Descobrindo a obra da Igreja por terras do Moxico



Um ano depois da Paz,

à descoberta da obra da Igreja

por terras do Moxico

Breve relato de uma visita da “Fundação O Futuro” - Junho 2003

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José Ribeiro e Castro

Quinta-feira, 26 de Junho. A alvorada foi muito cedo: 5 horas da manhã. Esperava-nos, no aeroporto de Luanda, o pequeno avião do P.A.M. – Plano Alimentar Mundial, que, uma hora depois, nos levaria ao Moxico.

A missão da “Fundação O Futuro – Construir o Futuro em Angola” era numerosa: a Profª. Fátima Roque, a Maria João Sande Lemos, a Margarida Mayer, o Carlos Amorim e eu próprio. Connosco viajavam ainda dois sacerdotes da diocese do Luena: o Pe. José João Tchissuale Isaac, conhecido como “Pe. Jójó”, procurador da Diocese, e o Pe. José Imbamba, que ensina na Universidade Católica em Luanda.

O objectivo era o de conhecermos mais de perto as pessoas e as obras que, desde há cerca de um ano, procuramos ajudar e para que mobilizamos solidariedade a partir de Portugal.

A vastidão do Moxico: “um Alentejo gigantesco”.

O Moxico é a província mais interior de Angola. Para quem tem presente o mapa de Angola, é a província a que, no profundo e distante Leste interior, pertence aquele quadrado que entra pelos países vizinhos - o “quadrado” chama-se “saliente do Cazombo” e marca a fronteira leste de Angola com a República Democrática do Congo (o ex-Zaire) e a Zâmbia.

É a província mais extensa de Angola, com 223.023 km2 – quase três vezes o tamanho de Portugal. Em termos portugueses, o Moxico é assim como “um Alentejo gigantesco”. Estende-se por 9 Municípios enormes: Luau, Luacano, Alto Zambeze, Lumege, Léua, Camanongue, Moxico, Luchazes, Lumbala N'guimbo. A capital da província e do município do Moxico é o Luena, a antiga cidade do Luso, nosso destino.

Segundo o censo oficial, existirão na província 230.000 habitantes – quase 40 vezes menos a população de Portugal. Há quem diga, porém, que poderão já ser, hoje, cerca de meio milhão de pessoas. Mas, com os massivos movimentos de população provocados pela longa guerra civil, que produziu largas centenas de milhares de deslocados internos ou de refugiados nos países vizinhos, ninguém pode dizer ao certo qual é a população actual do Moxico. Só por esses dias do fim de Junho em que estivemos no Luena, eram aguardados no Moxico, com origem na República Democrática do Congo, mais 180.000 refugiados angolanos, no quadro de uma vasta operação de regresso de refugiados supervisionada pelo ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) e que abrangia um universo global de 400.000 refugiados angolanos no Congo, na Zâmbia e na Namíbia.

Moxico: último cenário da guerra, primeiro palco da Paz.

Tinha sido justamente por aqui – pelo drama de centenas de milhares de deslocados e refugiados, fugidos da guerra ou violentamente enxotados por ela – que começara, há um ano atrás, esta nossa relação da “Fundação O Futuro” com as gentes e a diocese do Moxico.

Em 22 de Fevereiro de 2002, foi em terras do Moxico, próximo de Lucusse, que, culminando uma longa perseguição militar, foi abatido o líder histórico da UNITA, Jonas Savimbi, gerando imagens que correram mundo. Ali também seria enterrado, dias depois, já no Luena – sendo, porém, voz corrente que o corpo já lá não estará. E seria também aí, no Moxico e também na cidade do Luena, que, depois de rápidas e frutuosas conversações entre as duas partes do longo conflito armado, seria subscrito, em meados de Março, o acordo de cessar-fogo e o Memorando de Entendimento – o mesmo que, dias mais tarde, solenemente assinado em Luanda, a 4 de Abril de 2002, ficou a marcar a Paz que dura desde então e que ninguém vê agora que possa mais ser quebrada.

O Moxico foi, assim, o último cenário da guerra e o primeiro palco da Paz.

Por aqueles mesmos dias de Março de 2002, ao mesmo tempo que o calar das armas levantava o espesso manto da guerra, o mundo tomava conhecimento do que já se suspeitava, do que todos sabiam, mas que não estava à vista: a situação de carência extrema, de fome, de miséria brutal, de dependência absoluta, de doença, de vulnerabilidade total, em que se encontravam milhares e milhares de seres humanos, varridos continuamente de um lado para outro, deslocados e isolados pela guerra, com uma enorme percentagem de mulheres e crianças. Não foi caso único em Angola, pois as cifras de deslocados internos atingiam então, nos últimos dias da guerra, os 4 milhões, dispersos um pouco por todo o país, e só os desmobilizados da UNITA e suas famílias corresponderam a cerca de 350.000 angolanos, que seriam concentrados em cerca de 35 campos de acantonamento em várias províncias do território.

Mas, não sendo caso único, foi do Moxico que vieram os primeiros relatos da emergência humanitária e os primeiros apelos de ajuda. Por isso nos mobilizámos para o Moxico, em solidariedade com o seu bispo, D. Gabriel M’Bilingui, um jovem e dinâmico espiritano de 46 anos, uma das referências já da Igreja angolana. E aí também decidimos, depois, continuar a concentrar boa parte das ajudas angariadas pela Fundação, por uma outra razão fácil de entender: por ser do interior, do mais profundo interior de Angola, longe de tudo, esta província tendia a ser mais facilmente esquecida, logo que apagados os mediáticos holofotes daqueles dias dramáticos e decisivos. Para nós, quisemos que funcionasse exactamente ao contrário: a província do Moxico, em vez de mais facilmente esquecida, passou a ser a mais tenazmente lembrada província de Angola.

Diocese do Luena: fazer quase tudo a partir de quase nada.

Agora, fomos ver. Depois das primeiras ajudas – alimentos, medicamentos e vestuário – e das segundas – sementes, instrumentos de trabalho, livros, ainda alimentos e medicamentos -, quisemos ir ver a obra da Igreja nessas distantes terras de Angola. E decidimos continuar a acordar uma clara prioridade ao Moxico. Agora, já não é tanto pelos apelos lancinantes – embora as necessidades continuem a ser enormes. Nem é tão-pouco somente por querermos fazer lembrados os que, de outro modo, seriam esquecidos – embora esse risco do extremo interior de Angola se mantenha.

Agora... é porque vimos! Vimos que a ajuda resulta, vimos que a ajuda chega aos que dela carecem, vimos a imensa obra dos que têm pouco, vimos a capacidade e o talento para multiplicar os efeitos das magras ajudas, vimos fazer quase tudo a partir de quase nada – e, por isso, decidimos continuar a ajudar e a mobilizar mais ajudas. Não é só porque o Moxico precisa. É também porque o Moxico merece.

Depois de duas horas de voo, o pequeno aparelho “Beachcraft” do P.A.M. aterrava no Luena. O bispo, D. Gabriel M’Bilingui, não estava – tinha vindo para a Europa, em busca de mais ajudas. (Duas semanas depois, reunimos e trabalhámos com ele, já em Lisboa, quando por aqui passou de regresso a Angola.) Receberam-nos o Pe. Emílio Cavavo Dala, Vigário-Geral da diocese do Luena, e o Pe. Abraão Segunda, secretário do Secretariado Diocesano da Pastoral. Fomos de imediato para o Paço Episcopal, onde fizeram questão de nos servir um pequeno-almoço, na companhia dos Pe. Jójó e Pe. José Imbamba e das Irmã Julieta, Irmã Benjamina, Irmã Violante, Irmã Lucrécia, Irmã Inês, Irmã Marta e Irmã Rosa, bem como do Pe. Martin Lazartte, um salesiano notável de nacionalidade argentina. Eram, então, umas oito e meia da manhã.

Depois, começaram as reuniões. E, a seguir, uma vez prestadas informações sobre o trabalho da Igreja na diocese e feitas algumas ofertas da Fundação, as visitas sucederam-se a um ritmo intenso.

Tratou-se de visitar vários lugares de obra ou de preocupação da Igreja local, incluindo várias instalações que, depois de quase três décadas de confisco, estão agora a ser restituídas à diocese e que carecem de completa reabilitação.

Primeiro, fomos ao Colégio de São Bento: um edifício magnífico, de traça bem portuguesa, que foi, na década de 60, a primeira escola em toda a província do Moxico e que, depois de largos anos de abandono e de degradação, carece de ser totalmente recuperado e restituído ao ensino, agora de novo pela mão da Igreja. Foi-nos pedido que apadrinhássemos esta reconstrução – desafio aceite de imediato e para que começámos a congregar esforços logo após o regresso a Luanda, no final do dia.

De seguida, a lenta recuperação do antigo Seminário, que evolui hoje para um Centro Diocesano, de objecto mais vasto. Trata-se de um grande edifício, também de traça portuguesa dos anos 60, que foi restituído completamente degradado. Vêem-se marcas de tiros nalgumas paredes e, com excepção das poucas salas já recuperadas, não há uma só janela com vidros. Nas salas, fizeram-se fogueiras, vendo-se ainda as marcas do fogo – nem terá sido por vandalismo, mas por absoluta necessidade, em dias extremos de mais nenhum abrigo.

A recuperação está a ser feita, sala a sala, à medida de necessidades que vão sendo satisfeitas ou de projectos e sonhos que se vão concretizando. Grão a grão...

Esse edifício, semi-destruído, ostenta já um Centro de Formação Informática com mais de uma dezena de computadores, enquanto uma outra sala está dedicada ao ensino profissional do Inglês. O nome do jovem monitor que nos recebeu é, só por si, uma síntese da história recente de Angola: Altino Petrovic Tchivunda.

Uma outra sala vazia e degradada, que nos foi mostrada, está já destinada a Biblioteca, para que demos os primeiros livros – será a primeira biblioteca em todo o leste de Angola, pois tudo o que havia foi destruído ou saqueado, ao longo de trinta anos de guerra civil. E, um pouco mais adiante, estavam a ser recuperadas duas outras salas, a fim de aí instalar a futura delegação local da Radio Ecclesia, a mais importante e a mais essencial das rádios angolanas não-estatais.

Depois de uma breve passagem pela Tipografia Pax, também recentemente restituída pelo Governo e igualmente carecida de total reabilitação e reequipamento, visitámos duas obras de irmãs religiosas. Primeiro, a Escola de São Pedro Leonardo, uma obra das Irmãs Filhas de Jesus que funciona como verdadeiro “centro de alfabetização”: de manhã, para crianças; ao fim do dia, para adultos. E, em seguida, a Escola de Nossa Senhora da Assunção, na Missão Velha.

O fim da visita ficou por conta do Pe. Martin Lazartte, argentino e salesiano, que, com a sua juventude, alegria e energia, povoa de Dom Bosco as terras do Moxico. Cabe-lhe ainda dirigir uma Paróquia no Luena: a de S. Pedro e S. Paulo.

Vimos o Centro Educativo Dom Bosco, desenvolvido a partir de uma antiga cadeia do tempo colonial – só isto, em si mesmo, uma proeza bíblica. Salas de aula no pavilhão central, um centro de formação informática num anexo, uma oficina de carpintaria onde têm recuperado crianças-soldado, outros anexos a crescer.

E visitámos o Centro de Acolhimento e Registo D. Bosco, por onde já passaram dezenas de milhar de deslocados, antes de regressarem às suas terras de origem, e onde iriam passar agora muitos dos milhares de refugiados, afluindo do vizinho Congo (antigo Zaire). Aí se alimentaram e vestiram os famintos, se venceu a subnutrição, se combateu a doença e se salvaram milhares de vidas. Apesar de já muito despovoado (a generalidade dos deslocados já pudera partir, no entretanto), vieram ao nosso encontro, em sorridente algazarra, muitas crianças que teriam morrido, se não tivesse sido este lugar de acolhimento.

Montado pela Igreja numa antiga fábrica abandonada – uma fábrica de tacos de soalho –, este Centro de Acolhimento e Registo cumpriu e cumpre tão eficazmente a sua missão de socorro, que se tornou um pólo fundamental do trabalho das Nações Unidas e das suas agências humanitárias em toda a província. Não providencia apenas emergência alimentar e sanitária, nem só também abrigo transitório. Para muitos, dá-lhes trânsito educativo e, para todos, faculta-lhes uma identificação, com o respectivo registo e um cartão pessoal: ninguém chega, ninguém parte, sem que o seu registo não seja efectuado – um bem precioso, hoje em dia, para milhões de angolanos, deslocados ou refugiados de guerra: uma identidade conhecida e reconhecida.

Partir, ficando.

Terminou em alta esta curta visita ao Luena: observando os mapas e os registos desta extensa obra em terras de Moxico.

De volta ao Paço Episcopal, ainda nos deram de almoço, sempre a correr entre reuniões e encontros. É que a visita não terminaria ainda, sem um apontamento de outro tipo, tornado possível pela coincidência de eu ser também Presidente da Assembleia Municipal de Sintra. Tendo-o combinado de antemão com o Presidente da Câmara, o meu amigo e colega Fernando Seara, pude propor às autoridades municipais do Moxico o início do processo de geminação entre Sintra e a cidade do Luena. A proposta foi recebida com entusiasmo. O processo está, agora, a seguir já os seus trâmites, sob os auspícios e as bênçãos da diocese do Luena. Será mais um canal de fraternidade, mais uma via para canalizarmos ajuda, apoio e solidariedade, uma outra forma de continuarmos a fazer próximo o que não queremos distante e que tão fortemente nos interpela: a sorte, o destino, o presente e o futuro desses nossos irmãos angolanos, na vastidão desse profundo interior de Angola, terra-irmã.

Regressámos às 3 horas e meia da tarde, de novo num voo do P.A.M., pois a transportadora aérea nacional – a TAAG – ainda não voltou a operar para aquelas bandas.

Às 17h30, já quase ao pôr do Sol, aterrávamos em Luanda. Mas, na verdade, não chegámos a partir. Boa parte de nós ficou lá a morar, naquelas terras imensas, com as amigas gentes do Moxico.

José Ribeiro e Castro

Administrador

|[pic] |© Fundação Construir o Futuro em Angola |

| |Julho 2003 |

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A “NOSSA” ESCOLA

Recuperar o Colégio de São Bento: um projecto para apadrinhar

Foto 5: a capela do Paço Episcopal.

Foto 1: o avião do P.A.M., antes da partida para o Luena.

Foto 2: voando para o Luena. Da esquerda para a direita: Fátima Roque, Pe. Jójó, Pe. Imbamba, Margarida Mayer.

Foto 3: desembarque no aeroporto do Luena.

Foto 4: aterragem na pista do Luena.

Foto 6: entrada do Paço Episcopal do Luena.

Foto 7: pequeno-almoço. A hospitalidade da Diocese do Luena.

Foto 8: reunião com os missionários.

Foto 10: a Administração da “Fundação O Futuro”.

Foto 9: o Vigário-Geral da Diocese expõe as necessidades do Moxico.

Foto 11: saída do Paço Episcopal.

Foto 18: a sala para a futura Biblioteca.

Foto 15: o antigo Seminário está a ser recuperado como um Centro Diocesano polivalente.

Foto 14: Colégio de S. Bento – vista posterior.

Foto 13: Colégio de S. Bento – vista lateral.

Foto 16: nas paredes do antigo Seminário, os vestígios da guerra.

Foto 17: o Centro de Formação Informática.

Foto 12: Colégio de S. Bento – vista frontal.

Foto 19: recuperação de salas para a futura delegação da Radio Ecclesia.

Foto 22: Escola de S. Pedro Leonardo – o “jango”

Foto 21: ... e a obra. Alfabetizar crianças e adultos !

Foto 20: Irmãs Filhas de Jesus – a residência...

Foto 24: Escola de S. Pedro Leonardo – uma sala de aulas.

Foto 23: Escola de S. Pedro Leonardo – um dos pavilhões.

Foto 25: a Missão Velha – Escola de Nossa Senhora da Assunção.

Foto 28: Centro Educativo D. Bosco – as explicações do Pe. Martin Lazartte.

Foto 27: Centro Educativo D. Bosco – o pavilhão principal era uma antiga cadeia.

Foto 26: entrada para o Centro Educativo D. Bosco.

Foto 29: Centro Educativo D. Bosco – a oficina de carpintaria.

Foto 30: Centro de Acolhimento e Registo D. Bosco – vista exterior.

Foto 31: o Pe. Lazartte explica as operações de acolhimento nos diferentes campos para deslocados e refugiados.

Foto 32: Centro de Acolhimento e Registo D. Bosco – vista interior.

Foto 33: um pequeno grupo de crianças, deslocadas de guerra.

Foto 34: Centro de Acolhimento e Registo D. Bosco – o campo de acolhimento, adjacente.

Foto 35: da esquerda para a direita: Carlos Amorim, Fátima Roque, Pe. Lazartte, José Ribeiro e Castro, Pe. Jójó e Maria João Sande Lemos.

Foto 36: à entrada da Administração Municipal do Moxico.

Foto 37: lançamento da geminação com Sintra. Ao centro, o Administrador Municipal Adjunto, Manuel Francisco da Silva.

Foto 40: voando de regresso a Luanda.

Foto 39: já a bordo, para voltar.

Foto 38: outro avião do P.A.M. para regressar a Luanda.

Foto 41: o Pe. Martin Lazartte explica o funcionamento do Centro de Acolhimento e Registo D. Bosco. Em baixo: lugares de intervenção educativa na região do Luena, organizados em articulação com o plano de acolhimento de deslocados, desmobilizados e refugiados e operando sob responsabilidade dos Salesianos.

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