Sou cigano, para quê a Matemática? Pereira, Tânia & César ...

Sou cigano, para qu? a Matem?tica? Pereira, T?nia & C?sar, Margarida

Universidade de Lisboa, Departamento de Educa??o & Centro de Investiga??o em Educa??o da Faculdade de Ci?ncia

taninha_pereira@ & macesar@fc.ul.pt

Introdu??o A matem?tica desempenha um papel fundamental nos curr?culos portugueses.

No entanto, nem sempre ? valorizada e surge, muitas vezes, associada a estere?tipos que se criam em torno da sua complexidade. Segundo Abrantes (2001), a literacia matem?tica pode ser definida como um conjunto de saberes, de capacidades e de atitudes que s?o conjuntamente usadas para compreender o mundo e nele intervir criticamente. Segundo Abrantes, Serrazina e Oliveira (1999), todas as pessoas devem ter a possibilidade de contactar com ideias e m?todos matem?ticos, bem como desenvolver a capacidade de usar a matem?tica para analisar e resolver situa??es problem?ticas, para raciocinar e comunicar, assim como a autoconfian?a necess?ria para o fazerem.

No entanto, apesar da sua import?ncia, a rejei??o da matem?tica, bem como os fracos resultados obtidos pelos estudantes, t?m sido objecto de diversas discuss?es p?blicas, quer nos media quer nas escolas. As tarefas de matem?tica, propostas pelos professores e formadores, nem sempre se revelam experi?ncias de aprendizagem ricas e diversificadas, como ? recomendado em diversos documentos de pol?tica educativa.

Esta investiga??o parte da experi?ncia de lecciona??o de um curso de educa??o e forma??o de adultos (EFA) a um grupo de ciganos, no bairro da Bela Vista, em Set?bal. A comunidade cigana constitui uma minoria ?tnica que, n?o s? em Portugal como na Europa, mant?m com a sociedade dominante rela??es complexas de integra??o e exclus?o. As popula??es ciganas s?o alvos e actores de processos de acultura??o e de marginaliza??o. Afirmam, no entanto, uma identidade pr?pria, alicer?ada num sistema de valores, cren?as e normas culturais espec?ficas (Fonseca, 2005). Os ciganos constroem uma identidade ?tnica que, passando a fazer parte do seu comportamento quotidiano, configuram os seus estilos e oportunidades de vida (Casa-Nova, 1999).

As comunidades ciganas t?m sido comunidades secularmente afastadas da Escola. Compreender as raz?es dos baixos n?veis de escolaridade e do afastamento da Escola destas comunidades passa pelo conhecimento da etnicidade cigana, dos processos de socializa??o e educa??o familiares, das suas formas, expectativas e

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perspectivas de vida, onde as rela??es familiares e redes de sociabilidade intra-?tnica, a rela??o com o mercado de trabalho e a forma como se processa a inser??o dos jovens ciganos na vida activa, desempenham um papel fundamental. Passa tamb?m pelo conhecimento e compreens?o das formas e processos de a Escola, enquanto institui??o e enquanto organiza??o, trabalhar com a diferen?a cultural.

A escola vai gradualmente solicitando ao cigano o desempenho de determinadas tarefas para a resolu??o das quais o formando vai percepcionando que os conhecimentos que apropriou, e que s?o valorizados no seu grupo de perten?a, n?o s?o considerados adequados, apresentando reduzida validade na Escola. Inibem-se, assim, no desempenho de tarefas que percepcionam como amea?adoras da sua auto-estima: a sua n?o resolu??o, de acordo com a concep??o de ?xito escolarmente definido, significa a vulnerabiliza??o num meio que, n?o lhe sendo hostil, ? desconhecido e amea?ador, na medida em que n?o funciona segundo as regras que conhece (Casa ?Nova, 1999).

Os cursos EFA s?o uma oferta de educa??o e forma??o para adultos que apresentem baixos n?veis de escolaridade e de qualifica??o profissional. Os formandos s?o integrados num processo em que desenvolvem a sua pr?pria aprendizagem com recurso ? pr?tica, em que aprendem porque participam. Ocorre uma aprendizagem situada pela pr?tica, ligada aos pap?is que as pessoas desempenham. Assim, ? pela participa??o e ac??o que os sujeitos aprendem. Estes formandos aprendem atrav?s da conjuga??o do saber e do fazer, o que implica que as actividades individuais e colectivas sejam parte de um todo mutuamente constru?do, num processo din?mico, activo, interactivo, relacional, dial?ctico e transaccional, que contribui para desenvolver conhecimentos s?lidos e ?teis. O conceito de aprendizagem situada surge associado ? contextualiza??o dos conte?dos de aprendizagem, favorecendo a transi??o dos conhecimentos apropriados em cen?rios de educa??o formal para o dom?nio das pr?ticas quotidianas. (Lave & Wenger, 1991)

Como professora/ investigadora da turma, lecciono o m?dulo de matem?tica para a vida. S? por incluir a designa??o matem?tica, os formandos referem que n?o o compreendem e que ? muito dif?cil. Salienta-se que a maioria destes formandos aparentam desinteresse pela Escola. No entanto, existem alguns que se empenham, porque a Escola lhes aparece valorizada devido ? sua funcionalidade para o quotidiano da comunidade cigana. O valor da Escola apresenta graus vari?veis de significa??o, tais como a import?ncia de aprender a ler e a escrever, para poder descodificar os s?mbolos

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da linguagem escrita, ou fazer c?lculos utilizando as quatro opera??es b?sicas, para poderem contactar com a cultura socialmente dominante.

As propostas de trabalho colocadas pela professora/investigadora devem ser organizadas tendo em considera??o as experi?ncias de vida dos formandos e as compet?ncias matem?ticas que se pretendem desenvolver. Devem constituir um desafio para o formando, incentivando-o a realizar actividades em que mobilize conceitos num?ricos ou geom?tricos simples, processos e procedimentos matem?ticos para a resolu??o de problemas da realidade.

Metodologia O presente trabalho faz parte de uma necessidade sentida pela

professora/investigadora, em motivar e envolver os formandos na aprendizagem da matem?tica. Trata-se de uma investiga??o-ac??o, uma vez que a professora/investigadora pretende melhorar as pr?ticas, pelo que a investiga??o se reveste de um n?tido car?cter de interven??o. Assumimos, deste modo, uma abordagem interpretativa, em que os valores, viv?ncias, conhecimentos, sentimentos e cren?as da investigadora configuram o processo de investiga??o.

Os participantes s?o os formandos da turma B1, da C?ritas Diocesana da Bela Vista, de Set?bal, bem como a professora/investigadora. Esta turma ? constitu?da por 12 formandos, com idades compreendidas entre os 18 e os 58 anos. A maioria destes formandos tem la?os familiares, com v?rios graus de parentesco entre eles, pelo que existe muita cumplicidade entre eles. Os instrumentos de recolha de dados incluem a observa??o, enquanto participante observador (Merriam, 1988), entrevistas, question?rios, t?cnicas de inspira??o projectiva, recolha documental e conversas informais. A investiga??o decorreu ao longo de um ano lectivo, em que foram propostas e dinamizadas v?rias sess?es de trabalho, partindo das necessidades dos formandos, e tendo em conta as suas experi?ncias de vida.

Para manter os formandos motivados, tentamos realizar e propor diferentes tarefas para que se sintam envolvidos e empenhados na resolu??o das mesmas. Se, enquanto professora/investigadora, ocupar o tempo de que disponho a exercitar opera??es rotineiras, dificulto o interesse e o desenvolvimento intelectual dos formandos, desperdi?ando, desta forma, uma oportunidade. Mas se, pelo contr?rio, desafiar a curiosidade, apresentando-lhes problemas adequados aos seus conhecimentos

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e ajudando-os com interpela??es estimulantes, poderei despertar neles o gosto pelo pensamento independente e proporcionar-lhes alguns meios para o concretizarem.

Resultados No in?cio do ano lectivo pedimos para desenharem ou escreverem o que ? para

eles a matem?tica. A maior parte dos formandos revelam uma representa??o social negativa da matem?tica, sustentada pelas suas viv?ncias e pelo que ? assumido e difundido pela fam?lia.

Figura 1 ? Representa??o do Ant?nio

Figura 2 ? Representa??o da Ana

Figura 3 ? Representa??o da Daniela

A an?lise destas respostas permite-nos aceder a sentimentos, valores e emo??es que os formandos, atrav?s de um outro instrumento de recolha de dados, por exemplo

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um question?rio ou uma entrevista, n?o partilhariam. Com estes tr?s exemplos s?o apresentadas duas representa??es sociais da matem?tica negativas e uma representa??o positiva. O Ant?nio desenhou um helic?ptero e, salientou a semelhan?a entre a matem?tica e o voar. Referiu que sempre gostou de matem?tica, porque em crian?a gostava de brincar com o dinheiro. Relata tamb?m que, ainda hoje, parte dos seus dias s?o passados na rua a jogar, muitas das vezes a dinheiro, e sente a necessidade de fazer pequenos racioc?nios l?gicos. Menciona que precisa da matem?tica para a vida e n?o da matem?tica escolar, a que n?o atribui sentido.

Quanto ?s representa??es sociais da Ana e da Daniela s?o negativas, sendo que a Ana desenha um animal com muitos olhos, como a pr?pria dizia "? preciso ter olho para a matem?tica", visto que ? esta ? como um bicho de sete cabe?as e, por isso mesmo, com muitos olhos. A Daniela, por sua vez, apresenta duas caras grandes, associando o tamanho da cabe?a ? matem?tica e referia que ? uma disciplina que n?o gosta porque ? necess?rio ter "uma grande cabe?a para a compreender".

Deste grupo de 12 formandos, a maior parte refere a matem?tica como uma disciplina muito complicada, em que t?m de compreender logo de in?cio, para constru?rem as bases. Como estes formandos abandonaram a Escola h? alguns anos, j? n?o se recordam do que aprenderam e assumem, no in?cio da forma??o, uma incapacidade ou de falta de predisposi??o para as aprendizagens matem?ticas. Perante este cen?rio, pretendemos promover o desenvolvimento de compet?ncias, bem como representa??es sociais da matem?tica mais positivas, que os levem a envolverem-se nas actividades matem?ticas propostas.

Uma das decis?es que tom?mos foi a de recorrer a jogos matem?ticos. O jogo ? um tipo de actividade que alia o racioc?nio, a estrat?gia e a reflex?o com o desafio e a competi??o de uma forma l?dica. A pr?tica de jogos contribui para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional, desenvolve compet?ncias e capacidades como a autoconfian?a, a autonomia e o esp?rito de equipa e de colabora??o. O jogo escolhido para construir e explorar foi o tangram. O tangran ? um jogo que permite desenvolver a capacidade de concentra??o, a orienta??o espacial e exercita a criatividade, al?m de privilegiar a colabora??o.

Os formandos come?aram por construir, individualmente, o seu pr?prio tangram. Foi-lhes fornecido uma folha de papel, cartolina, tesoura, cola e material de pintura. Este jogo ? formado por apenas sete pe?as com formas geom?tricas resultantes da decomposi??o de um quadrado, que s?o dois tri?ngulos grandes, dois tri?ngulos

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