Eleição no fim do mundo



Eleição no fim do mundo

Como um miserável lugarejo esquecido por Deus e pelos poderes públicos, sem posto de saúde, delegacia de polícia e comércio, prepara-se para eleger pela primeira vez prefeito e vereadores e ganhar o status de cidade. À falta de pesquisas, o resultado da eleição é antecipado pela observação dos sinais da natureza e consulta a adivinhos

Correio Braziliense, 8 de setembro de 1996

Ricardo Noblat

A menos de um mês da data marcada para a escolha dos novos prefeitos de 5.507 municípios, o menor colégio eleitoral do país, Lavandeira, encravado com seus 473 votos no sudeste do estado de Tocantins e distante quase 600 quilômetros de Brasília, já decidiu quem o governará pela primeira vez a partir de janeiro próximo. E somente uma reviravolta política, possível, mas improvável a essa altura, será capaz de mudar o resultado antecipado por cartazes e adesivos fixados nas portas e janelas das 92 casas do lugar. Ou admitido abertamente por correligionários e adversários dos candidatos em intermináveis rodas de conversas nas quatro poeirentas únicas ruas de Lavandeira. Ou ainda anunciado por irrecusáveis sinais da natureza e afamadas entidades que guardam o dom de decifrar os mistérios mais intrincados.

O futuro prefeito, sustentado pela coligação PMDB-PFL, atende pelo nome de Antônio Francisco Leite, mas todos o chamam de Toinzinho. Mineiro de fala mansa, gestos contidos, barba sempre por fazer e um palito que às vezes exibe pendurado no canto direito da boca, tem 42 anos de idade e pesa 65 quilos bem distribuídos por 1,62m de altura. Está casado há 15 anos com Rosilda Tavares, filha da mais antiga e poderosa família de Aurora do Tocantins, município ao qual Lavandeira ainda pertence como distrito. E é vereador há dois mandatos desde 1988. Foi primeiro do PFL e se opôs ao prefeito da época. Desembarcou no PMDB e aliou-se ao prefeito seguinte. No início da administração da atual prefeita de Aurora, do PPB, apoiou-a com entusiasmo e até presidiu a Câmara Municipal. Rompeu mais tarde com a prefeita e nos dois últimos anos praticamente abandonou a Câmara só para se dedicar a missão mais árdua que enfrentou na vida até aqui: criar um município para ele mesmo governar.

“Quero fazer o bem do povo”, explica-se sem muita originalidade. “Mas não sou homem de promessas, eu faço as coisas.” Também não é homem de muitas palavras. Só concluiu o curso primário. E trai sua admiração quando escuta a mulher falar com fluência e articular bem as idéias. Rosilda tem o segundo grau completo. Não desgruda do marido. E diz com muita simplicidade que se sente apta a exercer o papel de primeira-dama de Lavadeira. Pai, tio e avô de Rosilda foram os primeiros prefeitos de Aurora. Um irmão dela é candidato a prefeito este ano. “Desde menina que discuto e faço política”, comenta. “E não posso negar que gosto.”

O marido, que não gosta menos do que ela e dedica à política cada minuto do seu dia, prepara-se para comandar uma prefeitura que poderia ser o sonho, em parte, de qualquer governante preocupado com a modernização da administração pública. Uma prefeitura sem sede, sem funcionários e sem dívidas. Mas que em compensação nascerá sob a sombria perspectiva de não poder cobrar impostos de uma rarefeita e maltrapilha comunidade de 1.100 almas, dona de modestas plantações de arroz e milho só para consumo próprio e de algumas dezenas de bois para engorda e venda.

Das 88 casas habitadas de Lavandeira, 71 exibem na fachada e às vezes nos muros que as rodeiam a adesão explícita dos moradores à candidatura de Toinzinho. Ali há cartazes, adesivos e toscas pinturas com o número dele e o slogan da campanha: “Quem criou merece”. O lavrador Adontino Alfredo Lima, 52 anos, antigo morador da rua principal da cidade, repetiu uma infalível experiência da qual sempre se vale quando não encontra respostas fáceis para as dúvidas dos conterrâneos. Em julho passado, lançadas as candidaturas a prefeito de Toinzinho e da professora primária Maria de Lurdes, 46 anos, do PPB, ele adubou um metro quadrado de terra no fundo do quintal de casa, molhou-o bem molhado e ali deitou dois caroços de feijão.

— O da direita é Toinzinho. O da esquerda é Maria de Lurdes”, avisou, solene e circunspecto, às testemunhas da experiência.

Antes que julho terminasse, os dois caroços brotaram, mas Toinzinho brotou mais forte, mais viçoso e cresceu mais rapidamente. Foi o bastante para definir alguns votos de eleitores ainda indecisos àquela altura. Na área rural de Lavandeira, numa localidade por nome Plano Alto, outro lavrador podou dois pés de bananeira plantados lado a lado, deixou-os com a mesma altura e deu a um o nome de Toinzinho e ao outro o de Maria de Lurdes. Menos de um mês depois, Toinzinho estava cinco centímetros maior que Maria de Lurdes. O que só serviu para confirmar também a consulta feita pela rezadeira Dejanira, 50 anos, a um afamado vidente que ela conheceu há muitos anos em Pernambuco.

De olho nos votos

Capaz de aviar receitas caseiras à base de raízes para todos os tipos de males e de cicatrizar feridas com o auxílio de orações num lugar onde o médico mais próximo está a seis quilômetros de distância, Dejanira despachou ao vidente uma relação com o nome e os apelidos dos candidatos à prefeitura e à Câmara Municipal de Lavandeira, esses em número de 16, onze aliados de Toinzinho e cinco de Maria de Lurdes. A carta-resposta do vidente apontou Toinzinho como eleito e forneceu a composição definitiva da Câmara. Dejanira recusa-se, contudo, a revelar a identidade dos primeiros vereadores da história de Lavandeira. Não quer colecionar várias inimizades ao mesmo tempo.

— Só disse que Toizinho vai ser eleito porque o vidente me assegurou”, justificou-se Dejanira para uma amiga. “É mesmo assim porque foi ele o primeiro político que falou e acreditou nessa história de Lavandeira deixar de ser distrito.” Era duro acreditar que Lavandeira estivesse destinada a tornar-se o 138º município de um estado que, por si só, pareceu uma tremenda invenção quando foi criado em 1988. Um truque esperto de parlamentares que ambicionavam sem sucesso o poder em Goiás, de onde Tocantins foi desmembrado. Mais um arranjo para satisfazer o apetite deles do que uma profunda necessidade ditada por profundas razões nacionais de natureza estratégica. Ainda é duro acreditar que Lavandeira reúna as mínimas condições para alcançar a maioridade política.

Tocantins é obra da teimosia do goiano Siqueira Campos, deputado à Assembléia Constituinte de 1988. Para erigi-la, ele moveu Deus e o mundo e por fim chantageou seus pares até com a ameaça de se declarar em greve de fome caso não conseguisse o que queria. Tocantins foi instalado em janeiro de 1990 com 79 municípios, e disso não deveria passar. Siqueira Campos o governou por dois anos, o suficiente para eleger em 1992 um dos filhos prefeito de Palmas, a capital. Dali a mais dois anos se elegeu novamente governador e, se tudo der certo, o filho um dia sentará na cadeira que ele hoje ocupa. Na campanha eleitoral de 1994, foi de olho nos poucos votos de Lavandeira que Siqueira Campos cedeu ali aos apelos de Toinzinho e proclamou durante um comício que aquele distrito num futuro próximo não seria mais distrito.

— Nem eu mesmo acreditei logo no que acabara de ouvir”, recorda Toinzinho. Tinha razões para isso. Lavandeira, afinal, é o lugar do “não tem”, como o são tantos outros lugares pobres e abandonados do interior mais remoto do país. Distante seis quilômetros, ao sul, de Combinado, um movimentado pólo comercial no sudeste do estado, e a 18 quilômetros ao norte de Aurora, cidade com população quase 10 vezes maior, Lavandeira não tem agência bancária, não tem escritório de qualquer órgão público estadual ou federal, não tem polícia, médico, padre, pastor, embora tenha duas pequenas igrejas, uma católica e outra evangélica. Os trocados que os moradores gastam com energia vão para os cofres da empresa de eletricidade do estado. É de graça a água que escorre diariamente das torneiras entre as 5h e as 13h e torna a escorrer das 14h às 20h. O distrito não contribui com um só real para a arrecadação de Aurora, que, de sua parte, dá emprego apenas a 15 cidadãos de Lavadeira, a maioria professores.

O comércio local resume-se a quatro bares, dos deles com mesa de bilhar onde as bolas rolam com visível dificuldade por causa do veludo puído; e a uma mercearia, abastecida com pequenas guloseimas caseiras, cigarros americanos contrabandeados do Paraguai, refrigerantes, conhaque Dreher a R$ 6 o litro e a cachaça Brejeira, vendida a garrafa a R$ 2. Opções de diversão são poucas: dançar aos sábados em dois apertados salões contíguos a bares e assistir à televisão. Há 70 aparelhos de televisão, quase um por casa, e 29 antenas parabólicas que facilitam o aceso a uma dúzia de canais. Tevê sem antena parabólica só sintoniza a Globo e ainda assim muito mal.

Emprego em família

Lavandeira tem uma escola de primeiro grau com 160 alunos. Mas no passado recente já teve uma de segundo grau, dissolvida mais tarde por poderosos interesses políticos que entraram em conflito. Frente a frente se puseram, de um lado, a professora Maria de Lurdes, prima distante do cacique e patrocinador de sua candidatura, João Severo Neto, que há 20 anos manda na política de Aurora. Do outro, o vereador Toinzinho, unido, como já foi dito, por laços de parentesco à família Tavares, proprietária de fazendas, muito gado e durante sete décadas do destino da gente de Aurora, de Lavandeira e de quantas terras e povoados mais a vista alcançasse ou não.

Maria de Lurdes pediu, João Severo mexeu-se e a autorização para o funcionamento do ensino de segundo grau foi dada pela Secretaria de Educação do Estado no início de 1992. Toizinho temeu o fortalecimento da corrente política adversária, dois deputados votados na região se aliaram a ele e o funcionamento do curso acabou suspenso no final de 1994 por ordens emanadas da capital. João Severo retaliou no ano seguinte. Alegando falta de recursos, a prefeita de Aurora, dona Eli, recusou-se a renovar o contrato dos quatro empregados do único posto de saúde de Lavandeira. O posto fechou. Continua fechado. Em tempo: dona Eli, 35 anos, que cultiva o hábito de se maquiar de manhã muito cedo e adora roupas de cores fortes, é mulher de João Severo. “Nada tive a ver com o fim do ensino do segundo grau”, nega Toinzinho indignado. “Isso só me deu mais trabalho porque tive de conseguir um ônibus que leva diariamente estudantes de Lavandeira para cursar o segundo grau em Combinado.”

Um pouco mais de trabalho e certamente algumas dezenas de votos a mais. O caminhão-pipa que às quartas-feiras e aos sábados molha as ruas de Lavandeira para tornar a poeira menos insuportável também foi contratado por Toinzinho. A candidatura dele parece imune às intrigas e ataques dos adversários, primeiro, porque nos últimos seis anos ele comportou-se como o prefeito que Lavandeira não tinha. E por prefeito de um lugar carente como aquele entenda-se o sujeito sempre disponível para transportar em seu carro um doente à procura de médico, socorrer os mais aflitos com pequenas quantias em dinheiro, intervir para solucionar divergências e intermediar junto aos poderes públicos toda sorte de pedidos. Segunda razão: porque a população reconhece que assim como Tocantins foi obra da teimosia de Siqueira Campos, Lavandeira deverá para sempre a Toizinho a esperança de quem sabe um dia tornar-se uma cidade próspera e feliz.

A partir de janeiro próximo, quando o prefeito e os vereadores eleitos forem empossados, Lavandeira passará a receber mensalmente R$ 50 mil do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Para quem nada recebe hoje, dará quase R$ 50 por cada habitante. A diária de um trabalhador avulso na área urbana ou rural de Lavandeira não ultrapassa R$ 5. “Eles ficarão numa situação melhor que a nossa”, confessa sem disfarçar um ponta de inveja a prefeita de Aurora, atolada em dívidas herdadas dos seus antecessores, inclusive do marido, que superam R$ 120 mil. Aurora sobrevive com uma arrecadação mensal de pouco mais de R$ 6 mil. O governo federal repassa mensalmente, divididos em três parcelas, os mesmos R$ 50 mil do FPM que repassará a Lavandeira. Só com seus funcionários, cerca de 140, a prefeitura gasta R$ 30 mil.

Daria para tocar o serviço com um terço desses funcionários, concorda a prefeita, que escalou um irmão para a Secretaria de Finanças, uma cunhada para a Secretaria de Educação e nomeou um irmão, um tio e um primo do marido para as Secretarias de Pessoal, de Comunicação e de Transporte. Mas ela se recusa a enxugar a máquina administrativa. “Demitir funcionário é briga na certa”, atesta dona Eli. “É voto perdido na certa”, acrescenta João Severo, o marido, que veste elegantes camisas de seda e calças da grife Brooksfield, perfuma-se com Azzaro, tem casa em Goiânia e Brasília e se apresenta como “o orientador da prefeita”. Que Lavandeira tenha melhor sorte que Aurora. Seus habitantes acreditam que terá. “Foi Toinzinho que inventou a cidade e vai saber cuidar dela”, aposta o comerciante de madeira Nilton dos Santos Ferreira, evangélico e caçador de nambu nas horas vagas. Nambu é uma espécie de codorna. “Quem criou merece”, sublinha Gleima de Souza Santos Castro, adepta radical da candidatura de Toinzinho, e em cuja casa funciona o único posto telefônico de Lavandeira. O marido de Gleima é candidato a vereador na chapa de Toinzinho.

De fato, ninguém mais que Toinzinho se empenhou nos últimos seis anos em arrebanhar apoios para catapultar Lavandeira à condição de município. Para que seus desafetos não dissessem que aquela idéia, além de maluca, era uma coisa apenas da cabeça dele, Toinzinho meteu a mão no bolso, sacou parte das economias que tinha, pediu ajuda aos amigos e convocou a população de Lavandeira para um plebiscito em novembro passado. Compareceram 439 pessoas, 357 votaram e, dessas, 337 disseram sim à proposta de emancipação. Ela então deixou para trás a poeira de Lavandeira, onde fora concebida, viajou mais de 600 quilômetros até a capital do estado, apresentou-se nos termos protocolares exigidos pelo ritual engravatado da Assembléia Legislativa do Tocantins e foi aprovada antes que os fogos de artifício anunciassem a chegada de um novo ano. “Toinzinho convenceu que isso seria possível até a nós mesmos, que botávamos pouca fé”, reconhece Camerino Pereira Bastos, 39 anos, lavrador aposentado e marido de uma prima do candidato. “Eu mesmo dormi no posto e, quando vi, a emancipação de Lavandeira já era um fato e a candidatura de Toinzinho estava solta na frente”, confidencia, aborrecido, João Severo.

O preço da eleição

O garrancho de Camerino foi um dos cem colhidos em 1990 por Toinzinho num abaixo-assinado para ser entregue a deputados estaduais em favor da emancipação do povoado.. Ou da “municipação”, como ele prefere dizer. Convidado depois, Camerino concordou em disputar uma das dez vagas da futura Câmara Municipal de Lavandeira na companhia de mais três parentes de Toinzinho: a mulher, um irmão e um primo. Para ser eleito, um vereador precisa, no mínimo de 26 votos. Camerino conta com os votos do pai, de cinco irmãos e quatro cunhados. “Dá para a saída”, observa. Em melhor situação está o compositor de rap e autor de dramas e comédias teatrais Antônio Maria de Castro, 25 anos, o animador cultural de Lavandeira. Contabiliza 21 votos garantidos na família, para ele e Toinzinho. O 22º voto, de uma irmã, ele perdeu para o marido dela, candidato a vereador na chapa adversária. A irmã de Antônio Maria votará em Toinzinho para prefeito. O marido ameaça abandoná-la por causa disso. A mulher de Toinzinho integra a lista de 11 candidatos a vereador da coligação PMDB-PFL, mas não tem a pretensão de ser eleita. Ela não diz a ninguém que é candidata. E aparentemente ninguém sabe que ela é.

“Estou só fazendo número. Vai ver depois a lei atual muda e eu possa suceder meu marido na prefeitura?” – especula Rosilda com transparência de propósitos admirável. Os colegas dela de chapa para a Câmara admitem que sonham mesmo é com o salário mensal R$ 280 a R$ 300 e naturalmente com as melhorias de vida que poderão proporcionar os moradores da cidade. Mais ou menos nessa ordem. Prudente, Toinzinho recusa-se a dar importância ao salário de R$ 1.300 que receberá caso seja eleito. Quase cinco vezes mais do que recebe como vereador de Aurora. A renda familiar é engordada com o salário de R$ 300 que a mulher dele ganha como diretora do Colégio Santa Inês de Aurora e a retirada mensal de R$ 500 que faz no cartório da família onde exerce a função de suboficial.

O que Toinzinho apura com a produção agrícola do seu sítio de 20 hectares em Lavandeira ajuda a fazer face aos gastos do casal e de dois filhos adolescentes. E também às volumosas despesas da campanha orçadas em R$ 50 mil. A cada reunião de eleitores ou a cada comício que promove, Toinzinho desfalca o pequeno lote de 50 vacas que cria no sítio. Reunião significa uma vaca a menos, servida no churrasco que atrai eleitores e não-eleitores, simpatizantes, indecisos e até adversários. Que amanhã poderão mudar de lado, nunca se sabe. E é por isso que não devem ser excluídos. Comício é igual, no mínimo, a duas vacas. E mais festa, animada por um toca-fitas de Toinzinho e duas potentes caixas de som tomadas emprestadas a um amigo. Ele já realizou duas reuniões e um comício. Planeja repetir a dose até o dia 30 de setembro.

Por enquanto, pelo menos, a campanha dele é mais organizada e muito mais cara do que a de sua adversária Maria de Lurdes. É bom que se diga por enquanto, porque João Severo, com o cacife de proprietário de largas fatias de terra em Aurora e de uma empresa que abastece de gás industrial os mercados de Goiânia e Brasília, tem muito dinheiro, se quiser, para irrigar a combalida campanha de Maria de Lurdes na reta final da eleição em Lavandeira. “Esse negócio de atender pedidos está demais”, reclama a candidata, mãe de três filhas e separada do marido, sentada na varanda do seu sonolento comitê que fica defronte ao agitado comitê de Toinzinho. Nem 20 metros os separam. “Já gastei do meu bolso R$ 5 mil de julho para cá ajudando um e outro. Mas não gosto de política e mesmo se tivesse dinheiro não daria a ninguém em troca de voto.” Emprego em abundância na prefeitura, Maria de Lurdes vai logo avisando que também não daria. Ou melhor: não dará, pois candidato algum admite a derrota na véspera. “Emprego garantido mesmo só haverá para uma filha que me ajuda na campanha”, adverte.

Obra mais que perfeita

João Severo seria capaz de achar graça da profissão de fé de Maria de Lurdes. O ex-marido dela já espalhou pelos quatro cantos de Lavandeira que votará em Toinzinho. Entre os quatro professores, colegas dela no colégio onde ensina, Maria de Lurdes não tem um só voto. “Toinzinho é candidato há seis anos. Eu aceitei ser no final de junho passado”, relembra. Ela vai à caça de votos, a pé ou dirigindo seu próprio carro, orientada por uma lista com 382 nomes que recebeu recentemente da Justiça Eleitoral. Já visitou um por um, foi bem recebida por todos, mas desconfia que a parada é indigesta. “Se não der nessa, ganharei na próxima”, intromete-se João Severo, a salvo do calor de Aurora por conta dos três aparelhos de ar condicionado que tem em casa. Aurora só dispõe de mais um aparelho desses que refrigera o gabinete de trabalho da prefeita. Por sinal, o lugar que menos freqüenta. Prefere despachar em casa.

A bordo de um dos seis carros cedidos por amigos para a campanha ou de qualquer outro dos sete que tem permanentemente alugados, Toinzinho garimpa apoios com uma lista atualizada onde constam os nomes dos exatos 473 eleitores habituados a votar em 3 de outubro. Nomes, sobrenomes e apelidos cuidadosamente anotados por Rosilda, sua mulher. Mais do que uma devotada assessora, ela é o principal cérebro da campanha de Toinzinho. Ele tem dificuldades em fazer contas. Ele reconhece a maioria dos eleitores pela fisionomia. Ela sabe tudo sobre eles. Acompanha-o invariavelmente a todos os compromissos. E à simples menção do nome de um eleitor, declina de cor a profissão dele, diz se é solteiro ou casado, indica onde mora e desfia a relação de parentes próximos ou distantes. Foi ela quem descobriu que 19 parentes de Toinzinho votarão nele, mas que um tio e uma prima votarão em Maria de Lurdes. Também foi ela quem constatou que a fidelidade política familiar é mais praticada ao lado da adversária. Os 10 parentes de Maria de Lurdes votarão nela fechados. Ex-marido não é parente.

Aos 37 anos de idade, Rosilda é um verdadeiro computador de carne e osso, um metro e meio de altura, olhos negros e ar desconfiado, e com uma capacidade de trabalho de dar inveja a muito marmanjo. A poderosa memória dela vem sendo alimentada com uma variedade espantosa de dados desde que Toinzinho decidiu, ele mesmo antecipar-se à morosa e pouco aparelhada Justiça Eleitoral de Tocantins e cadastrar os possíveis eleitores de Lavandeira. Fez isso no início deste ano, tendo como ponto de partida o arquivo de nomes e endereços que Rosilda organizou por ocasião do plebiscito de novembro. E mais o que ela acumulou na memória. Depois de pronto, ofereceu o serviço à revisão da Justiça, que o aceitou. Corrigiu pouca coisa. Toinzinho gastou uma nota preta com isso. Mas está certo de que valeu a pena. Ao cabo, homem de poucas letras mas bastante esperto, ele realizou o sonho secreto de todo candidato em qualquer parte do mundo onde se precise de voto para alguma coisa: elegeu a maioria dos eleitores que deverão elegê-lo. Agora é esperar o dia 3 de outubro para conferir se de fato esculpiu a mais que perfeita obra-prima política de sua vida. Pelo menos até aqui.

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