dei um beijo de língua logo no início do ano, disse-me que gostava de estar comigo, que quando estava comigo, era como se estivesse no estrangeiro. E como é estar no estrangeiro, perguntei, a Gaby n?o sabia, nunca tinha saído da metrópole, mas n?o achava estranho dizer, é como se estivesse no estrangeiro, é mesmo coisa de rapariga da metrópole (2011: 146).Se a metrópole vai despertando da letargia, ganhando cor e ousadia, Rui e os retornados do hotel, por seu turno, resistem a deixar-se contaminar pela “tristeza da metrópole” que “entra em nós como o ar que respiramos”, corroendo o ?nimo: “? difícil acreditar no que quer que seja. (…) N?o se consegue acreditar em nada e também n?o se consegue ficar à espera para ver o que acontece” (2011:136), sobretudo numa terra onde “n?o acontece nada tirando a Revolu??o” (Id:191). Em certa medida, a mesma tristeza cinzenta que se esconde nos gestos da m?e e está na origem da doen?a que a consome interiormente. Rui, porém, n?o se deixará abater pelo fado lusíada ou pela nostalgia de alguns retornados que gastam “horas a lembrar-se do que perderam”; ambos se saldam por um imobilismo que n?o lhe agrada. N?o se deixará abater t?o-pouco pela desconfian?a com que s?o olhados pelos de cá, receosos de quem quer “roubar-lhes os empregos, além de [lhes] destruir os hotéis, destruir a linda metrópole que nunca mais vai ser a mesma” (2011:189). Rui quer arrega?ar as mangas, “arranjar trabalho para mostrar aos mangonheiros da metrópole de que massa os retornados s?o feitos, se conseguimos construir terras como as que fomos obrigados a deixar também conseguimos mudar o atraso de vida que a metrópole é” (Id.: 189). Da mesma forma, Rui n?o se deixará abater pela desilus?o ao descobrir que n?o há na metrópole raparigas com brincos de cereja como as do álbum de fotografias da m?e, que “afinal n?o há assim tantas raparigas bonitas na metrópole, em geral até s?o feias, muito mais feias do que as de lá” (2011:148). A leitura desencantada da metrópole n?o o impedirá, todavia, da aproxima??o a uma leitura mais realista e pragmática junto de Teresa; aos seus olhos, Teresa há-de parecer-lhe “bonita como tudo”, afinal "quase t?o bonita como as raparigas dos brincos de cereja" (2011:148).4. O cora??o das cerejas: os filhos da Revolu??oO pragmatismo de Rui, a sua capacidade de adapta??o à “metrópole de viver”, manifestar-se-á de diversas formas ao longo do romance. Desde logo no modo como se adapta à vida no hotel e, em particular, como ultrapassa a sua condi??o de desterrado encontrando no quarto que partilha com a m?e e a irm?, o seu território, a sua casa: “Um quarto pode ser uma casa e este quarto e esta varanda de onde se vê o mar é a nossa casa” (2011:163), dirá mais tarde. Manifestar-se-á igualmente no modo como procura proteger a família e tra?ar planos de futuro, mesmo se estes se revelam delirantes, como acontece com o plano de emergência para levar a m?e e a irm? para a América, plano que passa por “decorar inteirinho” um dicionário de inglês para aprender a língua. Ou com o picaresco plano de roubar os contentores abandonados das vítimas de Sanza Pombo, pertencendo Rui ao piquete de vigil?ncia criado para os proteger: Sei que é assim que se pensa [ultraje do roubo] porque também já pensei da mesma maneira e teria continuado se n?o tivesse a m?e e a minha irm? para levar para a América. Mas tenho e isso é mais importante do que p?r-me a pensar no que está certo ou errado, no bem e no mal, os vinte contos que trouxemos já se gastaram e n?o temos mais cord?es de ouro para vender (2011: 198).A capacidade de adapta??o de Rui está ainda presente na forma como encontra no terra?o do hotel o seu território privado, a sua ilha secreta, e a ele sobe como se subisse ao cesto da gávea em busca de sinais de um futuro para além do mar da Revolu??o. Um território que ele diz conhecer “como a [sua] palma da m?o”, o lugar onde gostaria de deixar inscrita a marca da sua passagem “Eu estive aqui” (2011:267). E digo “passagem” porque, ao longo do romance, Rui descobrirá na sua condi??o desterritorializada a voca??o nómada que o leva a alimentar o sonho de ir para a América (ou para o Brasil) como aconteceu com tantos retornados. Uma casa é assim para Rui um lugar provisório, o mundo um lugar de exílio, a vida uma permanente err?ncia: este quarto com esta varanda de onde se vê o mar n?o é uma casa. Muito menos a nossa casa. Se fosse a nossa casa devia ser bom fumar aqui um cigarro. (…) Mas assim é diferente, assim é fumar um cigarro num sítio a que n?o perten?o e a que nunca pertencerei. (…) Um quarto pode ser uma casa e este quarto com esta varanda de onde se vê o mar é a nossa casa enquanto n?o vamos para a América (2011: 172-173). Pelo contrário, o pai de Rui, reaparecendo no final do romance quando toda a família o julgava morto pelos angolanos, mostrar-se-á t?o determinado em n?o falar sobre o passado como empenhado em construir o futuro com as suas próprias m?os, em ajudar a construir uma “na??o nova” (2011:250), transformada em cais de chegada de meio milh?o de portugueses. O visionarismo de Mário, o seu sentido prático e empreendedor, a sua cren?a no futuro, levá-lo-?o a tornar-se empresário na área da produ??o de cimento e ajudando a construir o país novo, o país de bet?o que ele premonitoriamente adivinha:O pai tinha uma única ideia, o futuro da metrópole passa pelo cimento e quem quiser fazer parte do futuro tem de se juntar a mim e à minha fábrica de blocos de cimento. (…) [E]u sei que esta terra n?o é aben?oada como as de lá, eu sei que esta terra pede-nos suor, lágrimas e sangue e em troca dá-nos um peda?o de p?o duro, mas também sei que numa coisa esta terra n?o é diferente de nenhuma outra, nem mesmo das mais aben?oadas, esta terra n?o rejeita o que lhe p?em em cima, isso também sei, e é por isso que vos digo que o futuro passa pelo que se vai p?r em cima desta terra, casas, estradas, hospitais, escolas, (2011: 257).Num trajecto que se desenha em rela??o quiasmática com o de Rui, o pai, que inicialmente afirmara ter aprendido “no livro da vida” que “um homem pertence ao sítio que lhe dá de comer” (2011:11), recusa a condi??o desterritorializada, de exílio, ao defender que “nunca mais ninguém me tira da minha terra” (Id:243) e ao pretender contribuir para a edifica??o de um país novo. Mário, será assim, como tantos outros retornados, um dos construtores desse país novo, pós-imperial, que, de Norte a Sul, procurou libertar-se de complexo secular de inferioridade lan?ando-se na ?nsia de desenvolvimento e de modernidade que marcam e condicionam, para bem e para mal, o nosso presente. Como tantos outros retornados, entre os quais o sr. Maurício, mec?nico de profiss?o, que acabará por “arranjar emprego numa cidade que fica do outro lado do rio, uma cidade que é um ninho de comunas t?o grande que até o Cristo Rei lhe virou as costas” (2011:265).A integra??o de Rui na metrópole passará ainda pela amizade com Queine, o porteiro do hotel que lhe serve de guia “indígena” no espa?o hostil da cidade (uma espécie de Sexta-Feira para o nosso Robinson Crusoe) e lhe oferecerá uma bicicleta usada para ir para todo o lado. O porteiro Queine com quem Rui aprende que “o destino é uma carta fechada” (Id:164) e lhe há-de abrir as portas de casa. A integra??o de Rui passará sobretudo por Silvana, mulher de Queine, em cujo corpo encontra, mesmo se provisoriamente, a reconcilia??o com a metrópole e com o sonho europeu:a Silvana sobre mim e eu sem medo de nada, sem pensar na morte do pai (…) nos demónios da m?e, na tristeza da minha irm?, na metrópole, a Silvana sobre mim mais bonita do que as raparigas com os brincos de cereja, a Silvana com os olhos quase fechados, a respira??o como num susto, as pernas duras a apertarem as minhas, o meu corpo cada vez mais dentro do dela e o corpo dela a pedir, cada vez mais s?frego, o meu (2011:216). [Negrito nosso]Silvana, uma casa provisória. Silvana, a mulher que há-de transportar no ventre um filho seu, numa espécie de nova “mesti?agem”. Uma promessa de futuro em comum. Porque, mesmo provisória, nenhuma terra "nos pertence enquanto n?o lhe conhecermos o cora??o”. Ou, nas palavras de Rui, “enquanto n?o lhe conhecermos o cora??o esta terra n?o guardará as nossas marcas nem reconhecerá os nossos passos" (2011:151).O percurso de Rui (para lá da afirma??o da sua voca??o nómada, do seu sonho de partir para a América, da sua sua vis?o desencantada, descentrada da Europa), documenta uma aprendizagem cultural e uma abertura ao pluralismo democrático que, porventura, n?o teriam sido possíveis sem a li??o de Abril. Lembrar essa din?mica, associando-a à festa explosiva, à energia criadora que o 25 de Abril trouxe, às realiza??es conseguidas no plano do estado social e do desenvolvimento do país, parece-me uma das melhores formas de celebrar a revolu??o dos cravos. ? dist?ncia de quarenta anos, no momento em que muitos dos valores de Abril parecem comprometidos no meu país, talvez a memória deste dia e daquelas que foram as suas mais importantes conquistas, nos torne mais exigentes e mais actuantes no exercício da cidadania. Afinal, a nossa forma hoje, de fazer a Revolu??o, de manter viva a memória de Abril.REFER?NCIAS BIBLIOGR?FICAS:CARDOSO, Dulce Maria (2011): O Retorno. Lisboa: Tinta-da-China.ALEGRE, Manuel (2014): País de Abril (Uma Antologia). Lisboa: D. Quixote.ALMEIDA, S?o José (2014): “Retornados: Uma História de Sucesso por Contar”, Jornal Público, P2, 20 Abril.AMARAL, Bruno Vieira (2013): Guia para 50 personagens da Literatura Portuguesa. Lisboa: Guerra e Paz.ANDRESEN, Sophia de M. Breyner (2010): Obra Poética (org. Carlos Mendes de Sousa). Lisboa: Caminho. EXPRESSO, 25 de Abril: quarenta anos depois, 18 de Abril de 2014.LER , n? 106, Outubro de 2011.LOUREN?O, Eduardo (2014): Do Colonialismo como Nosso Impensado (org. de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi). Lisboa: Gradiva. LOUREN?O, Eduardo (2011): A Europa Desencantada. Para uma mitologia europeia, Lisboa: Gradiva.———— (1988): “Portugal –Identidade e Imagem”. In: Nós e a Europa ou as duas raz?es, Lisboa: INCM. 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