Rheingold, Howard



Rheingold, Howard. A comunidade Virtual. Lisboa: Gradiva: 1996, p.13-56.

Introdução

«O papa está a dizer 'caramba!' outra vez ao computador.»

Estas palavras tornaram-se o código familiar para o modo como a minha comunidade virtual se infiltrou na nossa realidade. A minha filha de 7 anos sabe da convivência do pai com uma família de amigos invisíveis, que parecem reunir-se no computador. Às vezes o pai fala com eles, apesar de mais ninguém os ver; e ela sabe que de quando em vez esses amigos surgem em carne e osso, materializando-se vindos do próximo quarteirão ou do outro lado do planeta.

Desde o Verão de 1985 que, sete dias por semana, à média de duas horas por dia, ligo o meu computador pessoal ao telefone e entro na rede da WELL (Mfhole Earth 'Lectronic Link); a WELL é um sistema de teleconferência por computador que permite aos utentes espalhados pelo globo a participação em conversas públicas e a troca de correspondência privada via correio eletrônico. A princípio, pareceu-me fria a idéia de uma comunidade apenas accessível através de um écran de computador, mas depressa constatei a emoção que o correio eletrônico e as teleconferências podem causar, tendo-me, inclusivamente, deixado contagiar. Interesso-me pelas pessoas que vim a conhecer desse modo, e interesso-me profundamente pelo futuro do meio que nos permite reunir.

Não sou o único a sentir esta ligação emocional a um ritual tecnológico aparentemente sem vida; milhões de pessoas de todos os continentes participam em grandes grupos sociais por intermédio de computadores, conhecidos por comunidades virtuais, e o seu número está a crescer rapidamente. Encontrar a WELL foi como descobrir um mundo pequeno e aconchegado, que florescia sem mim, escondido algures dentro das minhas quatro paredes, todo um elenco de personagens me deu entusiasmadamente as boas-vindas à troupe, quando encontrei a porta secreta para esse outro mundo. Cedo descobri ser ator, audiência e argumentista participante de um improviso perpétuo, juntamente com todos os meus companheiros que «caíram na WELL»*. Uma subcultura em grande escala estava a crescer no outro lado da linha telefônica e fui convidado a ajudar na criação de algo inovador.

A aldeia virtual com que me deparei em 1985 cresceu desde então de algumas centenas para cerca de 8000 pessoas em 1993; apercebi-me claramente, desde os primeiros tempos, de que estava a participar na autoconstrução de uma nova cultura. Observei como os laços sociais da comunidade se estreitavam e modificavam à medida que aos primeiros fundadores da WELL se juntavam tantos outros e se iam estabelecendo normas, posteriormente desafiadas, alteradas, restabelecidas e novamente desafiadas, tudo numa espécie de evolução social acelerada. Desde o inicio que me senti como fazendo parte de uma comunidade autêntica, porque a WELL pertencia ao meu mundo físico quotidiano. Os WELLómanos que viviam afastados da área da baía de São Francisco, na Califórnia, tinham dificuldade em participar nos encontros ao vivo com os outros membros. Pela minha parte, já assisti na vida real a casamentos, a partos e mesmo a um funeral da WELL - a expressão “na vida real” (in real life) surge tão freqüentemente no meio virtual que é abreviada para IRL. Perdi a conta do número de festas e saídas em que participei com as personagens dos anteriores debates e melodramas do écran, que então se manifestavam em carne e osso ante os meus olhos na forma de pessoas reais, com caras, corpos e vozes reais.

Ainda me recordo da primeira vez que entrei numa sala repleta de pessoas IRL, conhecedoras dos pormenores da minha vida privada, e vice-versa. Aconteceu por ocasião da primeira festa da WELL onde estive - realizou-se em casa de um dos anfitriões da rede, três meses após a minha adesão. Ao perscrutar os rostos de todos aqueles desconhecidos, tive uma das sensações mais bizarras de toda a minha vida: já tinha discutido, partilhado alianças, estreitado laços e rebentado a rir com aquelas pessoas, chegando a ficar lívido de raiva com algumas. Mas nunca as tinha visto antes; não reconhecia agora ninguém.

Desde há muito que a minha família real se habituou a ver-me sentado no escritório em frente do écran do computador, de manhã cedo e pela noite fora, a ler coisas que me fazem rir, praguejar ou mesmo chorar.

Quando uma noite a minha filha me surpreendeu a abafar o riso frente ao computador, deve ter pensado que eu estava sozinho, ali sentado à secretária; do meu ponto de vista, eu estava em contato direto com uma panóplia de velhos e novos amigos, colegas e desconhecidos.

Estava a participar na conferência parental da WELL, tomando parte num grupo de apoio informativo e emocional a um amigo que soubera recentemente que o filho tinha leucemia.

Estava a participar no MicroMUSE, um jogo de faz-de-conta do século XXIV (e também um meio de educação científica disfarçado), interagindo com estudantes e professores universitários que me conheciam apenas por «Polinizador».

Estava a participar na comunidade bicultural TWICS, de Tóquio, na comunidade londrina CIX, na parisiense Calvacom e na Usenet, um emaranhado de centenas de discussões diferentes que percorrem o mundo inteiro através de correio eletrônico e contam com milhões de participantes em dezenas de países.

Estava a vasculhar os acórdãos do Supremo Tribunal dos EUA, procurando obter informações que me ajudassem a rebater os argumentos de um oponente político algures na Rede, ou a gravar as imagens obtidas por satélite meteorológico nessa manhã sobre o oceano Pacifico; estava a seguir o relato de várias testemunhas oculares, quer da tentativa de golpe de estado em Moscou contra Gorbatchev, quer dos incidentes na Praça de Tiananmen, em Pequim, ou mesmo sobre Israel e o Kuwait durante a guerra do Golfo; esses testemunhos eram passados diretamente de cidadão para cidadão através de uma rede intrincada, formada por computadores baratos e linhas telefônicas comuns, através das habituais fronteiras geográficas e políticas «às cavalitas» da infra-estrutura global de comunicações.

Seguia igualmente um diálogo em tempo real espalhado por três continentes, uma verdadeira luta de galos global, que mesclava a veia inspirada com a conversa de balneário do liceu através da IRC, um meio que combina as características do discurso direto com a escrita. A IRC - Iternet Relay Chat- amalgamou uma subcultura obsessiva muito própria entre milhares estudantes universitários, desde a Arábia a Adelaide.

Nas comunidades virtuais escrevem-se palavras num écran para contar anedotas, discutir, envolver-se em dialéticas intelectuais, negociar, trocar conhecimentos e apoio emocional, fazer planos e brainstorming, contar mexericos, apaixonar-se, fazer amigos e perdê-los, jogar, namorar, criar algumas obras-primas e produzir muita conversa fiada. As pessoas das comunidades virtuais fazem tudo o que as pessoas na vida real fazem, mas estão desprendidas dos seus corpos. Claro que não se pode nem beijar nem esmurrar o nariz de ninguém, embora muito possa acontecer dentro desses limites. Milhões de pessoas sentem-se atraídas, mesmo viciadas, pelas comunidades unidas por computador.

Não existe uma subcultura online única e monolítica, antes um ecossistema de subculturas, umas frívolas e outras sérias. A linha da frente do discurso científico está a migrar para as comunidades virtuais, onde podem ler-se as pré-publicações de cientistas ligados à biologia molecular ou à ciência da cognição. Ativistas e reformadores do ensino utilizam este meio de comunicação como instrumento político. Pode usar-se a comunidade virtual para combinar um encontro romântico, vender o cortador de relva, publicar tinia novela ou dirigir uma reunião.

Há quem utilize a comunidade virtual como forma de psicoterapia; ou, corno os jogadores mais viciados no Minitel francês e nos MUD* das redes informáticas internacionais, passe dezoito ou mais horas por semana fingindo ser outrem, vivendo uma vida inexistente fora do computador. Como os MUD não só são passíveis de utilização patologicamente obsessiva por certas pessoas, como provocam o congestionamento dos recursos informáticos e de telecomunicações, foram liminarmente banidos em universidades como a de Amherst e em todo o continente australiano.

Os cientistas, estudantes, bibliotecários, artistas, organizadores e trânsfugas existenciais não são os únicos a aderir ao novo meio - o senador americano que durante anos fez campanha a favor da construção de uma rede nacional para a investigação e educação (a NREN, National Research and Education Network), passível de albergar as comunidades virtuais do trituro, é agora vice-presidente dos Estados Unidos. Como tal, desde Junho de 1993 que a Casa Branca e o Congresso possuem endereços de correio eletrônico.

A maior parte das pessoas que acedem à informação noticiosa através dos meios de comunicação convencionais desconhece ainda a gama incrivelmente diversificada das novas culturas que foram evoluindo no interior das redes informáticas mundiais. Quem não usou estes novos meios desconhece quão profundas podem ser as transformações nas nossas vidas, no futuro próximo, em virtude das atuais experiências sociais, políticas e científicas a decorrer nessas redes.

Escrevi este livro na tentativa de informar um público mais vasto sobre a importância potencial do ciberespaço para a liberdade política e sobre a forma como as comunidades virtuais poderão vir alterar a nossa percepção do mundo enquanto indivíduos e enquanto comunidades.

Embora seja um entusiasta do potencial libertador das comunicações mediadas por computador, tento manter-me alerta e vislumbrar as armadilhas produzidas pela mistura de tecnologia com relações humanas.

Espero que os meus relatos da linha da frente desta nova coabitação social, assim como as histórias das pessoas que conheci no ciberespaço, tragam a lume as implicações culturais, políticas e éticas das comunidades virtuais tanto para os que comigo exploram o ciberespaço como para quem nunca de tal coisa ouviu falar.

A tecnologia que torna possível a existência de comunidades virtuais pode aumentar consideravelmente o ascendente do cidadão comum a um custo relativamente baixo: ascendente intelectual, social, comercial e, sobretudo, ascendente político. Contudo, a tecnologia não concretiza sozinha esse potencial interventivo, sendo necessário que as suas capacidades latentes sejam conduzidas deliberada e inteligentemente por uma população esclarecida. Enquanto temos liberdade para o fazer, é preciso divulgar a existência destas características latentes e a forma como devem ser usadas para concretizar o seu potencial de ascensão. São grandes as probabilidades de o poder político e a alta finança virem a controlar o acesso às comunidades virtuais, já que no passado sempre encontraram maneira de controlar os novos meios de comunicação de massas à medida que foram surgindo. Pode dizer-se que a Rede está fundamentalmente isenta de controle, mas talvez não permaneça assim por muito tempo. Os nossos atuais conhecimentos e ações são importantes, na medida em que ainda é possível a muita gente no mundo inteiro assegurar a permanência desta nova esfera do discurso humano nos moldes presentes, aberta aos cidadãos do planeta, antes que dela se apoderem os manda-chuvas políticos e econômicos, censurando-a, delimitando-a e voltando a vender-no-la.

A influência social latente advém do ascendente ganho pelo cidadão comum quando aprende a estabelecer a ligação entre duas tecnologias até então independentes, maduras e altamente descentralizadas: foi preciso gastar dezenas de anos e milhares de milhões de dólares para desenvolver um computador pessoal barato, e outro tanto para implantar uma rede de telecomunicações à escala mundial. Com o conhecimento adequado, por sinal pouco, e algumas centenas de dólares, uma criança de l0 anos pode fazer a ligação entre essas duas tecnologias grandiosas e onerosamente desenvolvidas, tornando-se-lhe possível aceder instantaneamente a uma tribuna de primeira, à Biblioteca do Congresso americano e a um mundo repleto de potenciais co-conspiradores.

Os computadores e as redes comutadas de telecomunicações que transportam as habituais chamadas telefônicas constituem os alicerces tecnológicos das comunicações mediadas por computador (CMC). Os pormenores técnicos de CMC, tais como o processo pelo qual os bits de dados informáticos são transmitidos através das linhas de comunicação e reagrupados no destino, sob a forma de arquivos de computador, são totalmente invisíveis e irrelevantes para a maior parte dos utilizadores, exceto quando esses pormenores restringem o seu acesso aos serviços de CMC. O conceito primordial a ter em conta é que as redes de telecomunicações que cobrem o planeta e nos servem para telefonar, em Manhattan ou em Madagascar, nos permitem ligar computadores à distância sem precisarmos ser engenheiros para o fazermos.

A Rede é o termo informal que designa as redes de computadores interligadas, empregando a tecnologia de CMC para associar pessoas de todo o mundo na forma de debates públicos.

As comunidades virtuais são os agregados sociais surgidos na Rede, quando os intervenientes de um debate o levam por diante em número e sentimento suficientes para formarem teias de relações pessoais no ciberespaço. O termo ciberespaço, surgido originalmente na novela de ficção científica Neuromante, de William Gibson*, é o nome por vezes usado para designar o espaço conceptual onde se manifestam palavras, relações humanas, dados, riqueza e poder dos utilizadores da tecnologia de CMC.

Embora uma imagem espacial ajude a enquadrar a experiência de convívio numa comunidade virtual, é freqüentemente mais apropriada uma imagem biológica para descrever o modo como a cibercultura se altera. Em termos de expansão e evolução do sistema como um todo, pense-se no ciberespaço como uma caixa de Petri social, sendo a Rede o meio de àgar-àgar e as comunidades virtuais, em toda a sua diversidade, as colônias de microorganismos que normalmente se desenvolvem nas caixas de Petri. Cada uma das pequenas colônias de microorganismos - as comunidades da Rede - é uma experiência social não planejada que está a decorrer.

Hoje em dia sabe-se como as anteriores tecnologias da comunicação mudaram a vida das pessoas, tornando-se necessário compreender como e porquê tantas experiências sociais estão atualmente a evoluir em paralelo com as mais recentes tecnologias da comunicação. Nos últimos dez anos a minha observação direta do comportamento on-line em todo o mundo levou-me a concluir que, sempre que a tecnologia de CMC se torna acessível em qualquer lugar, as pessoas inevitavelmente constroem comunidades virtuais com ela, tal como os microrganismos inevitavelmente se constituem em colônias.

Suspeito de que uma das explicações para esse fenômeno seja o desejo de comunidade que cresce em toda em parte no interior dos indivíduos, à medida que desaparecem cada vez mais espaços públicos da vida quotidiana. Também suspeito de que estes novos meios de comunicação atraiam colônias de entusiastas porque a CMC lhes permite interagir de uma forma inovadora, fazendo coisas novas em conjunto - tal como o permitiram os telégrafos, os telefones e as televisões.

Em virtude da sua influência potencial nas convicções e percepções de um número tão grande de indivíduos, o futuro da Rede está ligado ao futuro da comunidade, da democracia, da educação, da ciência e da vida, intelectual - algumas das instituições humanas mais prezadas, independentemente da importância dada ao futuro da tecnologia informática.

O futuro da Rede tornou-se demasiado importante para dizer apenas respeito aos especialistas e aos interesses específicos, porque influencia um número crescente de indivíduos, devendo, cada vez mais cidadãos contribuir para o diálogo sobre a forma como os dinheiros públicos são aplicados no desenvolvimento da Rede. Devemos juntar as nossas vozes ao debate sobre a maneira de a administrar. Devemos transmitir uma perspectiva clara dos cidadãos sobre o modo como a Rede deve crescer, uma idéia firme sobre o ambiente mediático que desejaríamos vir a ter no futuro. Se não desenvolvermos nós próprios esta visão do futuro, este ser-nos-á deteminado pelos detentores do grande poder político e comercial.

* Editado em Portugal pela Gradiva – Publicações Ltda. (N. do T.)

A Rede é hoje extremamente disseminada e anárquica. Isto se deve em parte ao modo como as fontes que lhe deram origem convergiram nos anos 80, após anos de desenvolvimento independente e aparentemente diferenciado com base em tecnologias e populações de participantes diversos. As convergências tecnológica e social eram inevitáveis; no final dos anos 70, contudo, poucos podiam prevê-las.

As redes alargadas de CMC espalhadas pelos cinco continentes e que ligam milhares de pequenas redes são um efeito colateral da investigação militar americana. A primeira rede de computadores, a ARPANET, foi criada nos anos 70 com o objetivo de permitir aos investigadores financiados pelo Departamento de Defesa operar vários computadores à distância. O objetivo da rede era a transmissão de dados informáticos, e não de mensagens pessoais - mas rapidamente se percebeu que ela também servia perfeitamente para a transmissão de palavras. O conceito tecnológico em que se baseou a ARPANET teve origem num centro de investigação denominado RAND, situado em Santa Mônica, na Califórnia, que desenvolveu bastante trabalho sobre cenários ultra-secretos de guerra termonuclear. A ARPANET surgiu a partir de um antigo projeto do RAND para uma rede de comunicações, comando e controle desprovido de um controle centralizado para resistir a um ataque nuclear.

A conferência por computador surgiu, um pouco inesperadamente, como meio de explorar as capacidades de comunicação das redes para construir relações sociais através das barreiras espaço-temporais. Ao longo da história das CMC é sempre patente o modo como os indivíduos adaptam as tecnologias às suas necessidades de comunicação, bastante diversas dos propósitos das concepções tecnológicas originais. Aliás, as alterações tecnológicas mais profundas vieram da periferia e das subculturas, e não da ortodoxia da indústria informática e dos meios acadêmicos das ciências da computação. Os programadores que criaram a primeira rede de computadores incorporaram-lhe funções de correio eletrônico. Embora não fosse este o objetivo da ARPANET, era algo simples de implementar em virtude da sua existência.

Posteriormente, da mesma forma acidental e ad hoc, a conferência por computador teve origem na necessidade governamental de fornecer um meio de comunicação para tomada dispersa de decisões. Embora as primeiras experiências de conferência por computador tivessem sido precipitadas pelo congelamento salarial e de preços decretado pelo governo americano nos anos 70 e pela conseqüente necessidade de reunir informação atualizada a partir de um grande número de instituições locais geograficamente dispersas, todo o processo foi rapidamente adaptado ao discurso comercial, científico e social.

Os amadores que interligam os respectivos computadores pessoais através das linhas telefônicas para constituírem sistemas de quadro de mensagens eletrônicas, conhecidos como BBS (bullletin board systems), criaram a parte caseira da Rede, levando verdadeiramente a tecnologia às massas. Centenas de milhares de pessoas em todo o mundo utilizam legalmente a rede de telecomunicações através de computadores pessoais e vulgares linhas telefônicas. O atributo técnico mais importante da rede de BBS é ser extremamente resistente - tal conto esperavam os projetistas do RAND. A informação pode tomar tantos caminhos alternativos caso seja eliminado qualquer nó da rede que esta é quase imortalmente flexível. É esta a flexibilidade referida por John Gilmore, um pioneiro das CMC, quando escreve: «A Rede interpreta a censura como uma avaria e faz por contorná-la.» Este processo de transmissão da informação através de uma rede constituída por recursos dispersos e sem controle centralizado manifestou-se no rápido crescimento do emaranhado de diálogos à escala global conhecido por Usenet. A invenção de um sistema distribuído de diálogos que contorna os obstáculos - uma adaptação popular da tecnologia originalmente concebida como uma arma do apocalipse - pode ser a longo prazo tão importante como as invenções de hardware e software que estiveram na base da sua criação.

As grandes redes fixas de comunicações estão a gastar somas muitos maiores para criar condutas de informação de alto débito entre nós informáticos de grande capacidade. A Internet, atual sucessora da ARPANET, patrocinada pelo governo americano, está a crescer em todas as dimensões a um ritmo estonteante. Estas «auto-estradas da informação» utilizam linhas especiais de telecomunicações e outros equipamentos para transmitir grandes quantidades de informação através da rede a velocidades extremamente elevadas. A ARPANET começou a funcionar há cerca de vinte anos com aproximadamente um milhar de usuários; neste momento a Internet aproxima-se dos l0 milhões.

O computador portátil situado em cima da minha secretária é centenas de vezes mais barato e milhares de vezes mais potente do que os primeiros nós da ARPANET. O esqueleto de fibra óptica da atual Internet transmite a informação a uma velocidade de milhões de vezes superior à da ARPANET original. Tudo na Internet cresceu como uma colônia bacteriana - a capacidade básica de enviar informação, as diversas maneiras de os indivíduos a utilizarem e o número de utilizadores: a sua população tem vindo a crescer cerca de 15% por mês ao longo dos últimos anos. John Quarterman, o autor do guia completo das redes informáticas do mundo inteiro, denominado The Matrix, estima existirem atualmente 900 redes distintas em todo o mundo, não contando com as mais de l0.000 redes já ligadas pela «rede de redes» que é a Internet.

As raízes da relva são também uma rede de redes, uma estrutura ramificada auto semelhante. Cada servente gera um conjunto ramificado de raízes, as quais geram, por sua vez, raízes menores. As raízes de cada planta unem-se às raízes das plantas adjacentes, formando um intrincado complexo, como pode confirmar qualquer jardineiro que tente arrancar um relvado. De forma análoga, há uma componente telúrica da Rede que até há pouco tempo não se tinha envolvido com os projetos super-secretos e sofisticados que conduziram à ARPANET - os utentes das BBS.

A componente telúrica da Rede, isto é, as BBS operadas pelos cidadãos comuns têm registrado um crescimento explosivo na forma de um movimento auto financiado de entusiastas sem os benefícios dos fundos do Departamento de Defesa. Uma BBS é a estrutura mais simples e mais barata de CMC: executa-se software especial, freqüentemente disponível a baixo custo, num computador pessoal ligado a uma linha telefônica normal através de um dispositivo denominado modem. O modem converte a informação da linguagem do computador para sinais elétricos que percorrem os mesmos fios telefônicos que a nossa voz; no extremo oposto da linha, outro modem decodifica os sinais, convertendo-os em bits e bytes novamente legíveis pelo computador. O software das BBS transforma, por sua vez, os bits e bytes em linguagem inteligível. A nossa BBS pode ser acedida por outros indivíduos, servindo-se dos respectivos computadores, para depositar mensagens no sistema ou recolher as que estão lá armazenadas, e temos tinia comunidade virtual a crescer dentro de casa. Como operadores do sistema de quadro de mensagens (os chamados sysops, de system operators), contribuímos com parte da memória do nosso computador e certificamo-nos de que este permanece ligado à linha telefônica. Cada usuário paga as próprias despesas de telecomunicações.

A revista Boardwatch estima em 60 000 o número de BBS a funcionar em 1993 apenas nos Estados Unidos, catorze anos após o estabelecimento das primeiras BBS em Chicago e na Califórnia. Cada BBS compreende um universo de usuários individuais que pode ir da dezena a várias centenas ou milhares. Existem BBS religiosas de todas as denominações, BBS sobre sexo de todas as tendências, BBS políticas que abrangem todo o espectro, BBS fora de lei, BBS para o cumprimento da lei, para deficientes, educadores, crianças, cultos e organizações sem fins lucrativos - a lista das BBS especializadas tem dezenas de páginas de sabores à escolha. A cultura das BBS expandiu-se desde os Estados Unidos até ao Japão, Europa e Américas do Sul e Central.

Cada BBS começou como uma pequena comunidade insular, constituída por um punhado de indivíduos que ligavam para um número da sua rede telefônica local; devido à sua natureza, as BBS restringem-se a uma área geográfica limitada, tal como as estações de rádio locais. Mas também este panorama está a alterar-se; tal como as diversas tecnologias convergiram nos últimos dez anos para criar as CMC - um novo meio de comunicação com características próprias -, diversas estruturas sociais online estão a convergir e a criar uma cultura internacional com características próprias.

A componente telúrica da rede está a unir-se à parte militar-industrial por pontes tecnológicas. Aos programadores originais da Rede, aos acadêmicos e cientistas que dela se servem para, respectivamente, trocarem conhecimentos e fazerem investigação, juntam-se agora os amadores das BBS caseiras. Podem ligar-se redes inteiras por meio de computadores especiais de acesso (os gateways), que traduzem automaticamente as convenções da linguagem de comunicações próprias de uma rede (conhecidas por protocolos) nas de outra rede distinta. Nos últimos anos os grupos até então separados dos pioneiros da Internet e das BBS trabalham em conjunto para ligarem os mais de l0.000 computadores da rede mundial FidoNet-a primeira rede de pequenas BBS privadas – aos milhões de utentes e às dezenas de milhares de computadores mais potentes da Internet.

A Rede e os sistemas de conferência por computador estão igualmente a convergir, à medida que se vão associando à Internet, a comunidades de conferência por computador com dimensões médias, como é o caso da WELL. Quando a WELL evoluiu para uma ligação de alta velocidade à Internet, tornou-se não só uma comunidade em desenvolvimento, como um meio de acesso a uma esfera mais ampla, a rede universal. Subitamente, os arquipélagos constituídos por poucas centenas de indivíduos estão a fundir-se numa entidade integrada. As pequenas comunidades virtuais ainda subsistem, qual fermento na massa a levedar, mas cada vez mais são parte de uma cultura abrangente, do mesmo modo que os Estados Unidos se tornaram uma cultura abrangente depois de o telégrafo e o telefone ter ligado os vários estados.

A WELL é um pequeno burgo, mas hoje possui uma porta que dá acesso à confusão florescente e babélica da Rede, entidade com características totalmente diferentes das aldeias virtuais de há poucos anos.

Tenho bons amigos nos quatro cantos do mundo que nunca teria conhecido sem a intermediação da Rede, e um círculo alargado de conhecimentos pode fazer uma enorme diferença quando se decide fazer a experiência de visitar uma cultura estranha. Sempre que tenho viajado fisicamente nos últimos tempos, encontrei comunidades sólidas que conheci on-line meses antes de partir; o nosso entusiasmo mútuo pelas comunidades virtuais serviu repetidamente como ponte para pessoas cuja língua e costumes diferem dos que me são familiares na Califórnia.

Normalmente, fico a conhecer as pessoas meses ou anos antes de as ver - de forma que o meu mundo é hoje diferente do mundo em que vivia na era pré-modem, com amigos e preocupações diferentes. Os locais que exploro na minha mente e as pessoas com quem comunico de um momento para o outro são inteiramente diversos do contexto das minhas idéias e do meu círculo de amizades antes de ter começado a navegar no mar das comunidades virtuais. Tanto posso estar envolvido nos pormenores preparativos do próximo jogo de bridge local como no minuto a seguir torrar parte num debate acalorado que se alastra por sete países.

Não se trata somente de fazer parte de comunidades virtuais; de tal modo recordo as conversas e começo a misturá-las com a vida real que as minhas comunidades virtuais fazem parte da minha vida. Fui colonizado; o meu sentido de família ao nível mais fundamental foi virtualizado.

Tenho visto variações dessa mesma virtualização da comunidade atingirem grupos de algumas centenas de milhões de indivíduos em Paris, Londres e Tóquio, à medida que cidades inteiras estão a ficar online. Santa Mônica, na Califórnia, e Cleveland, no Ohio, estiveram entre as primeiras de um número crescente de cidades americanas a implementar sistemas municipais de CMC. O sistema de Santa Mônica compreende uma conferência ativa para a discussão dos problemas dos sem-abrigo, envolvendo um grande contributo de munícipes nessa situação, efetuado a partir de terminais públicos. O sistema possui uma ligação eletrônica ao COARA, um sistema regional de moldes semelhantes, situado numa província remota do Japão. A rede Biwa-Net, da área de Quioto, está ligada à de uma cidade geminada da Pensilvânia. A Rede ainda mal está a despertar.

Observar a evolução de uma dada comunidade virtual provoca um pouco de emoção intelectual da antropologia amadora, alimentada pelo voyeurismo multicolor de escutar às escondidas uma infindável novela em que se misturam a audiência e o elenco. Pelo preço de uma chamada telefônica é possível participar em qualquer tipo de melodrama que possa imaginar-se; seja como forma de divertimento ou de evasão, os viciados no Minitel em Paris, os MUDders da Internet e os utentes obsessivos da IRC em inúmeras universidades provaram que as CMC têm futuro como importante mercado de fantasias interativas por medida.

As CMC poderão tornar-se o próximo grande meio de evasão, na tradição dos programas de rádio, das matinês de domingo e das novelas - o que significa que passarão de certa forma a veicular e a refletir os nossos códigos culturais, o nosso subconsciente social e o nosso auto-conceito, como o fizeram os meios de comunicação de massas que os antecederam. Existem outros motivos sérios pelos quais o cidadão comum necessita de conhecer melhor este novo meio de comunicação e o seu impacto social. Algo de muito importante está para acontecer, embora ainda não tenha tomado forma definitiva.

Nos Estados Unidos a administração Clinton está a tomar medidas tendentes a ampliar as capacidades tecnológicas da Rede e a generalizar o seu acesso por intermédio de uma rede nacional para a investigação e educação. A França, possuidora da maior estrutura nacional de informação a nível mundial que dá pelo nome de Minitel, e o Japão, com a sua aposta nas indústrias de telecomunicações do futuro, possuem perspectivas próprias sobre a evolução das CMC. A iniciativa legislativa de Albert Gore em 1991 sobre os sistemas informáticos de alto desempenho, denominada High Performance Computing Act e promulgada pelo então presidente Bush, veio ao encontro das visões de Gore sobre as denominadas «auto-estradas da mente»; a lei preconizava-lhes a atribuição de verbas do orçamento federal de investigação e desenvolvimento, encarando-as como recurso intelectual nacional, prevendo que fossem levadas até aos cidadãos pela iniciativa privada. A administração Clinton-Gore baseou-se no exemplo dos anos 60 e 70 do consórcio ARPA (sigla da Advanced Research Projects Agency, uma agência dedicada ao desenvolvimento de projetos de investigação avançada), o qual inventou a Rede e lançou os fundamentos do computador pessoal, demonstrando como encarava a futura interação do governo com o sector privado no respeitante às tecnologias de comunicação.

No sector privado dos Estados Unidos, Europa e Japão pontuam numerosas empresas a concorrer por uma posição na emergente «indústria de serviços interativos de informação ao domicílio». Entre essas empresas figuram operadoras de telecomunicações, redes de televisão, empresas de informática, estações de TV por cabo e jornais. Estas organizações estão a investir centenas de milhões de dólares na infra-estrutura dos novos meios de comunicação de massas e esperam vir a realizar somas astronômicas. Os futuristas tecnológicos de todas as tendências, como Alvin Toffler, John Naisbitt, Peter Drucker e George Gilder, alimentam esperanças utópicas na «idade da informação» como tecnopanacéia para os problemas sociais. No entanto, conhece-se muito pouco sobre o impacto que estas novas mídias poderão vir a ter na nossa vida quotidiana, nas nossas mentes, nas nossas famílias e mesmo no futuro da democracia.

As CMC têm potencial para mudar as nossas vidas a três níveis distintos, mas fortemente interdependentes. Primeiramente, como seres humanos individuais que somos, temos percepções, pensamentos e personalidades (já moldados por anteriores tecnologias de comunicação) que são afetados pelo modo como usamos o meio de comunicação, e vice--versa. A este nível fundamental, as CMC apelam a certas necessidades intelectuais, materiais e emocionais que sentimos enquanto organismos vivos que somos. No que respeita à comunicação, os jovens de hoje em dia têm tendências diferentes relativamente à geração pré-McLuhan. Por exemplo, a MTV professa uma sensibilidade estética intimamente relacionada com a linguagem da televisão, caracterizada por seqüências rápidas, imagens atraentes e efeitos especiais. Neste momento, alguns dos que nasceram na era da televisão e cresceram na dos telefones estão a migrar para os territórios das CMC que melhor se às suas concepções modernas de vida. Como resultado de milhões e milhões de interações online existe igualmente um vocabulário das CMC, o qual reflete de certo modo as alterações da personalidade humana na era da saturação dos media.

O segundo nível de possíveis alterações despoletadas pelas CMC é o nível a que se desenvolvem as relações interpessoais, as amizades e as comunidades. A tecnologia de CMC confere uma nova capacidade de comunicação multilateral, «de muitos para muitos». No entanto, a concretização futura desta capacidade está nas nossas mãos porque somos os primeiros a experimentá-la; o seu futuro depende do nosso sucesso ou insucesso em aplicá-la. Aqueles de nós que travaram conhecimento por intermédio da tecnologia de CMC encontram-se perante um desafio de construírem em conjunto algo semelhante a uma comunidade.

A questão da comunidade é central em domínios que se estendem muito para além das redes abstratas da tecnologia de CMC. Alguns autores, como Bellah ei ai. (em Habms of The Earih, lhe Good Society), sublinharam a necessidade de se reconstruir a comunidade face à perda

de um sentido de corpus de valores sociais comuns nos EUA.

Os psicólogos sociais, sociólogos e historiadores desenvolveram instrumentos úteis para avaliar as interações existentes em grupos humanos. As diferentes correntes de interpretação, desde a antropológica à econômica, possuem critérios diversos para a classificação de um grupo humano como comunidade. Ao tentar aplicar a análise tradicional de comportamento comunitário às interações emergentes na Rede, adotei um processo proposto par Marc Smith, um estudante de sociologia na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que tem feito algum trabalho de campo sobre a WELL e a Rede. Smith baseia-se fundamentalmente no conceito de «bens coletivos». Num mundo competitivo emergem grupos de indivíduos que cooperam entre si por reconhecerem que há coisas que só podem ganhar através da união. Determinar os bens coletivos de um grupo é um modo de procurar os elementos que transformam elementos isolados numa comunidade.

As três categorias de bens coletivos, propostas por Smith e que constituem a cola social que aglutina a estrutura da WELL na forma semelhante à de uma comunidade são o capital-social em rede, o capital intelectual e a comunhão. O capital social é algo que encontrei numa comunidade madura de Tóquio, ainda que nunca aí tivesse estado em pessoa. Capital intelectual é algo que encontrei na WELL ao questionar a comunidade enquanto conselho de sábios, representado pela acumulação de conhecimentos e experiência de todos os membros. E comunhão é o que se encontra na conferência Parental quando, por exemplo, os filhos de Phil e Jay estiveram doentes e todos lhes dirigiram palavras de apoio.

O terceiro nível de alteração das nossas vidas, o nível político deriva do nível médio, o social, pois a política é sempre uma combinação de comunicação com poder material, e o papel dos meios de comunicação é particularmente importante para a política nas sociedades democráticas.

O conceito da moderna democracia representativa, como primordialmente concebido pelos filósofos do iluminismo, incorporava o reconhecimento de uma teia viva de comunicação entre os cidadãos denominada sociedade civil ou esfera pública. Embora as eleições sejam as características fundamentais mais visíveis nas sociedades democráticas, supõe-se que essas eleições se apoiaram na discussão entre os cidadãos, a todos os níveis da sociedade, sobre as questões importantes para a nação.

Se um governo atua de acordo com o consentimento dos governados, a eficácia desse governo é fortemente influenciada pelo conhecimento que os governados têm sobre as questões que os afetam. Hoje em dia os governados bebem do conhecimento da esfera pública dominada pelos mass media; o problema reside no fato de os mass media comerciais, com a televisão à cabeça, terem poluído uma esfera pública que anteriormente incorporava uma componente significativa de leitura, escrita e discurso racional, com imagens fugazes, berrantes e freqüentemente violentas. Nos primórdios da história americana, até que o telégrafo viesse a possibilitar a criação do que hoje chamamos «notícias», vendendo os leitores dos jornais aos anunciantes, a esfera pública contou com uma população espantosamente literata. Neil Postman, autor do livro Amusing Ourselves It Death, discorre sobre a influência da televisão na transformação do discurso público e nota que a obra Common Sense, de Thomas Paine, vendeu 300 000 exemplares no espaço de cinco meses no ano de 1775. Observadores contemporâneos documentaram e analisaram a forma como os meios de comunicação social (meios «de um para muitos») «mercadorizaram» a esfera pública, substituindo o debate genuíno por tortuosas relações públicas e apresentando pacotes de questões e candidatos conto outros produtos de consumo.

A relevância política das CMC resulta da sua capacidade para desafiar o monopólio dos poderosos meios de comunicação detidos pela hierarquia política e talvez assim revitalizar a democracia dos cidadãos. As mídias comerciais, pródigas em imagens e efeitos sonoros, condicionam o discurso político entre os cidadãos, constituindo parte de um problema de natureza política colocado perante a democracia desde há décadas pelas tecnologias de comunicação.

À medida que o número de possuidores de canais de telecomunicações se reduz a uma elite, o alcance e o poder da mídia que possuem aumenta, constituindo uma ameaça emergente para os cidadãos. Qual dos cenários parece conduzir, respectivamente, à democracia ou ao regime totalitário: um mundo em que uma minoria controla a tecnologia de comunicação, potencialmente manipuladora das convicções de cada um, ou um mundo onde cada cidadão pode comunicar com qualquer outro?

Ben Bagdikian é o (uni) autor citado freqüentemente a propósito da sua previsão em The Media Monopoly, onde refere que na virada do século «cinco a dez gigantes empresariais controlarão a maior parte dos jornais, revistas, livros, estações de rádio e TV, filmes, discos e videocassetes mais importantes do planeta». Estes novos senhores da mídia têm o poder de determinar qual a informação que chega à maior parte da população: suspeito de que não tenderão a encorajar as suas redes de telecomunicações privadas a veicular todo o tipo de informação habitualmente disseminada pelas organizações não governamentais e cidadãos progressistas. A solução dos ativistas para este dilema tem consistido em utilizar as CMC para criar redes de informação à escala planetária. A natureza dispersa da rede de telecomunicações atual associada à disponibilidade de computadores de baixo custo possibilita o estabelecimento de redes de informação alternativas, assentes nas infra-estruturas existentes.

Temos oportunidade de acedermos temporariamente a um instrumento que pode estimular o convívio e a compreensão entre as pessoas e que poderá auxiliar na revitalização da esfera pública. O mesmo instrumento, se controlado e manipulado de modo impróprio, poderá tornar-se um instrumento da tirania. A visão de uma rede de telecomunicações delineada e controlada pelos cidadãos do mundo é uma versão da utopia tecnológica que pode ser apelidada de visão da «ágora eletrônica». Na Atenas democrática original a ágora era não apenas o mercado, mas também o local onde os cidadãos se encontravam para conversar, contar mexericos, discutir, avaliar-se e encontrar os pontos fracos das idéias políticas através do debate. Pode, no entanto, ilustrar-se a utilização imprópria da Rede através de uma imagem sombria de um local menos utópico - o Panóptico.

Panóptico era o nome da prisão perfeita, proposta seriamente no século XVM pelo inglês Jeremy Bentham. A idéia de Bentham combina a arquitetura e a óptica de forma a permitir que um único guarda observe todos os prisioneiros, impossibilitando-os de verem seja o que for e fazendo-os agir como estando permanentemente sob vigilância. O crítico social contemporâneo Michel Foucault alega na sua obra Discipline and Punish que a parafernália da rede de telecomunicações mundial constitui um gênero camuflado de Panóptico; os cidadãos de todo o mundo trariam para dentro de casa os ouvidos inquiridores do Estado. Os mesmos cabos que transportam a informação até aos nossos lares podem tecnicamente transportá-la para fora, transmitindo-a instantaneamente a algum interessado. A versão futura da parafernália do Panóptico poderia utilizar muito eficazmente a mesma infra-estrutura de comunicações que permite às pequenas escolas do estado americano de Montana comunicar com professores do MIT* e que permite igualmente aos cidadãos disseminar notícias e organizar a resistência contra os regimes totalitários.

Com a transferência de tantos dados privados e de cada vez mais comportamentos privados para o ciberespaço, o potencial de abuso totalitário dessa teia de informação atinge níveis bastante significativos, tomando-se, assim, aconselhável ouvir com atenção as preocupações dos cépticos. O revolucionário sensato vigia o lado negro das mudanças que induz.

Os entusiastas que acreditam no potencial humanitário das virtuais, especialmente os que de entre nós falam a democracia

nica como potencial aplicação deste meio de comunicação, são aconselhados a ponderar o seu potencial negativo. Não devemos esquecer que os intelectuais e os jornalistas dos anos 50 saudaram o advento do meio educacional da história – a televisão.

Devido ao potencial de nos modificarmos enquanto seres humanos, comunidades e democracias, precisamos tentar compreender a natureza das CMC, do ciberespaço e das comunidades virtuais num contexto extremamente importante - política, econômica, social e cognitivamente importante -, já que cada uma destas perspectivas revela algo diverso das restantes. Cada abordagem, por si só, não permite vislumbrar algo que outra discerne muito bem. Precisamos pensar em conjunto através das fronteiras acadêmicas, das ligações industriais e das nações, se esperamos compreender e talvez assim retomar o controle do processo de transformação das comunidades humanas pelas tecnologias de comunicação.

Não podemos fazê-lo meramente como observadores desapaixonados, embora exista certamente uma grande necessidade da análise fria das ciências sociais. A questão da comunidade é uma questão de emoções, assim como de razão e de dados. Alguns dos mais importantes ensinamentos terão necessariamente de ser colhidos nos quatro cantos do ciberespaço, decorrentes da vivência no seu interior e da observação dos problemas sentidos pelas comunidades virtuais.

Preocupo-me com o que sucede no ciberespaço e com as liberdades no ciberespaço porque aí habito durante parte do meu tempo. A voz do autor enquanto cidadão e veterano da construção de comunidades virtuais é um dos pontos de vista apresentados neste livro: faço parte da história que descrevo, falando quer como guia nativo, quer como cientista social não credenciado. Devido à perspectiva redutora do discurso na primeira pessoa sobre a vivência no ciberespaço, creio que é importante incluir a minha perspectiva, tanto de participante como de observador. A minha experiência é vasta em relação a alguns «lugares» da Rede, tais como a WELL; relativamente a muitos outros lugares da Rede que necessitamos de examinar para a compreendermos, sou tão novo no território como quem nunca ouviu falar do ciberespaço. Em último caso, quem quiser formar uma opinião própria necessita de obter um bom guia para principiantes e mergulhar na Rede. É, no entanto, possível esboçar uma imagem verbal, se bem que esquemática, das formas de vida que lá podem ser encontradas.

Grande parte deste livro é preenchida com um percurso através de comunidades virtuais existentes, de proporções crescentes. Tenho para mim que a maioria dos cidadãos das sociedades democráticas, uma vez claramente informados sobre o estado da Rede, tomará decisões sensatas sobre a forma como esta deverá ser orientada. No entanto, é importante olhar em diversas direções e sob diferentes pontos de vista; antes de discutirmos com alguma profundidade o modo como a tecnologia de CMC está a modificar-nos enquanto seres humanos, comunidades e democracias, precisamos conhecer algo sobre as pessoas e «lugares» que fazem da Rede aquilo que ela é.

* Massachusetts Institute of Technology, Instituto de Tecnologia de Massuchusetts. (N. do T.)

A nossa viagem através da imensidão tonitruante da Usenet, das subculturas (os MUD e dos canais de IRC, das BBS, das listas de correio e edições eletrônicas começam com um olhar retrospectivo sobre a WELL), onde começou para mim o ciberespaço. O meu testemunho das ações dos indivíduos da comunidade virtual que melhor conheço, de como criaram valores, se entreajudaram em tempos difíceis, resolveram (ou não) dolorosos problemas pessoais em conjunto, constitui um modelo indubitavelmente falível - dos tipos de alterações sociais que as comunidades virtuais podem induzir na vida real a uma escala modestamente local. Algum conhecimento sobre o comportamento humano dentro de uma pequena comunidade virtual poderá ser útil na prevenção da vertigem provocada pelo aumento da escala quando passarmos para as grandes áreas metropolitanas do ciberespaço, fornecendo mecanismos de comparação. Têm de ser abandonados alguns aspectos da vivência numa pequena comunidade quando se viaja para uma metrópole online; contudo, à medida que a escala aumenta, os fundamentos da natureza humana fazem-se sentir cada vez mais.

O coração da WELL

Por alturas do Verão de 1986 apareceu uma carraça na cabeça da minha filha, então com 2 anos. Ali estava aquela coisa inchada de sangue a sugar o couro cabeludo da nossa bebé e nós sem sabermos bem como livrar-nos dela. Por volta das 11 horas da noite, Judy, a minha esposa, tentou contatar o pediatra. Liguei para a WELL e obtive resposta à minha pergunta em minutos, dada por um indivíduo com o nome improvável, mas genuíno, de Dr. Flash Gordon. Já tinha conseguido retirar a carraça quando telefonaram do consultório do pediatra.

Não só achei extraordinária a rapidez com que obtivemos a informação necessária na altura exata, como tive uma imensa sensação interior de segurança ao constatar que existiam pessoas reais – maioritariamente pais, mas também alguns enfermeiros, médicos e parteiras – disponíveis vinte e quatro horas por dia, em caso de necessidade. A atmosfera desta conferência está particularmente envolvida por uma redoma protetora mágica; este fórum destina-se a falarmos dos nossos filhos, e não dos nossos computadores ou opiniões filosóficas, sendo este entendimento tácito encarado por muitos de nós como uma santificação do espaço virtual.

A atmosfera da conferência Parental - as atitudes exibidas perante os demais em tom de conversa pública - não deixa ainda de me atrair. Pessoas que normalmente não participam ativamente em debates políticos, discussões técnicas e jogos intelectuais têm, afinal, muito a dizer sobre a educação dos filhos. Os anteriores adversários intelectuais, combativos e mesmo maliciosos noutros contextos, não se escusam a dar profundo apoio emocional a outros indivíduos na mesma condição de pais neste cantinho acolhedor do ciberespaço que é a conferência Parental.

Apresento de seguida uma lista de exemplos de entre as centenas de tópicos disponíveis para discussão na conferência Parental. Cada item é o título de tina «conversa» que inclui centenas de contribuições individuais («deixas») distribuídas por um período de dias ou anos, à maneira de uma interminável cocktail party de tópicos, onde os recém-chegados podem retroceder no tempo, sem perderem pitada sobre quem anteriormente disse o quê:

Grandes expectativas: estás grávida. E agora? Parte M.

O que há de errado com a Children's TV*?

Filmes: os bons, os maus e os feios.

Iniciações e ritos de passagem.

Bebé da WELL novinho em folh$1

Ser pai - como muda a sua vida?

* Nome de canal infantil de TV. (N. do T.)

Histórias do final da adolescência (cont.)

Culpa.

MÃES.

Vasectomia - doeu'?

Apresentações! Quem somos?

Pais (continuação).

Livros infantis, segundo capítulo.

Adolescentes homossexuais.

Crianças e espiritualidade.

Bons parques infantis.

Brinquedos de qualidade.

Educação num mundo tantas vezes violento

Programação infantil na rádio.

Novo bebé da WELL.

Aulas em casa.

Pais recém-separados/divorciados.

Outro bebé da WELL - Carson chega a Seattle!

Pais solteiros.

As traseiras do tio Philcat- mexericos é aqui!

Momentos de ternura.

As crianças e a morte.

Tudo sobre a canseira das fraldas.

Problemas pediátricos -pequenas doenças e pequenos doentes.

Conversas com as crianças sobre a guerra.

Lidar com o incesto e o abuso sexual.

Os filhos dos outros.

Quando eles choram.

Animais de estimação para crianças.

Normalmente, quando as pessoas falam online sobre um interesse comum - mesmo quando esse interesse é tão profundo como a condição de pai ou mãe -, não revelam o suficiente sobre si próprias como indivíduos completos para inspirarem verdadeira confiança nos demais. No caso da subcomunidade da conferência Parental, cujas dezenas de participantes espalhados pelo país raramente ou nunca se encontraram frente a frente, tivemos alguns anos de crises menores que nos uniram e prepararam para acontecimentos mais sérios. A conferência é consultada regularmente por muitas outras pessoas, algumas dezenas delas contribuindo só quando têm algo de relevante para acrescentar, enquanto centenas de outras se limitam a consultar semanalmente a conferência sem tecerem comentários, exceto quando acontece algo de extraordinário.

Jay Allison e a família vivem no estado de Massachusetts, nos EUA. Ele e a esposa trabalham como produtores de uma rádio estadual. Nunca os encontrei frente a frente, embora tenha a sensação de saber algo poderoso e íntimo sobre esta família e de estarmos unidos por estreitos laços emocionais. Veja-se esta mensagem escrita por Jay na WELL:

“Woods Hole. Meia-noite. Estou sentado no escuro do quarto da minha filha a observar as luzes do monitor. Costumavam ser tão brilhantes que as cobri com adesivo e agora ficaram a piscar tenuemente por baixo, em verdes e vermelhos persistentes, simbolizando o coração e os pulmões da Lillie. Por cima do monitor fica a unidade de sucção portátil. À luz da lanterna que me alumia a escrita parece-se com as vísceras de plástico daqueles modelos humanos das aulas de ciências, com os tubos enrolados à volta da fonte de alimentação, do reservatório e da bomba.

A Tina está lá em cima no quarto a tentar dormir. Temos lá um monitor secundário ligado ao da Lillie, ligando também o nosso sono ao sono dela, e não conseguimos dormir bem por nossos espíritos estarem ligados ao da nossa filha.

Estou nu. A lanterna repousa em cima do meu estômago, cheio de cerveja; o facho sobe e desce com a minha respiração. A Lillie respira através de um tubo de plástico branco metido por um buraco na garganta. Tem 14 meses.”

Sentados frente aos computadores com os corações a palpitar e lágrimas nos olhos, em Tóquio, Sacramento e Austin, lemos sobre as anginas da pequena Lillie, a traqueotomia, os dias e noites passados no hospital, e agora a vigília do respirar da criança e a atenção posta nos aparelhos que a mantinham viva. A situação manteve-se durante dias e semanas a fio. Lillie recuperou-se e aliviou a preocupação geral sentida em relação às suas capacidades vocais mercê do longo período passado com um orifício na garganta, ao dizer as coisas mais extraordinárias, relatadas por um pai ainda atordoado. Mais tarde, Jay descreve a experiência na publicação Whole Earth Review:

Antes de isto ter acontecido, o écran do computador nunca tinha sido um lugar onde procurar consolo, antes pelo contrário. Pois é, mas naquelas noites em que ficava até tarde ao pé da minha filha sentava-me em frente do computador, ligava para a WELL e começava a divagar. Escrevia sobre o que estava a passar naquela noite ou naquele ano e não conhecia nenhum dos meus «interlocutores», nunca lhes tinha posto a vista em cima. Às 3 da manhã os meus amigos «reais» estavam a dormir, e então me virava para esta comunidade estranha e invisível em busca de apoio, porque a WELL estava sempre acordada. Qualquer dificuldade é mais difícil de ultrapassar quando estamos sozinhos; não há companhia, não há apoio. Ao escrever o meu diário num computador ligado à linha telef6nica, encontrei solidariedade e conforto neste meio inesperado.

Ao longo dos anos, e apesar das distâncias, aqueles que estabeleceram uma relação sincera através da conferência Parental começaram a reunir-se pessoalmente. Do encontro originalmente organizado no âmbito desta conferência veio a nascer o piquenique anual de Verão da WELL na área da baía de São Francisco. Durante todo o ano tínhamos estado envolvidos em intensas conversas online e, quando veio o Verão, começou a falar-se em fazermos algo em conjunto para descontrair, como fazer um churrasco e levar a miudagem. Como é típico na WELL, a coisa rapidamente atingiu as proporções de uma festa geral da rede, organizada pela conferência Parental. Phil Catalfo reservou uma área para piqueniques e um campo de soflball* num parque municipal.

Como é natural, os pais e as mães falam sobre os filhos nas conversas online; portanto, toda a gente já tinha ouvido falar da minha filha Mammie, do Gabe, filho de Philcat (Phil Catalfo), e do filho de Busy, o tocador de banjo, embora a maior parte das pessoas não se conhecesse.

Recordo-me de, ao chegar ao parque, eu e a Mammie termos reconhecido um grupo em particular de entre a primeira meia dúzia dos que vimos à distância. Havia algo na sua postura, a falarem uns com os outros em grupos de dois ou três enquanto os miúdos corriam à volta dos eucaliptos e em direção ao recinto de soflball. Recordo-me de ter jogado na mesma equipe com um tipo que me faz sempre indispor quando subverte as conversas online a propósito de uma discussão sobre libertinagem; depois de termos completado uma boa jogada em conjunto, fiquei a pensar que, afinal, até não era mau tipo.

Foi um piquenique de uma comunidade americana normal – pessoas que gostam da companhia umas das outras, levando os filhos para participar num convívio, jogar soflball e fazer um churrasco num domingo de Verão. Podia ser qualquer grupo da igreja ou da associação de pais e professores; neste caso, era o lado inquestionavelmente material de uma comunidade virtual. O primeiro piquenique da conferência Parental saldou-se num tal sucesso que se tornou um acontecimento anual a ter lugar por volta do solstício de Verão e a presença das crianças tomou-se um dado adquirido em todas as outras festas da WELL.

Pouco depois de ter começado a tradição do piquenique de Verão foi estabelecido outro ritual de Inverno para os pais, filhos e respectivos amigos. Desde há quatro ou cinco anos que no mês de Dezembro a maior parte dos participantes da conferência Parental que vivem num raio de

150 km de São Francisco, mais os respectivos rebentos, se deslocam a esta cidade para participarem na festa de beneficência e beberete anual do circo da família Pickle. Um dos diretores deste pequeno circo é um estimado e divertido membro da comunidade da WELL e arranja-nos sempre lugares privilegiados para o espetáculo. Depois de acabada a sessão e de o resto do público ter partido, nós, os artistas e os empregados, regalamo-nos com um beberete. Albert Mitchell é um tipo invulgarmente combativo e teimoso - conflituoso, diriam muitos - que discute os seus arraigados princípios em termos bastante claros e com uma intensidade arrasadora, assustadora até.

Fica particularmente exaltado com certos temas, como a religião organizada, os impostos e a circuncisão; há, no entanto, outras formas de o enfurecer e de nos candidatarmos a sermos vituperados em público ou em privado. Descobri que nunca mais poderia assustar-me com o combativo alter ego online de Albert - a bem conhecida e por vezes temida «sofia» - depois de o conhecer e ter visto a sua encantadora filha Sofia mascarada de palhaço numa festa dos Pickle; ele ofereceu-me um frasco de mel da sua própria colméia nessa festa, embora já tivéssemos discutido online um com o outro de formas que teriam degenerado em pugilato se estivéssemos frente a frente. No circo da família Pickle ou no piquenique de Verão encontrávamo-nos no espaço sagrado da conferência Parental, e não nas arenas sangrentas da política na WELL.

A conferência Parental já tinha sido submetida a testes de crise com os Allisons, e teve meses de altos e baixos, a par das crianças que fazem a história do quotidiano normal de quaisquer pais, quando um dos nossos participantes mais assíduos, queridos e loquazes, Phil Catalfo, deixou cair a bomba.

Tópico 349: Leucemia

Por: Phil Catalfo (philcat), quarta-feira, 16jan91

404 respostas até ao momento

“Gostaria de utilizar este tópico para discutir a leucemia, desde a doença em si, os aspectos em que afeta a minha família, até ao que se sabe sobre o assunto na generalidade”.

No princípio da semana passada, soubemos que o nosso filho Gabriel, de 7 anos (o do meio), tinha leucemia linfocítica aguda, conhecida também como LLA. Vou abrir um ou mais tópicos adicionais para descrever a seqüência dos acontecimentos, emoções e experiências provocadas por este novo fato central nas nossas vidas, e por aí fora (também estou a pensar em abrir um tópico exclusivamente destinado a todos quantos pretendam enviar desejos de melhoras). Neste tópico pretendo focar a doença em si -diagnóstico, progresso e evolução-, a par de outros casos que conheçamos, (quaisquer) recursos disponíveis etc.

Se a Tina não tiver objeções a pôr, gostaria de solicitar aos anfitriões da conferência Saúde para ligarem qualquer um destes tópicos à sua conferência. Assim de repente não me ocorre mais nenhuma conferência apropriada para o mesmo fim, mas estou certo de que terão algo a sugerir.

Em primeiro lugar, independentemente do fato de este assunto se relacionar ou não com o presente tópico, quero dizer que o apoio dispensado pela WELL a mim e à minha família, em especial ao Gabe, tem sido inestimável. Isso acaba por ter um impacto clínico, como discutiremos na devida altura, mas quero desde já afirmar alto e bom som quanto o apreciamos: infinitamente.

Como tal, vou enviar esta mensagem e volto logo que possível para contar mais pormenores sobre o caso do Gabe, sobre o que fiquei a saber na semana passada sobre a doença e como atuar perante ela.”

404 respostas no total.

#1: Nancy A. Pietrafesa (lapeche), quarta-feira,

16JAN91 (17.21)

Philcat, estamos aqui a ouvir-te. Partilhamos a tua esperança e uma pequena parte, da tua dor. Muita força.

#2: Tina Loney (onezie), quarta-feira, 16JAN91

(19.09)

“Phil, tomei a liberdade de escrever para o Flash (anfitrião da conferência Saúde) e de lhe dizer para ligar quaisquer dos três tópicos que julgue apropriados. Espero que dentro em breve nos digas tudo o que possas sobre o Gabe. Fico, entretanto, a pensar no Gabriel e em toda a tua família.

Lembro-me de ele ter um apurado sentido de humor catàlfico, e espero que consigas ajudar a mantê-lo em forma... Muitos abraços virtuais para ele...”

Os habitués da Parental, que passavam horas nesta conferência a trocar sarcasmos e comiserando-se dos pequenos altos e baixos da vida inerentes à educação dos filhos, irromperam a escrever mensagens de apoio. Indivíduos que nunca tinham contribuído para a conferência Parental começaram a fazer-se ouvir, como é o caso de um enfermeiro e de um casal de médicos que ajudaram o Phil e o resto do pessoal a interpretar os relatos diários sobre contagens sanguíneas e outros diagnósticos, tudo isto para além do contributo de duas pessoas com conhecimento de causa, elas próprias vítimas da mesma doença.

Com o decorrer das semanas tornamo-nos peritos em doenças sanguíneas, ficando igualmente a compreender como funciona o sistema de doação de sangue, a relação de Danny Thomas e do Hospital de St. Jude com o Phil e o Gabe e como os pais aprendem a apoiar os filhos dentro do sistema de saúde sem alienarem os profissionais do ramo. O melhor de tudo foi quando se soube que a doença do Gabe tinha começado a regredir após uma semana de quimioterapia.

Após o estado de Gabe ter estabilizado, a comunidade congregada em torno do tópico leucemia redirecionou a atenção para outra parte da mente coletiva do sistema. Lhary, um dos participantes exteriores à conferência Parental, em virtude dos conhecimentos especiais que tinha

para contribuir, mudou-se da área de São Francisco para Houston com a Finalidade de se submeter a um longo processo de transplante da medula óssea e tentar curar a sua leucemia. Lhary continuou a ligar para a WELL do quarto do hospital; a família Catalfo e outros amigos resolveram tingir artisticamente, eles próprios, as batas regulamentares do hospital e do laboratório usadas por Lhary quando se passeava pelos corredores.

Muita gente fica alarmada com a idéia de comunidade virtual, receando ser mais um passo na direção errada, substituindo recursos naturais e liberdades humanas por mais saber tecnológico. Esses críticos mencionam muitas vezes a sua tristeza pelo que as pessoas se viram limitadas a fazer numa civilização veneradora da tecnologia, censurando as atuais circunstâncias por levarem os indivíduos a viver vidas tão pateticamente desarticuladas que preferem procurar companhia do outro lado de um écran de computador. Existe um fundamento real nesse receio, pois a certa altura as comunidades virtuais requerem mais do que simples palavras escritas num écran, se pretenderem ser mais do que saber puro.

Muitas pessoas não se sentem à vontade em situações de interação verbal espontânea, acontecendo, porém, haver oportunidade de contribuírem significativamente para uma conversa durante a qual têm tempo para pensar antes de intervirem.

Talvez una parte significativa da população considere a comunicação escrita mais autêntica do que a verbal. Na verdade, quem poderá afirmar que a preferência por um meio de comunicação - a escrita informal - é de alguma maneira menos autenticamente humana do que o discurso falado? Quem critica as CMC devido aos casos registrados de utilização obsessiva toca num ponto sensível da questão, mas falha redondamente quando não leva em consideração o uso desse meio para a interação humana genuína. É necessário ter em conta as limitações e as armadilhas mais perigosas da tecnologia apontadas pelos críticos, que encaram as comunidades virtuais como lugares desprovidos de calor humano. Estes críticos não referem, porém, o modo como Philcat, Lhary e a minha própria família encontraram uma comunidade de apoio e informação na WELL, quando dela necessitaram. Aqueles que, como nós, encontram no ciberespaço um local de comunhão devem estar atentos às possíveis perversões deste extraordinário meio de comunicação.

Embora sejam os acontecimentos dramáticos os que levam à aproximação dos indivíduos e constituem as recordações mais perenes, a maior parte do que acontece na conferência Parental e na maioria das comunidades virtuais não passa de amena cavaqueira. O modelo conceptual da WELL e de outros conglomerados sociais do ciberespaço como «lugares» emerge sempre que os utilizadores discutem a natureza do meio virtual. Stewart Brand incluiu em 1987 uma citação minha na sua obra The Media Lab sobre as causas do meu contato tão freqüente com a WELL: «Está lá sempre alguém; é como ir ao bar da esquina, onde estão muitos amigos de longa data e simpáticos recém-chegados, com novas ferramentas, novos graffitis e tipos de letra prontos para experimentar em casa – com a vantagem de não precisar vestir o casaco, desligar o computador e ir até à esquina; basta-me invocar um programa de telecomunicações. É um lugar.».

A existência de comunidades unidas por computador foi prevista há vinte e cinco anos por J. C. R. Licklider e Robert Taylor, diretores de investigação de um organismo federal ligado a projetos de investigação avançada, a Advanced Research Projects Agency (ARPA), pertencente ao Departamento de Defesa americano. Foram eles os impulsionadores das investigações que resultaram na criação da ARPANET, a primeira comunidade desse tipo: «Na maioria dos casos serão constituídas por membros geograficamente separados, por vezes agrupados em pequenos aglomerados, outras vezes trabalhando individualmente. Serão comunidades assentes no interesse comum, e não na partilha de um espaço comum [...]» Eu e os meus amigos, por vezes, acreditamos fazer parte do futuro imaginado por Licklider e atestamos freqüentemente a veracidade da sua previsão «o indivíduo online levará uma vida mais feliz porque a seleção das pessoas com quem interage mais fortemente resultará prioritariamente da comunhão de interesses e objetivos, e não já das circunstâncias de proximidade». Ainda acredito nisto, mas sei que a vida online tem sido algumas vezes infeliz, bastante infeliz até, por aquilo que vejo escrito no écran. Participar numa comunidade virtual não veio resolver-me todos os problemas; serviu de ajuda, apoio, até de fonte de inspiração, embora noutras alturas se tenha assemelhado a uma infindável, desagradável e repetitiva briga familiar.

Já mudei de idéias sobre bastante aspectos da WELL ao longo dos anos, mas o sentido de lugar continua tão forte como dantes. Como Ray Oldenburg propôs em The Great Good Place, existem três lugares essenciais na vida: onde vivemos, onde trabalhamos e onde nos reunimos para conviver. Embora as conversas informais de café, de salão de beleza e de praça pública sejam universalmente consideradas tagarelice, Oldenburg defende serem esses os lugares onde as comunidades se consumam e se mantêm, quais àgoras irreconhecidas da vida moderna. À medida que o modo de vida suburbano baseado no automóvel, no hipermercado e na comida rápida foi eliminando muitos dos «terceiros lugares» das cidades tradicionais em todo o mundo, o tecido social das comunidades aí existentes começou a desagregar-se.

Oldenburg traçou explicitamente um quadro conceitual sobre o fenômeno conhecido instintivamente por qualquer comunidade virtual - o poder da vida pública informal:

Os terceiros lugares situam-se em terreno neutro e servem para reduzir os participantes à mesma condição social. A atividade primária característica desses lugares é a conversação, a qual desempenha o papel de principal veículo de exposição e apreciação da personalidade e individualidade humanas. Os terceiros lugares são dados adquiridos, discretos na sua maioria.

Devido ao fato de as instituições formais da sociedade exigirem mais do indivíduo, os terceiros lugares estão normalmente, mas não apenas, abertos a horas fora de expediente normal. O caráter dos terceiros lugares é maioritariamente determinado pela clientela habitual e caracteriza-se por um ambiente divertido, em contraste com o ar mais sério de outras esferas sociais. Embora constituam um cenário radicalmente diferente do lar, os terceiros lugares assemelham-se notavelmente a um «doce lar», pelo conforto e apoio psicológico que proporcionam. Estas são as características dos terceiros lugares, aparentemente universais e essenciais a una vida pública informal [...]

O problema dos terceiros lugares nos Estados Unidos está patente numa vida pública informal dolorosamente deficiente, sendo cada vez mais reduzida à estrutura de experiências partilhadas para além das proporcionadas pela família, emprego e consumismo passivo. A experiência essencial de grupo está a ser substituída pela autoconsciência exagerada dos indivíduos.

Os estilos de vida americanos, pródigos na aquisição material e na busca de conforto e prazer, estão a ser invadidos por uma praga de monotonia, solidão, alienação e artigos de alto preço [...]

Ao contrário de muitas fronteiras, a da vida pública informal não se mantém benigna à espera do progresso, nem se torna mais fácil de domesticar com a evolução da tecnologia, com a multiplicação de agências e instituições governamentais ou com o crescimento da população. Não cede à mera passagem do tempo nem à política do laissez-faire, enquanto o progresso avança nas outras áreas da vida urbana. Antes pelo contrário, a negligência da vida pública informal pode transformar os jardins do paraíso numa selva, pois as pessoas vão deixando de saber cultivá-los.

Talvez não seja o lugar idealizado por Oldenburg, mas a WELL enquadra-se em muitas destas descrições de terceiros lugares. Talvez o ciberespaço seja um dos lugares públicos informais onde possamos reconstruir os aspectos comunitários perdidos quando a mercearia da esquina se transforma em hipermercado. Ou talvez o ciberespaço seja precisamente o lugar errado onde procurar o renascimento da comunidade, oferecendo, não um instrumento para o convívio, mas um simulacro sem vida das emoções reais e do verdadeiro compromisso perante os outros. Seja qual for o caso, precisamos de descobri-lo o mais rapidamente possível.

***

A vontade de ligar para a WELL só por um ou dois minutos, dezenas de vezes por dia, é muito semelhante à vontade de espreitar para o café, para o bar ou para a sala de convívio com o objetivo de ver quem se encontra lá e ficar um pouco, se for caso disso. Como afirmou a psicóloga social Sara Kiesler num artigo sobre redes informáticas na Harvard Business Review, «uma das propriedades surpreendentes da informática é ser uma atividade social. No meu local de trabalho o software para rede mais utilizado é o Where [onde] e o Finger [dedo], que determinam quem mais está ligado à rede.»

Como não podemos ver-nos uns aos outros no ciberespaço, o sexo, idade, nacionalidade e aspecto físico não transparecem, a menos que pretendamos tornar públicas essas características. Quem tem dificuldades em fazer novas amizades devido a deficiências físicas descobre que nas comunidades virtuais é tratado como sempre desejou - como ser racional, transmissor de idéias e sentimentos, e não como um recipiente carnal com determinada aparência, andar ou falar (ou mesmo sem andar ou falar).

Um dos poucos pontos em que a totalidade dos membros entusiastas das comunidades virtuais no Japão, Inglaterra, França e EUA está de acordo é o fato de a vantagem mais importante das conferências por computador alargar o seu círculo de amizades. As CMC são um meio de conhecer pessoas, independentemente de se pretender ou não uma relação com elas a nível comunitário, constituindo, assim, um meio de estabelecer contato e manter a distância. A maneira de conhecer pessoas no ciberespaço dá um toque diferente aos relacionamentos estabelecidos: nas comunidades tradicionais é costume apresentarem-nos alguém e ficarmos posteriormente a conhecê-lo; nas comunidades virtuais podemos ficar a conhecer uma pessoa e decidir posteriormente encontrar-nos com ela pessoalmente. O relacionamento pode ser igualmente mais efêmero no ciberespaço, porque podemos ficar a conhecer alguém que nunca venhamos a encontrar no plano físico.

Como é que fazemos amigos? Na comunidade tradicional procuramos entre o círculo de vizinhos, os colegas de profissão e entre conhecidos de conhecidos, de modo a encontrarmos quem partilhe dos mesmos valores e interesses. Depois trocamos informação sobre cada um, discutimos os interesses comuns e por vezes tornamo-nos amigos. Numa comunidade virtual podemos ir diretamente ao lugar onde os assuntos preferidos são discutidos e ficar a conhecer alguém que partilhe dos mesmos gostos ou use as palavras de uma maneira atraente. Como tal, o assunto de discussão (tópico) é o endereço: não podemos pegar simplesmente no telefone e pedir para ligar a alguém interessado em falar sobre arte islâmica ou vinhos da Califórnia, ou alguém com uma filha de 3 anos ou um carro de 40; podemos, todavia, participar numa conferência por computador sobre quaisquer desses tópicos e depois iniciar uma troca de correspondência pública ou privada com participantes até então desconhecidos. As hipóteses de fazer amigos são aumentadas várias ordens de grandeza relativamente aos antigos métodos de encontrar um grupo de referência.

Pode formar-se uma idéia errada das pessoas no ciberespaço, ocultas que estão pelo manto das palavras. Isso também é, no entanto, verdadeiro para a comunicação por telefone ou pessoal; as comunicações mediadas por computador originam novas formas de enganar o próximo, e as fraudes de identidade mais óbvias só desaparecerão quando um número suficiente de utentes aprender a usar o meio com espírito crítico. De certa forma, e devido à sua natureza, o meio terá sempre tendência para promover certos tipos de ofuscação; será também um local onde as pessoas acabarão freqüentemente por se revelar mais intimamente do que estariam dispostas a fazê-lo sem a intermediação de écrans e de pseudônimos.

A conferência Parental é um exemplo não exaustivo do sentido de comunidade que tenho encontrado na WELL. Apercebemo-nos noutras conferências, que lidavam com outros problemas humanos, do nosso poder de atingir objetivos concretos no mundo real, para além da partilha de sentimentos e informações úteis através das palavras.

O poder de a comunidade de utentes da WELL atingir objetivos concretos no mundo real manifestou-se dramaticamente quando o nosso primeiro computador começou a rebentar pelas costuras. A máquina informática impulsionadora da nossa comunidade de 700 utentes em 1985 não conseguia dar apoio aos 3000 utentes existentes em 1988. As coisas começaram a ficar mais lentas, a ponto de ser necessário esperar alguns segundos para ver surgir no écran uma letra premida no teclado. Depressa se tomou frustrante.

Havia uma proporção significativa de especialistas em informática entre a população de utentes, e soubemos que a única solução para acabar com a lentidão do sistema que tomava agonizantes a leitura e (especialmente) a escrita na base de dados da WELL passava pela evolução para um equipamento mais atualizado, mais adequado para enfrentar as necessidades de comunicações de um conjunto de milhares de intervenientes. Todavia, o diretor executivo da WELL, Clifford Figallo, ele próprio um membro ativo da comunidade, informou-nos de que a WELL, como unidade empresarial, era incapaz de prover a verba necessária para atualizar o sistema.

Foi então que os novatos online começaram a fazer cálculos de cabeça. Se o núcleo duro de utentes, que tinha ficado tão irritado com o desempenho do sistema (mas reconhecia a inexistência de algo sequer semelhante a WELL para onde recorrer em alternativa), estivesse disposto a pagar antecipadamente as contas domésticas dos meses seguintes, quanto custaria a compra da grande máquina? Meio a brincar, Clifford Figallo atirou um número, e dentro de dias uma quantidade suficiente de utentes tinha empenhado centenas de dólares cada um, totalizando vários milhares, para concretizar o projeto. Vieram os cheques, comprou-se o computador, o equipamento foi instalado e a base de dados - o coração vivo da comunidade - foi transplantada para um novo corpo de silício.

Depois de ter sofrido nos últimos meses com o Vax, os primeiros tempos com o novo computador, o Sequent, foram como passar de um Mini para um Rolls Royce. Usamos a nossa capacidade de trabalho de uma forma pouco ortodoxa: os clientes e os produtores dos bens adquiridos pelos clientes juntaram dinheiro entre si para emprestarem aos donos do negócio e poderem vender mais uns aos outros.

A operação da Casey foi mais uma subscrição, desta feita idealizada pela própria. Casey fazia parte da WELL há longo tempo e tinha um emprego - serviços de transcrição e processamento de texto por conta própria - que lhe permitia trabalhar em casa. Nunca ninguém duvidou da sua inteligência, embora o seu feitio fosse por vezes indelicado ou, como ela certamente diria, com «relativamente poucas necessidades de relacionamento». Talvez os demais digam que a Casey é um osso duro de roer.

Casey, ou Kathleen de seu nome verdadeiro, precisava ser submetida a uma operação cirúrgica que podia pagar em parte, embora não na totalidade; estava em jogo a sua capacidade de andar. Casey investiu 500 dólares na impressão de um poster da sua autoria. O poster exibia a silhueta de uma cabeça, tendo por título «O teu espírito está na WELL», e a cabeça continha palavras e frases reconhecíveis pelos utentes. Ela ofereceu cópias para serem vendidas a 30 dólares em prol da sua operação e conseguiu juntar a quantia de que necessitava.

A epopéia mais dramática foi, no «tanto, a saga de Elly, uma gentil e bem-querida WELLómana que deixou a comunidade virtual, possivelmente para sempre, para viajar até aos confins dos Himalaias. A sua saga, crise, e posterior resposta da WELL desenrolaram-se por um período de meses e atingiram o clímax em alguns dias de atividade intensa:

Tópico 198: Notícias da Elly

Por: Averi Dunn (vaxen), quarta-feira, 28ago91

263 respostas até agora

Por favor, enviem para aqui as notícias que tiveram sobre Elly van der Pas.

# l: Elly van der Pas (elly), quarta-feira,

28AGo91 (18.03)

Neste momento quase finalizei a mudança. Mais à noite vou verificar o material e ver se tenho tudo o que necessito para a viagem; talvez amanhã faça algumas compras de última hora.

Limpeza na sexta-feira, partida no sábado para parte incerta. O avião parte na segunda-feira de

manhã. Ufa!

# 6: Averi Dunn (vaxen), segunda-feira, 23SET91

(18.44)

Recebi outro postal de Elly no sábado:

13 de Setembro

Amsterdã

“Até aqui tudo bem. O tempo está ótimo, andei a ver a cidade de bicicleta. Amanhã vou para Londres por uns dias e depois para Itália de trem. Deve ser uma aventura. Fui a um concerto de piano ontem à noite com uns amigos de uns amigos e amanhã vou andar de barco à vela. Beijinhos para toda a gente. Elly”.

# 22: Averi Dunn (vaxen), quinta-feira, 7NOv91

(23.25)

Bem, Kim, podes enviar a informação não repetida, é bom saber notícias da Elly. É com isso em mente que envio o seguinte da sua parte:

270UT91

“Recebi ontem a tua carta de 14 de Setembro, reenviada de Itália. Aparentemente, houve lá uma greve nos correios devido a um empregado ter se afogado num elevador. De qualquer forma, não houve correio durante pelo menos uma semana; portanto, não recebi nenhuma carta”.

Bem, não fazes idéia de quão estranho é estar sentada numa montanha em Katmandu a ler sobre a AP2 e a WELL. Ah, tirei uma foto no café WELL em Londres e mandei-a para a sede. Espero que gostem, achei bastante apropriado. A Janey Fritsche apareceu há cerca de uma semana e depois foi percorrer as montanhas. Gostei de vê-la. O meu amigo Peter também vai estar aqui dentro de dias, e acho que também vou descer a montanha, para passar algum tempo a renovar vistos e acumular provisões para o curso, que vai durar vários meses. Durante o curso não vamos poder sair do mosteiro nem vai haver correio; portanto, por uns tempos não vou dizer mais nada. Feliz Dia de Ação de Graças, Feliz Natal e próspero ano novo. Por cá terminaram as férias grandes. Toda a gente teve uma semana de dispensa do trabalho e vestiu a roupa nova. A miudagem fez papagaios enormes de bambu e foi lançá-los.

Estive a estudar dzogchen, parecido com o zen tibetano -meditar sobre a mente vazia-, diferente de tudo quanto fiz até agora. Ficamos por uns tempos num mosteiro situado no cimo dos montes,

onde mora um velho abade especializado em evidenciar a natureza da mente. Foi uma oportunidade muito pouco vulgar.

Devem estar todos a dormir, com exceção da tua pessoa. Aqui são 2 horas da tarde - muito tarde para almoçar e muito cedo para jantar. Está mesmo na hora do banho, pois a água é aquecida por um aquecedor solar no telhado. Estou a tomar os banhos todos porque dentro de uma semana vêm 300 pessoas para o curso, e nem por sonhos vai ser possível tomar banho nessa altura, ou melhor, nem sequer tomar duche.

Diz ao Brian e à Josephine que estou bem e mando cumprimentos; espero que tenham recebido o meu postal, vou tentar escrever, mas não sei quando irei ter tempo.

Cuida-te e fica bem.

Elly

# 26: Averi Dunn (vaxen), sábado, 28DEz91 (01.26)

Seguem-se trechos de uma carta que recebi da Elly em 21 de Dezembro.

* * * * * * * *

7Nov

o curso começa hoje; portanto, vou ficar incomunicável durante um mês.

13DEz

Hum. Parecia que isto nunca mais acabava. Muita coisa aconteceu desde então. Numa palavra, tornei-me monja. Já mandei os pormenores ao Hank para ele os enviar, porque, entretanto, tenho de escrever umas dez cartas para o Peter levar quando se for embora.

* * *

Pode parecer um bocado estranho, mas sinto-me bastante bem e sinto também que é a atitude mais correta a tomar; até o Peter concorda.

* * *

Ser monja ou freira nunca esteve nos meus planos (pelo menos nunca até agora). Senti sempre uma certa pena das freiras católicas. Isto aqui é um pouco diferente- há muito mais liberdade. É engraçado ter o cabelo curto, acho que vou deixar crescê-lo até ficar com uns dois centímetros.:-)

* * *

PPS. O meu nome canônico é Jigme Paimo: gloriosa mulher audaz (!!!?)

********

Ela também mandou um endereço para poder ser contatada nos próximos seis meses. Se quiserem, mandem-me correio eletrônico.

Elly decidira então se tornar monja budista na Ásia e, por conseqüência, ameaçou passar para os anais lendários da WELL. O assunto ficou em estado latente durante seis meses, até que em Junho o antigo vizinho que transcrevia a correspondência da Elly para a WELL, Averi Dunn,

informou que, segundo tinha ouvido dizer, esta teria uma espécie de ameba no fígado. Em finais do mês de Julho de 1992, Flash Gordon informou que Elly estava num hospital em Nova Deli, em coma. Tinha uma hepatite grave e aparentemente sofria de uma falha hepática. Se isso fosse verdade, Flash Gordon e os outros médicos online concordaram que o prognóstico não era famoso.

Dentro de algumas horas começaram a envidar-se esforços em várias direções por iniciativa própria. O simples alcance e diversidade dos recursos disponíveis ao juntar as nossas redes individuais de influência eram espantosos. Foram contatadas pessoas com conhecimentos no meio clínico em Nova Deli; investigaram-se os horários de companhias aéreas e as tarifas de transporte médico; foi também criado um fundo e os contributos começaram a chegar. Casey utilizou a rede para procurar um local com facilidades de telecomunicações em Nova Deli, de modo a ser passada informação para Frank, o ex-marido de Elly, que foi à Ásia ajudar a resolver uma situação aparentemente grave.

Após alguns dias de clima tenso, chegaram notícias através da rede: Elly possuía ainda alguma função hepática e, possivelmente, iria necessitar de ter acesso a equipamento especial de diálise antes de ser transportada. Decorridas algumas horas, soubemos como arranjar o equipamento em Nova Deli e os nomes que devíamos mencionar. Sabíamos quem tínhamos de contatar, o que pedir, o custo e como proceder à transferência de fundos para que Elly fosse transportada para um hospital da região de São Francisco. «Fico toda arrepiada», dizia Onezie à medida que o drama se desenrolava na WELL. «Isto é amor em ação.»

Elly recuperou o suficiente para fazer a viagem sem ser por transporte médico e a sua mensagem seguinte veio em direto, via WELL:

# 270: Elly van der Pas (elly), sexta-feira,

llSET92 (16.03)

Obrigada a todos pelos generosos raios WELL, com os melhores cumprimentos, orações, conselhos e contributos de energia verde, o médico pensou que a minha rápida recuperação se deveu ao Actigall, mas de fato deveu-se aos raios, orações e pujas.

Até disse que talvez possa voltar à Índia lá para Fevereiro.

Se prestar atenção aos interesses de outrem é um tipo de força de atração no ciberespaço, então Blair Newman é um megafman supercondutor, pois age em pessoa de forma igual à da sua personagem online, Metaview. Metaview tinha montanhas de esquemas maravilhosos sobre a utilização das novas tecnologias, e amigos seus tinham ficado bilionários. Como se ganha um milhão nos intervalos em branco do sinal de televisão? Então e um serviço que grava só os programas televisivos desejados? Que outros doidos inteligentes pagariam uma boa maquia pela fiaria Conipconf Psychserv?

Blair tinha sempre uma história para contar e ficava com os olhos muito abertos e o bigode comprido a torcer-se de excitação. O seu estado mental parecia refletir-se no cabelo, um esfregão louro-escuro, magnífico na sua desordem irreparável; quanto mais encaracolado e fora de controle aparentasse estar o seu cabelo, mais a sua mente pareceria estar a fervilhar. Nas festas da WELL o seu estado mental era o de um louco: agarrava nas pessoas, ria-lhes na cara, arrastava-as através da multidão para as apresentar a alguém, explodia a rir a propósito de uma piada, para a seguir se transformar num espasmo de tosse aparentemente interminável.

Para mim a característica mais marcante de Blair Newman era o seu hábito de me telefonar - a mim e a várias dezenas de pessoas de quem gostava e admirava -, se não estivéssemos online, para me mandar ligar imediatamente a televisão ou o rádio neste ou naquele canal, porque tinha simplesmente de prestar atenção a algo que estava a dar. Ele tinha freqüentemente razão e não agia por mal, mas causava sempre um certo arrepio. Ora aqui vinha este conhecido de muitos anos, embora não amigo do peito, falar sobre o programa de televisão que eu decerto gostaria de ver às l1h30min da noite num dia de semana. Era também este o seu modo de agir na WELL.

Os laços mais importantes que me uniam a Blair eram do mesmo gênero dos partilhados pelos habitués de qualquer espaço público. No final dos anos 80 eu e Blair pertencíamos a um grupo variável, compreendendo dez a trinta WELLómanos, com quem se podia contar online a qualquer hora do dia. Muitas vezes graceja-se acerca das características viciantes da WELL e, aparentemente, estão sempre a decorrer discussões sérias nalguma parte sobre o seu caráter viciante. Custando cerca de dois dólares por hora, fazer das conferências por computador uma obsessão é mais barato do que todos os outros vícios, com exceção do tabaco.

Tanto quanto me lembro da descrição que Blair fez de si próprio, tinha feito o MBA em Harvard havia pouco tempo às custas de uma elevada dose diária de cocaína e trabalhava com a horrivelmente abstêmia equipe jurídica de Howard Hughes nas profundezas de uns bunkers em Las Vegas. Blair fora no passado o paradigma da personalidade viciada clássica, o fumador de cachimbo de água e inveterado dos «charros» (além de, na sua perspectiva, ser um dos fundadores da Organização Nacional para a Reforma das Leis da Marijuana). Todavia, já se tinha livrado dos problemas com a cocaína quando veio para a WELL, e fez então uma série de relatos sobre o modo como se apercebeu de que a WELL o tomava insidiosamente mais dependente do que aquela droga.

Anos depois de se ter livrado dos hábitos cocainómanos, dizia ele, alguém tinha posto um montinho da substância ao lado do computador enquanto estava ligado à WELL. Horas depois ocorreu-lhe que os cristais brancos ainda se encontravam lá; embora soubesse da sua existência, não tinha reunido a energia suficiente para os inalar. Não foi uma batalha de obsessões, explicava Blair - não conseguia tirar as mãos do teclado nem os olhos do écran do seu atual e mais intensivo vício durante o tempo suficiente para ingerir a cocaína. Blair partilhava conosco os seus pensamentos, da mesma forma que partilhava tudo e mais alguma coisa que ocorresse naquela mente imprevisível e incansável, horas a fio, todos os dias, durante anos.

É necessário tomar precauções ao aplicar o modelo da dependência ao leque do comportamento humano. O grande ator é dependente da atenção do público? Provavelmente sim. Ser a perspectiva da dependência a mais indicada para avaliar o comportamento do violinista ou do ator?

Provavelmente não, mas quem deixa a comida a arrefecer e a família preocupada enquanto continua a escrever furiosamente num teclado, em aceso debate com um grupo de pessoas invisíveis em lugares distantes, pode conjurar o lado negro do entusiasmo online. Se alguém tiver uma necessidade absoluta - mesmo doentia - de um certo tipo de atenção de almas gêmeas inteligentes, a WELL é um sítio estupendo para procurar. Blair chamava-lhe Compconf Psychserv, era mais barato do que as drogas e os psicólogos e afastava-o da decadência das ruas. Ele era suficientemente esperto para saber o que lhe acontecera, apesar de a dependência continuar a apertar o cerco.

Procurar a atenção das pessoas, especialmente de grandes grupos de pessoas inteligentes, fez sempre parte da história de Blair; ele queria ajudar, impressionar. Blair podia tornar-se irritante, em parte devido a um descaramento absolutamente incrível e à sua maneira generosa de se auto promover.

Tinha uma mitologia própria: segundo Blair, um dos seus companheiros de quarto tinha fundado uma das empresas de software mais bem sucedidas. Segundo Blair, ele tinha sido um dos principais organizadores do movimento para a legalização da marijuana. Segundo Blair, ele próprio tinha apresentado famosos empresários da informática uns aos outros em circunstâncias dramáticas. Não era difícil fazer uma paródia ao «rap do Blair Newman».

Então, depois de anos online e dezenas de festas e excursões com outros membros da WELL, de todos os telefonemas tardios a propósito de recomendações programáticas na TV aos congéneres WELLómanos, Blair Newman retirou tudo quanto tinha alguma vez escrito na WELL. Durante dois dias e uma noite a maioria das conversas na WELL focava o trauma da «rasura em massa», termo proveniente do ato de remover anos e anos de mensagens. Parecia um ato de suicídio intelectual.

Semanas depois Blair Newman matou-se na vida real. Uma espécie de mito parece ter envolvido este incidente, tanto na rede como na mídia, e a história foi distorcida numa versão mais dramática. A versão do Folclore urbano veiculada por alguns artigos nas revistas refere que algumas pessoas da WELL teriam alegadamente procurado em desespero por Blair quando as suas mensagens desapareceram. Diz a lenda que, quando foi apagada a última mensagem, Blair se matou.

Os presentes no funeral eram maioritariamente da WELL, mas estava lá um número surpreendente de personagens peculiares. Quem lá esteve recorda o tipo manhoso que vestia um paletó caríssimo e usava óculos escuros de 300 dólares e tinha viajado de Los Angeles para o funeral no jato da empresa, contar o mesmo gênero de histórias que Blair contara amiúde sobre si próprio. Apareceram também white rastafarians - ativistas da legalização da marijuana - e vieram fundadores de empresas de software famosas. Foi a última grande risada. À medida que toda a gente se ia levantando e dizia algo sobre Blair, começou a ficar claro para todos nós que ele tinha estado a dizer a inacreditável verdade.

Contudo, quando ele encarnava em nós, metaforicamente falando, em todas as conferências da WELL, muitos ripostavam com um «acalma-te, Blair», algo que lhe teriam dito publicamente. Bandy, que fornecera a Blair a ferramenta de software que lhe permitira efetuar a rasura em massa, iniciou um tópico na conferência Weird (a zona de franco-atiradores do subconsciente da WELL) com o título «O dia 16 das suas férias de lítio». Outros comentários foram ainda menos favoráveis, quer da minha parte, quer dos demais. Quando se procura freqüentemente a atenção das pessoas e se monopoliza a ribalta, a resposta pode ser cruel.

Tal como o lendário público do teatro Apolo em Harlem, em Nova Iorque, a platéia da WELL tanto pode consagrar estrelas como vaiar os maus artistas. Blair experimentou ambas as reações ao mesmo tempo.

Por vezes, quando a zombaria online começava a ficar um pouco cruel, telefonava a Blair e tentava saber o que realmente se passava. Falávamos então e Blair divagava até o beeper o arrastar numa nova direção. Ele estava sempre na vanguarda da tecnologia mais avançada de transmissão de mensagens. Blair obteve a arma de suicídio virtual na forma da ferramenta de scribble após algumas semanas de clima psicologicamente tempestuoso.

Semanas antes Bandy, um dos funcionários técnicos da WELL, despediu-se durante uma discussão sobre uma relação pessoal que mantinha com outra personagem online. Quando efetivou a despedida, Bandy utilizou a sua experiência em programação na concepção de uma ferramenta destinada a procurar e apagar tudo quanto tinha enviado para as conferências públicas na WELL. Um truque elaborado, esse, um ato de programação verdadeiramente virtuosística calculado para testar a integridade estrutural do sistema social. Bandy enviou o código-fonte da ferramenta de rasura para a Rede, o que significa que, para todo o sempre, quem quiser obter essa arma pode enviar um pedido para a Rede e, mais cedo ou mais tarde, alguém lhe irá indicar um arquivo onde o programa está armazenado.

Até então a história da WELL estabelecera fortes relações com a sub-comunidade anárquica de programadores voluntários. Durante anos criaram-se ferramentas, distribuídas gratuitamente pelo prestígio que conferiam ao autor e porque eram necessárias. Bandy foi o primeiro a criar uma arma.

Todo e qualquer um que envie mensagens escritas na WELL tem o direito de posteriormente as apagar. Os anfitriões têm o poder de rasurar as escritas de outrem, poder esse severamente limitado pela consciência de que a esse ato seguir-se-ão, provavelmente, semanas de debate mordaz e repetitivo. Por tradição, os comentários escritos pelos utilizadores da WELL não seriam apagados pelos anfitriões mais de uma vez por ano.

Não é raro apagar os próprios comentários, embora não seja de todo a norma. A regra prática parece ser a de que é melhor pensar duas vezes antes de falar em vez de falar de mais a ponto de o lamentar. Talvez seja apagado um em cada mil comentários.

Antigamente tinha de se localizar cada comentário individualmente e depois seguir uma série de passos para o apagar. Nas infindáveis discussões que se seguiram à utilização da arma-ferramenta, inicialmente por Bandy e depois por Blair, decidimos que, naturalmente, toda a gente teria todo o direito de apagar automaticamente qualquer comentário por si jamais enviado agora que llavra maneira de o fazer. Fazê-lo, porém, é aos olhos de muitos desprezivelmente anti-social.

Quando Metaview utilizou a ferramenta de rasura de Bandy, o choque provocado ao serem apagados anos de escrita de um autor bastante prolífico levou a que a estrutura formada pelas mensagens registradas, toda a história da WELL até então, parecesse... comida pelas traças.

Muitas vezes, e particularmente nos tópicos em que Metaview incidia mais intensamente, faltava tanta coisa que se tomou desesperadamente impossível seguir o fio à meada. Por que razão se decide ser um membro entusiástico de um projeto coletivo, perene, baseado na palavra, se se tenciona subtrair as próprias contribuições para a estrutura das conversas quando é altura de partir?

A novidade do ato, penso eu, confundiu as nossas reações quando Bandy efetuou a rasura em massa pela primeira vez. O problema estrutural posto pela reconstrução dos nossos modelos mentais da WELL foi perversamente intrigante. A idéia de que a WELL aparenta possuir uma massa crítica de poder pensante superior ao poder destrutivo de qualquer indivíduo isolado é reforçada pelo modo como agüenta os ataques às bases. Muitos maldiziam Blair por vandalizar a WELL, que o tinha alimentado durante tanto tempo. Peguei no telefone e liguei-lhe.

«Por que fizeste isto, Blair?», perguntei-lhe.

«Pareceu-me ser o mais adequado na altura», foi precisamente o que me respondeu de um modo absolutamente desafectado. Nada de invulgar em relação a Blair, cuja disposição flutuava ao sabor das conversas.

Penso que ele estava a ser sincero, era um impulso. A arma-ferramenta tornou possível seguir o impulso e foi isso que relatei à comunidade da WELL.

Ninguém confunde a vida virtual com a vida real, embora àquela corresponda uma realidade emocional para muitos de nós. Simplesmente, alguns impulsos são mais sérios do que outros, e os atos impulsivos podem ter na vida real conseqüências mais permanentes do que as desencadeadas pelos atos mais drásticos no ciberespaço. Perguntei a Blair se estava com tendências suicidas, e ele falou sobre isso, ao que lhe repeti o velho lugar-comum de o suicídio ser uma solução permanente para um problema temporário. Depois de ter tido essa conversa com Blair, falei com um amigo e seu psiquiatra. Brincar aos suicídios não era novo para ele e alguma vez Blair haveria de conseguir. Dessa vez conseguiu-o.

A partir do momento em que teve conhecimento da notícia a população da WELL entrou num período de transformação. Brincar com as palavras no teclado do computador era uma coisa, outra coisa foi ir ao funeral do Blair e falar pessoalmente com a família.

Alguns tópicos da WELL foram então dedicados a Blair, e um deles, a pedido da família, destinava-se à recepção de elogios fúnebres. Muitos dos demais tópicos, os que não foram doados aos pais dele, não passavam de repugnantes e acesas guerras sobre o comportamento das pessoas. No calor da discussão de um dos tópicos, houve quem aproveitasse a oportunidade para disparar a sério, uma vez vindos à tona os ressentimentos herdados de discussões anteriores. O suicídio revela sentimentos invulgares em qualquer família ou grupo social. Felizmente, havia um ou dois de entre nós que sabia interpretar exatamente o que estava a acontecer; uma pessoa que tinha lutado anos a fio com o sentimento provocado pelo suicídio do irmão estava em condições de oferecer a sua sabedoria, compreensão e aconselhamento credível a muitos de nós.

Realizou-se então o funeral na vida real, onde levamos os nossos corpos físicos e nos abraçamos entre nós e à família do Blair. Estávamos a aprender o quanto tínhamos ficado a gostar dele e como a sua morte constituiu um marco no ciberespaço. Tinham-se realizado e desfeito casamentos, fechado e fracassado negócios, feito festas e piqueniques.

Todavia, por alguma razão, a morte parece ser mais real, mesmo se se participa apenas num funeral virtual. Como poderia algum de nós, naquela tarde, olhando-nos nos olhos, negar que os laços que nos uniam estavam a transformar-se em algo real?

Os sentimentos foram tão intensos durante a parte virtual das cerimônias fúnebres como na sua correspondente real - na verdade, não se fazendo sentir os mesmos constrangimentos sociais próprios de um funeral, na versão online houve ocasião para demonstrações de raiva impróprias de uma reunião frente a frente. Havia os que emocional e persistentemente acusavam os elogiadores de exibirem uma hipocrisia nojenta devido ao tratamento nada benigno a que o submetíamos coletivamente online enquanto era vivo. Os que tinham telefonado ao Blair e aos seus psiquiatras e foram conhecer a mãe e o irmão, na tentativa de lhes proporcionarem algum conforto, tinham uma atitude diferente em relação a quem não conseguiu assistir à cerimônia pessoalmente, mas que não hesitava em importunar os presentes online. Pessoas que se tinham visto obrigadas a conviver porque eram todas dependentes veteranas do mesmo espaço social começaram a antipatizar umas com as outras.

Para mim tudo isto constituiu uma importante lição, reforçada muitas vezes desde então: as palavras num écran podem magoar. Embora a conversa online tenha o mesmo sabor efêmero e informal de uma conversa telefônica, tem o alcance e a perenidade de uma publicação.

Passaram-se os anos, foram-se adicionando megabytes de conversas à WELL. Já não é fácil encontrar partes do antigo tecido onde sejam ainda visíveis as marcas deixadas por Blair. No entanto, ele continuou a influenciar profundamente aquilo que as pessoas online sentem umas pelas outras. Tal como foi dito na altura pelo WELLómano John P. Barlow, não existe uma verdadeira comunidade até haver um funeral.

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* Jogo de palavras: well significa literalmente «poço. (N. do T.)

* Multi-user dungeons, jogo de aventura multiutilizador. (N. do T.)

* Gênero de basebol. (N. do T.)

* Multi-user dungeons, jogo de aventura multiutilizador. (N. do T.)

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