O poder da musica miolo

Introdu??o

Ap?s terminar a licenciatura em Londres, em 1999, viajei regularmente pela Europa acompanhado de um bom amigo chamado Alessandro Lalvani. Adopt?vamos um conceito que design?vamos improvisa??o livre, que consistia em confirmar f?rias no trabalho, comprar bilhetes de avi?o baratos e vermos o que acontecia quando cheg?vamos ao destino. Com a seguran?a dada por um telefone numa das m?os e um guia de viagens na outra, decid?amos os dois -- rapazes jovens com algum dinheiro dispon?vel -- seguir este conceito algumas vezes por ano, visitando assim locais t?o ex?ticos como Praga, Veneza, Mil?o e Barcelona. O mundo era nosso.

Os anos passaram, Alessandro assentou e casou-se, enquanto eu continuei a vaguear, fazendo viagens de longa dist?ncia pelo M?xico, Argentina, Brasil e Vietname. No entanto, os caminhos que percorria eram j? bastante trilhados e apenas ocasionalmente me atrevia a correr riscos, como fiz numa viagem de 400 km de bicicleta entre Dalat e Hoi An, no Vietname, em que fui acompanhado por um estudante de doutoramento de nacionalidade australiana, que conheci enquanto viajava naquele pa?s. Estas viagens deram-me novas perspectivas sobre as no??es de riqueza, beleza, natureza e, de uma forma crucial, daquilo que ? a arte. A minha vida seria hoje muito diferente se n?o tivesse feito estas viagens.

H? tr?s anos decidi que queria mais. Motivado, por um lado, por um desejo de aventura e, por outro, pela vontade de documentar o mundo em que vivemos, decidi que combinaria uma viagem, a escrita

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de um livro e a realiza??o de um document?rio. Na verdade, o projecto M?sica e Coexist?ncia, arrancou quando vi uma actua??o da West Eastern Divan Orchestra, uma orquestra composta por um grupo de m?sicos provenientes de Israel e dos pa?ses vizinhos, a que assisti na Filarm?nica de Berlim. O programa consistia num concerto de c?mara da autoria de Alban Berg, uma obra de c?mara obl?qua e exigente, apresentada por Michael Barenboim, filho do pianista e maestro Daniel Barenboim, e por Karim Said, um parente do falecido acad?mico palestiniano Edward Said. Fiquei surpreendido ao ver que era poss?vel uma colabora??o positiva entre estes dois jovens cora??es e mentes, o que me colocou v?rias interroga??es. Existiriam outros exemplos semelhantes de colabora??es interculturais? Poderia a m?sica ajudar a curar feridas sociais?

A m?sica tornou-se uma parte importante da minha vida desde muito cedo. Comecei com aulas de violino em Londres aos oito anos, a que se seguiu uma breve passagem pela North London Symphony Orchestra em 2005. Recordo-me de regressar a casa tarde, j? durante a noite, e de relaxar ao som de jazz ou de nocturnos de Chopin, enquanto saboreava um copo de vinho. A m?sica servia-me de escape para a monotonia e t?dio causados pelo meu trabalho. A minha paix?o pela m?sica, acompanhada pela impress?o daquilo que havia testemunhado em Berlim, levaram-me a iniciar a pesquisa para este livro assim que regressei ? Cidade do M?xico, local onde vivo actualmente.

Alguns meses mais tarde, abandonei o emprego que tinha num banco de investimento, a fim de poder explorar ent?o as rela??es entre a m?sica e a coexist?ncia pac?fica no mundo. Na verdade, n?o faz muito sentido manter um emprego bem pago se n?o nos traz real satisfa??o. Para mais, tinha um assunto que me interessava explorar profundamente, sentindo-me aben?oado pela oportunidade de poder documentar os importantes projectos sociais descritos neste livro. No total, para fazer a pesquisa necess?ria para escrever este livro e para realizar o document?rio que o acompanha, percorri mais de 24 000 mil quil?metros, num per?odo de tr?s anos -- o equivalente a tr?s viagens de ida e volta entre Londres e Nova Iorque.

Como vivemos numa sociedade cada vez mais globalizada, a minha ambi??o era explorar a not?vel m?sica que ? feita em diferen-

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tes partes do mundo, dando uma vis?o transversal de como as pessoas ultrapassam dificuldades sociais atrav?s da m?sica e, ainda, tra?ar paralelos entre as obras alcan?adas em culturas aparentemente muito diferentes. Estava particularmente desejoso de falar com aqueles que acolhem pessoas diferentes de si pr?prias. Durante a viagem, descobri que a m?sica ? um condutor perfeito para este tipo de coexist?ncia e que por vezes pode surgir nos locais mais inesperados.

Este livro est? dividido em tr?s sec??es: m?sica e inclus?o social; m?sica e guerra; e programas de educa??o musical. A primeira sec??o mostra-nos m?sicos que quebram preconceitos sociais redutores e que activamente procuram aproximar-se dos outros atrav?s de mensagens de paz e de fraternidade -- por exemplo, um grande grupo folcl?rico turco que celebra a diversidade lingu?stica e cultural, com s?culos de exist?ncia, mas que, em resultado de pol?ticas governamentais, foi reprimida at? meados dos anos 90. Em virtude disso, a Turquia assiste hoje a um renascimento da m?sica tradicional. Outro exemplo vem da Universidade de Joanesburgo, onde fiquei a conhecer o trabalho de um coro inter-racial que promove o respeito m?tuo, perante tens?es raciais que ainda existem, mesmo decorridos vinte anos sobre o fim do apartheid.

A sec??o sobre m?sica e guerra contempla um conjunto de projectos musicais que se estendem desde a Cambodian Living Arts (Artes Vivas Cambojanas) -- um projecto que activamente procura reavivar formas de m?sica praticamente aniquiladas durante o genoc?dio dos anos 1970 -- ? Mitrovica Rock School (Escola de Rock de Mitrovica), no Kosovo -- uma escola que conta com duas filiais, numa cidade separada por tens?es pol?ticas. Os m?sicos s?rvios e kosovares desta escola s?o obrigados a ensaiar em filiais diferentes, situadas em pontos distintos da cidade. Apenas podem tocar juntos, ao vivo, quando se encontram fora do pa?s. ? dif?cil imaginar que estes jovens tenham de sacrificar tanto para poderem tocar juntos, mas esta continua a ser uma realidade em algumas partes do mundo.

A sec??o final analisa programas musicais desenvolvidos no Brasil, Israel e Estados Unidos. Estes s?o programas que, n?o s? ajudam os jovens a desenvolver o seu talento musical e a ocupar o tempo livre com algo de produtivo, como ainda, de modo igualmente importante,

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lhes permitem encontrar a sua pr?pria identidade. O programa Heartbeat, de Israel, junta jovens judeus e palestinianos, sendo um caso de sucesso n?o s? em Israel como tamb?m na Alemanha e nos Estados Unidos da Am?rica. O programa Mariachi da Universidade do Norte do Texas, que ensina m?sica tradicional mexicana, mant?m um ?mpeto not?vel seis anos ap?s a sua cria??o. O programa Escola de Samba dos Meninos do Morumbi, em S?o Paulo, fornece n?o s? um escape para os aspirantes a m?sicos, como ainda refei??es e apoio comunit?rio. No todo, s?o aqui tratados temas sobre o poder da m?sica recolhidos em quinze pa?ses e territ?rios distintos, proporcionando uma vis?o diversificada das importantes formas de fazer m?sica por todo o mundo.

Muitas das entrevistas levadas a cabo no M?dio Oriente e na regi?o circundante foram efectuadas durante as filmagens do document?rio de longa-metragem designado M?sica e Coexist?ncia, exibido pela primeira vez em Mar?o de 2014. Ao contr?rio do filme que tem um enfoque principal no M?dio Oriente, o livro explora o tema da m?sica e coexist?ncia de modo mais amplo, com o fim de demonstrar que a m?sica pode ajudar a criar caminhos e a construir pontes entre culturas diferentes e at? em continentes distintos. Trata-se de ir ? procura dos desconhecidos que dedicam as suas vidas a fazer a diferen?a atrav?s da m?sica.

Este livro ? tamb?m um di?rio de viagem. Espero ser capaz de transmitir os inerentes altos e baixos da sobreviv?ncia com um or?amento limitado, bem como transmitir a dif?cil realidade da vida de tanta gente espalhada pelo mundo. Aprendi a ser menos cr?tico em rela??o aos outros, embora reconhe?a que ainda tenho um longo caminho a percorrer. Por exemplo, costumava odiar m?sica filarm?nica mexicana, comparando-a normalmente com a m?sica cl?ssica e criticando-a por soar desafinada ou fora de tempo. Esta n?o era uma compara??o justa, pois o report?rio cl?ssico obedece a um paradigma diferente. O mais importante ? a hist?ria do m?sico e o seu prop?sito. No caso da m?sica filarm?nica mexicana a minha percep??o mudou quando ouvi uma banda de vinte e oito elementos, provenientes de uma regi?o remota no sul do M?xico, que utiliza a m?sica para preservar as suas pr?ticas tradicionais e a l?ngua ind?gena. Isto ? muito

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mais importante, e relevante, do que apenas tocar dentro dos par?metros estritamente definidos para m?sica cl?ssica. E al?m disso, quem sou eu para criticar?

Tornei-me cauteloso quanto ao excesso de ?nfase na forma e na est?tica e ? import?ncia atribu?da ?s pessoas ditas cultas. A verdade ? que ler as obras completas de Shakespeare ou conhecer de mem?ria todas as sinfonias e concertos de Mozart n?o torna algu?m, por si s?, uma pessoa melhor. O anti-semita Richard Wagner ou o cantor Simon Bikundi, ruand?s que ajudou a incitar ? viol?ncia e a propagar o genoc?dio no Ruanda, poderiam, de acordo com certas defini??es, ser considerados bons compositores. Por?m, nenhuma pessoa razo?vel poderia dizer que eram misericordiosos ou sequer boas pessoas simplesmente pelo facto de terem um conhecimento musical mais profundo do que uma pessoa comum.

Vivendo actualmente numa sociedade globalizada, o papel da m?sica no mundo torna-se cada vez mais relevante se tivermos o desejo de desenvolver uma empatia mais forte pelos outros. Seguramente, este ? um ingrediente necess?rio para evitar guerras, genoc?dios, fomes e desastres ecol?gicos, pois muitas destas trag?dias s?o, na verdade, evit?veis. Creio que dev?amos optar por reconhecer, respeitar e acolher todos ? nossa volta e esfor?armo-nos para alcan?ar fins comuns.

As tradi??es musicais variam amplamente por todo o mundo. O meu objectivo, por?m, nunca foi o de fornecer um comp?ndio etno-musical abrangendo cinco continentes. Isso requereria uma equipa de peritos e, para mais, existem j? v?rios livros publicados sobre etno-musicologia, bem como estudos acad?micos que fazem um excelente trabalho na documenta??o de tradi??es musicais e das suas rela??es com a sociedade. Em vez disso, quero proporcionar um vislumbre da vida de m?sicos provenientes de diferentes estratos sociais, tanto jovens como experientes, percorrendo assim um espa?o amplo de contextos ?tnicos e religiosos. Convido o leitor, a acompanhar-me na jun??o destes pontos e a apreciar as semelhan?as entre pessoas de diferentes partes do mundo, e ao mesmo tempo a reconhecer as suas diferen?as, que n?o devem tamb?m ser ignoradas.

O trabalho de campo necess?rio para um projecto deste tipo ? algo de perp?tuo e h? muitos outros m?sicos que poderiam ter sido

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