Aquilino Ribeiro - bibliopedra



Aquilino Ribeiro

Aventura maravilhosa

De D. Sebastião Rei de Portugal

depois da batalha com o Miramolim

CIRCULO DE LEITORES

1983, Livraria Bertrand. S. A. R. L., Lisboa

António Sérgio

Fraterna e admirativamente escrevo aqui o seu nome. Por não poucos anos comemos o pão amargo às mesas redondas do exílio; não tínhamos, nem temos ainda hoje diferente balsão. À sua galhardia de intelectual no que o termo tem de mais puro; ao ardor e desassombro, que em si assume o culto dos princípios, sempre os mais nobres e humanos; ao talento e zelo, levado por vezes até à cólera, com que exerce a polícia das ideias numa terra bravia, eu devia esta homenagem. Compus o presente livro - vai dar conta - um pouco ao estilo de Veroneso, que vestia os seus rabinos sumptuosos, os seus comedores cananeus, mulheres de tribo no guarda-roupa dos doges e patrícios. Por outra, a linguagem, indumentária do pensamento, nem sempre vem patinada do verde-bronzeado do século em que decorre o drama. Pareceu-me tal requisito fora da razão, ridículo até, abolido no próprio Teatro de D. Maria de pomposa memória, Mas a piratas de Argel, frades da Igreja Latina e monges do Monte Santo, galés epolacras, combates na terra e no mar, sobretudo ao Encoberto e ao Demónio do Meio-Dia, procurei pintar com honesta verdade, segundo os tombos e a luz da crítica. Representar estas duas personagens de alto coturno com preconcebimento de credo ou paixão facciosa seria cometer uma simonia literária de que arrenego. Por essa virtude, ao menos, que o meu preito sei a grato ao contendor vitorioso do Desejado.

Muito seu

AQUILINO RIBEIRO

D. Sebastião carregou à testa dos seus barões. Vestia armas azuladas, o elmo com que seu avô Carlos V entrara em Tunes, e montava o Pérsio. de mãe que diziam ter alcançado do vento, corredor tão ligeiro e de bom andar que passava na areia sem deixar o sinal das ferraduras. Acaudatavam-no doze pajens com outros tantos cavalos de raça, do mais estremado que aparecera por feiras e coudelarias.

Já a essa altura o terço dos aventureiros, capitaneado por Álvaro Pires de Távora, voltava da primeira refrega com os ginetes de Mulei Ahmede. De armas falseadas uns, gotejando sangue muitos deles, o turbilhão do recuo envolveu a manga dos tudescos, de tal jeito que deixou de se ver o seu balsão quarteado de preto e amarelo flutuar aos ventos da batalha. Debalde Martim de Borgonha, levado no roldão, vociferava em castelhano:

- Hombres, vergúenza! A desordem ganhava a picaria à retaguarda. Entretanto os arcabuzeiros italianos eram britados sob o peso da cavalaria moura e o fogo dos seus mosquetes. Mas os aventureiros, protegidos pela infantaria de Tânger, tornavam à carga contra os elches. E a sua bandeira, duas pirâmides de ouro em fundo verde, viu-se de novo voejar por cima do mar humano, ora trémula, ora ovante, conforme os sacolejões da avançada. Saiu-lhes, porém, de face e de flanco tal poder de inimigos que as suas cinco filas flectiram e foram rotas. Depois de rotas, desfeitas, e não quedou mais que uma meia dúzia de combatentes de pé a afrontar a mourama com a raiva e o desespero de quem não tem melhor recurso do que vender cara a vida.

Quando por sua vez a cavalaria do duque de Aveiro se lançou ao ataque, o corpo de batalha dos cristãos dobrava em toda a linha. Muito provada do tiro à espera que dessem Santiago, mortos ou postos fora de combate os espingardeiros em que devia estribar-se, quebrantada de moral pelo que via, mesmo assim o seu arranco causou grande estrago no inimigo. Mas faltou unanimidade ao rompante e força foi à vanguarda virar de rédea, vindo atropelar em seu espavorido refluxo espanhóis e romanos.

O duque perdera-se na investida. Incurvado na sela sobre a pesada lança, de caradura torva à frente do pelotão, lambuzado de sangue, abrira grande clareira nos africanos. Tombou com um pelouro que lhe abriu corredor do umbigo para as costas depois de trespassar o broquel.

Tentaram ainda uns tantos cavaleiros refazer a frente desbaratada. Tolheram-se com os atiradores a cavalo de Mohâmede Taba, renegado genovês, que avançavam num assopro, até poder plantar o tiro, e num assopro retiravam a recarregar as escopetas. O mestre-de-campo-general, que atirara os fronteiros de África para a artilharia inimiga, embora não chegasse a pôr mão em seus camelos e colubrinas tonitruantes, voltava depois de apresar um estandarte. Mas, ao mesmo tempo, no centro e no couce do quadrado os terços baralhavam-se com gastadores e carriagem. Em seu desmancho, os soldados, quase todos eles bisonhos, lançavam armas por terra e ofereciam pulsos aos grilhões. Caíra já Aldana; Stuckley; D. Alonso de Aguilar com um rugido na boca:

- Ao inferno vá direito quem vira a cara! Caíra o bispo de Coimbra, de estoque em punho; António de Sousa, filho do governador da Casa da Suplicação, quinze anos, imberbe, sem elmo, de rosto aos Janízaros; o barão de Alvito, entrando os mouros com o fez dum turco nos dentes, como lobo; o ancião D. Garcia de Meneses que, derribado da montada, teve ainda alma de arrancar o alfange das mãos dum azuago e embainhar-lho no ventre. Desaparecera Sebastião de Sã jogando-se ao inimigo com chibança à voz desastrada de ter:

- O meu cavalo não sabe voltar! Caíra Simão de Meneses com um estandarte sarraceno enrolado no braço; Gonçalo Nunes Barreto, de espada ao alto a pingar sangue; D. João da Silveira, morgado da Sortelha; D. Rodrigo de Melo, duma virotada, quando tirava a borracha da boca; Manuel Quaresma, vedor da Fazenda, e o filho João; D. Álvaro de Melo, dum tiro de bombarda; D. Lourenço da Silva, regedor da justiça, dum tiro de escopeta em pleno peito; Pedro de Mesquita, bailio de Leça, que comandava a artilharia; e quatro, nada menos, dos cinco irmãos Meneses, da casa de Louriçal, bravos e unidos como os quatro irmãos Aymon.

A calmaria era insuportável. Recalcada pelo céu de canícula contra o solo, uma nuvem de pó e cinza, a cinza do feno e panasco que africanos e cristãos haviam queimado à compita pela várzea para que não houvesse empeço à manobra, sufocava os combatentes. O fragor da luta e a gritaria dos mouros, sobretudo, eram de ensurdecer. Não se percebiam as vozes de comando. Só buzinadas ao ouvido.

El-rei, depois da primeira arrancada, heróica mas indecisa, correra em defesa da bagagem que os mouros pilhavam. Ali vinham, além da capela com suas Santas relíquias e vasos sagrados de multa estimação, as canas com que ele e o xerife se propunham jogar em Alcácer Quibir, os padrões para marcar, à semelhança dos descobridores, as terras de que se fosse senhoreando, as insígnias e a coroa cerrada que, segundo o programa, havia de coroá-lo Miramolim de Marrocos, senhor de Fez e Tarudante. E como ali viesse parar toda a casta de gente, inerme por natureza e a mais dela desobrigada - frades, lacaios de fidalgos e fâmulos de bispos, amigas dos mercenários e as moças da vida que em Cádis se meteram nos navios - orçada em mais de dez mil almas, tudo era terror e confusão. O saque ia a par com o aprisionamento das pessoas. Mãos postas, olhos ao céu, lábios crispados em articulações dolorosas; fisionomias num espasmo de terror; bocas petrificadas, dir-se-ia, no mais lancinante dum grito; jeito da mulher de Lot a fugir à chuva de fogo tal o painel que oferecia o redil das europeias. já os lapuzes se deitavam de joelhos a pedir perdão aos mouros que, não percebendo, temerosos perante seus esgares, matavam neles a pau e com o coto das chuças como em láparos. E havia já bárbaros que desandavam, uns de trouxa às costas, outros a puxar à rédea para fora do campo aos seus cativos como se levassem animais de pocilga. Todos queriam, porém, o seu quinhão e o invejoso engalfinhava-se no invejoso. Se acontecia ser mulher o pomo da discórdia, para se não chacinarem entre si, convinham em que se degolasse. E tão escandalosa se tornara a rapina que um piquete de lanceiros à voz dum tenente arremetia contra a arraia-miúda dos berberes, disposto a fazer-lhes largar a presa. Foi nessa altura que irrompeu D. Sebastião com a sua hoste.

Temível foi a peleja que ali se travou, por largo espaço não sendo outro o foco da batalha. Dum lado baqueou Almansor, famoso campeão, com os seus parciais. Do outro, o senhor de Tannenberg, jogando o montante às mãos ambas rodeado de agarenos; D. Luís de Moura, mestre exímio da gineta; D. Jaime de Bragança com uma pelourada na aorta; dois filhos de Fernão Teles, costas com costas, como leões; Manuel de Sousa, aposentador-mor; D. João da Silveira, filho do claviculário de Évora; João da Cunha, comendador de Malta; D. Jerónimo, o pintor, filho de D. António de Mafra; D. João da Gama, sargento-mor; Aires da Silva, bispo do Porto; Gomes Freire de Andrade que atirara fora o morrião por não poder suportá-lo, muito contuso na cabeça, e que, ombro a ombro com o filho, fizera proezas de pasmar.

D. Sebastião, ferido o Pérsio de morte, mudou para o cavalo Bardez, seguro e galgaz, malhado dum negro tão azul que dir-se-ia pintura. Viram-no arremeter contra as falanges dos mouros que, atraídas pelo estandarte que Luís de Meneses mantinha ao alto, se renovavam incessantemente, ferrenhas como ondas do mar. Em dado momento despedaçou-se-lhe a lança e teve de pegar no estoque. Mas o campo embrulhara-se muito, e ele, como que arrojado à margem do reboliço, à testa de meia dúzia de valentes, foi fazendo grande destroço, massacrando os inimigos tresmalhados e acabando de desbaratar as esquadras meio desfeitas. Os mouros porém foram surgindo uns após outros, juntando-se até serem mais bastos do que gafanhotos. Fernão de Mascarenhas apontou-lhe o vau do Uad-Elmjázen, de que se haviam aproximado nas evoluções do combate:

- Não há outro salvatério, senhor!

- Fazei o que eu faço... - e com redobrado furor atirou-se contra a selva de cimitarras.

Abrindo rua às lançadas, por cima de mortos, foi ter aos aventureiros. Não seriam mais que umas dezenas e, acurralados contra o trem, pareciam prestes a sucumbir, revirando-se num último estremeção de fúria aos andaluzes que os continham à zagalotada. Chamaram-no, havendo-o reconhecido pelo séquito: aquele valido que não arredava passo, o guião de púrpura, os pajeris com os cavalos e o punhado de fiéis que o guardavam como cães de fila. Ah, se não fora esses, os poucos de cavaleiros de Tânger e os aventureiros que se lhe vieram juntar depois do rompimento das alas, e constituíam uma verdadeira guarda do corpo que os mouros incessantemente desbastavam, onde estaria ele? Manuel Rolim, pois que el-rei não dava tento, pôs-se a gritar como um possesso. E tanto se esporteirou ele e os outros que acertou D. Sebastião fazer reparo e dirigir-se para o grupo. Como ele vinha! Elmo amolgado, a loriga em frangalhos, o corcel coberto de espuma, a fumegar! Negro como esfregão! Sentia-se que a sede e a grande ardentia o martirizavam. Para quem quer que fosse, com o sol a pino, a armadura era assador. já os menos sofridos, lassos os membros, rotas as armas, não aspiravam a outra Coisa senão a acabar depressa. Ele, no entanto, alheio a qualquer outro sentido que não fosse o de combater, guardava o ânimo todo. A mão sangrava-lhe, mas o golpe, que cortava o guante de revés, não lhe merecia mais cuidados que a arranhadura duma silva. O que tinha era sede e procurou dizê-lo aos seus. Não o entenderam. A voz saía-lhe rouca da garganta viscosa. Mas divisou um espingardeiro a beber pela borracha e dum salto safou-lha da boca. Muitas borrachas então estenderam-se para ele. Bebeu, bebeu, descansou um segundo; tornou a beber. Despejou água pelo gorial; voltou ainda a beber. Babou-se; ficou mais sujo que um cerdo no brejo.

Um instante, graças à trégua efémera que ali se estabeleceu, rodeado de gente em que não deixaria de se quebrar o ímpeto da mourisma, espraiou a vista pela batalha. Foi breve como relâmpago e, todavia, a enormidade do desastre meteu-se-lhe pelos olhos dentro. Além, aquele montão negro, irregular como um parcel, era a sua artilharia; à sua roda, a ressaca deixara toda a espécie de destroços: albornozes e arneses de aço, homens e cavalos mortos ou agonizantes; a quatro passos, era a bagagem, e sobre ela encarniçava-se um vespeiro zumbente de mouriscos. Rapina ou repartimento de despojos, pouco importava já, era o fim. Acolá os tudescos, de três mil que eram, imponente muralha de aço, estavam feitos numa duna de mortulho, os raros sobreviventes em jeito de aguardar o inimigo, não se percebendo bem se para combater se para se entregar. E a todo o lés do açougue imenso, a cainçalha moura esfossava, virava os cadáveres, despia-os, revistava bolsos, e do que menos cuidava era em esbulhá-los das armas, inúteis agora. Cristãos, um que outro corria à rédea solta pelo campo, traquejado por matilhas ferozes de caras-sujas. Alarves armados de alfange, faca e até de estadulho, iam de ferido em ferido, acabando os moribundos e estropiados, tangendo como alimárias mancas para os aduares aqueles que ofereciam esperança de cura. Os cavaleiros do duque de Aveiro, fina flor da fidalguia, onde paravam? Descobria-se um, custodiado por dois alarves, a cambalear e sem armas; outro agonizava debaixo do corcel; aquele passava ao largo, perseguido pelos lanceiros de Musa; já se não avistavam de ferro em punho, cara para a morte, como javalis diante dos mastins. A dois passos estava o espadaúdo João Carvalho Patalim, com a sobrecota em pedaços, boquinegro, olhos de defunto a quererem beber toda a luz do céu; mais adiante o filho, Pedro de Carvalho, com o estertor na garganta. Haviam entrado os mouros de gorra um com o outro, e renhido como feras assanhadas. Não longe jazia o respeitável Jorge da Silva, ancião morto com valor de mancebo, que tudo perdera na terra ingrata, até o sono eterno esperado por seu sumptuoso panteão. A morte desfigurara-o, mas cabelos assim brancos, ensopados em sangue, só podiam ser daquele prócere.

De olhos torvos, embaciados pelos bulcões da poeira e pelo ouramento das lágrimas, deu conta D. Sebastião do calvário da pobre gente. Galopavam à solta belos alazões da cavalara pesada portuguesa, torcendo as voltas aos beduínos que corriam atrás. Um ginete branco, fogoso, arrastava pelo estribo ao cavaleiro; outro estrebuchava de patas ao ar, medonho, nas vascas da agonia; além um vulto desprendia-se do seu torpor de defunto e saltava agilmente para o corcel que ia a passar sem dono; morabitos coscuvilhavam de grupo para grupo, gesticulando; eram negros, bastos, crocitantes; a primeira rabanada de corvos.

Os mil ruídos da peleja chegavam-lhe em catadupa, mas por um capricho do ouvido, senão singularidade acústica, entre eles destrinçava os gemidos - verdadeira lamúria de arraial - que soltavam os cativos da peonagem. Tudo se conjurava para lhe incutir a consciência da derrota, a sua alma, porém, não sentia em proporção. Aquilo era como se diante dele dois partidos tivessem jogado as alcanzias; uns haviam perdido, outros ganhado; chorar para quê?! Mas onde se haviam metido os seus? Ter-se-iam fundido no chão os cavaleiros de Tânger? Dado a lide por consumada?

Ah, ele não dava! E acicatado pelo furor, refortalecido por aqueles segundos de repouso, bateu pernas ao cavalo e precipitou-se para o mais denso do inimigo. Seguiram-no os seus, como sempre, sem que lhes desse voz nem senha. Tal o machado que se enterra num madeiro, assim era ele. Lança em riste, ia rasgando passagem, abatendo, esmagando, calcando tudo o que se atravessasse no caminho. Entregues à intemperança da vitória, os mouros não contavam com acometida assim à mão tente. O quê, ainda existia de pé um punhado tão perigoso de inimigos? E fugiam em debandada. Mas ele voava-lhes no encalço até derrear uns, atravessar outros com o ferro, britar o crânio àqueles. Onde avistasse ajuntamentos caía lá e, desbaratando, trucidando, semeava o assombro e a morte. Pouco a pouco, entretanto, acudiam à voz de alarme lanceiros e piqueiros mouros que andavam pelo campo a colher cativos, a levantar os seus feridos, a despir mortos e agonizantes, com a apanha respectiva de armas e cavalos. E, fortes em número, lançaram-se-lhe no encalço. Dez, vinte, breve eram centenas de ginetes que galopavam furiosamente em perseguição do romi danado. Ao mesmo tempo os escopeteiros, distraindo-se por instantes da tarefa rendosa da pilhagem, disparavam contra eles os mosquetes. Por muito que a fuzilaria fosse nutrida, não lhe acertavam. Quando os acossadores iam a tocar-lhe, da hoste destacavam-se dois, três cavaleiros que voltando brida, a pé quedo, faziam frente à alcateia. Os mais atrevidos mordiam o chão. Mas eram tantos os atacantes, tantos os golpes que choviam sobre os abnegados paladins, que o recontro era rápido como abrir mão e fechá-la. Deste modo sucumbiram Gaspar Nunes, mantieiro de el-rei, Sebastião de Resende e Lucas de Andrade, do seu guarda-roupa, o padre jesuíta Gaspar Maurício, seu confessor, o criado quartão, verdadeiro tigre real, e D. Fernando de Noronha. Todos estes, desde o começo da acção, nem um minuto haviam desamparado el-rei, protegendo-o pela força do braço e, afinal, com o próprio corpo.

Repetiu-se o lance duas, três vezes, sempre os mouros perdendo de vista ao cavaleiro de armas azuladas, a meio da escolta de leões. Mas o Bardez rebentou, e viu-se a el-rei, quando se ergueu do chão, o braçal ensanguentado até a mão de rédea. Apresentaram-lhe o Bonito, que montou sem esforço aparente. E como a montada estivesse folgada, atento o palafreneiro, à ordem de poupá-la a todo o custo, a arremetida que fez nos mouros foi mais terrível do que nunca.

Um momento se viu de novo de braços livres, como insulado no meio do torvelinho. E não pôde resistir a espraiar olhos pelo arraial.

Ah, lá atravessava em baixo, de corda ao pescoço, mãos atadas atrás das costas, num formigueiro de alarves, o mestre-de-campo. Os terços da retaguarda, que haviam deposto armas quase sem combater, eram distribuídos em récuas, homem acorrentado a homem, e começavam os caides a tangê-los para fora dali. Passou Francisco de Távora de olhos rasos de lágrimas; passaram os algarvios heróicos, negros e decepados por uma hora de combate, mas de cabeça erguida. Para onde quer que deitasse os olhos, via caminhar soldados seus para o cativeiro. Nas fazes dos berberes, encodeadas de lama sobre funcio de fuligem, as pupilas mesmo ao longe brilhavam como brasas. Continuavam a crepitar os mosquetes e, de quando em quando, a algazarra parecia recrudescer. Mas esta tinha mais zoeira de arraial que fragor de batalha. Prisioneiros cruzavam-se com prisioneiros e entre adeuses e vozes lastimosas se repartiam em várias direcções. Dois reis de armas, com a maça de prata ainda a tiracolo, entregavam-se a um caciz barbudo, de alfange em punho a mandar. E, ó amor cego da vida, eram eles próprios que atavam aos pulsos a corda! E mais e mais sobre a bagagem se aderiescravasava a mourisma, combatentes já sem ter que combater, alarves das comarcas serranas do Gibel e de Farrobo, trazidos pelo faro do saque. E tão basta era que um enxame que levantasse voo do cortiço e pousasse num palmo de terra não daria impressão de mais revolvente e compacta densidade.

D. Sebastião, à vista do painel desolador dos cativos, com um bando de órraos no meio, transidos como pardais apanhados numa rede, mais e mais se foi compenetrando da imensidade da derrota e da sua temerária imprevidência. Lembrou-se do vão propósito de se fazer coroar imperador da Líbia e pela primeira vez experimentou a garra de fera do desespero a rasgar-lhe o selo. Desespero atroz a que, para cúmulo, se aliava o despeito da sua vaidade ferida, e o seu tanto de remorso pelo dano que causara. E jogou-se novamente contra a mourisma.

Voltaram logo a protegê-lo de flanco e da retaguarda os barões fiéis. Mas eram cada vez menos, e mais densas e mais fortes, pelo contrário, as algaras de mouros que saíam a embargar-lhes caminho. Meter, para onde? À ventura. Breve a lide de el-rei, imposta pela crua realidade, consistia em acometer, dar pancada rápida e, mercê de expeditos volteios, ladeando, evitando o recontro com as formações de janízaros e elches que limpavam o campo, cair sobre esta patrulha, rachar aquele cavaleiro, acudir ao cativo que os mouros zurziam com matracas ou despiam para lhe ficar com a roupa. Nestas andanças aconteceu o alferes-mor, ferido na ilharga e com o braço dormente pela mocada que lhe deu um azuago, clamar em altos gritos que lhe tomassem o estandarte por não poder mais. Acudiu Gonçalo Ribeiro Pinto, capitão de gastadores, que, atravessando-se por diante de espada e rodela, defendeu o balsão até tombar. Deitou-lhe a mão em seguida Luís de Brito, cavaleiro tão ágil que da presteza se valia para, das vezes que lhe matavam o cavalo, num rufo fazer remonta dos que corriam sem dono. E hasteando-o, lançou-se na falange de D. Sebastião, que galopava sem norte, arrastado para longe, em direcção ao Uad-Elmjázen. Sentido da sua mal-aventura, dissera-lhe Cristóvão de Távora:

- Senhor, salve-se!

- Não, acabe-se tudo! - respondeu em voz débil, rompendo à frente.

Sem erguer bandeira nem dar ordens, avançou até o rio. As águas, engrossadas pela preia-mar, arrojavam à margem os cadáveres daqueles que em seu cego pavor tinham cometido atravessá-lo. Olhou para aquela babugem horrenda, e virou a cara. Não podia ir mais além, e com frenesi volveu ao campo da batalha. A mourisma entregava-se tumultuária e confiadamente à rapina e apenas punhados de cavalaria e piqueiros prosseguiam na operação de bater os últimos redutos. Seria pouco mais de meio-dia. O sol era uma labareda pegada. Os coveiros berberes encetavam a tarefa negra: acabar os feridos cristãos à bordoada e abrir sepulturas para os fiéis de Mafamede. Levas de cativos atravessavam o campo, manietados uns aos outros por aquelas cordas com que eles próprios se propunham fazer récuas nos soldados do Moluco. Para as bandas do Uarur ouviram-se atabales, pífaros e doçainas. Eram os triunfadores que vinham com seus morabitos e cádis assistir ao render do campo. Aqui e além soavam mosquetaços, o golpe de misericórdia, porventura, nas derradeiras resistências.

D. Sebastião, avançando sempre, penetrou no campo, fora, fora, até a linde oposta. Graças às dobras do terreno, ao empecilhamento, próprio de exército desbaratado, e ainda à desordem, explicável em exército vencedor na maré de cupidez, foi-lhe possível iludir a caça que lhe davam. Tido e reconhecido porém pelo cavaleiro invulnerado, tanto bastou para mil albornozes se agitarem ao vento na sua peugada; nos garranos ligeiros e infatigáveis, os alarves do alcalde de Alcácer Quibir aprestaram as bestas; ginetes acorreram à desfilada de todos os pontos. Acometeram-no à carga cerrada, e, pela primeira vez, ante o tropel raivoso o instinto da conservação apoderou-se dele. Voltando brida, disparou seguido pelos seus. Lançada na sua pista, a cavalaria moura tropeava o fero, e os cavaleiros da primeira linha despediam gritos agudos e pragas. Mais ele largava, mais os sarracenos se enfureciam a picar. Que pedisse asas ao vento, o Uad-Elmjázen lá estava para o reter. E já os mouros se abriam em leque a cercá-lo quando na pequena coorte se atrasaram João Lobo, Nuno Mascarenhas, Vasco da Silveira e, virando de rédea, esperaram os perseguidores. Eram os três do número daqueles batalhadores que, dedicadamente, com mais fúria que cerva aos seus cachorros, o tinham guardado até ali. Mal os ginetes mauritanos chegaram à distância duma pedrada, calando as lanças, caíram sobre eles, impetuosos. Apenas esses, e fizeram vergar um esquadrão inteiro. As filas enrodilharam-se, as montadas foram a terra, e nem um só golpe bateu em falso. Mas o peso dos mouros estrangulava-os; que lhes valia despachar inimigos para o outro mundo se por um que tombava surgiam dez? Vasco da Silveira, no seu cavalo frisão, dentro do arnês lombardo, esmigalhava quem se lhe punha pela frente. Sucumbiram, afinal, mas quando beijaram a terra, retalhados de golpes, o cavaleiro das armas azuladas onde ia?

A galope, sempre a galope, já na orla do plaino, olhando à retaguarda, dos seus pares de França poucos avistou. Entre eles estava Frei Salvador da Torre, membrudo, negro, truculento, montado numa horsa em pêlo que apanhara desenfreada pelo campo, sem cavaleiro nem sela, e o denodado Luís de Brito, que recebera o estandarte. Afrouxando o galope, disse-lhe:

- A bandeira, Luís?

- Levaram-me aqueles perros a haste, senhor, e mais um bocado de pano. Aqui está o resto; parece uma mortalha - respondeu abrindo o peito e mostrando a seda amarfanhada.

- Pois se é mortalha, amortalhemo-nos nela.

O Bonito mal se aguentava em pé. Que era do Medelim, do Cabreira, e, flor da gineta, do Carocho azeitonado, manso como borrego e fero na referta, do jogo de doze cavalos como não havia iguais no mundo que trouxera para a batalha? E os pajens, cuja missão não estava em combater, mas velar por eles a todo o custo, não olhando a sacrifícios?

Do exaspero descaía para o desânimo, quando avistou, cambaleante à força de feridas, em seu ruço rodado, a Jorge de Albuquerque Coelho. Sempre lhe cobiçara aquele cavalo e, fazendo-se encontrado com ele, ouviu que lhe dizia em tom de lástima:

- Como Vossa Alteza está!

- Por mim menos mal; o cavalo é que não vai longe.

- O meu não tem uma arranhadura...

- Então dai-mo...

- Faça Vossa Alteza a mercê de mandar àqueles soldados que me apeiem...

Desceram o fidalgo do aparelho e el-rei, deitando a mão às crinas, dum pulo saltou em sela. E enquanto o antigo governador de Pernambuco ficava estendido de costas, à espera que uma lança moura o cravasse no solo, mastigando padre-nossos, D. Sebastião voou. já não havia nada a fazer e voou com os que lhe restavam a caminho de Arzila. À vista da ponte sobre o Uad-Elmiázen encontraram-se com um forte destacamento de lanceiros e terçaram o ferro. Vieram abaixo o conde de Vimioso com uma zargunchada; D. Manuel da Cunha, senhor de Pancas, que depois de meter a lança no arcaboiço do seide, os mouros por vingança esquartejaram; D. João de Portugal, que acabava de agregar-se à pequena falange; D. Luís de Brito na mortalha de púrpura da bandeira, e o criado da Casa Real, António Pinto, a quem os mouros só conseguiram derribar do corcel, atirando-lhe o laço.

Cristóvão de Távora rogou-lhe que se rendesse, já que estava tudo perdido, e dispôs-se a erguer um lenço branco no tope da lança. El-rei abateu-lho, dando-lhe de revés com o coto do estoque, e de novo se lançou à desfilada. Ficavam à retaguarda, entretendo os mouros com os seus corpos, os últimos fronteiros de Tânger, o pajem do guião Jorge Telo, e Cristóvão de Távora, o leal amigo. D. Sebastião ia ferido no rosto, com a celada a soltar-se-lhe. Era a terceira ou quarta lança que rompia. A espada, se a não firmasse no talim, cair-lhe-ia ao chão. Tinha o pulso aberto à força de combater.

Mouros que andavam pelo campo, respigango e surripiando, solitários, de sacola às costas uns, outros aos pares, ombro jungido a ombro por uma alabarda em cujo vão, conduziam à dependura tudo a que tinham podido deitar a unha - roupa dos cadáveres, armaduras, arreios - ficavam varados ao vê-lo, mas, breve, convencidos do seu descalabro, punham os carregos no chão e apedrejavam-no. Um dos alarves, que trazia mosquete, mandou-lhe um tiro. Mas as abas do campo estavam desguarnecidas de mouros, em regra atraídos para o centro em que havia que pilhar. A própria ponte não tinha sentinela; a todo o arco do horizonte avistava-se livre o caminho para Arzila. Dando voltas e reviravoltas de modo a evitar os mouros que cruzavam a planície, temeroso agora de pilhos quem lutara como leão, temeroso da própria sombra, el-rei fugia, fugia sem cuidar já daqueles que vinham empós. Adiante dele lobrigavam-se vultos rápidos, a pé e a cavalo, estranhamente movediços na terra parada e silenciosa, refazendo às avessas, saibros fora, a pegada do exército. No seu corcel folgado deixou à retaguarda dois ou três desses fugitivos: mercenário que levava a amante na garupa da besta; fronteiro salvo da morte pela própria bravura; lapuzes do terço de peões que ao romper o fogo teriam desertado e, escondidos nos buracos, esperado monção para largar. El-rei passou por eles sem saudar e é provável que sem os ver. Ia sempre em frente, a galope, e só longe, quando os ecos do campo de batalha se confundem.

II

O guardião leu a carta de Frei Álvaro de Olivença, ministro provincial da Ordem, que acreditava a Manuel Antunes como enviado particular de el-rei. E em silêncio ficou a ouvir as novas da corte que, pelo tom, e ainda dadas de moto próprio, calculou serem o preâmbulo do recado que o trazia aos mosteirinhos de S. Vicente.

Louvores a Deus, curtos dias quedara a nação na orfandade. Sua Alteza, o Cardeal-Infante, resignara-se a assumir o duro encargo de reinar. Fizera-o com sacrifício da saúde, que era frágil, sob o peso dos adiantados anos que lhe davam direito a gozar em sossego o resto dos dias. Mas tantas haviam sido as solicitações dos patriotas, tão instante a deprecada dos Três Estados que se rendera à razão pública, e em sua mão paternal repousava felizmente o destino do reino. Mal chegara a Lisboa a acta do enterro de D. Sebastião, lavrada pelo punho do próprio criado Belchior do Amaral, procedera-se à quebra dos escudos. E logo na manhã seguinte, dia de Santo Agostinho, Sua Alteza era sagrado rei na igreja do Hospital de Todos-os-Santos, prestando juramento, lavado em lágrimas, de bem e fielmente governar os reinos, sustentá-los com justiça e respeitar privilégios e liberdades. Tocaram sinos, soaram charamelas e atabales, e nunca o povo de Lisboa, apinhado Rossio fora até à Betesga, gritou com mais alma e convicção: Real, real. pelo rei de Portugal!

O novo rei - acrescentou o mensageiro - deu ordens para que fosse resgatado o sal e preso o arrematante. Mandou também que o dinheiro dos órfãos tornasse às arcas, e já lá vão, caminho da África, quatro religiosos da Santíssima Trindade a remir os cativos.

O povo vai acalmando e consolando-se à ideia de que já há Paço, missa real em povoado e pregação.

- O cadáver de el-rei foi reconhecido por outras pessoas além do criado? - perguntou o recoleto, saindo subitamente do seu mutismo.

- Não é um só fidalgo, nem dois, e da primeira nobreza do reino, segundo o Belchior, que estão prontos a jurar terem visto o cadáver de el-rei. Os responsáveis da jornada é que se meteram a propalar que o monarca está prisioneiro e que darem-no por morto só tem por fim conseguirem a sua liberdade a menos custo. Compreende-se; compreende-se muito bem que lancem semelhante atoarda no intuito de prevenir a sanha do povo que lhes não perdoa terem sido os conselheiros, maus conselheiros, do inexperiente e temerário príncipe. Mas agora, em volta de tão arriscada presunção, bordam-se as histórias mais singulares: umas descabeladas de todo; outras tão bem cerzidas que ameaçam derrancar a passarinha a quem tem as responsabilidades do Poder. Não se diz que Sebastião de Resende, o primeiro que descobriu o corpo de el-rei no meio da mortualha e o entregou a Belchior, o fez de manha, pois não era possível identificá-lo dois dias após a morte, abandonado aos calores tórridos do Rife, desfigurado pela corrupção, o pó e a sangueira da carnificina?...

- Achou-se ao menos com o cadáver insígnia ou coisa que lhe pertencesse? - tornou o frade.

- De facto, não se achou coisa alguma; o corpo estava nu; mas não há que admirar. Em regra o mouro é larápio e sonegador. Tudo a que pode deitar a unha, por mal guardado, perdido, ou exposto ao seu olhar de ave de rapina, o considera legitimamente seu; entra para a vasta categoria das boas presas e esconde-o. Na guerra, então, despoja os cadáveres de tudo o que lhes encontra. Digam-me agora se aquele que teve a sorte de descobrir o cadáver de el-rei, vestindo armas que, salta aos olhos da cara, eram preciosas, roupas brancas, finíssimas, com abotoaduras de oiro e gemas, não era levado por todas as razões a amochilar uma riqueza destas...

- Sim, realmente - disse o frade em tom de quem concorda. - Mas por bem pouco está Sua Alteza receoso... se não possuem outra consistência as suspeitas de que el-rei D. Sebastião é vivo. Ao fumo basta-lhe ser fumo para que se desvaneça.

- O fumo desvanece-se e a nebulosa, que é menos que fumo, condensa-se. É o nosso caso. Ultimamente não correu que el-rei D. Sebastião estava neste mosteiro a curar-se duma ferida que recebera na testa durante a batalha? O pai da galga é um tal mestre da armada, que ficou meto zorato com um tiro de pelouro apanhado em Mazagão. Aconteceu ao pobre homem ter de ir ao Paço dos Tabeliães assinar urna escritura, em que era citado desta forma: mestre que foi na capitânia da armada de el-rei D. Sebastião, que Deus haja. Pois ouvindo o remate que Deus haja, recusou-se a assinar, a título de que el-rei estava vivo. - Vivo, ora essa? - retorquiram-lhe. Vivo, sim senhor! - respondeu ele. - Às costas o tirei eu dum patacho e levei por uma escada de pedra, picada na rocha viva, ao mosteirinho dos Caprichos, no cabo de S. Vicente.

- Na corte, é claro, têm-se como invencionices, próprias apenas de imaginações alucinadas, tais histórias...? - tornou o guardião.

- Há quem creia e quem descreia. Como ia dizendo, a teia de aranha está a urdir. De parte a parte se procuram razões e argumentos. Dias antes de eu sair para esta )ornada, deu muito que falar em Lisboa um barbeiro que fugiu da batalha pelo rasto que deixara o exército na avançada para Alcácer. Afirma ele que não só viu passar el-rei com mais dois cavaleiros, como lhe deu água por uma borracha que trazia. Diz mais que el-rei estivera a tirar dele quanto ao caminho de Arzila e ele, para evitar complicações - porque não quisesse confessar cobardia, deixava admitir -, fez de conta que não reconheceu o interlocutor. O mais curioso é que o homem traz uma borracha a tiracolo e mostra-a dizendo: foi por aqui!, e não só a não larga por nada deste mundo como garante a quem muito bem o quer ouvir que ela lhe há-de valer a fortuna. Sua Alteza mandou por linhas travessas averiguar se o homem tinha a razão toda. O físico que o observou veio com a parte de que era um velhaco na quinta casa, que andava a armar com aquela balela à generosidade dos fidalgos.

- Vamos que o homem falasse verdade... objectou sorrindo muito levemente o recoleto.

- Não é provável. Mas não fica por aqui: André da Silva Meneses, capitão de africanos, afiança que viu embarcar el-rei com dois fidalgos de regresso ao reino...

- Ah, e como se explica! 5 Está também mentecapto como os outros?

- Doido, doido varrido. Este nem admite que duvidem da sua palavra honrada. Em plena Rua dos Ourives não puxou da cataria contra Henrique Henriques, na véspera nomeado estribeiro-mor de Sua Alteza, só porque se permitiu gracejar com ele? É por estas e outras que a caminho de Marrocos vão, com os quatro religiosos da Trindade, D. Rodrigo de Meneses e línguas que abram devassa quanto ao fim de el-rei D. Sebastião e não se poupem a canseiras até trasladarem os restos mortais para o reino.

- E no meio desta meada toda que pensa el-rei D. Henrique, nosso amo, ou que pensais vós, senhor Manuel Antunes? - perguntou o religioso.

- Pouco vale o meu pensar, reverendo padre respondeu o enviado, humildando-se. - Cumpro as ordens que me deram, e ao que venho, eu vo-lo digo: pedir-vos que me deis um escrito em boa e devida forma que garanta na corte não ter pés nem cabeça o dito do tal mestre. E é convicção vossa que não terei dúvidas em vos passar esse escrito?

- É sim - respondeu ele, olhando muito fito para o frade. - Estou convencido de que tudo o que se diz, respeitante à sobrevivência de el-rei D. Sebastião, é fantasia; fantasia, não direi de graciosos ou especuladores, mas delírio de entendimentos transtornados pela paixão. Creio que tudo é nuvem, mas se por culpa dos nossos pecados fosse certo, maiores seriam os danos que as vantagens. O malfadado príncipe levou a flor dos portugueses ao cutelo e no fundo ninguém lhe perdoa. Se mais o não execram, é apenas porque está morto. De contrário, levantar-se-iam contra ele as pedras das calçadas. A um sobrevivente da batalha ouvi eu dizer que “se D. Sebastião se tivesse vendido ao Maluco não teria procedido de maneira mais torpe no decurso da Jornada”. Todos os conselhos e vozes de prudência ele repeliu por sistema; fez calar à fina força a boca aos práticos; não deixou aos bravos a liberdade de pelejar; em suma, procurou por todos os meios negativos, movido pelo orgulho, a basófia, a mais maciça confiança em si próprio, que a sorte das armas lhe fosse adversa. A terra lhe seja leve, mas que o seu fantasma nos deixe em paz!

- Terrível responso o vosso, senhor Manuel Antunes! Noto que não gostaríeis de o saber reaparecido...

Pessoalmente, é-me indiferente. Pelo que respeita aos negócios públicos, se é nociva a hipótese, nada mais que a hipótese de que pode voltar, que não seria a realidade?... Não, não, há rei posto, e não teria pés nem cabeça que o antecessor viesse lá das profundas do inferno reclamar o que ninguém lhe usurpou, mas, sim, deixou perder. Não é a doutrina de Frei Álvaro de Olivença?

O frei guardião, àquelas palavras, voltou a ler as credenciais expedidas pelo ministro da Ordem, como se quisesse mais uma vez afirmar-se no que lhe era expresso. Depois, acondicionando o papel entre as folhas do ripanço, disse para Manuel Antunes, enviado de D. Henrique, no tom mais despreconcebido do mundo:

- Vinde comigo. Fostes privado de el-rei D. Sebastião...? Conhecia-lo bem...?

- Não fui privado dele, mas conheci-o como às minhas mãos - respondeu o enviado, tornando a olhar fito para o frade.

Seguiram o corredor, tão cheio de ar e ao mesmo tempo tão alagado de silêncio que o ruído dos passos soou aos ouvidos do forasteiro como coisa jamais apercebida. Pela arcada aberta viam-se no céu os volteios das gaivotas e a perder-se em tintas de opala a planície crespa do mar, verde-verdete sob a luz ténue de Outono. E o marouço, aquele arfar e chocalhar da água contra a sapata do Promontório Sacro, ouvia-se de modo a nunca mais se perder do sentido.

Chegados a uma cela, tão erma como as mais celas, disse o guardião apontando o ralo da porta e baixando a voz:

- Fazei a mercê de espreitar... Manuel Antunes encostou os olhos à rótula e, ao cabo dum momento de observação, proferiu em voz perturbada:

- Veio um homem, ainda novo ao que aparenta, vestido com gibão de holanda clara, calças de rexa arenosa, ajoelhado no chão contra a cama. Se não tivesse a face mergulhada na roupa, poderia dizer se o conheço; assim, em minha honra declaro que me é impossível dizer se o conheço ou não!

- Tornar a espreitar... Volveu o homem a mirar, desta vez com certa demora, e em tom não menos patético tornou:

- Não há meio. Se levanta a cabeça da roupa, tapa logo o rosto às mãos ambas... Parece que tem medo de que a luz dos céus lhe dê nos olhos. Quem é, reverendo padre?

- Reparai bem... De novo Manuel Antunes pôs a vista ao postigo. Em menos de nada, desviando-se com manifesta arrelia, proferiu:

Não mostra a cara. Pela cor do cabelo lembra certa pessoa que eu sei... Mas, não, não posso crer. Hem...? Não me tenhais sobre brasas. Quem é...? Hem...? Por quem sois...

Agora é o próprio frade que olhava para dentro da cela. Menos de minuto decorrido, puxando com brusquidão Manuel Antunes para o ralo, depois de se reservar uma nesga onde enfiou o rabo do olho, disse sacudidamente:

- Agora... agora... Vedes? Manuel Antunes assestou o olhar e afastando-se em continente, pálido, boquiaberto, acabou por pronunciar com voz assombrada:

- Sim, é ele, é ele! Ah, meu Deus, como pôde isto ser?

- Sim, é ele. É ele, mas não quer que o tratem como quem é. Assentai, senhor Manuel Antunes, que é um pecador e penitente sem nome que está diante de vós.

Ficaram calados um bom espaço e o enviado do novo rei tornou a escrutar pelo postiguinho. Esteve muito tempo a satisfazer a curiosidade, a estudar a cela pormenor a pormenor, a espiar os gestos do recluso, e com os olhos roxos pela contenção, querendo falar para si próprio, disse ao frade:

- E agora?

O guardião puxou-lhe pela manga e a passo miudinho, quase medroso, sem trocar palavra, regressaram à cela donde tinham vindo. Manuel Antunes atirou-se para um cadeirão de couro e ali permaneceu amarfanhado, sucumbido, as mãos apertadas na cabeça, como se o magno problema fosse mais seu que do próprio D. Henrique. A súbitas, emergiu de suas dolorosas cogitações:

- Mas como foi? Como velo parar aqui este homem? Devagar, em voz rezada, voz que ia sempre em frente, cautelosa como passo de homem que desconfia do seu itinerário, contou o religioso tudo o que se relacionava com a estada de D. Sebastião no mosteirinho.

Tinha razão o mestre da armada, como a tinham, não menos, o barbeiro da estrada de Arzila e o fronteiro de Tânger. D. Sebastião escapara à carnificina. Um homem, de facto, o transportara da nave - o patacho que ainda estava na enseadazinha do Beliche - para a cela dos Piedosos com um ferimento no sobrolho, ferimento mal-assombrado embora mais de raspão que profundo, de que viera curá-lo o físico de Lagos, depois de ajuramentado aos Santos Evangelhos em como guardaria segredo. Para ali havia sido conduzido por indicação própria, e fora com voz humilde, voz de peregrino indigente, que de começo ninguém reconheceu, que pediu hospitalidade em casa que sempre distinguira com a sua munificência. Deu-se-lhe uma cela igual a todas as outras, segundo o seu expresso desejo, trastejada com enxergão de palha sobre bancos de pinho, um escabelo, e Cristo crucificado à dependura da parede. Mas essa cela dava como todas as mais para o mar e o mar enchia-lha de sopro terrenal com a sua luminosidade de lírios roxos, a estupenda bailara das gaivotas, sem faltar a inquietude duma vela correndo ao largo à voz de mercador honrado ou de corsário. Das pessoas que tinham vindo com ele, apenas fora autorizado a ficar certo religioso da província da Arrábida. Havia de estar lembrado dum pregador de fama que D. Sebastião desterrara para Alcobaça por haver ousado verberar do púlpito e em sua presença os desatinados projectos de guerra... O desassombro dera brado. Diogo de Paiva de Andrade, doutor em cânones e águia da oratória, que costumava zombar daquele rival que tinha sempre as igrejas cheias a ouvir-lhe a palavra exaltada, quis ouvi-lo e conhecê-lo. Deparou-se-lhe um atleta de larga peitaça, voz cheia, gesto amplo, doutrina da melhor, segundo os apóstolos, e génio oratório de primeira; todo ele por fora cortado em grande. Chamavam-lhe Frei Salvador da Torre, por ser oriundo da Torre de Moncorvo - embora o seu nome em religião fosse Salvador da Cruz -, e o nome profano assentava-lhe à maravilha. De facto tinha muito de torre, bela torre de David, tanto na compleição física como na altura a que se guindava seu verbo. Patriota ardente, místico e flagelador de viciosos e corruptos, era uma espécie de Savonarola para as turbas simples da capital, com fome de pão e de justiça. Cristóvão de Távora encontrou-o em Alcobaça e tomou-lhe amizade. Além de pregador de renome, possuía vasto cabedal de conhecimentos, adquirido em anos e anos de estudo e meditação nos centros de saber da província de Espanha da sua Ordem. Ali aprendera ele, com as humanidades, grego e italiano, recebendo ainda tinturas de arábigo. Acabara, em suma, por desmentir com a sua formação o conceito corrente de que “para plantar couves, preparar bacalhau à aragonesa, rachar um monte de cavacos não havia melhor que um arrábido, mas não se lhe pedisse mais”.

Assente a )ornada de África, Cristóvão de Távora persuadira el-rei a que convidasse o capucho para esmoler do exército. Era a hora das transigências, acedeu el-rei e obedeceu o frade. E ei-lo de Cristo alçado entre as esquadras de Alcácer Quibir. Quando viu a fortuna pender para o Islame, o religioso trocou o crucifixo pelo montante. Quem era aquele ferrabrás de guarnacha e cabeção que ao lado de el-rei lhe cobria o corpo como muralha e a cada molinete remetia para o reino do esquecimento um caterva de agarenos? O mesmo que agora entrava na cela de el-rei sem pedir vénia; que velava por ele; lhe servia o comer; lhe dava conforto e o confessava; alo e director espiritual ao mesmo tempo.

D. Sebastião, rei de Portugal e dos Algarves, imperador da Líbia, começara a sua reforma moral. Havia dois meses que dera entrada no mosteiro e não vira ninguém, não falara a ninguém, excepção feita do arrábido. Raro saía do cubículo que não fosse para as suas obrigações religiosas. Ao passar pelos corredores a caminho da capela, os frades que o encontravam fundiam-se com as paredes; nem sombras. Ele também não os via; não era certo, pelo menos, que os visse. No coro ia postar-se a toda a frente, contra a grade que deitava para o corpo da igreja. Os frades perfilavam-se à retaguarda, sem rugir nem mugir, possuídos de angústia tão imensa e fluída que se espalhava em volta como um miasma. Os seus alabardeiros eram agora esses frades. El-rei voltava, findo o oficio, de cabeça inclinada para o peito, olhos no chão, abertos o que basta para coarem um raiozinho de luz que o guiasse até a cela. E, novamente, dobrados em dois, os fradinhos daquela casa fingiam que não davam fé. À saída das celas, nos breves desafogos em comum, pelos corredores, ele a aparecer e, estáticos, lembravam os santos de pedra nas catedrais. À missa dominical, muito concorrida por gente de Aldeia do Bispo e de mais longe, assistia de mãos a tapar o rosto, na ânsia de passar encoberto e não enxergar mais que o celebrante. E à elevação rojava-se até tocar a terra com a fronte; borbulhavam-lhe as lágrimas nos olhos e não conseguia reprimir os soluços.

Mas era na cela, na estreiteza daquelas quatro paredes, brancas duma brancura em que Cristo parecia uma chaga gangrenosa, que a sua tragédia se representava. Levava horas de joelhos contra a cama, a vista ardentemente cravada no crucifixo, quando não mergulhava a cara nas mantas à busca da treva que, por sua vez, trouxesse um poucochinho de paz ao seu espírito. Mas o mundo, o mundo ruidoso que deixara, devia ressurgir-lhe na noite estelar das pálpebras descidas. E ao abri-las, a luz mais azul do que nunca derramava à volta pétalas e mais pétalas de violetas e cravos brancos. Era como uma epifania e, olhando pela janela, penetrá-lo-ia o espírito risonho das nereides, de Afrodite e mais génios marinhos em sensível farândola à flor do mar. E, magoado consigo, fechava as portadas da janela. Mas a luz pelas mil fendas era como um céu estrelado. Depois era tão etérea, que breve enchia a cela toda varrendo a escuridão; tão alegre, que afogava em alacridade a negra melancolia do Cristo. Ah, não havia meio de encontrar-se sozinho com o seu calvário. Desesperado abria a janela e, de novo, a revoada das aves oceânicas, a tremulina das águas batidas pelo sol, navios em derrota, Frei Aleixo ou soldado da fortaleza a lançar a linha nos cachopos, lhe diziam que, não obstante o seu desespero e aniquilamento na dor, o mundo continuava mundo como dantes.

Rezava terços de enfiada uns após outros, com lúbrica devoção. E, só depois de muitos rosários, é que varado pela lança da ascese, sentia refrigério em sua alma. Acontecia-lhe adormecer de joelhos, a cabeça caída para o catre, e durante o sobressaltado sono decerto anjos bons e anjos maus se lhe digladiavam no selo. Que assim era estava no facto de erguer-se inundado de suor, trémulo, cabelos em pé, um uivo tremendo na boca. Sucedia às vezes ser de noite, e os frades acordavam horripilados; de princípio, com alarme geral; agora, simples alerta. A sua dor trespassava, ao que tinha de penetrante, muros e distâncias. Desde que não gritasse sob a garra do pesadelo, sonhava alto. Seus sonhos eram os pensamentos secretos, que o trabalhavam, a fugir-lhe da consciência, dir-se-ia, por talisgas, como cobras dum serpentário. Não raro batalhava com os mouros. Dava lançadas, recebia lançadas, por muito tempo, até Frei Salvador da Torre acudir a pôr termo àquela tortura. Algumas vezes o arrábido deixava, supunha-se por cálculo mais que por comodidade, que o transe de el-rei se prolongasse pela noite fora. E o convento parecia converter-se num lugar de chacina e de tumulto.

Como vos não importa chegar com noite à Aldeia do Bispo - disse o guardião -, tereis ainda ensejo de avaliar da crise que atravessa o pobre monarca. Mas deveis estar com apetite depois duma jornada de cinco horas, escarranchado em besta de albarda e cadenilha. Permiti que vos convide a merendar... do frugalíssimo que temos...

Conduziu-o para o refeitório onde lhe foi servido do melhor que havia na copa, sobretudo peixe e mariscos.

- Belos lagostins! Quem os pesca, meu reverendo padre?

- Um nosso irmão leigo, Frei Aleixo, que daqui podeis ver...

Aproximaram-se da janela... Dali media-se a linha do promontório, com o mosteiro encarrapitado nas rochas mais de cinquenta metros acima do mar, como ninho de alcaravão. O cinábrio das ribas parecia derreter-se ao sol e as águas eram tão transparentes que nelas se estampavam a talhe doce os vultos do convento e da fortaleza. Toda a ponta de Sagres se estendia alterosa e medonha para a banda de lá da curva incerta da enseada do Beliche. Nela o patacho que trouxera D. Sebastião figurava, com velas e traquetes recolhidos, flâmulas e bandeiras arriadas, as bombardas de bronze adormecidas em seus bordos como monstros marinhos, árvore em tudo hibernal.

- Lá... - e o frei guardião apontava com o dedo. Nos cachopos comidos pela salsugem e verdes de limos eternos, à flor da água, divisava-se um vulto. Era o tal irmão leigo, Frei Aleixo de Braga, que ali pescava à cana ou com o bicheiro, de sol-nado a sol-poente, salvo as horas de missa e de coro. Do produto da sua pesca, tanto como do peditório que os fradinhos faziam ao domingo pelas aldeias e casais até Santa Maria do Cabo, se alimentava o convento. Frei Aleixo estava caduco e sofria da gota; não obstante, era ali testo, parte integrante da paisagem marinha como as arnelas do recife à volta do Promontório Sacro. Faziam-lhe, por vezes, companhia um ou outro soldado da fortaleza, ali mandada erguer por el-rei D. João III, e até um ou outro irmão na Capucha. Antes de lançar a linha persignava-se e à primeira anzolada recitava a Paixão de Cristo segundo S. João. Recitava-a com a solenidade que um oficiante põe a ler os Evangelhos. Sempre por ali fora um peixinho, um versículo - quando chegava à altura: Disse-lhe então Pilatos, logo tu és rei? E respondeu Jesus.- tu o dizes, sou rei. Para isso nasci e para dar testemunho da verdade; tudo o que é verdade conta ao seu serviço com a minha voz. E retrucou-lhe Pilatos.- Que coisa é verdade?... tinha repleto o balaio de verga que trazia a tiracolo. A sua recitação era vagarosa e claudicante, com requebros e gemidos, consoante a intensidade dramática, e intercalada de pequenos e inocentes parênteses relativos à faina piscatória. Mas é costume da terra que pela Páscoa se solte um...”Anda xarroquinho, anda para cá; não zarelhes.

- Quereis então que vos solte o rei dos judeus? “Ai, ai, picaste e comeste a isca. Safadão!” Todos à uma gritaram: não queremos esse solto...”Vem cá, menino! Vem cá! ó que rico cachuchol ó que rico... Bem hajas, meu Deus, mas Barrabrás. Era milagre do evangelista S. João o que os peixes acudiam ao seu anzol; e sem preferência de lugar, fosse ao lado de quem fosse, pescava sempre na proporção de dez para um.

- E quem é aquele outro frade que vai ter com ele? - perguntou Manuel Antunes, enviado de D. Henrique.

- Não declino bem, mas deve ser Frei Salvador da Torre. É um homem alto? Então é ele, o guardião temível de el-rei D. Sebastião. Quando não está ao pé do seu senhor, deambula por essas escarpas e parece uma alma penada. Coitado, é a sombra do que foi!

Acabada a colação, foram novamente pelo corredor fora direitos à cela de el-rei, tão devagarinho como se houvesse perigo em serem pressentidos. Pela arcaria aberta entrava o hausto imoderado do Atlântico. Ao dobrar da galeria para a outra ala, encontraram no ângulo de incidência dos olhos, mais perto, a Frei Aleixo e a Frei Salvador. O velho lá estava imóvel no seu posto, o coiro da face curtido da brisa, tão entregue à tarefa, que a Paixão de Cristo na sua boca era já murmúrio automático como o das ondas. D. Sebastião tratara com ele, das vezes que viera ao mosteiro descansar das quezílias da corte, e ficara a estimá-lo por pitoresco e simples como os elementos. Decerto voltaria a invejar-lhe hoje a paz de espírito e a naturalidade com que vegetava. E esta inveja, toda terrena, devia ser para ele como que uma das fases da luta de Jacob com o anjo.

Frade e mensageiro de D. Henrique despegaram-se da atracção que exercia sobre eles o pescador miraculoso e com o pé discreto de há pouco chegaram à cela que ocupava el-rei. Colaram o ouvido à porta. Não bulia rumor; não se ouvia no ar o mais leve frémito do sussurro. Esperaram e, ao fim dum longo minuto, durante o qual permaneceram encostados à parede, pensando em mil coisas, ouviram a voz flébil de D. Sebastião.

O murmúrio erguia-se e fixava-se como vespa encarcerada:

“O Maluco mandou-me oferecer os lugares marítimos que eu apetecesse e três léguas de terra. Mas seria manha. Sabe-se lá?... Devia ter aceitado... devia. Para que precisava eu de mais açougues na costa de África?... Este Maluco era atilado.

- Vê bem o que fazes”, dizia-me numa carta. - Não te determines à ligeira, nem empenhes por um homem que tem tão negra a ventura como a cara”“ O xerife negro era um pretexto. Que me importavam questões de justiça entre perros?... Nem eles tomariam a sério as minhas razões, tão pouco cuidadosas de lógica elas eram. Mas para eles o jogo era jogar... Dava-se-me tanto que o xerife fosse filho duma escrava negra como descendente em linha direita do Profeta... O que eu queria era combater mouros; martelar neles como Pepino; fazer-lhes da pele pergaminhos de glória imorredoira como o Cid; escrever ali com a espada uma nova história de Carlos Magno... Para que iam na minha comitiva os bispos do Porto e de Coimbra e na bagagem uma coroa cerrada? Para me sagrar de César na mesquita de Alcácer convertida em templo do Salvador do mundo... Tudo ia disposto para tal cerimónia. Desde as toalhas de altar à minha roupa branca, o pano fino ia marcado com a coroa de imperador... Foi-se tudo pela água abaixo... Pobre xerife, tão matreiro como infeliz! Disseram-me que se afogou no Uad-Elmázenl... Também morreu o outro, o meu vencedor, o bárbaro Maluco. Morreu e está no Inferno... Ah, se eu visse todos os diabos a derriçar-lhe na carne teria algum desafogo em minha raiva... A derriçar-lhe na carne como cães famintos, ou então o seu corpo levado na roda de navalhas, aqui deixando farripas, ali um membro, além feixes de músculos; a cada meia volta dilacerar-se e a cada meia volta refazer-se na carcaça maldita e terrenal! ... Ah, meu Deus, rija foi a vossa mão a castigar-me! E porquê?... Eu sei, eu sei: dilatação da fé era menos na minha alma que a soberba e fatuidade de vencer. Mas é justo que por causa do meu orgulho fosse tão implacavelmente provada a família lusitana?!... Minha frota no Tejo, com tantos mastros, tantos, que lembrava um bosque de Inverno! Minhas oitocentas velas enfunadas, mais bonitas que um bando de garças que vai a voar! Meus cavaleiros, vestindo por galantaria sedas e chamalotes do maior preço, com pedras finas desde os botões às fitas dos chapéus, ouro e prata desde as cabeçadas dos cavalos aos torçais que os escravos trazem nas librés! E tudo se perdeu! ... Tudo está hoje espalhado pelos aduares e chiqueiros da raça tinhosa Razão tinhas, Maluco infernal: !Lança bem conta a quantos homens são precisos para botar um morador fora de casa” Tudo se perdeu! Não tinha força para bater o bárbaro e abusei da minha fraqueza. Blasonei e, por necessidade e orgulho, multipliquei ainda essa fraqueza por mil. Maldição, maldição!”

- Assim leva o tempo a lutar o rei de Portugal proferiu o guardião. - Na primeira noite, permiti-me bater à sua porta para lhe dizer: Sossegai, senhor, que Deus é misericordioso.! Não me ouviu, felizmente, mas saiu-me da cela, que está ao lado, Frei Salvador da Torre com isto: Deixai, deixai, é a revulsão que opera; é Deus a conduzi-lo pelo melhor caminho.

- O bom caminho, depois que Sua Alteza o Cardeal D. Henrique tomou posse do reino, com preito unânime do clero, nobreza e povo, está indicado - proferiu, elevando a voz, Manuel Antunes.

O religioso esteve calado uns segundos, como a pedir inspiração ao Espírito Santo, e em voz lenta, aquela voz sem cor, igual, que parecia doutrem a falar por ele, disse:

- Sim, eu percebo o pensamento de Sua Alteza, o senhor Cardeal-Infante, nosso rei e amo. Os monarcas que por obra do próprio alvedrio se desapossaram do trono não têm o direito de voltar a requerê-lo. Assim o quis a vontade divina que se sobrepõe a todo o foro. Pois ide descansado e sossegai a nosso amo e senhor: el-rei D. Sebastião, 1º deste nome, está bem morto. Há semanas que para ali jaz, alimentado a pão e água. Digo semanas, não, devo dizer séculos. Anos seriam pouco, em duração, comparados aos dias horríveis que vai passando. Dilaceram-no mais os remorsos que os abutres aos cadáveres nos campos de Alcácer. Vive, em imaginação, cercado de mortos, cheios de ira, e de vivos que o acusam e pedem vingança, e é triste sina da criatura continuar a lutar contra tal imensidade de fantasmas. Metade do tempo luta consigo, com as sombras, com o mouro, com o destino, com Deus. A outra metade revolve o passado e delira com o que fez e não devia ter feito, com o que devia ter feito e não fez. Nos raros intervalos deste batalhar sem tréguas reza. Frei Salvador ouviu-o já de confissão geral. Segundo aquele meu irmão em S. Francisco, é propósito de el-rei D. Sebastião partir para os lugares santos a penitenciar-se. Frei Salvador propõe-se acompanhá-lo e já me pediu o placet, como seráfico que é, e credenciais para o convento do vale de Josafat, de Jerusalém. Quando me velo falar, compreendi porque mandara el-rei reter na enseadazinha o patacho que o trouxe. A bordo tem o que basta para se demorar em peregrinação três, quatro, cinco anos. Em que idade vai nosso senhor e amo?

- Sua Alteza o Cardeal? Sessenta e oito feitos.

- Com a ajudinha de Deus, ainda está para bater! Pois el-rei seu sobrinho há-de partir encoberto pelo mundo e ficar por lá tanto tempo quantos anos tem de vida e saúde D. Henrique, para bem do seu povo e da Igreja.

- E Frei Salvador...?

- Frei Salvador da Torre é tão iluminado como ele. Suponho que não foi outro quem lhe inspirou a ideia de ir mortificar-se à Terra Santa. Não se arvorou em Tribunal da Consciência do pobre rei? Tem-me consultado, de resto, e sei agora o que convém dizer-lhe.

- Muito bem, reverendo padre. Compreendo quanto está na vossa mão ser útil à causa de el-rei D. Henrique, sem deixar de sê-lo à de Deus, bem entendido. Quer ir fazer penitência a Jerusalém este moço que tem às costas o crime imperdoável de haver causado a ruína da nação? Pois deixá-lo ir, melhor, ajudai a desígnio tão meritório. Que vá e regue todos os dias com suor e lágrimas o chão onde Nosso Senhor derramou o seu sangue inocente; que passeie a língua de louco e autoritário pelas lajes tornadas veneráveis porque nelas pousaram as plantas do justo; que combata contra o otomano com aquele seu incrível valor de braço, que vale pouco num rei mas é de contar num soldado, e, ao cabo de anos, quando o ciclo das coisas for outro e tenha dado sinais de lhe haverem caído as cataratas dos olhos, de ter pisado a soberba, a ira, a vaidade, a jactância, o amor-próprio, a fatuidade, como a grão no almofariz, que volte! Só então nós, os portugueses, poderemos perdoar e aceitá-lo, porventura, como rei. É o parecer de todos, quero supor que o vosso, e decerto vem manifesto na carta de Frei Álvaro de Olivença. Não será assim...?

Sem dúvida alguma, Mas regressai tranquilo; estou neste mosteirinho para zelar a causa de Deus e de el-rei. Pois que se conjugam, melhor.

- Reverendo padre, Sua Alteza o Cardeal D. Henrique é tão generoso com os que o servem como inexorável, há quem diga que vingativo, mas é calúnia, com os que lhe são falsos ou contrários. Não tenho dúvida em afirmar que a primeira diocese, sede vacante, não precisa já de ser provida... e que esse dia será de glória na venerável Ordem da Piedade...

- A serviço de Deus e de Sua Alteza - murmurou o guardião, curvando-se.

- Resta, reverendíssimo padre, que lavreis um escrito sumário que me autorize a dizer que tendes como hóspede neste mosteiro ao infeliz e contrito D. Sebastião, rei que foi de Portugal e, para sossego de todos, aluda às salutares disposições em que se encontra...

- Como quiserdes, senhor Manuel Antunes. Mas sempre quero advertir-vos que não é bom trazer veneno connosco. As vezes empeçonha o portador.

O enviado cismou um momento e respondeu gracejando:

Não há-de haver novidade. Eu sou cauteloso. De resto, o veneno vai ao direito para a frasqueira de Sua Alteza, que está guardada a sete chaves.

- Ámen! - e o frade, pegando da pena de pato, com que traçava o lineamento das suas homilias, pôs-se a lavrar a cédula temerosa.

- Os corsários dão-nos caça, senhor - velo dizer o capitão. - Trazem duas galeotas e um bergantim e, a menos que o Todo-Poderoso lance na nossa rota alguma nau de Espanha, temo-la travada. Mandei meter proa ao cabo Teulada, que nos fica a quatro léguas por estibordo. A gente está a postos.

III

Acabou D. Sebastião de se vestir em silêncio e, pondo à cinta a espada larga de dois gumes, subiu para a coberta, seguido de Frei Salvador. Acabava de se render o primeiro quarto da alva e na luz difusa, mate e lívida, que parecia o revérbero da face do mar, distinguiam-se Já muito bem as galés velejando a todo o pano na esteira do Santo Anjo da Guarda. Estivera uma noite luzentíssima de lua cheia e de nada valera navegar de lanternas apagadas. Bastaria a própria fosforescência da água batida pela quilha, para chamar o olho esperto dos piratas, muito sobejos por aquelas paragens. Mas, andassem ao pairo ou fosse por artes do demónio que tivessem ventos do patacho, o certo era irem marrados nele, apenas aguardando o dia claro para lhe saltar em cima. A nau de linha - muita parra e pouca uva - não os tentava. Por desgraça o Santo Anjo da Guarda tinha mais ar de navio de comércio que de guerra, se bem que guarnecido duma espera, dois berços, dois falcões, e trazer além dos trinta e cinco homens da mareação uns vinte soldados, afeitos ao manejo de todas as armas.

A meia calmaria favorecia as galés que se aproximaram a ponto de se poderem contar homem por homem da manobra. E aquela que devia ser a capitânia fez sinal para que amainassem. Não obedeceu o capitão, lançando eles um tiro sem bala como a reforçar o aviso. Em resposta o condestável apontou-lhes a espera, e simultaneamente, de rebentina, falcões e berços abriram fogo. Um instante pareceram os corsários desconcertados como se, contando com borrego, lhes saltasse lobo. E quando se esperava que a amostra tivesse efeito salutar e se convencessem a virar de rumo, ei-los colhendo as velas e arvorando bandeiras largas e paveses vermelhos, para se lançarem sobre o patacho à força de remos.

Crescendo, crescendo à superfície estanhada do mar, com velocidade de gerifaltes, a sua artilharia disparou. Rolou o estampido, cobriu-se o céu com fumaceira e por detrás da sua cortina desapareceram por minutos as galés. O silêncio que então se sucedeu foi tão impressionante que pareceu alívio ouvir-se acima do chape-chape dos remos as vozes dos comitres presidindo à manobra e, enchendo o mar, os toques secos das trombetas bastardas ordenando os aprestos supremos do combate. Depois, lentamente, foi-se dissipando o nuvarrão de fumo. Viram-se as galés crescer para o patacho a voga arrancada. Mais fero que a cadência dos remos só as pupilas dos piratas, rabidas como de felinos. E com a iminência do risco, se bem que os portugueses fossem gente provada em colisões, as almas se turvaram.

- Fogo! - bradou o mestre, e novamente a espera e os pedreiros despejaram os seus pelouros contra as galés. Mas estas, porque os tiros fossem sofreados ou altos, aceleraram ainda mais o andamento, ao passo que varriam o convés do patacho com toda a casta de metralha. E a manobra da abordagem foi tão bem conduzida que os portugueses, mal refeitos da terrível descarga, só por milagre acudiram aos castelos a tempo de sustentar o ímpeto dos janízaros que acometiam de roldão e em grande poder, levando diante de si tudo raso. Mas o capitão não perdera de todo o ânimo e pôde repartir a sua gente em dois troços, um à proa, outro à ré. E crua batalha se travou nos dois pontos, espada contra alfange, mosquete contra arcabuz veneziano.

Combatiam os portugueses com o desespero de quem não espera salvação senão do próprio esforço, os piratas como feras famintas, assanhadas. E a porfia duns não ficava atrás da decisão dos outros.

Rendei-vos a Argel! - gritavam. Os Janízaros, havendo conseguido içar na adriça o pavilhão verde semeado de crescentes e estrelas de prata, acabaram por fazer-se fortes no castelo da proa e dali não arredavam pé. Apertavam com eles os portugueses e à arma branca e a tiro, arremessando-se dardos e farpões, o combate atingia inaudita ferocidade.

A bombordo, entretanto, os portugueses paravam com brio insuperável a abordagem da segunda galé. Grande, também, era a grita para aquele lado. Já a coberta estava pejada de mortos e feridos e viam-se a lutar com as ondas aqueles dos combatentes cuspidos ao mar nos desatinados vaivéns da peleja. O ataque teria há muito sido repelido se, a poucas braças, o bergantim, que não pudera atravessar-se com o Santo Anjo da Guarda, não fosse disparando sobre ele com pontaria serena os seus arcabuzes de bronze. E, não contente com ajuda tão traiçoeira, um judeu negregado preparou uma bomba incendiária e pela escotilha, com sorte infernal, lançou-a dentro.

Já à proa D. Sebastião e Frei Salvador carregavam o inimigo vitoriosamente; já o sargento de janízaros caíra de borco sobre a bitácula a gorgolejar sangue; já a chusma de barretes verdes se apinhava às arrecuas quando, de escantilhão, desabou sobre eles a gente de bombordo. Na sua cola vinham os turcos, de cimitarras e escopetas em punho, olhos esgazeados, boca escancarada, medonhos. E, disparando e acutilando à toa, atravessaram o convés de cambulhada com os portugueses que clamavam:

- Fujam se não querem morrer assados! Os do castelo, olhando à popa, viram uma chama enorme içar-se pelas enxárcias e lamber a traquete como se fosse estriga de linho, atrás dessa outras, e toda a ré converter-se em imensa fornalha. Senhor Deus, misericórdia! já de nada valia lutar e, no entanto, os portugueses procuraram remeter-se do primeiro espanto e resistir. Vã empresa! Entre os dois inimigos - piratagem e incêndio, mais feros um que o outro – os portugueses arrancaram com tal gana que, empurrando os turcos, foram dar cegos de todo à galé que primeiro os abalroara. Poucos restavam já: D. Sebastião, o frade, o condestável da artilharia e dois grumetes.

O patacho era agora uma imensa labareda silvando e enrubescendo céu e mar. Por um leve esfuminho a estibordo denunciava-se a terra, para a qual as naves, ferradas com harpões umas às outras, haviam insensivelmente descaído durante a refrega. Aquele traço de bistre, mais ténue que filamento de neblina a esgarçar-se dum amieiro, era bem o cairel da costa sarda. Continuava a não se avistar vela. Um bando de cormorões erguia dos parcéis para o alto com ar de dizer aos piratas: cuidado, além fora é a Latinidade, com gente, leis, armas, a que manda a prudência se não ofereçam estes espectáculos de sangue.

Depois de dar fundo aos mortos que não haviam sido abrasados, cuidaram os argelinos de pensar os feridos. E não foi pequena maravilha para os portugueses verem a ajudar ao barbeiro de bordo uma rapariga ainda novinha, loira dum tom quente de mel no favo, tão gentil de presença que nem o inédito da surpresa lhe faltava para boa fada. Posto não fosse sarracena a avaliar pelo todo, particularmente pela tez que era translúcida e pelos olhos de íris imaculada, quando os das africanas têm laivos amarelos, trajava à mourisca, só o véu descuidado para os ombros em lugar de lhe fazer coca à roda do rosto. Com isso ficavam-lhe livres e a doidejar os fiapos do cabelo sobre as têmporas e esse desalinho era cheio de graça. Depois de curar os seus, ocupou-se igualmente dos portugueses, sem se importar com a careta de reprovação que faziam os janízaros. D. Sebastião recebera uma espadeirada no ombro, e ela lhe lavou a ferida e aplicou os bálsamos da lei hipocrática com tanto jeito e bons modos que enternecia. Fez o mesmo a Frei Salvador e aos outros, mostrando sempre o maior agrado. Além de caridosa, enquanto se entregava ao papel de enfermeira, porque o seu natural fosse faceto, com um tanto de arvéloa que não lhe ia mal, mostrava os belos dentes brancos. Frei Salvador, que tinha mais lanhos nos braços e pelo corpo do que um cepo de carniceiro, pois que a pessoazinha dela era especiosa e agradável aos honestos sentidos como rosa orvalhada de roseira, falou-lhe, para a demorar ao pé deles, de coisas e loisas. Ela não se fez rogada, como se andasse coagida a solidão que lhe era grato romper, e em italiano lhes saciou a curiosidade quanto a saberem quem eram aqueles piratas e ela.

- Pois vou veneziana e chamo-me Bianca, em Argel, Lela Bianca. Meu tio é um armador muito conhecido em toda a Berberia pelo nome de Morato Arrais. Mas é oriundo da Albânia. Uma filha dele foi casada com Molei Moluco, o sultão de Marrocos que morreu durante a batalha de Alcácer Quibir contra D. Sebastião de Portugal. Aqui está. Dizei-me agora quem vós sois... - concluiu ela com donaire, o seu olhar suspenso numa deliciosa expressão de interesse.

Declarou-lhe Frei Salvador da Torre que eram homens de negócio e iam feirar a Cândia, levando especiarias do Oriente e estofos da Flandres para trazer veniaga local, o famigerado vinho malvasia e os queijos de não menos glorioso crédito.

E, fornecendo respostas certas de molde a dar-lhe satisfação sem sofrer dano, tornou o frade:

- Mas como pode a senhorita, tão jovem e mimosa, andar no meio desta alcateia de feras, capazes de tudo, esfaquear Cristo e furar a ponta de punhal o ventre que os gerou?

- Eu sou passageira do bergantim - respondeu ela com certa travessura na voz e riso a iluminar a boca rubicunda. - Mas não me pergunteis agora por que bulas sou passageira do bergantim, que é o meu segredo.

Meteram os cativos na câmara da galé capitânia e mandaram-nos despir. D. Sebastião, que sempre fora pudico e recatado, resistiu; o comitre acenou-lhe com o azorrague.

- Meu senhor - disse o arrábido -, quer a Divina Providência que comecem as provações. Não há que fugir.

Despiram-se o rei e os mais, e em troca da roupa que traziam no corpo, tanto a branca como a de cima, lhes deram camisolas velhas de marujo, calças de espantalho dos milhos e hílares carapuços de judeu.

Era em fins de Outubro e as manhãs são frias e preguiçosas de levantar. Quase todos tiritavam naquela indumentária moura de vendedor de amendoim, mas ninguém fez caso do seu bater de dentes. Também lhes não deram calçado, nem bom nem mau, e Frei Salvador murmurou, contemplando os seus famosos joanetes:

O vero Salvador subiu descalço a Rua da Amargura. Paciência!

À hora em que a vaga mais estreloiçava na câmara, abafando todos os ruídos, o arrábido bichanou ao ouvido do rei:

- Alma, meu senhor! Alma e saireis magnificado destes trabalhos. Agora fazei-me a mercê de ouvir: se estes bárbaros soubessem que estão em posse do rei de Portugal, de que não seriam capazes em achincalhe e ganância? Os nossos companheiros não o sabem. Sabia-o o bravo capitão; paz à sua alma; o segredo está bem guardado no fundo do mar. É preciso que os perros nem desconfiem. Por isso eu rogo a Vossa Alteza se digne mudar de nome. Não há inconveniente em que eu continue a chamar-me como sou. Por baixo do saal não há al. Outro tanto não sucede com Vossa Alteza. É assim ou não é assim?

- É assim! - concordou D. Sebastião.

- Pois já que Vossa Alteza foi o mais desejado dos portugueses, pode dizer-se, depois que Portugal é Portugal, porque não há-de adoptar este crisma tão legítimo: Desidério? Desidério Augusto, Augusto como atributo de majestade?...

- Passarei a chamar-me Desidério Augusto - proferiu el-rei.

Pela tarde veio um turco, o arrais, a julgar pela importância com que olhava para os cativos. Descoroçoado com a fraca presa a que o reduzira o incêndio, não podia admitir que um navio que se dizia mercante assim trouxesse tripulação de guerra. Que fazenda levava e que fazenda ia buscar? - e, rugindo, ameaçava-os com ferros se tentassem lográ-lo. Valeu saber Frei Salvador arábigo o que basta para embrulhar uma resposta que, afinal de contas, se resumia em repetir o que dissera a Lela Bianca. E interrogados quando à condição de cada um, o franciscano, que prezava a verdade como verdade entre cristãos, e a mentira tanto como a verdade entre infiéis, respondeu serem feitores e criados do rico comerciante que perdera a vida no incêndio do patacho e que, embora tivessem empunhado a espada como homens leais a seu amo, não eram as armas o seu mester como já não tinham sido a sua criação. Pessoas de fracos teres, não podiam pagar grande resgate. Quanto pediam por cabeça?

- Isso trata-se em Argel, não aqui - respondeu o pirata, voltando costas.

Trouxeram-lhes uma tarraçada de grugu - arroz com azeitonas - que comeram da mesma escudela. Pareceu-lhes o pão branquíssimo, a água fresca e saborosa, e ainda que o alimento viesse pelas mãos dos bárbaros, deram graças ao Senhor. À noite, não obstante as vozes e as marteladas, estrépido que lhes deu a entender que os piratas se ocupavam do conserto da galé avariada na batalha, adormeceram, e vencidos pela fadiga, mais forte que a inquietação de seus destinos, o sono lhes foi propício. No dia seguinte um janízaro prendeu-os uns aos outros com uma corrente de apertados e seguros fuzis, e assim os tocou da câmara para o convés. Estava a romper o dia e para as bandas do Oriente o céu representava a imensa pele de cabra, acabada de esfolar, das manhãs luminosas de Portugal. Mais extensos àquela hora não podiam sê-lo os horizontes. Arrepiava ao mar um soprozinho de brisa que lhe esfiocava o azul profundo. Os três navios navegavam de conserva, tão escoteiros, a tão frouxa remada, que, se não fora de quando em quando o ranger das enxárcias e das vergas, passariam sem ser notados das garças adormecidas. Mas foi clareando mais e mais e a costa começou a definir-se, linha escura e caprichosa, carregada aqui, imperceptível ali, dentada acolá, consoante a vestia bosque, areal, ou era ribanceira abrupta. Depois, essa linha tornou-se duma verticalidade fantástica e opressiva, espécie de anteparo a serranias de almagre e cobalto. E, contra um fundo vagamente roxo e pardo, uma pirâmide láctea ia-se erguendo à medida que as galés avançavam, com entalhes como se fosse uma curiosa construção em pôrfiro, quase a pique como vela de gávea enfunada pelo vento. Nessa estranha empena, mais umas braças percorridas, as coisas começaram a singularizar-se: distinguiu-se uma casa, depois outra e outra; uma mesquita; um torreão; uma palmeira... Mais duas remadas, rompeu o Sol, e, nem que depusesse envolvente sendal, Argel explodiu em sua brancura e tintas versicolores, tão fechada como pinha, tão empinada pela encosta que todas as casas pareciam de atalaia para o mar, sem que uma tolhesse as vistas da outra. E pelos minaretes, açoteias, terraços dos bastiões, amelas das muralhas, a alcáçova em panos negros de granito, a todo o alto, portas e baluartes, tudo em bebedoiro para o mar, havia uma pulverização de luz tão diáfana e fluída que dir-se-ia regulada pela cortina de tule que eram à retaguarda da planície as montanhas ondulosas.

Quando a pequena frota entrou no porto, os falcões salvaram. Responderam-lhes as troneiras dos baluartes ribeirinhos, e logo começou a afluir ao mole grande peso de gente. Porto e cais estavam já em grande animação. Pescadores saíam com seus caíques, e galés aparelhavam para o corso costumado; mercadores estrangeiros carregavam seus navios de trigo. Martelava-se para as tercenas e, rente aos molhes, nas águas chocas, dormentes, com viscosidades metálicas a boiar, velhos mouriscos, apenas com uma tanga nas partes, negros e sórdidos, pescavam à cana. Por cima deles e na praça do peixe, à retaguarda, miríades de gaivotas descreviam volutas esbeltas picando a água e escalando o céu, soltando guinchados ásperos na disputa de cibo e quando alguma delas, ao fazer presa que se visse, despertava estímulo ou aplausos.

Os cativos viram a mocinha desembarcar do bergantim e, embora ignorassem de certa certeza quem era, tiveram a sensação angustiosa de que uma pequenina divindade tutelar os havia desamparado.

Foi avançando a manhã e nas galés entraram multas e várias pessoas, com a lágrima estas, a gemer aquelas, chispando lume contra os cativos quase todas. Eram as famílias enlutadas pela batalha e os amigos que vinham prantear seus mortos e acarinhar os feridos. E como a propiciação não lhes parecesse completa sem holocausto, caindo sobre os cativos lhes arrancavam as barbas e os moíam a murro e à paulada. já o sol coruscava nos muros brancos e a sombras eram de carvão retinto, quando um cabo de janízaros com a escolta competente os veio buscar. A açudada de gente no desembarcadoiro era tal que um dos tropas teve de sacar do alfange e brandi-lo para que lhes franqueassem passagem. E foi entre empurrões da populaça, insultos e vozes de maldição, que largaram do molhe e meteram por uma rua tão estreita que nela não cabiam mais que dois homens de frente. E em seu encalço continuou a zumbir brava, suja e densa como moscas, a praga dos lazarones.

Passaram diante de velhas mesquitas à porta das quais mouras indigentes tomavam o fresco e pediam esmola. De edifícios coroados por zimbórios furta-cores, que eram balneários, viram sair mulheres de bloco. Foram de beco em beco, de viela em viela, com casas baixas e mudas encostadas umas às outras como a emprestar-se reciprocamente sombra e equilíbrio. Algumas tão herméticas eram que mal abriam para a rua uma portinha sonsa, se a não podiam dissimular para a travessa. E careciam de outras frestas além de pequenos postigos por onde seria possível espreitarem olhos de ciúme ou de amor, mas não assomar a cabeça. Mais longe, bairro dos artistas fora, as casas de habitação permaneciam inalteravelmente cerradas e misteriosas, toda a vida interior concentrada à volta do pátio. Mas nas quitandas e baiucas os obreiros mouros, sentados sobre as pernas em cruz, entregavam-se à vista da gente aos variadíssimos mesteres. Com majestosa gravidade, como se dos seus gestos dependesse a sorte de Argel, os chumecos consertavam chalocas achavascadas de judeus e chinelinhas lirós de argelianas em marroquim. Cheios duma sobranceria, que vinha de seu grau elevado na jerarquia dos ofícios, os alfagemes corregiam lâminas de aço e apuravam arneses. Não era também sem distinção que os esteireiros teciam suas junças e combinavam cores, tudo com uma notável pachorra, regalados que os admirassem. Todos eles, soldadores, alfaiates, oleiros, davam mostra de tal contentamento consigo e com a sorte, que dir-se-ia fazerem o comércio ou exercerem a indústria por gozo da notoriedade, como histriões ao exibirem-se em público. Tinha a sua graça, sobretudo, ver os barbeiros, depois de puxar a cabeça dos pacientes para os joelhos, passearem por cima deles um navalhão aguçadíssimo e ultra-rápido, ufanos e com os ares mais distraídos deste mundo.

Judias, a avaliar pela falta de recato comparadas com as mouras, cobertas de mondongos, passavam como formigas. Iam a despejar as imundícies domésticas nas montureiras que se anunciavam de longe pelos gases mefíticos de podridão e cloaca que infectavam um quarteirão inteiro. Em certos sítios as casas, tocando-se frente com frente, telha com telha, não deixavam ver céu. Era lôbrego, e com as ruas a trepar por sucessivos planos, sempre a festo, a saída ao alto luzia como tampa de cristal. O chão estava, para mais, coalhado de detritos, cabeças e tripas de peixe, ossos, lixo e mais lixo, e por toda a parte cheirava a peste e a cadáver.

Foram apresentá-los ao baxá que encontraram de pernas cruzadas num estrado, a que cobria rico tapete de Esmirna. Vestia túnica vermelha que lhe chegava aos tornozelos magros e lanzudos e tinha na mão um leque com que se abanava vivamente das moscas e do calor. A sua retaguarda, a todo o longo da parede, desdobrava-se o pavilhão argelino, uma lua de prata, a meio de estrelas, em campo verde. Era um renegado veneziano que adoptara o nome turco de Hassan, Hassan o Vaidoso, como lhe chamavam os mouriscos, gente muito propensa a pôr a alcunha e o ferrete. Ninguém gostava dele. A sua rapacidade era de tal ordem que anos a fio tinha açambarcado o comércio do trigo, principal riqueza da província, provocando a alta que muito bem lhe apetecia com estar na sua mão proibir a importação de cereais. Dizia-se que tinha pregos de ouro pelas paredes e à cautela ia amealhando na sua antiga terra natal, onde contava acabar a velhice enfarinhado de filantropo. Além de ter o monopólio do trigo, acusavam-no de torpíssimas malas-artes e abusos de poder no sentido de apanhar quantos escravos apareciam no mercado por uma tuta-e-meia e revendê-los ao Grão-Turco e a quem precisava deles por mundos e fundos.

A primeira impressão que dava era do tipo presunçoso, mesquinho e reles ao mesmo tempo. Esta impressão contrastava com a que se tinha do homem que estava à sua direita, homem de meia estatura, albornoz de seda, turbante rico na cabeça, borzeguins finos. A barba preta de azeviche, com raros pêlos brancos, vestia-lhe a face, crestada sim, mas alva e quase simpática; os seus olhos eram pequenos, de vivo azougue e risonhos, modo nele, porventura, de esconder a cólera e a crueldade. Cinquenta anos; máscara de inteligência e energia a toda a prova; criatura para dar cartas a Satanás; talvez mais manhoso do que Hassan, sendo de considerar que para pessoas, à margem do direito das gentes, a manha é a suprema virtude: Morato Arrais, terror dos mares.

Na qualidade, decerto, de general das galés que haviam aprisionado os portugueses, lançou-lhes, mal entraram, um olhar anojadiço e desdenhoso, que não escapou a ninguém, e que parecia ter por objecto tal efeito. Aquele olhar queria dizer: mal empregado tempo, dinheiro e vidas que se gastaram a deitar a rede a estes cinco iagodes. Os dois grumetes, ou lá o que eram, não passam dum ranho de gente; o frade está na vertente da idade; escaveirado; um roble com a carcoma no cerne.

O barbirruivo vem ferido, e tanto pode ficar aleijado por toda a vida como engangrenar-se-lhe o ombro e levá-lo a maleita; sofrível, tem-te não calas é o homem de olhos bovinos, espantados, que dizem ter sido condestável de artilharia.

- Já deitaste as contas a quanto nos ficou o cisco que aqui temos?! - proferiu em italiano, que lhes era língua comum, depois daquele olhar pejorativo. - De dez remadores feridos, dois vogavantes, feros e tesos como urcos, dormem no fundo do mar; sete estão no hospital, mas três não pegam mais no remo. Da soldadesca, há quatro janízaros com o odebasi mortos e mais de quinze marcados para toda a vida. Porca madona!. Mas tu podes dar graças que não se perderam mais que dois homens na tua galé!

Em resposta o baxá rompeu a encarecer o prejuízo que tivera e, armando ao desinteresse, a falta, mormente, que fazia o odebasi, homem experimentado a guerramar, forte como toiro e duma fidelidade ao aga a toda a prova. Era dizer-lhe metesse as mãos no lume e ele a grelhá-las. Uma das primeiras cimitarras de Argel! Mas para aqueles malditos assim fazerem estrago é que se tratava de gente prática no manejo das armas. O barbirruivo dava mostras de espadachim, bastava olhar-lhe para os bíceps desenvolvidos sobremaneira em desproporção talvez com o tórax. Hem, não lhe parecia que por debaixo do uniforme de pilhanqueiro que lhe vestira o arrais se lobrigava o fidalgo, mas fidalgo de alta senhoria...? Que tal, as roupas não haviam fornecido indício nenhum?...

Morato Arrais afivelou de novo o ricto de desprezo e respondeu com desembaraço:

- Não, as roupas não forneceram nenhum indício aproveitável. Caso contrário, teríamos sido informados. Não estava lá Galeaço, o teu honrado e leal arrais? Zeloso como é, deve trazer-te ao par...

- Tens razão, Galeaço é a pontualidade em pessoa, mas Galeaço não pode ter olhos para tudo. Em suma, assentemos que o barbirruivo não trazia consigo sinal que o identificasse. Mas estou na minha: temos pássaro grosso na mão.

- Não creio, mas oxalá o teu palpite bata certo. Os interrogatórios nada deixam prever...

- Santa ingenuidade! Experimentemos às boas a ver se são capazes de confessar que dispararam um tiro contra Argel! Eu cá sou pelos processos de Sua Eminência o Cardeal Cisneiros...

- Está bem, aplica-se a tortura, mas fiquemos entendidos: se o cativo ficar estropiado, como sucedeu há tempos com os irlandeses, os prejuízos são à tua conta.

E de despique em despique exaltaram-se a grau que chegaram a imaginar os portugueses que se atiravam às goelas um do outro. Mas nada disso; acabaram nos melhores termos por convir que os cativos fossem postos no Badistam em hasta pública. A percentagem que revertia a cada um deles forneceu de novo tema à mais encanzinada contumélia. Pedia o baxá que do produto dos cinco cativos lhe fossem entregues três quintos: o primeiro, pois que era prerrogativa do cargo que desempenhava tomar em todas as presas de oito partes uma; o segundo, porque a galé capitaneada por Galeaço era sua, armada com seus dinheiros pessoais e paga a tripulação do seu bolso; o terceiro, afinal, porque a lei, sempre que se tratasse de cativo de qualidade, lho mandava reservar como quinhão; ora bastava observar as mãos, os ademanes do barbirruivo, para se dar conta que se estava em frente de algo.

Contestava o corsário que se a lei lhe conferia uma oitava parte nas presas em sua qualidade de baxá, era absurdo pedir uma quinta parte, consoante as contas que estava a deitar; e se, como armador duma das galés lhe competia um cativo, não lhe assistia o direito de declarar: “Este é de qualidade, fica para mim.” Ora estava averiguado que o patacho era bem um navio de comércio e não levar, além da equipagem, senão pessoal de negócio, feitores e caixeiros; desta opinião eram o seu arrais, Galcaço, e ele depois das inculcas a que procedera.

Morato Arrais argumentava sem grande calor, embora com acrimónia, o que ao espírito de Hassan não era mais que dar jogo baralhado. Uma das forças do corsário era esta: variar de atitude como se lhe fosse possível depor o temperamento e carácter que lhe eram próprios e revestir outros. Depois, como se nutriam reciprocamente a maior antecipação, ao travarem-se de litígio, o que sucedia a cada passo, punham-se a raciocinar a modo de cabra-cega. @ ................
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