Resumo da 1ª parte do livro “Motricidade Humana ...



Motricidade Humana – Contribuições Para Um Paradigma Emergente

Motricidade Humana – Um Paradigma Emergente

Conforme elucida o filósofo Manuel Sérgio, a área da Educação Física está repleta de metodologias e teorias que não têm coerência epistemológica. Por isso, ele sugere uma nova ciência que nos leve a ter uma concepção diferente sobre o Homem. Então, surge a Ciência da Motricidade Humana que faz um corte com o paradigma cartesiano, e nos permite ter um conhecimento globalístico do Homem, não o vendo somente como a soma das partes mas sim como um ser na sua plenitude em tudo o que o rodeia e o influencia.

Para isso, o autor recorre à fenomenologia e à hermenêutica no intuito de dar sentido a esta nova ciência do Homem. Mas para isso, é necessário fazer uma ruptura com o paradigma que até então vigorava e abandonar […] o modelo clássico de racionalidade […] (p. 14), o paradigma cartesiano. Esta necessidade sente-se mais na área da Educação Física e Desporto, pois existe um grande problema no facto de esta não ter uma fidelização com o seu objecto de estudo – o Homem.

A visão do Homem não deve ser simplista mas sim holística, pois este Homem encontra-se no caminho da busca da sua essência e existência. Logo, estas transparecem-se na sua práxis em que o Homem age com uma finalidade, com uma intencionalidade envolvendo as suas atitudes num contexto de sentidos e de emoções.

Na perspectiva do referido autor em questão surgem quatro perspectivas, teorias diferentes sobre a compreensão global do Homem:

1. Para alguns filósofos, a alma é uma substância e a sua substancialidade identifica-se com a do Homem, já que este só pela alma atinge a verdade (p. 16). Kant e Hegel, foram mais à frente desta visão cartesiana, em que Hegel identifica o ser e o pensar.

2. O pensamento do Homem cartesiano foi recusado pelo pensar contemporâneo, por Marx e Freud. Passou-se então a ver o Homem não como um ser-diante-do-mundo, mas sim como um elemento do próprio mundo e que este Homem tende para a transcendência.

3. Por meio da fenomenologia e da hermenêutica recusa-se o dualismo Res-Cogitans (alma/pensamento) / Res-Extensa (matéria/extensão), pois a relação que se estabelece não é a de que […] o objecto aparece sempre como constituído pelo sujeito […] (p. 17), mas sim uma relação pela qual […] o sujeito é seu corpo, seu mundo e sua situação e, de certa forma, estabelece com estes uma permuta» (p. 17).

4. Na perspectiva antropológica, o Homem é um ser cristão e religioso, em que a ciência do Homem é sobretudo a ciência da fé.

No decorrer da segunda metade do século XX evidencia-se […] a morte de Deus (como já o fizera Nietzsche) e a morte do Homem (p. 18). Assim, o estruturalismo proclamou a sua morte com o aparecer das ciências do Homem. Segundo Edgar Morin, o reconhecer do Homem como uma […] máquina viva, como physis organizada e organizadora, produtora e auto produtora (p. 20), e a sua criatividade, originalidade assentam no facto de o Homem ser um ser coerente e inacabado. Como tal, o homem conseguiu sobreviver a todas as adversidades que a vida, desde os primórdios, lhe colocou.

A razão pela qual o Homem não sucumbiu a essas adversidades, foi por ser um ser práxico, pois esta é uma característica que lhe permite desenvolver um vasto leque de possibilidades, de soluções para os problemas que lhe são postos. Logo, pode-se dizer que a cultura é criada pelo Homem e é por ela que o ser humano adapta e se readapta, pois tem a capacidade de desenvolver e criar formas estratégicas para enfrentar os problemas.

Assim, a globalidade humana apresenta-se como, […] Corpo-Alma-Natureza-Sociedade-Desejo […][1], em que persegue a transcendência. Adianta-se, assim, as dimensões humanas em que se pode basear: corporeidade; motricidade; comunicação e cooperação; historicidade; liberdade; noosfera e na transcendência.

Logo, ser Homem não é um estado, mas sim um processo de transcensão ininterrupta pois nada é dispensável, tudo à nossa volta é indispensável. Quando se tenta definir o Homem, esquecendo que este ruma à transcendência, é porque não percebemos que este só é verdadeiro quando sente alguém em si e, então, permite-nos sentir a realização pessoal e perceber que não basta sermos de qualquer maneira, mas sim […] ser em todos os planos da existência (p. 25)

[…] o homem é um apelo à transcendência e, como tal, um ser práxico que, na totalidade corpo-alma-natureza-sociedade-desejo e pela motricidade, procura transcender e transcender-se, visa o Absoluto (p. 26).

Como referimos no início deste texto, a fenomenologia e a hermenêutica contribuíram para o surgimento desta nova Ciência da Motricidade Humana. Maurice Merleau-Ponty estudou a fenomenologia da percepção e pôs em relevo a Intencionalidade Operante/Motricidade Humana, pois todas as atitudes têm uma intenção, um sentido e um significado. O sentido alcança-se por meio da percepção, pois este é o modo de comunicação para se estabelecer o diálogo entre o mundo e o ser. É por meio da percepção dos objectos, das situações, das acções que podemos reflectir sobre estas sem perdermos a raiz corpórea. Para Maurice Merleau-Ponty: […] « Perceber é tornar presente qualquer coisa com a ajuda do corpo.» (p. 28). Então, a relação alma-corpo deve ser entendida numa perspectiva de […] um corpo vivido, que se orienta para o mundo e capta as coisas, através de perfis e não de um modo perfeitamente definitivo (p. 29).

Diante desta filosofia, podemos dizer que o corpo tem uma intencionalidade dinâmica, como tal dirige-se a tudo o que o rodeia. O facto de o Homem não ser um projecto acabado e ser um ser consciente e portador de sentido, leva a Motricidade a destacar-se por esta nova concepção crítica. Maurice Merleau-Ponty diz-nos que em nível da compreensão da Motricidade se pode confundir com a Intencionalidade Operante, pois: […] A motricidade diz-nos que o Mundo está dentro de nós, antes de qualquer tematização. Porque o Homem é portador de sentido – daí a sua intencionalidade operante ou motricidade (p. 30).

Entre a motricidade e a corporeidade não existe diferença, pois as duas fazem parte da mesma complexidade humana, ou seja, […] a motricidade surge e subsiste como emergência da corporeidade, como sinal de quem está-no-Mundo para alguma coisa (p. 30). Em que a motricidade […] é um modo de ser da corporeidade, aquele em que a percepção não se limita a abranger o instante da duração do aqui e agora e se alarga à dimensão inteira da temporalidade (p. 32).

O Homem como Intencionalidade Operante, o mesmo que Motricidade Humana, confere a si mesmo a saliência de ser um projecto, uma vontade de criar. Isto é, a ruptura e transcendência de uma pessoa consciente e livre.

No decorrer do texto, já se referiu que o Homem é um ser práxico, mas afinal qual será a razão da sua praxicidade? O Homem é um ser práxico pois para viver necessita de actuar, ou seja, […] em todo o processo de desenvolvimento humano, sobrenada a motricidade (p. 31), estando consciente desta praxicidade e do facto de ser um projecto inacabado, sabemos que o Homem é um ser carente e que está consciente dessa carência. Levando-o a mover-se para se superar, numa busca incessante de fazer e refazer. Assim, podemos dizer que o Homem como projecto, engloba tudo o que está à sua volta, tudo o que faz parte dele, não sendo somente a razão mas também a imaginação, a criatividade, sempre na busca da superação.

Manuel Sérgio diz que a Motricidade supõe: Uma visão sistémica do Homem; Um ser não especializado e carenciado; Um ser práxico; Um ser que persegue, aprende, cria e realiza. A Motricidade também constitui: Uma energia (…) que é estatuto ontológico, vocação e provocação de abertura à transcendência (p. 35); O processo adaptativo e re-adaptativo que procura sempre se superar; O processo evolutivo, pois é um ser práxico e como tal, tem a predisposição para assimilar novos conhecimentos; O processo criativo, em que a práxis demonstra a vontade de um Homem responsável e liberto sempre no caminho do absoluto.

Assim, perante a Motricidade Humana, […] o desenvolvimento diz-nos que o Homem é um ser complexo, experimentando-se e compreendendo-se como corpo-alma-natureza-sociedade-desejo, visando (pela motricidade) a transcendência (p. 38).

Após compreender o Homem por meio da fenomenologia e pela sua complexidade vimos que este está em constante apelo à transcendência, na busca de um sentido, por isso, não podemos defini-lo de modo aleatório. Assim, perante a reflexão fenomenológica e hermenêutica sobre o corpo, o movimento, a intencionalidade do Homem esclarece-se agora os cortes, as rupturas que tornaram possível o crescimento, o desenvolvimento deste novo paradigma, desta nova área do conhecimento, a Ciência da Motricidade Humana. Em todas as épocas da história das ciências, existe uma continuidade e descontinuidade demonstrada por diversas formas de expressão. No entanto, Foucault diz-nos que […] «a arqueologia procura desfazer todos os fios de continuidade que os historiadores teceram» (p. 39). Assim, o importante que retiramos da mensagem foucaultiana, é o de episteme (teorização), com este termo, o filósofo pretende passar uma visão do mundo, em que ocorre um corte na historia, então este conceito sugere [...] conjunto de relações que pode unir numa dada época, as práticas discursivas que dão lugar às figuras epistemológicas, às ciências e, eventualmente, a sistemas formalizados» (p. 40).

Segundo Manuel Sérgio, verifica-se já em Foucault, uma descontinuidade epistémica, cortes e rupturas epistemológicas, tal como, a ruptura de paradigma em Thomas Kuhn. Contudo, segundo o autor da Ciência da Motricidade Humana, a episteme de Foucault em comparação com o paradigma de Kuhn é muito mais abrangente, pois define um conjunto variado de leis, instituições, enunciados científicos.

Então, qual é a episteme que possibilitou e anunciou o corte epistemológico em que assenta a Ciência da Motricidade Humana!?

Para responder a esta pergunta, é necessário ir à procura de alguns pontos fulcrais na história passada que a alicerçaram esta nova ciência. Então temos: revolução inglesa, que começou por lançar os fundamentos materiais da técnica actual; revolução politica francesa, que veio fomentar o princípio da liberdade; os estudos e pesquisas na área anátomo-fisiologia por parte de Ling e Demeny, permitindo a teorização da ginástica exclusivamente terapêutica; revolução freudiana, que reduziu as energias e todo o processo evolutivo do Homem à libido, dando assim ao corpo uma função fulcral neste processo; nos tempos livres quer em nível de lazer quer como espectáculo; o reconhecimento da Educação Motora, orientada pelos princípios educacionais; o antidualismo das teorias sobre a concepção do Homem e a integração da corporeidade e da motricidade perante a complexidade humana.

Assim, o Homem encontra-se inserido numa natureza que é ele mesmo que constrói, tal como a sua cultura indo de encontro às exigências da sua praxicidade. A Ciência da Motricidade Humana, tendo em conta que apoia este novo conceito do Homem e se enquadra no paradigma da complexidade, é uma Ciência do Homem. Pode-se dizer que a importante mensagem da Ciência da Motricidade Humana se sintetiza: […] nunca a vigência de um dualismo se saldou pelo reconhecimento da eminente dignidade da pessoa humana. Ao invés: esteve sempre na raiz das suas mais lamentáveis derrotas (p. 49-50).

Para a constituição desta nova ciência foi necessário criar uma matriz disciplinar, que abrangesse algumas características, tais como: Auto-organização subjectiva; Complexidade–Consciência; Inter-relação Corpo-Alma-Natureza-Sociedade-Desejo; Práxis transformada; Cinefantasia (consciência e sonho); Linguagem Corporal; Discurso inadequado ao uso corrente.

Como tal, para fazer ciência não é só pensar e expor os seus conceitos, leis, pressupostos mas sim dinamiza-los. Logo, o cientista destaca-se não pelo que lhe ensinaram mas sim pelo facto de saber negar o que aprendeu, na perspectiva de procurar, pesquisar novos conhecimentos.

Por tudo o que foi dito até então, verifica-se uma grande diferença entre a Motricidade Humana e a Educação Física, pois a Educação Física visa somente o desenvolvimento das capacidades físicas do individuo sem ter em conta todo o meio dialéctico, o contexto complexo que o envolve e as suas próprias características. Em contrapartida a Motricidade Humana, para além de ter em atenção o corpo (pois também é físico) tem em atenção tudo o que a rodeia, como por exemplo, o corpo-memoria, o corpo-estrutura, o corpo-conduta, o corpo-emoção, entre outras.

Bibliografia: SÉRGIO, Manuel. Motricidade humana: contribuições para um paradigma emergente. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. (Colecção Epistemologia E Sociedade)

Trabalho elaborado no âmbito da disciplina de Pedagogia do Desporto, 5º ano, Curso de Ciências do Desporto da Universidade da Beira Interior.

Realizado por:

Olga Filipa Duarte da Silva

olga_brg@

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[1] SÉRGIO, Manuel. Para um Novo Paradigma do Saber e… do Ser. Coimbra: Ariadne Editora, 2005, p.71

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