Tapete de Pedra - Inicio



este livro destina-se ao uso exclusivo de deficientes visuais, n?opodendo ser utilizado com quaisquer fins lucrativos. ignorar essaadvertência significa violar a lei n? 9610, que regulamenta os direitosautorais no brasil.nota: este livro foi scanneado e corrigido por carlos ant?nio. seu uso éexclusivo de deficientes visuais.urupêsmonteiro lobatoobras completas demonteiro lobatoliteratura geralliteratura infanto-juvenilaméricaaritmética da emíliaa barca de gleyreca?adas de pedrinhocartas de amora chave do tamanhocartas escolhidasdom quixote das crian?as'cidades mortasos doze trabalhos de hérculesconferências, artigos e cr?nicasemília no país da gramáticacríticas e outras notasfábulaso esc?ndalo do petróleo e ferrogeografia de dona bentaidéias de jeca tatuhans stadenliteratura do minaretehistória das inven??esmr. slang e o brasil e o problemahistórias de tia nastáciavitalhistórias diversasmundo da lua e miscel?neahistórias do mundo para as crian?asna antevésperamemórias da emílianegrinhao minotauroa onda verdepeter panprefácios e entrevistaso picapau amareloo presidente negroo po?o do viscondeurupêsa reforma da naturezareina??es de narizinhoo saciser?es de dona bentaviagem ao céu***monteiro lobatourup?seditora brasiliensecopyright - by herdeiros de monteiro lobatonenhuma parte desta publica??o pode ser gravada,armazenada em sistemas eletr?nicos, fotocopiada,reproduzida por meios mec?nicos ou outros quaisquersem autoriza??o prévia da editora.isbn 85-11-18042-73 7." edi??o revisada, 19944" reimpress?o, 1998revis?o: henrique s. neves, renato j. bento,agnaldo a. oliveira, ivete b. santoscapa: maria eliana paivadados internacionais de cataloga??o na publica??o (cip)(c?mara brasileira do livro, sp, brasil)lobato, monteiro, 1882-1948urupês / monteiro lobato, - 37." ed. revisada - s?o paulobrasiliense, 1994.isbn 85-11-18042-71. contos brasileiros1. título94-2845cdd-869.935?ndices para catálogo sistemático:1. contos : século 20 : literatura brasileira 869-9352. século 20 : contos : literatura brasileira 869.935editora brasiliense s.a.matriz: rua atucuri, 318 - tatuapé - s?o paulo - spcep: 03411-000fone/fax: (011) 6942-0545vendas/dep?sito: rua mariano de souza, 664 - tatuapé - s?o paulo - spcep: 03411-090fones: (011) 293-5858, 293-0357, 6942-8170, 6191-2585fax: (011) 294-0765***sumárionota dos editores 7ligeira nota sobre a ortografia de monteiro lobato 9monteiro lobato e a academia 13urup?sos faroleiros 19o engra?ado arrependido 33a colcha de retalhos 45a vingan?a da peroba 55um suplício moderno 71meu conto de maupassant 83"pollice verso" 87bucólica 99o mata-pau 107bocatorta 117o comprador de fazendas 131o estigma 145prefácio da 2? edi??o de uru pês 157velha praga 159urupês 165nota dos editoreseste livro de monteiro lobato, cuja gênese vem descritan'a barca de gleyre, foi bafejado pelas circunst?nciase tornou-se em nossa literatura mais que um livro do tipocomum, pois emitiu pseudópodos, influenciou a indústria,deu palavras e express?es à língua, hoje dicionarizadas.c?ndido de figueiredo aumentou o seu dicionário comsetenta e tantas express?es da língua brasileira tomadas deurupês, com as defini??es dadas por lobato; e a língua nobrasil enriqueceu-se com a palavra "jeca" e derivados, jános dicionários. o livro também afetou a indústria nacional, dando margemà cria??o duma empresa impressora eeditora que se desenvolvia vertiginosamente, sofreu umcolapso e ressurgiu, transformada na companhia editoranacional, a maior do brasil e uma das maiores da américado sul. os servi?os que essas duas editoras, filhas de urup?s,prestaram à cultura nacional s?o infinitos e se projetar?oindefinidamente, no futuro. cremos que, em literatura nenhuma, em temponenhum, um simples livro de contos deude si tantas conseqüências diretas e indiretas.ligeira nota sobre a ortografiademonteiro lobato(entrevista com os editores)monteiro lobato pensa em tudo por si próprio. muitoantes de oficializada a atual ortografia, já ele tinha reagidocontra a etimologia - e agora reage contra os acentos. emtudo quanto escreve, e nas tradu??es, n?o usa acentos, afora os antigos.qual a raz?o dessa ojeriza? interpelamo-lo ea sua resposta merece men??o.- "n?o é ojeriza. ? o horror que eu tenho à imbecilidade humana sobqualquer forma que se apresente. há umalei natural que orienta a evolu??o de todas as línguas: a leido menor esfor?o. se eu posso dizer isto com o esfor?o deum quilogr?metro, por que dizê-lo com o esfor?o de dois?essa lei norteia a evolu??o da língua e foi o que fez comque caíssem as inúteis letras dobradas, os hh mudos, etc. areforma ortográfica veio apenas apressar um processo em curso. por simesma a palavra phthysica passou a tísica, e o phjá havia sido desmontado pelo f e assim seria em tudo.essa grande lei do menor esfor?o conduz à simplifica??o daortografia, jamais à complica??o - e os tais acentos a tortoe a direito que os reformadores oficiais impuseram à novaortografia vêm complicar, vêm contrariar a lei da evolu??o!s?o, pois, uma coisa incientífica, tola, imbecil, cretinizante eque deve ser violentamente repelida por todas as pessoasdecentes. escrever 'há' ou 'êsse', ou '?utro', ou 'freqüência',só porque uns ignaríssimos 'alhos' gramaticais resolveramassim, é ser covarde, bobo. que é a língua dum país? ? amais bela obra coletiva desse país. ou?a este pedacinho dacarolina micha?lis: 'a língua é a mais genial, original enacional obra d'arte que uma na??o cria e desenvolve. nestedesenvolve está a evolu??o da língua. uma língua está sempre sedesenvolvendo no sentido da simplifica??o, e a reforma ortográfica foiapenas um simples apressar o passo desse desenvolvimento. mas a cria??ode acentos novos, comoo grave e o trema, bem como a inútil acentua??o de quasetodas as palavras, n?o é desenvolvimento para a frente esim complica??o, involu??o e, portanto, coisa que só merecepau, pau e mais pau'."- nega ent?o a utilidade do acento?- "está claro, homem! pois n?o vê que a maior daslínguas modernas, a mais rica em número de palavras, amais falada de todas, a de mais opulenta literatura - alíngua inglesa - n?o tem um só acento? e isto teve suaparte na vitória dos povos de língua inglesa no mundo, domesmo modo que a excessiva acentua??o da língua francesa foi parte devulto na decadência e queda final da fran?a.o tempo que os franceses gastaram em acentuar as palavras foi tempoperdido - que o inglês aproveitou paraempolgar o mundo. ora, depois dessa formidável demonstra??o da coisadesastrosa que é o acento, virem os nossosgramáticos decuplicar a nossa acentua??o, é coisa que euexplico só dum modo: quinta-colunismo! essa gente é suspeita! essa gentequer arrastar este país a um imenso desastre futuro! quer que tenhamos oignominioso destino dafran?a, a pobre vítima do excesso de acentos!"- mas a acentua??o já está imposta por lei.- "n?o há lei humana que dirija uma língua, porquelíngua é um fen?meno natural, como a oferta e a procura,como o crescimento das crian?as, como a senilidade, etc. seuma lei institui a obrigatoriedade dos acentos, essa lei vaifazer companhia às leis idiotas que tentam regular pre?os emais coisas. leis assim nascem mortas e é um dever cívicoignorá-las, sejam lá quais forem os paspalh?es que as assinem. a lei ficaaí e nós, os donos da língua, o povo, vamosfazendo o que a lei natural da simplifica??o manda. trema!... acentograve!... '?utro' com acento circunflexo, comose houvesse meio de alguém enganar-se na pronúncia dessa palavra!...imbecilidade pura, meu caro. e a rea??o contra o grotesco acentismo jácome?ou. os jornais n?o o aceitam e os escritores mais decentes idem. aaceita??o doacento está ficando como a marca, a característica do carneirismo, doservilismo a tudo quanto cheira a oficial. eu, demim, solenemente o declaro, n?o sou 'mé', e portanto n?oadmito esses acentos em coisa nenhuma que eu escreva,nem leio nada que os traga. se alguém me escreve umacarta cheia de acentos, encosto-a. n?o leio. e se vem alguma com trema,devolvo-a, nobremente enojado..."até a 36? edi??o, a ortografia de monteiro lobato foirespeitada. a partir da 37? edi??o, optou-se por seguir ovocabulário ortográfico da língua portuguesa.monteiro lobato e a academiaem 1925, monteiro lobato inscreveu-se candidato a umavaga da academia brasileira e obteve 14 votos. mais tarde,inscreveu-se de novo mas arrependeu-se e, em carta aopresidente carlos de laet, retirou a sua apresenta??o. enunca mais pensou em academia.em 1944, um grupo de acadêmicos tomou a iniciativade meter monteiro lobato lá dentro, pelo processo novo daindica??o espont?nea, processo que se havia inauguradocom a indica??o, por dez acadêmicos, do sr. getúlio vargas.e múcio le?o, presidente da academia brasileira, enviou amonteiro lobato a seguinte comunica??o:"rio de janeiro, 9 de outubro de 1944. ilustre amigodr. monteiro lobato:tenho o prazer de comunicar-lhe que, em documentoapresentado à presidência da academia brasileira de letras, em data de 7do corrente e subscrito pelos srs. olegário mariano, menotti del picchia, viriato correia, manuelbandeira, alceu amoroso lima, cassiano ricardo, múciole?o, oliveira viana, barbosa lima sobrinho e clementinofraga, foi o nome de v. exa. indicado para a substitui??odo nosso saudoso e querido companheiro alcides maia. deacordo com o regimento em vigor, cabe-me trazer a v. exa.esta comunica??o.ainda de acordo com o regimento, a inscri??o de v.exa. se tornará efetiva, nos termos do art. 18, parágrafoprimeiro, mediante carta que v. exa. dentro de dez dias,terá a bondade de enviar a esta presidência, dizendo queaceita a indica??o e que deseja portanto concorrer à vaga.queira receber os protestos de minha grande estima esincera considera??o.(assin.) múcio le?opresidente da academia brasileira de letras".a resposta de monteiro lobato poderá constituir umasurpresa para muita gente, mas n?o para os que com eleprivam e sabem da sua extraordinária coerência e fidelidade a si mesmo. ?a seguinte:s. paulo, 11 de outubro de 1944.sr. múcio le?od.d. presidente da academia brasileira:acuso o recebimento da carta de 9 do corrente, na qualme comunica que em documento apresentado à academiabrasileira, subscrito por dez acadêmicos, foi meu nomeindicado para a substitui??o de alcides maia; e que nostermos do regimento devo declarar que aceito a indica??oe desejo concorrer à vaga.esse gesto de dez acadêmicos do mais alto valor intelectual comoveu-meintensamente e a eles me escravizou. vale-me por aclama??o - honra comque jamais sonhei e estáacima de qualquer merecimento que por acaso me atribuam. mas o regimentoimp?e a declara??o de meu desejode concorrer à vaga, e isso me embara?a. já concorri àselei??es acadêmicas no bom tempo em que alguma vaidadesubsistia dentro de mim. o perpassar dos anos curou-me ehoje só desejo o esquecimento de minha insignificante pessoa. submeterme,pois, ao regimento seria infidelidadepara comigo mesmo - duplicidade a que n?o me atrevo.de forma nenhuma esta recusa significa desapre?o àacademia, pequenino demais que sou para menosprezar t?oalta institui??o. no ?nimo dos dez signatários n?o paire amenor suspeita de que qualquer motivo subalterno me levaa este passo. insisto no ponto para que ninguém veja duplosentido nas raz?es de meu gesto... n?o é modéstia, pois n?osou modesto; n?o é menosprezo, pois na academia tenhograndes amigos e nela vejo afina flor da nossa intelectualidade.? apenas coerência; lealdade para comigo mesmo e paracom os próprios signatários; reconhecimento público de querebelde nasci e rebelde pretendo morrer. pouco social quesou, a simples idéia de me ter feito acadêmico por agênciaminha me desassossegaria, me perturbaria o doce nirvanismo ledo e cego emque caí e me é o clima favorável à idade.do fundo do cora??o agrade?o a generosa iniciativa; eem especial agrade?o a cassiano ricardo e menotti o sincero empenhodemonstrado em me darem tamanha provade estima. fa?o-me escravo de ambos. e a tudo atendendo,considero-me eleito - mas numa nova situa??o de academicismo: o acadêmicode fora, sentadinho na porta do petittrianon com os olhos reverentes pousados no busto dofundador da casa e o nome dos dez signatários gravadosindelevelmente em meu imo. fico-me na soleira do vestíbulo. malcomportadoque sou, reconhe?o o meu lugar. o bomcomportamento acadêmico lá de dentro me dá afli??o...pe?o, senhor presidente, que transmita aos dez signatários os protestosda minha mais profunda gratid?o e aceiteum afetuoso abra?o deste seuadmirador e amigomonteiro lobatoos faroleiros- navio?dava azo à dúvida uma luz vermelha a piscar na escurid?o da noite.escurid?o, n?o direi de breu, que n?o é obreu de sobejo escuro para referir um negror daqueles. decego de nascen?a, vá.céu e mar fundia-os um só carv?o, sem fresta nempique além da pinta vermelha que, súbito, se fez amarela.- lá mudou de cor. e farol.e, como era farol, a conversa recaiu sobre faróis.eduardo interpelou-me de chofre sobre a idéia que eudeles fazia.- a idéia de toda a gente, ora essa!- quer dizer, uma idéia falsa. "toda a gente" é ummonstro com orelhas d'asno e miolos de macaco, incapazduma idéia sensata sobre o que quer que seja. tens nacabe?a, respeito a farol, uma idéia de rua recebida do vulgoe nunca recurihada na matriz das impress?es pessoais. erro.- confesso-me capaz de abrir a boca a um auditório decasaca, se me desse na telha discursar sobre o tema; masn?o afian?o que o farol descrito venha a parecer-se comalgum...- pois eu te asseguro, sem fazer pouco no teu engenho, que talconferência, ouvida por um faroleiro, poria ohomem de olho parvo, a dizer como o outro: se percebo,sebo!- acredito. mas perceberia melhor uma tua? - retorqui abespinhado.- ? de crer. já vivi uma inesquecível temporada nofarol dos albatrozes e falaria de cadeira.- viveste em farol?!... - exclamei com espanto.- e lá fui comparsa numa tragédia noturna de arrepiaros cabelos. o escuro desta noite evoca-me o tremendo drama...estávamos ambos de bru?os na amurada do orion, emhora propícia ao esbagoar dum dramalh?o inédito. esporeado nacuriosidade, provoquei-o.- vamos ao caso, que estes negrumes clamam por espectros que os povoem. ?calamidade à shakespeare ou àibsen?- assina o meu drama um nome maior que o de shakespeare...-? ? ?- ... a vida, meu caro, a grande mestra dos shakespeares maiores emenores.eduardo come?ou do princípio.- o farol é um romance. um romance iniciado naantiguidade com as fogueiras armadas nos promontóriospara norteio das embarca??es de remo e continuado séculosem fora até nossos possantes holofotes elétricos. enquantosubsistir no mundo o homem, o romance "farol" n?o conhecerá epílogo.monótono como as calmarias, embrecham-se nele, a espa?os, capítulos detragédia e loucura - pungentes gravuras de doré quebrando a monotonia deumdiário de bordo. o caso dos albatrozes foi um deles. gerebita meteu-se nofarol aos vinte e três anos. ? raro isso.- quem é gerebita?- sabê-lo-ás em tempo. ? raro isso porque no geral sóse metem nas torres homens maduros, quarent?es batidospela vida e descrentes das suas ilus?es. deixar a terra naquadra verdolenga dos vinte anos é apavorante. a terra!...nós mal damos tento da nossa profunda adapta??o ao meioterreno. a sua fixidez, o variegado de aspectos, o bulíciohumano, a cidade, os campos, a mulher, as árvores... conhecem osfaroleiros melhor do que ninguém o valor dessas teias. enlurados numbloco de pedra, tudo quanto paranós é sensa??o de todos os instantes, neles é saudade edesejo. cessam os ouvidos de ouvir a música da terra, rumorejo dearvoredo, vozes amigas, barulho de rua, as mile uma notas duma polifonia que nós sabemos que o é, eencantadora, unicamente quando a segrega??o prolongadanos ensina a lhe conhecer o valor. cessam os olhos de reveras imagens que desde a meninice lhes s?o habituais. paraos ouvidos só há ali, dia e noite, ano e ano, o marulho dasondas às chicotadas no enrocamento da torre; e para a vista,a eterna massa que ondula, ora torva, ora azul. variantesúnicas, as velas que passam de largo, donairosas como gar?as, ou ostransatl?nticos penachados de fumo. figura avida de um homem arrancado à querência e assim posto,qual triste galé, dentro duma torre de pedra, grudada comocraca a um ilhéu. terá poesia de longe; de perto é alucinante.- mas o gerebita...- uma leitura de kipling despertara-me a curiosidadede conhecer um farol por dentro.- o perturbador do tráfego...- parabéns pela argúcia. foi justamente a história dodowse o ponto inicial do meu drama. esse desejo incubou-se-me cá dentro àespera d'ocasi?o para brotar.certo dia fui espairecer ao cais - e lá estava, de m?osàs costas, a seguir o v?o dos jo?o-grandes e a notar a gamados verdes luzentes que à sombra dos barcos ondeia naágua represada dos portos, quando uma lancha abicou, e videscer um homem de fei??es duras e pele encorreada. aopassar por um magote de catraeiros, um deles chasqueouem tom insinuativo:- "gerebita, como vai a maria rita?"o desembarcadi?o rosnou um palavr?o de grosso calibre, e seguiu caminho,de sobrecenho carregado.interessou-me aquele tipo.- "quem é?", indaguei.- "pois quem há de ser sen?o o faroleiro dos albatrozes? n?o vê alancha?"de fato, a lancha era do farol. a velha idéia deu-mecotoveladas: é hora! fui-lhe no encal?o.- "sr. gerebita..."o homem entreparou, como admirado de ouvir-se nomear por bocadesconhecida. emparelhei-me com ele e,enquanto andávamos, fui-lhe expondo os meus projetos.- "n?o pode ser", respondeu; "o regulamento proíbesapos na torre. só com ordem superior."ora, eu tenho corrido mundo, sei que marosca é essa deordens superiores. meti a m?o no bolso e cochichei-lhe oargumento decisivo. o faroleiro relutou uns instantes, mascorrompeu-se mais depressa do que esperei. guardou odinheiro e disse:- "procure o dunga, patr?o da gaivota branca, terceiroarmazém. diga-lhe que já falou comigo. de quinta-feira emdiante. e bico, veja lá!"prometi-lho caladíssimo, e tornei ao cais à cata do dunga. que sim - foia resposta do catraeiro, ilhéu palavroso,logo que expus o negócio -' já fizera isso certa vez a"outro maluco" e sabia prender a língua para n?o atanazara vida aos amigos. e como me informasse do faroleiro:- "? o gerebita, d'apelido ganho no purus, onde serviu como grumete. aodepois se meteu na lanterna, p'r'amor d'amores, o alarve, como sefaltassem elas por aí, ebem catitas. mulheres! a mim é que n?o me empecem, n?o,as songuirihas. o demo que as tolha que eu...e foi pelas mulheres além, a dar de rijo, com raz?es nemmelhores nem piores que as de schopenhauer.no dia aprazado, antemanh?, a gaivota largou de rumoao farol. saltei num rude atracadouro de difícil abordagem,e encontrei o faroleiro ocupado em polir os metais da lanterna. recebeumede boa sombra, largando o esfreg?o parafazer as honras da casa. examinei tudo, dos alicerces aolanternim, e à hora do almo?o já entendia de farol mais queuma enciclopédia. gerebita deu trela à língua e falou doofício com melancólica psicologia. também contou sua vidadesde menino, a grumetagem no purus, sua paix?o pelo mare por fim a entrada para o farol aos vinte e três anos de idade.- "por que assim t?o mo?o?"- "caprichos do cora??o, má sorte, coisas...", respondeu com ar triste; eacrescentou após uma pausa, mudandode tom:- "pois a vida é cá isto que vê. boazinha, hein? entretanto, boa ou má,temos, os faroleiros, um orgulho: semnós, essa bicharada de ferro que passeia nas águas fumando seus dois,seus três charutos..."- "lá vem um!" - interrompeu-se, fisgando com aluneta uma fuma?a remota.- "bandeira alem?... duas chaminés... rumo sul... há deser um 'cap' - o trafalgar, talvez. seja lá que diabo for, vácom deus. mas, como ia dizendo, sem os faroleiros a manobrarem a'óptica', esses comedores de carv?o haviam derachar à toinha aí pelos bancos de areia. basta cair a cerra??oe já se p?em tontos, a urrar de medo pela boca das sereias,que é mesmo um cortar a alma à gente. porque ent?o nemfarol nem caracol. ? a cegueira. navegam com a morte noleme. fora disso, salva-os o foguinho lá de cima. pouco antesde minha entrada para aqui houve desgra?a. um cargueiroda bremen rachou o bico ali no capel?o... quem é o capel?o? ah! ah! ah! ocapel?o... pois o capel?o é o raio daterceira pedra a boreste. s?o três deste lado, a menina, que éa primeira, a curutuba, que é a do meio. a criminosa é ocapel?o, que reponta mais ao largo e só mostra a coroa nasgrandes vazantes. cá a bombordo ainda há duas, a virgeme a maldita, onde bateu o cargueiro rotterdam."- "? aquela lisinha, acolá?"- "uma coitada que nem nome tem. ? mansa, estámuito perto da terra, n?o faz mal a navio. ali mora umanequim (2), bichanca de tamanho do diabo, que gosta devirar canoas. mas, aqui para nós, mo?o, isso é embroma??o.peixe mora em todo o mar, n?o tem toca como bicho deterra. ? abus?o de pescador. quando há mar, n?o se enxerga nada por ali;mas se a água é serena e vem yindo avazante, vai aparecendo um lombo de pedra lisa com jeitode peixe. passa um pescador atolambado, vê aquilo de longe. '? anequim! ?anequim!' e toca a safar, com o med?on'alma. se acontece embravecer a água, e dá temporal, e acanoa vira: 'qu'é de fulano?' tá, tá, tá, foi o anequim! todaa gente pega, feito mulher velha. 'foi o anequim do farol!'ora aí está como s?o as coisas. há muito anequim etintureira (3) por aqui. onde é mar sem ca??o? mas dizer queum tal mora aqui ou ali, isso é embroma."e na sua pinturesca linguagem de marítimo, que àsvezes se tornava prodigiosamente técnica, narrou-me todaa história daquelas paragens malditas. falou de como, segundo a tradi??o,se foram batizando os arrecifes; falou doscrimes de cada um; das hecatombes periódicas de avesnoturnas que, cegadas pela luz, batem de peito contra osvidros da lanterna, juncando o ch?o de corpinhos latejantes;das medonhas tormentas nas quais o farol estremece comoa tiritar de pavor. de que n?o falou gerebita naquele inesquecível dia?- "e o ajudante? tem-no cá?", perguntei.o rosto do meu faroleiro mudou de express?o. vi derelance que eram inimigos.- "? aquele estupor que lá pesca", disse, apontando dajanela um vulto imóvel, acocorado num penedo. "está aapanhar garoupinhas. ? o cabrea. mau companheiro, mauhomem...entreparou. percebi que mascava uma confidência difícil. mas aconfidência denunciou-se apenas. gerebita sacudiu a cabe?a e murmuroucomo de si para si:- "está cá de pouco, e é o único homem no mundo quen?o podia cá estar. já reclamei do capit?o do porto, já mostrei o perigo.mas, qual!..."estranha criatura, o homem! insulados do mundo naquela frágua, ambosnáufragos da vida, o ódio os separava...n?o faltavam no farol, entretanto, acomoda??es para asfamílias dos seus guardi?es. por que n?o as tinham ali?seria um bocado de mundo a lenir as agruras do emparedamento. interpeleio;gerebita retrucou-me de modo enviesado.- "família n?o tenho, isto é, tenho e n?o tenho. tenho,porque sou casado, e n?o tenho porque... histórias! estascoisas de família é bom que fiquem com a gente."notei de novo que a pique duma revela??o mascava osegredo por desconfian?a ou pudor. suas fei??es endureceram. sombras másanuviaram-lhe a fisionomia. e mais torvo ainda me pareceu quando cabreaentrou, sobra?andoum balaio de pescado. tipo de má cara, passou em direitura à cozinha semnos volver um olhar. mal se sumiu, gerebita exclamou: "raio do diabo!" -assentando num caixoteexpiatório um murro de fender pinho. depois:- "o mundo é t?o grande, há tanta gente no mundo, ecai-me aqui justamente o único ajudante que eu n?o podiater..."- "por quê?"?- "por quê?... porque... é um louco."entre o primeiro e o segundo "porquê" notei transi??oradical. dúbio o primeiro, o segundo afigurou-se-me resoluto, comoiluminado pelo clar?o duma idéia brotada nomomento.desde esse dia nunca mais o faroleiro abandonou otema da loucura do outro. demonstrava-ma de mil maneiras.- "e aqui onde até os s?os perdem a tramontana",argumentava ele, "um já assim rachado de telha aos trêspor dois rebenta como bomba no fogo. eu jogo que ele n?ovara o mês. n?o vê seus modos?"metade por sugest?o, metade por observa??o leviana,razoável me pareceu a profecia; e como sem cessar gerebitamalhasse na mesma tecla, acabei por convencer-me de queo casmurro ajudante era um fadado ao hospício, com poucotempo de equilíbrio nos miolos.um dia gerebita abordou a quest?o nestes termos:- "quero que o senhor me resolva um caso. est?o doishomens numa casa; de repente um enlouquece e rompe,como ca??o esfomeado, para cima do outro. deve o outrodeixar-se matar como carneiro ou tem o direito de atolar afaca na garganta do bicho?"era por demais clara a consulta. respondi como umrábula positivo:- "se cabrea enlouquecesse e o agredisse, matá-lo seria um direitonatural de defesa - n?o havendo socorro àm?o. matar para n?o morrer n?o é crime - mas isto só emúltimo caso, você compreende."- "compreendo, compreendo", respondeu-me distraidamente, como quem lásegue os volteios duma idéia secreta; e depois de longa pausa: "seja oque deus quiser murmurou entre si, suspirando e recaindo em cismas.deixei-me ficar à janela a ver cair a noite. nada maistriste do que as ave-marias no ermo. a treva espessava aságuas e absorvia no céu os derradeiros palores da luz. nopoente, um leque aluarado enrubescia nas varetas, com dedadas sangrentasde nuvens a barrá-lo de listr?es horizontais.triste...a ardósia do mar; as primeiras estrelinhas entreluzindoa medo; o marulho na pedra, tchá, tchá, compassado, eterno... a almaconfrangeu-se-me de angústia. vi-me náufrago, retido para sempre numnavio de pedra, grudado comodesconforme craca na pedranceira da ilhota. e pela primeira vez na vidasenti profundas saudades dessa coisa sórdida, a mais reles de quantasinventou a civiliza??o - o"café", com o seu tumulto, a sua poeira, o seu bafio atabaco e a sua freguesia habitual de vagabundíssimos "agentes denegócios"...correram dias. minto. no vazio daquele dessaboridoviver no ermo o tempo n?o corria - arrastava-se com alentid?o da lesma por sobre ch?o liso e sem fim. gerebitatornara-se enfadonho. n?o mais narrava pinturescos incidentes da sua vidade marujo. aferrado à idéia fixa daloucura do cabrea, só cuidava de demonstrar-me os seusprogressos. fora desse tema sinistro, sua ocupa??o era seguir de olhos osnavios que repontavam ao largo, até vê-lossumirem-se na curva do horizonte.velas, poucas alvejavam, tirante barquinhas de pescadores. mas uma quesurgisse lá nos levava os olhos e aimagina??o. como se casa bem com o mar o barco de vela!e que sórdido barat?o craquento é ao pé dele o navio a vapor!escunas, corvetas, pequeninos cutters, fragatas, lugres,brigues, iates... o que lá vai passado de leveza e gra?a!...substituem-nas, às gar?as leves, os feios escaravelhos deferro e piche; a elas, que viviam de brisas, os negros comedores decarv?o, bicharocos que mugem roncos de touroenrouquecido.progresso amigo, tu és c?modo, és delicioso, mas feio...que fizeste da coisa linda que é a vela enfunada? do barcoà antiga, onde ressoavam can??es de maruja, e todo seenleava de cordame, e trazia gajeiro na gávea, e lendas deserpentes marinhas na boca dos marinheiros, e a nossasenhora dos navegantes em todas as almas, e o medo dassereias em todas as imagina??es?desfez-se a poesia do reino encantado de anfitrite aoronco do lusit?nias, hotéis flutuantes com gar?ons em vezde "lobos-do-mar", incaracterísticos, cosmopolitas, sem donaire, semcapit?es de suí?as, pitorescos no falar como seiscentos milh?es decaravelas. o fumo da hulha sujou a aquarela maravilhosa que desde hanon eulisses vinha o veleiropintando sobre a tela oce?nica...- se paras o caso dos loucos e te metes por intermezzoslíricos para uso de meninas olheirudas, vou dormir. voltaao farol, romantic?o de má morte.- eu devia castigar o teu prosaísmo sonegando-te oepílogo do meu drama, ó filho do "café" e do carv?o!- conta, conta...certa tarde, gerebita chamou minha aten??o para o agravamento da loucurade cabrea, e aduziu várias provasconcludentes.- "queira deus n?o seja hoje!..."- "tens medo?"- "medo? eu? de cabrea?"queria que visses a estranha express?o de ferocidadeque lhe endureceu o rosto!...a conversa parou aí. gerebita chupava cachimbadasnervosas, fechado de sobrecenho como quem rumina umaidéia fixa. deixou-me, e logo em seguida subiu. como anoitecesse,recolhi-me pouco depois e deitei-me. dormi e sonhei. sonhei um sonhoguinholesco, agitadíssimo, com lutas, facadas, o diabo. lembro-me que,agredido por umfacínora, desfechei contra ele cinco tiros de revólver; asbalas, porém, grudaram-se à parede e deram de ressoardum modo que me despertou. mas acordado continuei aouvir o mesmo barulho, vindo de cima, da lanterna.pressinto a catástrofe esperada. salto da cama e agu?o oouvido: barulho de luta. corro à escada, galgo-a aos trêsdegraus e no topo esbarro com a porta fechada. tento abrila: n?o cede.escuto: era de fato luta. rolavam corpos peloch?o, fazendo retinir os vidros da lanterna, e ouvia-se umresfolego surdo, entremeado de embates contra os móveis.trevas absolutas. nenhuma réstia de luz coava para a escada.minha situa??o era esquerda. ficar ali, inútil, quandoportas adentro dois homens se entrematavam? permaneciaeu nessa dubiedade, quando choque violento escancaroume a porta. umclar?o de sol chofrou-me os olhos. senti naspernas um tranco - e rodei escada abaixo de cambulhadacom dois corpos engalfinhados. ergui-me, tonto, e vi emrebolo no ch?o os dois faroleiros.atirei-me à luta em auxílio de gerebita.- "dois contra um!", gemeu cabrea, sufocado. "? covardia!"pela primeira vez lhe ouvi a voz - e hoje noto quenada nela denunciava loucura. no momento pensei diversamente, se é quepensei alguma coisa.gerebita, com grande assombro meu, também me repeliu.- "n?o! n?o! eu só!"nisto, um peg?o de nortada, varrendo a torre, trancoua porta do lanternim com estrondo. envolveu-nos de novoa escurid?o.e come?a aqui o horror... os rugidos que ouvi, os arrancos e soc?esformidáveis da luta nas trevas, a minhaansiedade... pavorosos minutos de vida que n?o desejorenovados.perdi a no??o do tempo. durou muito aquilo? n?o seidizer. só sei que a tantas ouvi escapar-se ao peito de gerebita um urrode dor, e logo em seguida uma impreca??o,"desgra?ado!", cujas derradeiras sílabas morreram num trincar de dentesatassalhando carnes. cabrea grugulejou unsroncos que se casaram com o arquejar do peito de gerebita,e a luta esmoreceu.sem palavras na boca, cegado pela escurid?o, eu sóouvia, fora, os uivos da nortada, e ali, aquele arquejo dovencedor exausto caído à beira do vencido. com os olhosda imagina??o eu via esse quadro, que com os da caraenxergava tanto como se os tivera envoltos em veludo negro.n?o te conto os pormenores do epílogo. obtive luz e oque vi n?o te conto. impossível pintar o hediondo aspectode cabrea com a carótida estra?alhada a dente, caído numlago de sangue. ao seu lado gerebita, com a cara e o peitovermelhos, a m?o sangrenta, estatelava-se no ch?o, semsentidos. os meus transes diante daqueles corpos martirizados, àquelahora da noite - daquela terrível noite negracomo esta e sacudida por um vento do inferno!...na manh? seguinte, gerebita pousou-me a m?o sobre oombro e disse:- "o mar n?o leva daqui os corpos à praia e o mundon?o precisa saber de que morreu cabrea. caiu n'água morte de marinheiro -e o mo?o é testemunha de que mateipara n?o morrer. foi defesa. agora vai jurar-me que istoficará para sempre entre nós."jurei-o lealmente, tocando de leve a m?o mutilada. eele, num acesso de infinito desalento, quedou-se imóvel, aolhar para o ch?o, murmurando insistentemente:- "eu bem avisei. n?o me acreditaram. agora, está aí,está aí, está aí..."nesse mesmo dia veio buscar-me o dunga. mal a gaivota largou, narrei-lhea morte do faroleiro, romanceando-a:cabrea, louco a despenhar-se torre abaixo e a sumir-se parasempre no seio das ondas.dunga, assombrado, susteve no ar os remos.- "pois morreu? e louco."- "está claro!"- "claro que lhe parece, que a mim...- "conhecia-o?"- "n?o conhecia outra coisa. des'que furtou a mariarita..."- "que maria rita?"- "pois a maria rita, mulher do gerebita, ent?o n?osabe? que ele seduziu, hom'essa."abri a minha maior boca e arregalei o que pude os olhos.- "como sabe disso?"- "? boa! sei porque sei, como sei que aquela gaivotaque ali vai é uma e que este mar é mar. a maria rita erauma morena de truz, perigosa como o demo. o tolo dogerebita derreou-se d'amores pela bisca e lá casou. e vaiela, a songuinha, mal o homem saía no purus, metia emcasa ao cabrea. e nesse jogo viveram até que um dia fugiram juntos paraoutras terras. o pobre gerebita se n?o acabou de paix?o é que é teso. masentrou para o farol, o que étambém um modo de morrer p'r'o mundo. pois bem. a bolavira, o tempo corre, e vai, sen?o quando, quem mete ogoverno no farol em lugar do defunto gabriel? ao cabrea!ao cabrea que também andava descrente da vida porque arita lhe fugira com terceiro. coisas do mundo. diz-me agora vossoria queo homem enlouqueceu, e rolou no penedo, elá o rói o peixe. está bem. antes assim, que do contrário eraem ponta de faca que aquilo acabaria..."calei-me. há situa??es na vida que as idéias embaralham de tal forma queé de bom conselho deixarmo-las seassentarem por si. eis como...- ... o meu grande amigo eduardo foi empulhado porum assassino vulgar!- perd?o. o fato de se n?o manejarem floretes n?o tiraàquele pugilato o caráter de duelo.- "cavalleria rusticana", ent?o?- e por que n?o?notas:1. o conto "os faroleiros" foi publicado na revista do brasil, n? 20, deagostode 1917, sob o título de: "cavalleria rusticana". numa carta a godofredorangel,lobato explica a mudan?a: "minha cavalleria rusticana, que vou mudar paraosfaroleiros porque toda a gente confunde "cavaleria" com "cavalaria" (quecavalos!)...2. anequim: espécie de tubar?o.3. tintureira: espécie de tubar?o.o engra?ado arrependidofrancisco teixeira de souza pontes, galho bastardo dunssouza pontes de trinta mil arrobas afazendados no barreiro,só aos trinta e dois anos de idade entrou a pensar seriamente na o fosse de natural engra?ado, vivera até ali à custada veia c?mica, e com ela amanhara casa, mesa, vestuárioe o mais. sua moeda corrente era micagens, pilhérias, anedotas de inglêse tudo quanto bole com os músculos faciaisdo animal que ri, vulgo homem, repuxando risos ou matracolejandogargalhadas.sabia de cor a enciclopédia do riso e da galhofa, de fu?opechincha, o autor mais dessaborido que deus botou nomundo; mas era tal a arte do pontes, que as sensaboriasmais relambórias ganhavam em sua boca um chiste raro, defazer os ouvintes babarem de puro gozo.para arremedar gente ou bicho, era um gênio. a gamainteira das vozes do cachorro, da acua??o aos caititus aouivo à lua, e o mais, rosnado ou latido, assumia em sua bocaperfectibilidade capaz de iludir aos próprios c?es - e à lua.também grunhia de porco, cacarejava de galinha, coaxava de untariha,ralhava de mulher velha, choramingavade fedelho, silenciava de deputado governista ou peroravade patriota em sacada. que vozeiro de bípede ou quadrúpede n?o copiavaele às maravilhas, quando tinha pelafrente um auditório predisposto?descia outras vezes à pré-história. como fosse d'algumas luzes, quando osouvintes n?o eram pecos ele reconstituía os vozeir?es paleontológicos dosbichos extintos - roncos de mastodontes ?u berros de mamutes aoavistarem-secom peludos homos repimpados e fetos arbóreos - coisamuito de rir e divulgar a ciência do sr. barros barreto.na rua, se pilhava um magote de amigos parados àesquina, aproximava-se de mansinho e - nhoc! - arremessava um bote demunheca à barriga da perna mais a jeito.era de ver o pinote assustado e o - passa! nervoso doincauto, e logo em seguida as risadas sem fim dos outros,e a do pontes, o qual gargalhava dum modo todo seu,estrepitoso e musical - música d'qffenbach.pontes ria parodiando o riso normal e espont?neo dacriatura humana, única que ri além da raposa bêbada; eestacava de golpe, sem transi??o, caindo num sério de irresistívelc?mico.em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, nocomer, nas a??es mais triviais da vida, o raio do homemdiferen?ava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. echegou a ponto de que escusava abrir a bocaou esbo?ar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. bastavasua presen?a. mal o avistavam, já as carasrefloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria aboca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceirosdesabotoavam os coletes. e se entreabria o bico, nossa senhora!, eramcascalhadas, eram rinchavelhos, eram guinchos, engasgos, funga??es easfixias tremendas.- ? da pele, este pontes!- basta, homem, você me afoga!e se o p?ndego se inocentava, com cara palerma:- mas que estou fazendo? se nem abri a boca...- quá, quá, quá - a companhia inteira, desmandibulada, chorava no espasmosupremo dos risos incoercí o correr do tempo, n?o foi preciso mais que seunome para deflagrar a hilaridade. pronunciando alguém apalavra "pontes", acendia-se logo o estopim das fungadelaspelas quais o homem se alteia acima da animalidade que n?o ri.assim viveu pontes até a idade do cristo, numa parábola risonha, a rir efazer rir, sem pensar em nada sério vida de filante que dá momos em trocade jantares e pagacontinhas miúdas com pilhérias de truz.um negociante caloteado disse-lhe um dia entre frouxosde riso babado:- você ao menos diverte, n?o é como o major carapu?a que caloteia decarranca.aquele recibo sem selo mortificou seu tanto ao nossop?ndego; mas a conta subia a quinze mil réis - valia bem apelotada. entretanto, lá ficou a lembran?a dela espetadacomo alfinete na almofadinha do amor-próprio. depois vieram outros eoutros, estes fincados de leve, aqueles até a cabe?a.tudo cansa. farto de tal vida, entrou o hilari?o a sonharas delícias de ser tomado a sério, falar e ser ouvido semrepuxo de músculos faciais, gesticular sem promover a quebra dacompostura humana, atravessar uma rua sem pressentir na peugada um corode "lá vem o pontes!" em tomde quem se espreme na conten??o do riso ou se ajeita parauma barrigada das boas.reagindo, tentou pontes a seriedade.desastre.pontes sério mudava de tecla, caía no humorismo inglês. se antes divertiacomo o clown, passava agora a divertir como o tony.o estrondoso êxito do que a toda a gente se afigurouuma faceta nova da sua veia c?mica verteu mais sombra naalma do engra?ado arrependido. era certo que n?o poderiatra?ar outro caminho na vida além daquele, ora odioso?palha?o, ent?o, eternamente palha?o à for?a?mas a vida de um homem feito tem exigências sisudas,imp?e gravidade e até casmurrice dispensáveis nos anosverdes. o cargo mais modesto da administra??o, uma simples verean?a,requer na cara a imobilidade da idiotia quen?o ri. n?o se concebe vereador risonho. falta ao dito derabelais uma exclus?o: o riso é próprio à espécie humana,fora o o dobar dos anos a reflex?o amadureceu, o briocristalizou-se, e os jantares cavados deram a saber-lhe aazedo. a moeda pilhéria tornou-se-lhe dura ao cunho; já an?o fundia com a frescura antiga; já usava dela como expediente de vida,n?o por fogan?a despreocupada, comooutrora. comparava-se mentalmente a um palha?o de circo, velho eachacoso, a quem a miséria obriga a transformar reumatismo em caretashílares como as quer o públicopagante.entrou a fugir dos homens e despendeu bons meses noestudo da transi??o necessária ao conseguimento de umemprego honesto. pensou no balc?o, na indústria, na feitoria dumafazenda, na montagem dum botequim - quetudo era preferível à paspalhice c?mica de até ali.um dia, bem maturados os planos, resolveu mudar devida. foi a um negociante amigo e sinceramente lhe exp?sos propósitos regeneradores, pedindo por fim um lugar nacasa, de varredor que fosse. mal acabou a exposi??o, ogalego e os que espiavam de longe à espera do desfechotorceram-se em estrondoso gargalhar, como sob cócegas.- esta é boa! e de primeiríssima! quá! quá! quá! comque ent?o... quá! quá! quá! você me arruina os fígados,homem! se é pela continha dos cigarros, vá embora que medou por bem pago! este pontes tem cada uma...e a caixeirada, os fregueses, os sapos de balc?o e atépassantes que pararam na cal?ada para "aproveitar o espírito",desbocaram-se em quás de matraca até lhes doerem osdiafragmas.atarantado e seriíssimo, pontes tentou desfazer o engano.- falo sério, e o senhor n?o tem o direito de rir-se. peloamor de deus, n?o zombe de um pobre homem que pedetrabalho e n?o gargalhadas.o negociante desabotoou o cós da cal?a.- fala sério, pff! quá! quá! quá! olha pontes, você...pontes largou-o em meio da frase, e se foi com a almaatenazada entre o desespero e a cólera. era demais. a sociedade orepelia, ent?o? impunha-lhe uma comicidade eterna?correu outros balc?es, explicou-se como melhor p?de,implorou. mas por voz un?nime, o caso foi julgado comouma das melhores pilhérias do "incorrigível" - e muitagente o comentou com a observa??o de costume:- n?o se emenda o raio do rapaz! e olhem que já n?oé crian?a...barrado no comércio, voltou-se para a lavoura. procurou um velhofazendeiro que despedira o feitor e exp?s-lheo seu caso.depois de ouvir-lhe atentamente as alega??es, conclusas com o pedido dolugar de capataz, o coronel explodiunum ataque de hilaridade.- o pontes capataz! 1h! 1h! 1h!- mas...- deixe-me rir, homem, que cá na ro?a isto é raro. 1h!1h! 1h! ? muito boa! eu sempre digo: gra?a como o pontes,ninguém!e berrando para dentro:- maricota, venha ouvir esta do pontes. 1h! 1h! 1h!nesse dia, o infeliz engra?ado chorou. compreendeuque n?o se desfaz do pé p'r'a m?o o que levou anos acristalizar-se. a sua reputa??o de p?ndego, de impagável,de monumental, de homem do chifre furado ou da pele,estava construída com muito boa cal e rijo cimentado paraque assim esboroasse de chofre.urgia, entretanto, mudar de tecla, e pontes volveu asvistas para o estado, patr?o c?modo e único possível nascircunst?ncias, porque abstrato, porque n?o sabe rir nemconhece de perto as células que o comp?em. esse patr?o, sóele, o tomaria a sério - o caminho da salva??o, pois, embicava por ali.estudou a possibilidade da agência do correio, dos tabelionatos, dascoletorias e do resto. bem ponderados osprós e contras, os trunfos e naipes, fixou a escolha na coletoriafederal, cujo ocupante, major bentes, por avelhantadoe cardíaco, era de crer n?o durasse muito. seu aneurismaandava na berra pública, com rebentamento esperado paraqualquer hora.o ás de pontes era um parente do rio, sujeito de posses,em via de influenciar a política no caso da realiza??o decerta reviravolta no governo. lá correu atrás dele e tantasfez para movê-lo à sua pretens?o que o parente o despediucom promessa formal.- vai sossegado que, em a coisa arrebentando por cá eo teu coletor rebentando por lá, ninguém mais há de rir-sede ti. vai, e avisa-me da morte do homem sem esperar queesfrie o corpo.pontes voltou radioso de esperan?a e pacíentemente aguardou a sucess?odos fatos, com um olho na política e outrono aneurisma salvador.a crise afinal veio; caíram ministros, subiram outros eentre estes um politic?o negocista, sócio do tal parente.meio caminho já era andado. restava apenas a segunda parte.infelizmente, a saúde do major encruara, sem sinaispatentes de declínio rápido. seu aneurisma, na opini?o dosmédicos que matavam pela alopatia, era coisa grave, deestourar ao menor esfor?o; mas o precavido velho n?o tinhapressa de ir-se para melhor, deixando uma vida onde osfados lhe conchegavam t?o fofo ninho, e lá engambelava adoen?a com um regime ultrametódico. se o mataria umesfor?o violento, sossegassem, ele n?o faria tal esfor?o.ora, pontes, mentalmente dono daquela sinecura, impacientava-se com oequilíbrio desequilibrador dos seus cálculos. como desembara?ar o caminhodaquela travanca?leu no chernoviz o capítulo dos aneurismas, decorou-o;andou em indaga??es de tudo quanto se dizia ou se escreveu a respeito;chegou a entender da matéria mais que odoutor iodureto, médico da terra, o qual, seja dito aqui àpuridade, n?o entendia de coisa nenhuma desta vida.o pomo da ciência, assim comido, induziu-o à tenta??ode matar o homem, for?ando-o a estourar. um esfor?o omataria? pois bem, souza pontes o levaria a esse esfor?o!- a gargalhada é um esfor?o, filosofava satanicamentede si para si. a gargalhada, portanto, mata. ora, eu sei fazerrir...longos dias passou pontes alheio ao mundo, em diálogo mental com aserpente.- crime? n?o! em que código fazer rir é crime? sedisso morresse o homem, culpa era da sua má aorta.a cabe?a do maroto virou picadeiro de luta onde o"plano" se batia em duelo contra todas as obje??es mandadas ao encontropela consciência. servia de juiz a sua ambi??o amarga e deus sabe quantasvezes tal juiz prevaricou,levado de escandalosa parcialidade por um dos o era de prever, a serpente venceu, e pontes ressurgiu para o mundo umtanto mais magro, de olheirascavadas, porém com um estranho brilho de resolu??o vitoriosa nos olhos.também notaria nele o nervoso dos modos quem o observasse com argúcia -mas a argúcia n?oera virtude sobeja entre os seus conterr?neos, além de queestados d'alma do pontes eram coisa de somenos, porqueo pontes...- ora o pontes...o futuro funcionário forjicou, ent?o, meticulosos planosde campanha. em primeiro era mister aproximar-se do major, homemrecolhido consigo e pouco amigo de lérias; insinuar-se-lhe na intimidade;estudar suas venetas e cachacinhas até descobrir em que zona do corpotinha ele ocalcanhar-de-e?ou freqüentando com assiduidade a coletoria, sobpretextos vários, ora para selos, ora para informa??es sobreimpostos, que tudo era ensejo de um parolar manhoso,habilíssimo, calculado para combalir a rispidez do velho.também ia a negócios alheios, pagar coisas, extrair guias,coisinhas; fizera-se muito servi?al para os amigos que traziam negócioscom a fazenda.o major estranhou tanta assiduidade e disse-lho, maspontes escamoteou-se à interpela??o montado numa pilhéria de truz, eperseverou num bem calculado dar tempoao tempo que fosse desbastando as arestas agressivas docardíaco.dentro de dois meses já se habituara bentes àquele serelepe, como lhechamava, o qual, em fim de contas, lheparecia um bom mo?o, sincero, amigo de servir e sobretudoinofensivo... daí a lá em dia d'acúmulo de servi?o pedir-lheum obséquio, e depois outro, e terceiro, e tê-lo afinal comoespécie de adido à reparti??o, foi um passo. para certascomiss?es n?o havia outro. que diligência! que finura! quetato! advertindo certa vez o escrevente, o major puxouaquela diplomacia como lembrete.- grande pasmado! aprenda com o pontes, que temjeito para tudo e ainda por cima tem gra?a.nesse dia, convidou-o para jantar. grande exulta??o naalma do pontes! a fortaleza abria-lhe as portas.aquele jantar foi o início duma série em que o serelepe,agora factótum indispensável, teve campo de primeira ordem para evolu??estáticas.o major bentes, entretanto, possuía uma invulnerabilidade: n?o ria,limitava suas expans?es hílares a sorrisosir?nicos. pilhéria que levava outros comensais a erguerem-se da mesaatabafando a boca nos guardanapos, encrespavaapenas os seus lábios. e se a gra?a n?o era de superfinaagudeza, ele desmontava sem piedade o contador.- isso é velho, pontes, já num almanaque laemmert de1850 me lembro de o ter lido.pontes sorria com ar vencido; mas lá por dentro consolava-se, dizendo,dos fígados para o rim, que se n?o pegaradaquela, doutra pegaria.toda a sua sagacidade enfocava no fito de descobrir ofraco do major. cada homem tem predile??o por um certogênero de humorismo ou chala?a. este morre por pilhériasfesceninas de frades bojudos. aquele péla-se pelo chistebonacheir?o da chacota germ?nica. aquel'outro dá a vidapela pimenta gaulesa. o brasileiro adora a chala?a onde sep?e a nu a burrice tamancuda de galegos e ilhéus.mas o major? por que n?o ria à inglesa, nem à alem?,nem à francesa, nem à brasileira? qual o seu gênero?um trabalho sistemático de observa??o, com a metódicaexclus?o dos gêneros já provados ineficientes, levou pontesa descobrir a fraqueza do rijo adversário: o major lambia asunhas por casos de ingleses e frades. era preciso, porém,que viessem juntos. separados, negavam fogo. esquisiticesdo velho. em surgindo bifes vermelhos, de capacete de corti?a, roupaenxadrezada, sapat?es formidolosos e cachimbo,juntamente com frades redondos, namorados da pipa e dapolpa feminina, lá abria o major a boca e interrompia oservi?o da mastiga??o, como crian?a a quem acenam comcocada. e quando o lance c?mico chegava, ele ria com gosto, abertamente,embora sem exagero capaz de lhe destruiro equilíbrio sangüí infinita paciência, pontes bancou nesse gênero en?o mais saiu dali. aumentou o repertório, a grada??o dosal, a dose de malícia, e sistematicamente bombardeou aaorta do major com os produtos dessa hábil manipula??o.quando o caso era longo, porque o narrador o forja nointento de esconder o desfecho e real?ar o efeito, o velhointeressava-se vivamente, e nas pausas manhosas pedia esclarecimento oucontinua??o.- "e o raio do bife?" "e daí?" "mister john apitou?"embora tardasse a gargalhada fatal, o futuro coletor n?odesesperava, confiando no apólogo da bilha que de tanto irà fonte lá ficou. n?o era mau o cálculo. tinha a psicologiapor si - e teve também por si a quaresma.certa vez, findo o carnaval, reuniu o major os amigosem torno a uma enorme piabanha recheada, presente dumcolega. o entrudo desmazorrara a alma dos comensais e ado anfitri?o, que estava naquele dia contente de si e domundo, como se houvera enxergado o passarinho verde. ocheiro vindo da cozinha, valendo por todos os aperitivos degarrafaria, punha nas caras um enternecimento estomacal.quando o peixe entrou, cintilaram os olhos do major.pescado fino era com ele, inda mais cozido pela gertrudes.e naquele bródio, primara a gertrudes num tempero queexcedia as raias da culinária e se guindava ao mais purolirismo. que peixe! vatel o assinaria com a pena da impotência molhada natinta da inveja, disse o escrevente, sujeito lido em brillat-savarin eoutros praxistas do paladar.entre goles de rica vinha?a, ia a piabanha sendo introduzida nosest?magos com religiosa un??o. ninguém seatrevia a quebrar o silêncio da bromatológica beatitude.pontes pressentiu oportuno o momento do golpe. traziaengatilhado o caso dum inglês, sua mulher e dois fradesbarbadinhos, anedota que elaborara à custa da melhor matéria cinzenta deseu cérebro, aperfei?oando-a em longasnoites de ins?nia. já de dias a tinha de tocaia, só aguardando o momentoem que tudo concorresse para levá-la aproduzir o efeito máximo.era a derradeira esperan?a do facínora, seu último cartucho. negasse fogoe, estava resolvido, metia duas balasnos miolos. reconhecia impossível manipular-se torpedomais engenhoso. se o aneurisma lhe resiste ao embate, ent?o é que oaneurisma era uma potoca, a aorta uma fic??o,o chernoviz um palavrório, a medicina uma miséria, odoutor iodureto uma cavalgadura e ele, pontes, o maischapado sensabor?o ainda aquecido pelo sol - indigno,portanto, de viver.matutava assim o pontes, negaceando com os olhos dapsicologia a pobre vítima, quando o major veio ao seuencontro: piscou o olho esquerdo - sinal de predisposi??opara ouvir.- e agora! - pensou o bandido. e com infinita naturalidade, pegando comopor acaso uma garrafinha de molho,p?s-se a ler o rótulo.- perrins; lea and perrins. será parente daquele lordeperrins que bigodeou os dois frades barbadinhos?inebriado pelos amavios do peixe, o major alumiou umolho concupiscente, guloso de chulice.- dois barbadinhos e um lorde! a patifaria deve sermarca x. p. t. o. conta lá, serelepe.e, mastigando maquinalmente, absorveu-se no caso fatal.a anedota correu capciosa pelos fios naturais até asproximidades do desfecho, narrada com arte de mestre,segura e firme, num andamento estratégico em que haviagênio. do meio para o fim, a maranha empolgou de talforma o pobre velho que o p?s suspenso, de boca entreaberta, uma azeitonano garfo detida a meio caminho. um ar deriso - riso parado, riso estopim, que n?o era sen?o o armarbote da gargalhada, iluminou-lhe o rosto.pontes vacilou. pressentiu o estouro da artéria. por unsinstantes a consciência brecou-lhe a língua, mas pontes deulhe um pontapée com voz firme puxou o gatilho.o major antonio pereira da silva bentes desferiu a primeira gargalhada dasua vida, franca, estrondosa, de ouvirse no fim da rua, gargalhada igualà de teufelsdrock diantede jo?o paulo richter. primeira e última, entretanto, porqueno meio dela os convivas, at?nitos, viram-no cair de borcosobre o prato, ao tempo que uma onda de sangue avermelhava a toalha.o assassino ergueu-se alucinado; aproveitando a confus?o, esgueirou-separa a rua, qual outro caim. escondeu-seem casa, trancou-se no quarto, bateu dentes a noite inteira,suou gelado. os menores rumores retransiam-no de pavor.polícia?semanas depois é que entrou a declinar aquele transtorno que toda a gentelevara à conta de mágoa pela morte doamigo. n?o obstante, trazia sempre nos olhos a mesmavis?o: o coletor de bru?os no prato, golfando sangue, enquanto no arvibravam os ecos da sua derradeira gargalhada.e foi nesse deplorável estado que recebeu a carta doparente do rio. entre outras coisas, dizia o ás: "como n?ome avisaste a tempo, conforme o combinado, só pelas folhas vim a saber damorte do bentes. fui ao ministro masera tarde, já estava lavrada a nomea??o do sucessor. a tualeviandade fez-te perder a melhor ocasi?o da vida. guardapara teu governo este latim: tarde venientibus ossa, quemchega tarde só encontra os ossos - e sê mais esperto parao futuro."um mês depois, descobriram-no pendente duma trave,com a língua de fora, rígido.enforcara-se numa perna de ceroula.quando a notícia deu volta pela cidade, toda a genteachou gra?a no caso. o galego do armazém comentou paraos caixeiros:- vejam que criatura! até morrendo fez chala?a. enforcar-se na ceroula!esta só mesmo do pontes...e reeditaram em coro meia duzia de - únicoepitáfio que lhe deu a sociedade.nota:o conto "o engra?ado arrependido" foi publicado na revista do brasil, n?16, de abril de 1917, com o título de "a gargalhada do colector".a colcha de retalhos- upa!cavalgo e parto.por estes dias de mar?o a natureza acorda tarde. passaas manh?s embrulhada num roup?o de neblina e é comespregui?amentos de mulher vadia que despe os véus dacerra??o para o banho de sol.a névoa esmaia o relevo da paisagem, desbota-lhe ascores. tudo parece coado através dum cristal despolido.vejo a orla de capim tufada como debrum pelo fio dosbarrancos; vejo o roxo-terra da estrada esmaecer logo adiante; e nadamais vejo sen?o, a espa?os, o vulto gotejantedalguns angiqueiros marginais.agora, uma porteira.ali, a encruzilhada do labrego.tomo à destra, em direitura ao sítio do josé alvorada.este barba-rala mora-me a jeito de empreitar um ro?ado nocapoeir?o do bilu, nata da terra que pelas bocas do caetélegítimo, (1) da unha-de-vaca(2) e da caquera(3) está a pedir foicee covas de milho.n?o é difícil a puxada: com cinqüenta bra?as de carreador boto a ro?a nocaminho.três alqueires, só no bom. talvez quatro. a noventa porum - nove vezes quatro trinta e seis; trezentos e sessentaalqueires de oito m?os. descontadas as bandeiras (4) que oporco estraga e o que comem a paca e o rato...será a filha do alvorada?- bom dia, menina! o pai está em casa?? a filha única. pelo jeito n?o vai além de quatorze anos.que frescura! lembra os pés d'avenca vi?ados nas grotasnoruegas. mas arredia e itê (5) como a fruta do gravatá. olhemcomo se acanhou! d'olhos baixos, finge arrumar a rodilha. (6)veio pegar água a este corrego e é milagre n?o se haveresgueirado por detrás daquela moita de taquaris, ao ver-me.- o pai está lá? - insisti.respondeu um "está" enleado, sem erguer os olhos o a vida no mato asselvaja estas veadinhas! note-se que os alvoradasn?o s?o caipiras. quando comprou asitua??o dos periquitos, o velho vinha da cidade; lembro-me até queentrava em sua casa um jornal.mas a vida lhes correu áspera na luta contra as terrasensapezadas e secas, que encurtam a renda por mais que dêde si o homem. foram rareando as idas à cidade e ao cabode todo se suprimiram. depois que lhes nasceu a menina,rebento floral em anos outoni?os, e que a geada queimou ocafé novo - uma tamina, (7) três mil pés - o velho, amuado,nunca mais espichou o nariz fora do sítio.se o marido deu assim em urumbeva, a mulher, essaenraizou de pe?o para o resto da vida. costumava dizer:mulher na ro?a vai à vila três vezes - uma a batizar, outraa casar, terceira a tais casmurrices na cabe?a dos velhos, era naturalque a pobrezinha da pingo d'?gua (tinha esse apelido amaria das dores) se tolhesse na desenvoltura ao extremode ganhar medo às gentes. fora uma vez à vila com vintedias, a batizar. e já lá ia nos quatorze anos sem nunca maister-se arredado dali.ler? escrever? patacoadas, falta de servi?o, dizia a m?e.que lhe valeu a ela ler e escrever que nem uma professora,se des'que casou nunca mais teve jeito de abrir um livro?na ro?a, como na ro?a.deixei a menina às voltas com a rodilha e embrenheime por um atalhoconducente à morada.que descalabro!...da casa velha aluíra uma ala, e o restante, além dacumeeira selada, tinha o oit?o fora do prumo.o velho pomar, roído de formiga, morrera de inani??o;na ?nsia de sobreviver, três ou quatro laranjeiras macilentas, furadas debroca e sopesando o polvo retran?ado daerva-de-passarinho, ainda abrolhavam rebentos cheios decompridos acúleos. fora disso, mamoeiros, a silvestre goiaba e ara?ás,promiscuamente com o mato invasor que sórespeitava o terreirinho batido, fronteiro à casa. tapera quase e,enluradas nela, o que é mais triste, almas humanas emtapera.bati palmas.- ? de casa!apareceu a mulher.- está seu zé?- inda agorinha saiu, mas n?o demora. foi queimarum mel na massaranduva do pasto. apeie e entre.amarrei o cavalo a um moir?o de cerca e entrei.acabadinha, a sinh'ana. toda rugas na cara - e umacor... estranhei-lhe aquilo.- doen?a! - gemeu. - estou no fim. est?mago, fígado, uma dor aqui nopeito que responde na cacunda. casavelha, é o que é.- metade é cisma - disse-lhe para consolo.- eu é que sei! - retrucou-me suspirando.entrementes, surgiu da cozinha uma velhota bem-apessoada,no ceme, rija e tesa, que saudou e:- está espantado do jeito de nhana? esta gente deagora n?o presta para nada. olhe, eu com setenta no lombon?o me troco por ela. criei minha neta e inda lavo, cozinhoe coso. admira-se? coso, sim!...- mecê é gabola porque nunca padeceu doen?a - nemdor de dente! mas eu? pobre de mim! só admiro aindaestar fora da cova... aí vem o zé.chegava o alvorada. ao ver-me, abriu a cara.- ora viva quem se lembra dos pobres! n?o pego nasua m?o porque estou assim... ? só melado. bonito, hein?estava difícil, num oco muito alto e sem jeito. mas sempretirei. n?o é jiti, n?o! ? mel-de-pau.dep?s num mocho a cuja dos favos e se foi à janela,lavar as m?os à caneca d'água que a mulher despejava. p?sos olhos no meu cavalo.- hoje veio no pica?o... bom bicho! eu sempre digo:animais aqui no redor, só este pica?o e a ruana do izé*48 delima. o mais é eguada de moenda.neste momento entrou a menina de pote à cabe?a. aovê-la, o pai apontou para a cuja de mel.- está aí, filha, o doce da aposta. perdi, paguei. queaposta? ah! ah! brincadeira. a gente cá na ro?a, quandon?o tem servi?o com qualquer coisa se diverte. vinha passando um bando demaritacas. eu disse à loa: "s?o mais dedez!" pingo negou: "n?o chega lá!" apostamos. eram nove. ela ganhou odoce. doce da ro?a mel é. esta songuirihasó vendo; n?o é o que parece, n?o...a loquacidade daquele homem n?o desmedrara com oatraso da vida. em se lhe dando corda, ressurgia nele otagarela da cidade.expus-lhe o negócio. alvorada enrugou a testa; refletiuum bocado, de queixo preso. depois:- eu hoje, franqueza, n?o valho mais nada. des'que caídaquela amaldi?oada ponte do labrego, fiquei assim comoquebrado por dentro. n?o escoro servi?o, e para lidar comcamaradas no eito n?o basta ter boca. sem puxar a enxadade par com eles, a coisa n?o vai, n?o! lembra-se da empreitada do anoretrasado? pois saí perdendo. o tranca do jo?omina me quebrou um machado e furtou uma foice. comesses prejuízos, n?o livrei o jornal. desde ent?o fiz cruz emservi?o alheio. se ainda teimo neste sapezal amaldi?oado épor via da menina; sen?o, largava tudo e ia viver no mato,como bicho. ? pingo que inda me dá um pouco de coragem, concluiu comternura.a velhinha sentara-se à luz da janela e, abrindo umacaixeta, pusera-se a coser, de óculos na ponta do nariz.aproximei-me, admirativo.- sim, senhora! com setenta anos!sorriu, lisonjeada.- ? para ver. e isto aqui tem coisa. ? uma colcha deretalhos que venho fazendo há quatorze anos, des'que pingo nasceu. dosvestidinhos dela vou guardando cada retalho que sobeja e um dia os coso.veja que galantaria deservi?o...estendeu-me ante os olhos um pano variegado, de quadrinhos maiores emenores, todos de chita, cada qual deum padr?o.- esta colcha é o meu presente de noivado. o últimoretalho há de ser do vestido de casamento, n?o é, pingo?pingo d'?gua n?o respondeu. metida na cozinha, percebi que nos espiavapor uma fresta.mais dois dedos de prosa com alvorada, um cafezinhoralo - escolha (8) com rapadura - e:- está bem - rematei, levantando-me do mocho detrês pernas. - como n?o pode ser, paciência. apesar dissoacho que deve pensar um bocado. olhe que este ano seest?o pagando os ro?ados a oitenta mil réis o alqueire. dápara ganhar, n?o?- que dá, sei que dá - mas também sei para quem dá.um perrengue como eu n?o pensa mais nisso, n?o. quandoera gente, muitos peguei a sessenta e n?o me arrependi.mas hoje...- nesse caso...transcorreram dois anos sem que eu tornasse aos periquitos. nesseintervalo sinh'ana faleceu. era fatal a dorque respondia na cacunda. e n?o mais me aflorava à memória a imagemdaqueles humildes urupês, quando mechegou aos ouvidos o zunzum corrente no bairro, umacoisa apenas crível: o filho de um sitiante vizinho, rapaz detodo pancada, furtara pingo d'?gua aos periquitos.- "como isso? uma menina t?o acanhada!..."- "? para ver! desconfiem das sonsas... fugiu, e lárodou com ele para a cidade - n?o para casar, nem paraenterrar. foi ser 'mo?a', a pombinha..."o incidente ficou a azoinar-me o bestunto. ? noite perdio sono, revivendo cenas da minha última visita ao sítio, enasceu-me a idéia de lá tornar. para? confesso: mera curiosidade, paraouvir os comentários da triste velhinha. quegolpe! desta feita ia-se-lhe a rijeza de cerne.fui.setembro entumecia gomos em cada arbusto. nenhumaneblina. a paisagem desenhava-se nítida até aos cabe?osdos morros distantes.por amor à simetria, montava eu o mesmo pica?o. transpus a mesmaporteira. atalhei pelo mesmo trilho.no córrego vi, com os olhos da imagina??o, o vulto damenina envergonhada com o pote em repouso na laje e todaàs voltas com a rodilha. mais uns passos e a tapera antolhou-se-me,deserta. as três árvores do pomar extinto eram jágalha?a resseca e poenta. só os mamoeiros subsistiam, maiscrescidos, sempre apinhados de frutos. o resto piorara, descambando parao lúgubre. ruíra o oit?o e o terreirinhopintalgara-se de moitas de guanxuma, cord?o-de-frade e joás.- o de casa! - gritei.silêncio. três vezes repeti o apelo. por fim surgiu dosfundos uma sombra acurvada e trêmula.- bom dia, nhá joaquina. está seu zé?n?o me reconheceu a velhinha. zé fora à vila, vender asitioca para mudar de terra.fez-me entrar, logo que me dei a conhecer, pedindoescusas da má vista.- tem coragem de estar aqui sozinha?- eu? sozinha estou em toda parte. morreu-me tudo, afilha, a neta... sente-se - murmurou apontando para omocho de dois anos atras.sentei-me, com um nó na garganta. n?o sabia o quedizer. por fim:- o que é a vida, nhá joaquina! parece que foi ontemque estive aqui. apesar das doen?as, iam vivendo felizes. hoje...a velha limpou no canh?o da manga uma lágrima.- viver setenta e dois anos para acabar assim... felizmente a morte n?otarda. já a sinto cá dentro.confrangia-me o cora??o aquele ermo onde tudo erapassado - a terra, as laranjeiras, a casa, as vidas, salvo trêmuloespectro sobrevivente como a alma da tapera - atriste velhinha encanecida, cujos olhos poucas lágrimas estilavam, tantaschorava.- que mais agora? - murmurou pausadamente emvoz de quem já n?o é deste mundo. - até à "desgra?a",eu n?o queria morrer. velha e inútil, inda gostava do mundo. morreu-me afilha, mas restava a neta - que era duasvezes filha e o meu consolo. desencaminharam a pobrezinha... agora, quemais? só pe?o a deus que me retire, logoe logo.relanceei um olhar pela sala vazia. a caixeta de costurainda estava sobre a arca no lugar de sempre. meus olhospousaram ali, marasmados.a velha adivinhou-me o pensamento e, levantando-se,tomou-a nas m?os mal firmes. abriu-a. tirou de dentro acolcha inacabada, contemplou-a longamente. depois, comtremuras na voz:- dezesseis anos - e n?o pude acabar a colcha... ninguém imagina o que épara mim esta prenda. cada retalhotem sua história e me lembra um vestidinho de pingo d'?gua. aqui leio avidinha dela des'que nasceu.este, olhe, foi da primeira camiseta que vestiu... t?ogalantinha! estou a vê-la no meu bra?o, tentando pegar osóculos com a m?ozinha gorda...este azul, de listras, lembra um vestido que a madrinhalhe deu aos três anos. ela já andava pela casa inteira armando reina??es,perseguindo o rom?o - que um dia, porsinal, lhe meteu as unhas no rostinho. chamava-me "??aquinaeste vermelho de rosinhas foi quando completou oscinco anos. estava com ele por ocasi?o do tombo na pedrado córrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo,n?o reparou?este cá, de xadrezinho, foi pelos sete anos, e eu mesmao fiz, e o fiz de saia comprida e paletó de quartinho. ficout?o engra?ada, feita uma mulherzinha!pingo d'agua ja sabia temperar um virado, quando usoueste aqui, de argolinhas roxas em fundo branco. digo istoporque foi com ele que entornou uma panela e queimou asm?os.este cor de batata foi quando tinha dez anos e caiu comsarampo, muito malzinha. os dias e as noites que passei aopé dela, a contar histórias! como gostava da gata borralheira!...a velha enxugou na colcha uma lágrima perdida e calou-se.- e este? - perguntei para avivá-la, apontando umretalho amarelo.pausou um bocado a triste avó, em contempla??o. depois:- este é novo. já tinha feito quinze anos quando ovestiu pela primeira vez num mutir?o (9) do labrego. n?ogosto dele. parece que a desgra?a come?a aqui. ficou umvestido muito assentadinho no corpo, e galante, mas pelasminhas contas foi o culpado do labreguinho engra?ar-se dacoitada. hoje sei disso. naquele tempo de nada suspeitava.- este - disse-lhe eu, fingindo recordar-me - é o queela vestia quando cá estive.- engano seu. era, quer ver qual? era este de pintasvermelhas, repare bem.- ? verdade, é verdade! menti. agora me lembro, issomesmo. e este último?após uma pausa dorida, a pobre criatura oscilou a cabe?a e balbuciou:- este é o da desgra?a. foi o derradeiro que fiz. comele fugiu... e me matou.calou-se, a lacrimejar, trêmula.calei-me também, opresso dum infinito apert?o d'alma.que quadro imensamente triste, aquele fim de vida machucado pela mocidadelouca!...e ficamos ambos assim, imóveis, de olhos presos à colcha.ela por fim quebrou o silêncio.- ia ser o meu presente de noivado. deus n?o quis.será agora a minha mortalha. já pedi que me enterrassemcom ela.e guardou-a dobradinha na caixa, envolta num suspiroarrancado ao imo do cora??o.um mês depois morria. vim a saber que lhe n?o cumpriram a última vontade.que importa ao mundo a vontade última duma pobrevelhinha da ro?a?pieguices...notas:1, 2, 3. padr?es de terra boa.4. bandeira de milho, diz-se de qualquer trecho do milharal5. itê: sabor agreste, adstringente, ácido.6. rodilha: rodela de pano torcido que os carregadores de água usam entrea cabe?a eo pote ou a lata.7. tamina: ninharia, coisa de nada.8. escolha: café de ínfima qualidade - resíduo do "café escolhido".9. ajuntamento de vizinhos num servi?o de ro?a.a vingan?a da perobaa cidade duvidará do caso. n?o obstante, aquele monjolo do jo?onunes no varj?o foi durante meses o palha?oda zona. sobretudo no bairro dos porungas, onde assistiapedro porunga, mestre monj oleiro de larga fama, fungavam-se à contado engenho risos sem fim.sitiantes ambos em terras próprias, convizinhavam separados peloespig?o do nheco - e por malqueren?a antiga. levantara nunes umapaca, certo domingo; mas aodobrar o morro a bicha esbarrou de frente com um porunguinha quecasualmente lenhava por ali. zás! certeiro golpe de foice dá com elaem terra.até aí nada.mas comeram-na, sem ao menos mandarem um quartode presente ao legítimo dono. legítimo, sim, porque, afinalde contas, aquela paca era uma paca nomeada. sabida comoum vigário, dizia o nunes, nem cachorro-mestre, nem mundéu, podiamcom a vida dela. escapulia sempre. a gente dooutro lado n?o ignorava isso. paca velha e matreira temsempre a biografia na boca dos ca?adores. paca muito conhecida,portanto; moradora em suas terras. paca do nunes, homessa. ora,justamente no dia em que, numa batidafeliz, ele a apanhara desprevenida, fazer aquilo o porunguinha?- "mas é uma crian?a!"sim, mas o pai n?o aprovou? n?o disse, entre risadas,"o nunes que se fomente?" haviam de pagar!veio daí a malqueren?a. o espig?o vinha do períodoum pouco mais remoto em que a crosta da terra se solidificou.agravava a dissens?o uma rivalidade quase de casta.pertencia nunes à classe dos que decaem por for?a demuita cacha?a na cabe?a e muita saia em casa. filho homem só tinhao josé benedito, d'apelido pernambi, umpassarico desta alturinha, apesar de bem entrado nos seteanos. o resto era uma récula de "famílias mulheres"maria benedita, maria da concei??o, maria da gra?a, mariada glória, um rosário de oito mariquinhas de saia comprida. tantamulher em casa amargava o ?nimo do nunes,que nos dias de cacha?a amea?ava afogá-las na lagoa comose fossem uma ninhada de gatos.o seu consolo era mimar pernambi, que aquele ao menos logo estaria noeito, a ajudá-lo no cabo da enxada,enquanto o mulherio inútil mamparrearia por ali a espiolhar-se ao sol.pegava, ent?o, do menino e dava-lhe pinga.a princípio com caretas que muito divertiam o pai, o engriman?opegou lesto no vício. bebia e fumava muito sorna,com ares palermas de quem n?o é deste mundo. tambémusava faca de ponta à cinta.homem que n?o bebe, n?o pita, n?o tem faca deponta, n?o é homem, dizia o nunes.e c?nscio de que já era homem o piquirinha batia nasirmas, cuspilhava de esguicho, dizia nomes à m?e, além demuitas outras coisas próprias de homem.do outro lado tudo corria pelo inverso. comedido napinga, pedro porunga casara com mulher sensata, que lhedera seis "famílias", tudo homem.era natural que prosperasse, com tanta gente no eito.plantava cada setembro três alqueires de milho; tinha doismonjolos, moenda, sua mandioquinha, sua cana, além duma égua e duasporcas de cria. ca?ava com espingarda dedois canos, "imita??o laporte", boa de chumbo como n?ohavia outra. morava em casa nova, bem coberta de sapé deboa lua, aparado a linha, com mestria, no beiral; os esteiose portais eram de madeira lavrada; e as paredes, rebocadasà m?o por dentro, coisa muito fina.já o nunes - pobre do nunes! - n?o punha na terranem um alqueire de semente. teve égua, mas barganhou-apor um capadete e uma espingarda velha. comido o porquinho, sobrou donegócio o caco da pica-pau, dum cano sóe manhosa de tardar fogo.sua casa, de esteios com casca e portas de embaúbarachada, muito encardida de picum?, prenunciava taperapróxima.capado, nenhum. galinhada escassa.ao cachorro brinquinho n?o lhe valia ser mestre paqueiro de fama;andava de barriga às costas, com bernes notouti?o. o pobrezinho n?o caminhava dez passos sem queparasse, pondo-se aos rodopios sobre os quartos traseiros,tentando inutilmente abocar o parasita inatingível. que preasse.cachorro é bicho ladino e o mato anda cheio de preásatolambadas. e tudo mais no vaij?o afinava pela mesma tecla.certa vez contaram ao nunes que pedro porunga trazianegócio duma besta arreada. besta arreada, o porunga! doeulhe aquilono fundo da alma. era atrepar demais.- quê! já roncam assim? - bravateou. - pois hei demostrar à porungada quem é o jo?o nunes eusébio dossantos, da ponte alta!e entrou-se, desd'aí, de grandes atarefamentos.a mulher pasmava na súbita reviravolta do marido,duvidando e esperando.- durará esse fogo? quem sabe?planeava nunes grandes coisas, ro?a de três alqueires,conserto da casa, monjolo...aqui a mulher repuxou os lábios num muxoxo de dúvida.- monjolo? ché, qu'esperan?a!nunes, metido em brios, roncou:- boto, mulher, boto monjolo, boto moenda, boto atémoinho! hei de fazer a porungada morder a munheca deinveja. vai ver!...com assombro de todos n?o ficou em prosa fiada apromessa. nunes remendou mal e mal a casa, derrubou umcapoeir?o descansado de oito anos e, num esfor?o de mouro, meteu naterra nove quartas de milho.pedro porunga soube logo da bravata. riu-se e profetizou:- eh! aquilo é fogo de jacá velho. calor de pingu?on?o dura...o ano correu bem. vieram chuvas a tempo, de modoque em janeiro o milho desembrulhava pend?o, muito medrado de espigas.nunes n?o cabia em si. visitava as ro?as muito contenteda vida, urthando os caules vi?osos já em pleno arreganhamento dadentu?a vermelha, ou apalpando as bonecas tenras, a madeixarem-se dacabelugem louro-translúcida. segurava ent?o a barbica do queixo esonhava opulênciasfuturas, balanceando prós e contras. os contras já estavamde fora. só havia prós. e concluía, entrando em casa, para amulher:- este ano quebro um milh?o desgramado!carecia, pois, de armar monjolo. desdobrado em farinha o milho, vinhamdobrados os lucros. n?o foi o queempolou os porungas, a farinha? uma resolu??o de tal vulto, porém,n?o se toma assim do pé pr'a m?o: era precisomeditar, calcular. e nunes "maginava"... o chóó-pan dofuturo engenho batia-lhe na cabe?a como um ritornelo demúsica do céu.- hei de mostrar ao porunga que ele n?o é o únicomonjoleiro do mundo. empreito o servi?o com o compadreteixeirinha da ponte alta.a mulher botou as m?os na cabe?a.- nossa virgem! ? coisa de louco! pois o compadrenem bra?o tem...- bééé! - urrou nunes, estomagado. - cale essa boca! mulher n?oentende das coisas...e ela, nas encolhas:- tá bom. depois n?o se queixe.- bééé! - rematou o marido.esta troada era o argumento decisivo de nunes nasrela??es familiares. quando ali roncava o "bééé", mulher,filhas, pernambi, brinquinho, todos se escoavam em silêncio. sabiampor dolorosa experiência pessoal que o pontoacima era o porretinho de sapuva.se a mulher emudecia, emudecia com ela a raz?o, porque o teixeirinhamaneta era um carapina ruim inteirado,dos que vivem de biscates e remendos. só a um bêbadocomo o nunes bacorejaria a idéia de meter a monjoleiro umtaramela daqueles, maneta e, inda por cima, cego dumavista. mas era compadre e acabou-se. bééé!uma nova semana passou nunes em trabalhos de "magina??o". co?avalentamente a cabe?a, pitava enormes cigarr?es, muito absorto, com osolhos no milharal e o sentido em coisas futuras. decidiu-se, por fim.rumou à ponte alta e trouxe de lá o velho carapina, com a ferramentacapenga.só restava resolver o problema da madeira. nas suasterras n?o havia sen?o pau de foice. pau de machado, capazde monjolo, só a peroba da divisa, velha árvore morta queera o marco entre os dois sítios, tacitamente respeitada delá e cá. deitá-la-ia por terra sem dar contas ao outro lado- como lhe fizeram à paca.boa pe?a! nunes gozava-se da picuinha, planeando derrubar a árvoreà noite, de modo que pela madrugada, quando os porungas dessem pelacoisa, nem santo ant?nio remediaria o mal.- está resolvido: derrubo a peroba!dito e feito. dois machados roncaram no pau alta noite,e ainda n?o raiava a manh? quando a peroba estrondeoupor terra, tombada do lado do nunes.mal rompeu o dia, os porungas, advertidos pela ronqueira, saíram asondar o que fora. deram logo com amarosca, e pedro, à frente do bando, interpelou:- com ordem de quem, seu...- com ordem da paca, ouviu? - revidou nunes provocativamente.- mas paca é paca e essa peroba era o marco do rumo,meia minha, meia sua.- pois eu quero gastar a minha parte. deixo a suap'r'aí!... - retrucou nunes apontando com o bei?o a cavacanacor-de-rosa.pedro continha-se a custo.- ah, cachorro! n?o sei onde estou que n?o...- pois eu sei que estou em minha casa e que bato fogona primeira "cuia" que passar o rumo!...esquentou o bate-boca. houve nome feio a valer. omulherio interveio com grande descabelamento de palavr?es. deespingardinha na m?o, radiante no meio da barulhada, nunes dizia aomaneta:- vá lavrando, compadre, que eu sozinho escoro estecuiame!... (2)a porungada, afinal, abandonou o campo - para n?ohaver sangue.- você fica com o pau, cachaceiro à-toa, mas inda háde chorar muita lágrima p'r'amor disso...- bééé! ... - estrugiu nunes triunfalmente.os porungas desceram resmoneando em conciliábulo,seguidos do olhar vitorioso do nunes.- ent?o, compadre, viu que cuiada choca? ? só chá delíngua, pé, pé, pé; mas, chegar mesmo, quando! o guampudoconheceu a arruda pelo cheiro!e assombrou o velho com muitos lances heróicos, quebramentos de cara,escoras de três e quatro, o diabo.- o dia está ganho, compadre, largue disso e vamosmolhar a garganta.a molhadela da garganta excedeu a quanta bebedeiratinham na memória. nunes, maneta e pernambi confraternizaram num boloacacha?ado, comemorativo do triunfo,até que uma soneira letárgica os derreou pelo ch?o. com aderradeira maria pendurada do seio magro, a mulher olhava para aquilosacudindo a cabe?a, a cismar...- que monjolo sairá disto, m?e do céu!...esvaídos os fumos da pinga, tornaram no dia seguinteà peroba, muito acamaradados. a cacha?a cimentara o compadrescoantigo, e a feitura do monjolo teve início comgrande quebreira de corpo. nunes passava os dias na obra,vendo o compadre desbastar a madeira com um bra?o só.pasmava daquilo, e do ajutório que ao bra?o perfeito davao toco aleijado. o velho maneta sabia casos e casos, quenunes respondia com outros, sempre tendentes a patenteara ruindade dos porungas.falquejado o toro, correram um barbante embebido nummingau de carv?o. "pegue nesta ponta, compadre, dizia ovelho; agora estique; isso." e tomando entre os dedos ocordel pelo meio, plaf, chicoteava a madeira, riscando nelaum tra?o negro.nunes revelou grande voca??o para esfnia-verruma. esfnia-verrumass?o os "empaliadores" dos carapinas. sentam-se com uma nádega àbeira da banca e durante horaspasmam do rebote correr na tábua encaracolando fitas, oudo form?o ir lentamente abrindo uma fura. ora pegam daenxó, examinam-na, passam o dedo pelo fio e perguntam:"? gnive? (greaves) quanto custou?" e quando sai da madeira a verruma,quente da fric??o, pegam-na e p?em-se asoprá-la muito sérios.enquanto isso, muito desajeitadamente ia o maneta escavando o cocho (3)a machado e enxó. depois rasgou as furasfuras da haste (4) e afei?oou a munheca. (5) prontas que foram,atacou o pil?o. (6) escava que escava, em três dias p?-lo debanda, concluso. restava somente aparelhar a "virgem". (7)- o compadre sabe a história do pau de feiti?o?nunes n?o sabia. nunes n?o sabia coisa alguma, tiranteemborcar o gargalo e difamar os porungas. sem interromper oesquadrejamento da virgem, maneta narrou o casoque ouvira ao pai, o teixeir?o serrador, madeireiro de fama.- em cada eito de mato, dizia o meu velho, há um pauvingativo que pune a malfeitoria dos homens. vivi no matotoda a vida, lidei toda casta de árvore, desdobrei desdeembaúva e embiru?u até bálsamo, que é raro por aqui.dormi no estaleiro quantas noites! homem, fui um bicho-do-mato. e detanto lidar com paus, fiquei na suposi??o deque as árvores têm alma, como a gente.- t'esconjuro! - espirrou nunes.- isto dizia lá o velho; eu por mim n?o dou opini?o.e têm alma, dizia ele, porque sentem a dor e choram. n?ovê como gemem cértos paus ao caírem? e outros como choram tantalágrima vermelha, que escorre e vira resina? orapois têm alma, porque neste mundo tudo é criatura de deus.- lá isso...- ent?o, dizia ele, há em cada mato um pau que ninguém sabe qualé, a modo que peitado p'r'a desforra dosmais. ? o pau de feiti?o. o desgra?ado que acerta meter omachado no cerne desse pau pode encomendar a alma p'r'odiabo, que está perdido. ou estrepado ou de cabe?a rachada por umgalho seco que despenca de cima, ou mais tardepor artes da obra feita com a madeira, de todo jeito n?oescapa. n?o 'dianta se precatar: a desgra?a peala mesmo,mais hoje, mais amanh?, a criatura marcada.isto dizia o velho - e eu por mim tenho visto muitacoisa. na derrubada do figueir?o, alembra-se? morreu ofilho do chico pires. estava cortando um guamirim quando, de repente,soltou um grito. acode que acode, o mo?oestava com o peito varado até as costas. como foi? comon?o foi? ninguém entendeu aquilo. eu fiquei cismando edisse: "? feiti?o de pau..." como este um, quantos casos? omundo está cheio. o sebasti?ozinho da ponte alta fez umacasa, o pau da cumeeira ele mesmo o derrubou. pois n?o éque a cumeeira arreia e estronda a cabe?a do rapaz? porisso meu pai, sabido que era, especulava primeiro se por aliperto n?o tinha havido desgra?a. era para ver se o feiti?oestava solto ou preso, e precatar- estas e outras ia maneta florejando de lérias ashoras de servi?o, enquanto dava os derradeiros retoques noengenho.estava pronto o monjolo. jubiloso, via nunes quase realizado o primeirosonho das futuras grandezas. faltava apenas o assentamento, que épouco - e ele batia tapas amigosna peroba vermelha.- aí, minha velha! mansinha, hein? há de chamar-setira-prosa de porungas, caba?as e cuias, eh! eh!recolheram cedo nesse dia para solenizar o feito à custadum ancorote (8) de cacha?a, que esvaziaram a meio.dias depois, bem fincado, bem socado o pil?o, o monjolo recebeuágua. aberta a bica, um jorro d'enxurro espumejou no cocho, encheu-o,desbordou para o "inferno". (9) aengenhoca gemeu na virgem e al?ou o pesco?o. o cochodespejou a aguaceira - chóó! a munheca bateu firme nopil?o - pan!nunes pulava d'alegria.- conheceu, porungada choca, quem é jo?o nuneseusébio da ponte alta?mas n?o lhe bastou aquele barulho, nem a gritaria dameninada a palmear, nem os ladridos do brinquinho que,espantado da maluqueira, latia de longe, a salvo de pontapés. queriamais. correu à espingarda, espoletou-a e, erguendo-a64 monteiro lobatopara o "outro lado", desfechou. mas o caco velho dapica-pau n?o compartilhou da sua alegria, rebentou a espoletae calou-se. nunes inda a manteve uns segundos al?ada,esperando o tiro. como o fogo tardasse demais, remessoucom ela para longe, embrulhada num palavr?o. lembrou-se depois de trêsfoguetes sobejados de uma reza; foi buscá-los; atacou-os em dire??o aosporungas.- cheira essa pólvora, cuiada!infelizmente as bombas, muito úmidas, negaram fogopor sua vez.- tudo nega, compadre! vamos ver se o ancorote negatambém.n?o negou. e a prova foi roncarem logo p'r'ali comodois gambás.no outro dia partiu maneta para a ponte alta, comgrande sentimento do nunes que perdia nele um companheir?o.quanto ao monjolo, como n?o houvesse milho apilar, ficou sua estréia para quando se quebrasse a ro?a.cessaram as chuvas de ver?o. entrou o outono, refrescado,limpo. amarelaram as folhas do milharal, as espigaspenderam, maduras. come?ou a quebra. muito impaciente,nunes debulhou o primeiro jacá recolhido e atochou o pil?o.ai! n?o há felicidade completa no mundo. o engenhoprovou mal. n?o rendia a canjíca. desproporcionada aococho, a haste n?o dava o jogo da regra. a m?o, por muitoleve ou por defeito de esquadria na virgem, guinava àesquerda ao bater, espirrando milho para fora. por mal dospecados, à primeira chuvinha o pil?o entrou a rever agua.fora escavado em madeira ventada. (10) n?o prestava.nunes, de má sombra, represando a cólera, meteu-se areparar tantas "torturas". diminuiu o peso ao macaco, (11)engrossou as águas, amarrou ali, especou acolá, calafetoufendas. consumiu dias em luta surda contra as manhas domal-engon?ado. mas a peste do monstrengo respondia acada arranjo com uma reincidência de desalentar.o pobre homem explodiu, ent?o. da boca lhe espirraram injúrias semfim contra o patife do carapina.- excomungado do diabo de maldelazento de maneta...impossível meter no papel todas as contas do rosário;as miúdas inda cabem, mas as graúdas n?o podem sairdo varj?o. além de injúrias, amea?as. que iria à pontealta rachar o compadre à foice; que lhe vazava a outravista; que...num desses desabafos, a tola da mulher meteu a colhertorta no meio.- eu bem disse, eu bem avisei. mas o "queixo duro"n?o fez caso...ai! nunes, que só esperava por aquilo, passou a m?o nasapuva (12) e encarnando na esposa o odiado maneta deslombou-a numa sovadeconsertar negro ladr?o.- toma, cachorro! toma, excomungado do inferno!aprende a fazer monjolo, porco sujo! e malhava...a mulher sumiu-se aos pinotes mata adentro, seguidado mulherio miúdo; e por oito dias andou em esfrega??esde salmoura pela polpa avergoada. nunes, porém, melhorouconsideravelmente com o derivativo. mundificou-se dabílis.a nova de tais sucessos chegou à porungada. pedro,exultante, n?o teve m?o de si, quis ver com os própriosolhos a caranguejola que o vingava t?o a pique. meditouum plano, e lá um dia transp?s o espig?o, rumo à casa dorival. voltou uma hora depois espremendo risos fungados.- eh, eh, minha gente! vocês n?o calculam. quandovirei o espig?o ja ouvi o barulho - chóó-pan -, uma ronqueira dosdiabos! disse comigo: roncar, ele ronca, eh, eh!fui chegando. o nunes, jururu, estava debulhando milho na porta. quandome viu entreparou, amode que assombrado.- "? de paz!" eu disse, e me plantei diante dele. "doischefes de família, ainda mais vizinhos, n?o podem vivertoda a vida assim de focinho "trucido" um p'r'o outro. oque foi, foi. acabou-se. toque."ele relanceou os olhos p'r'o lado da ronqueira - eh,eh! - e muito desconchavado me espichou a m?o semabrir o bico.- "traga um café!", gritou p'ra dentro.enfiei os olhos pela casa: estava "assim" de mulheradana cozinha! peguei de prosa. ele foi respondendo. conversa sem gra?a,amarradinha. por fim especulei: "e o monjolo, vizinho, ficou na ordem?"nunes amarelou que nemesta folha!- "? bonzinho, rende bem..."- "quero ver", disse eu, "se n?o é curiosidade..."- "pois vá", respondeu sem se mexer do lugar.e fui.nossa virgem! aquilo nunca foi monjolo, nem aqui nemna casa do diabo! só se vê amarrilhos de cipó e espeques emacacos. a haste tem nove palmos e o cocho a mó que temdez!...- quiá! quiá! quiá! - cacarejou a roda, que em matériade monjolo era entendidíssima.- a m?o n?o pesa, homem, n?o pesa nem arroba emeia! a virgem está errada e fora do prumo. milho estáque está alvejando o ch?o. a m?o pincha duma banda.os porunguinhas babavam.- ent?o, roncar ele ronca?- nossa! ronca que nem uma trumenta. mas, socar? oboi soca! nem três litros rende por dia. homem, gentes,aquilo é coisa que só vendo!a cara dos porungas, anuviada desde o incidente daperoba, refloriu dali por diante nos saudáveis risos escarninhos dodespique. as nuvens foram escurentar os céus dovarj?o. era um nunca se acabar de tro?as e pilhérias detoda ordem. inventavam tra?os c?micos, exageravam astrapalhices do mundéu. enfeitavam-no como se faz ao mastro de s?ojo?o. sobre as linhas gerais debuxadas pelo velho, os porunguinhas iamatando cada qual o seu buquê, demodo a tornar o pobre monjolo uma coisa prodigiosamentec?mica. a palavra ronqueira entrou a girar nas vizinhan?ascomo termo comparativo de tudo quanto é risível ou sempé nem cabe?a.aos ouvidos do nunes foram bater tais rumores. oorgulho, muito medrado no período dos sonhos de grandeza, murchara-lhecomo fruta verde colhida antes do tempo. mas, impossibilitado devingar-se, deu de criar umrancor surdo contra a ronqueira, que, tr?pega, lá ia malhando, dia enoite, chó?-pan, muito lerda, muito parca derendimento. para acalmar a bílis, nunes dobrou as dosesde cacha?a.a mulher amanhava a casa num grande desconsolo davida, esmolambada, sem mais esperan?as d'arranjo p'r'aquele homem.sempre rentando o pai, somíssimo, pernambi pareciaum velhinho idiota. n?o tirava da boca o pito e cada vezbatia mais forte no mulherio miúdo.brinquinho desnorteara. sentado nas patas traseiras olhava, inclinando acabe?a, ora para um, ora para outro, semsaber o que pensar da sua gente.e assim, meses.afinal, veio a desgra?a. feiti?o de pau ou n?o, o caso foique o inocente pagou o crime do pecador, como é da justi?abíblica. certo dia soube nunes que o josé cuitelo da pedrabranca, outro compadre, pusera nome a uma égua lazarenta de ronqueira.era demais.- até aquele cachorro do cuitelo! - gemeu o mísero,passando a m?o na garrafa.sorveu um gole e:- pernambizinho, vem cá. bebe com teu pai, meu filho.o menino n?o esperou novo convite: bebeu, um, dois etrês goles, estalando a língua. o resto da garrafa soverteu-se nobucho do caboclo. mal tonteado pelos eflúvios doálcool, o menino banzou um bocado por ali e depois saiu.nunes estirou-se ao sol para dormir.era um dia feio de agosto. céu turvo do fumo das queimadas.sol de cobre, sem brilho, a modorrar no ocaso. folhinhascarbonizadas a descerem lentas do alto, regirantes.transcorrida uma hora, o bêbedo acordou, relanceouem torno os olhos morti?os.- quedele pernambi? - disse às filhas acocoradas àsoleira da porta.as meninas n?o sabiam do irm?o.- chamem pernambi, engrolou o bêbedo, recaindo emcochilo.uma das pequenas saiu no encal?o do menino.os olhos de nunes a custo se abriam; sua cabe?a oscilava, como se lhehouvessem desossado o pesco?o. da bocaescorria-lhe baba, e molhadas nela as palavras vinham vagas, mal atadas.súbito, um grito lancinante ao longe alvorotou a casa.a mulher, estonteada, surge de dentro do casebre, páraà porta, orienta-se e corre para onde a voz. as filhas disparam-lheatrás, rumo ao monjolo.silêncio trágico.depois novos gritos - gritos em coro -, gritos dedesespero.- coitadinho do meu filho! - uivava lá longe a m?e.nunes soergue-se, amparado ao portal.- que é isso? - grunhe.ninguém lhe responde. n?o há ninguém por ali. masno monjolo recrudesce a grita. para lá segue o bêbedo,cambaleante. em caminho dá de cara com a mulher, quevoltava descabelada, a falar sozinha.- que é que foi, mulher?arrostando com o marido, a pobre m?e afuzila nos olhosum raio de cólera incoercível.- o que é? ? tua obra, cachaceiro do inferno! ? a tuapinga, homem à-toa, esterco imundo! vá ver, vá ver, vá ver,desgra?ado!...nunes alcan?a o monjolo com dificuldade. e topa umquadro horrendo. no meio das filhas em grita, o corpinhomagro de pernambi de borco no pil?o. para fora, pendentes,duas pernas franzinas - e o monjolo impassível, a subir ea descer, chóó-pan, pilando uma pasta vermelha de farinha,miolos e pelanca...esvaem-se-lhe os vapores do álcool e em semidemêncianunes corre ao machado, ringindo os dentes, aos uivos.- chegou teu dia, desgra?ado!cena lúgubre foi aquela! entre rugidos de cólera, o loucoarremessava golpes tremendos contra o engenho assassino. uma pancada nam?o - toma barbazu! outra na haste- rebenta dem?nio! outra no pil?o - estoura feiticeiro dodiabo! - e pan, pan, pan - dez, vinte, cem machadadascomo nunca as desferiu derrubador nenhum com tal rijezade pulso.cavacos saltavam para longe, róseos cavacos da perobaassassina. e lascas. e achas...longo tempo durou o duelo trágico da demência contraa matéria bruta. por fim, quando o monjolo maldito era jáum monte escavado de pe?as em desmantelo, o míserocaboclo tombou por terra, arquejante, abra?ado ao corpoinerte do filho. instintivamente, sua m?o trêmula apalpavao fundo do pil?o em procura da cabecinha que faltava.notas:1. o conto "a vingan?a da peroba" foi publicado na primeira edi??ode uru pês,com o título de "chóóó! pan!".2. cuiame: por??o de cuias. jogo de palavras; as cuias se fazem dascaba?as, ou porungas.3. cocho: parte traseira do monjolo, que recebe a água.4. haste: madeiro comprido que constitui a parte principal do monjolo.5. munheca: m?o de monjolo, pe?a que serve para pilar.6. pil?o: recipiente de madeira (tronco escavado) que recebe o milho aser pilado.7. virgem: pe?a em cuja forquilha gira a haste.8. ancorote: barrilete próprio para transportar pinga em lombo deburro.9. inferno: lugar onde a água que move o monjolo despeja depois deenchido o cocho.10. madeira ventada: madeira naturalmente rachada.11. macaco: contrapeso destinado a assegurar o bom equilíbrio de haste domonjolo.12. sapuva: madeira de que se fazem bons porretes.um suplício modernotodas as crueldades de que foi useira a inquisi??o parareduzir heréticos, as torturas requintadas da "quest?o" medieval, oempalamento otomano, o suplício chinês dos milpeda?os, o chumbo em fus?o metido a funil gorgomilosadentro - toda a velha ciência de martirizar subsiste aindahoje encapotada sob hábeis disfarces. a humanidade é sempre a mesma cruelchacinadora de si própria, numerem-seos séculos anterior ou posteriormente ao cristo. mudam deforma as coisas; a essência nunca muda. como prova denuncia-se aqui umavatar moderno das antigas torturas: oestafetamento.este suplício vale o torniquete, a fogueira, o garrote, apolé, o touro de bronze, a empala??o, o bacalhau, o tronco,a roda hidráulica de surrar. a diferen?a é que estas engenharias matavamcom certa rapidez, ao passo que o estafetamento prolonga por anos aagonia do paciente.estafeta-se um homem da seguinte maneira: o governo,por malévola indica??o dum chefe político, hodierno suced?neo do"familiar" do santo ofício, nomeia um cidad?oestafeta do correio entre duas cidades convizinhas n?o ligadas por viaférrea.o ingênuo vê no caso honraria e negócio. ? honra penetrar na falangegorda dos carrapatos or?amentívoros quepacientemente devoram o país; é negócio lambiscar ao termo de cada mês umordenado fixo, tendo arrumadinha, nofuturo, a cama fofa da aposentadoria.note-se aqui a diferen?a entre os ominosos tempos medievos e ossobreexcelentes da democracia de hoje. o absolutismo agarrava às brutas avítima e, sem tir-te nem habeas-corp os, trucidava-a; a democracia operacom manhasde tartufo, arma arapucas, mete dentro rodelas de laranjae espera aleivosamente que, sponte sua, caia no la?o o passarinho. quervítimas ao acaso, n?o escolhe. chama-se aisto - arte pela arte...nomeado que é o homem, n?o percebe a princípio a suadesgra?a. só ao cabo de um mês ou dois é que entra adesconfiar; desconfian?a que por graus se vai fazendo certeza, certezahorrível de que o empalaram no lombilho durodo pior matungo das redondezas, com, pela frente, cinco,seis, sete léguas de tortura a engolir por dia, de mala postalà garupa.eis as puas do aparelho de tormento, as tais léguas!para o comum dos mortais, uma légua é uma légua; é amedida duma dist?ncia que principia aqui e acaba lá. quemviaja, feito o percurso, chega e é feliz.as léguas do estafeta, porém, mal acabam voltam dacapo, como nas músicas. vencidas as seis (suponhamos umcaso em que sejam só seis) renascem na sua frente de volta.? fazê-las e desfazê-las. teia de penélope, rochedo de sísifo,há de permeio entre o ir e o vir a má digest?o do jantarrequentado e a noite mal dormida; e assim um mês, umano, dois, três, cinco, enquanto lhes restarem, a ele nádegas,e ao sendeiro lombo.quando cruza um viandante a jornadear, morde-o ainveja: aquele breve "chegará", ao passo que para o estafetatal verbo é uma irris?o. mal apeia, derreado, com o coranchim em fogo, aotermo dos trinta e seis mil metros dacaminheira, come lá o mau feij?o, dorme lá a má soneca ea aurora do dia seguinte estira-lhe à frente, à guisa de"bom dia!", os mesmos trinta e seis mil metros da véspera,agora espichados ao contrário...breve o animal, pisado, dá de si, fraqueja. já os topes ocavaleiro galga a pé. n?o possui meios de adquirir outramontada. o ordenado vai-se-lhe em milho e "rapador" (1)para a alimária, água de sal para os semicúpios e maisremédios às pisaduras de ambos, cavalgante e cavalgado.n?o sobeja sequer para roupa.dá-lhe o estado - o mesmo que custeia enxundiosastaturanas burocráticas a contos por mês, e baitacas parlamentares a 200mil réis por dia - dá-lhe o generoso estado...cem mil réis mensais. quer dizer "um real" por nove bra?asde tormento. com um vintém paga-lhe trezentos e trintametros de suplício. vem a sair a sessenta réis o quil?metrode martírio. dor mais barata é impossível.o estafeta entra a definhar de canseira e fome. v?o-se-lhe as carnes, asbochechas encovam, as pernas viram parênteses dentro dos quais mora abarriga do desventurado rocim.além das calamidades fisiológicas, econ?micas e sociais, chovem-lhe emcima as meteorológicas. o tempo inclemente n?o lhe poupa judiarias.no ver?o n?o se dói o sol de assá-lo como se assampinh?es nas cinzas. se chove, de nenhuma gota se livra.pelos fins de maio, à entrada do frio, é entanguido como umsúdito de nicolau exilado nas sibérias que devora as léguasinfernais. no dia de s. bartolomeu, agarrado de unhas àcrina da escanzelada égua, é por milagre que n?o os despejaa ambos, pirambeira abaixo, o endemoninhado vento.o patr?o-governo pressup?e que ele é de ferro e suasnádegas s?o de a?o; que o tempo é um permanente céu com"brisas fagueiras" ocupadas em soprar sobre os caminhantes os olores da"balsamina em flor".pressup?e ainda que os cem mil réis do salário s?o umapaga real de lamber as unhas. e, nestas angelicais pressuposi??es, quandohá crises financeiras e lhe lembram economias, corta seus cinco, seus dezmil réis no pingue ordenado, para que haja sobras permitidoras d'ir àeuropa umgenro em comiss?o de estudos sobre "a influência zigomática do periéliosolar no regime zaratústrico das democracias latinas".e assim o exército dos estafetas, dia a dia mais encanifrado, encalacradode dívidas, enchagado de pisaduras, aosol de dezembro ou à garoa entanguente de junho, trota,trota sem cessar, morro acima, morro abaixo, por atoleirose are?es, caldeir?es e escorregadoiros, sacudido pela miserandacavalgadura que de tanto padecer, coitada, já nemjeito de cavalo tem.o lombo delas é todo uma chaga viva; as costelas, umripado. caricaturas contristadoras do nobre equus, um diarebentam de fome, exaustas, a meio de viagem.o estafeta toma às costas os arreios, a mala, e conclui acaminheira a pé. nesse dia chega fora de horas, e o agentedo correio oficia ao centro sobre a "irregularidade".o centro move-se; faz correr um papelório através devárias salas onde, comodamente espapa?ada em poltronascaras, a burocracia gorda palestra sobre espi?es alem?es.depois de demorada viagem, o papelório chega a um gabinete onde impa emsecretária de imbuia, fumegando o seucharuto, um sujeito de boas carnes e ótimas cores. estevence dois contos de réis por mês; é filho d'algo; é cunhado,sogro ou genro d'algo; entra às onze e sai às três, com folgade permeio para uma "batida" no frege da esquina.o canastr?o corre os olhos morti?os de lombeira porsobre o papel e grunhe:- estes estafetas, que malandros!e assina a demiss?o daquele a bem do servi?o público.(e se isso n?o acontece, acontece pior. certa vez o agente do correioduma cidadezinha paulista oficiou ao centroqueixando-se do estafeta. o centro respondeu autorizando-o a "punir comseveridade o faltoso". o agente meditaa sério sobre o caso; depois, mostrando o ofício ao estafeta,e com muita dor de cora??o, ferra-lhe em nome do governoa maior sova de chicote de que há memória no lugar. emseguida, oficia ao centro dando conta do desempenho damiss?o e declarando que o servi?o ficaria interrompido poruma quinzena, visto o paciente estar de cama, a curar-secom salmoura...)o supliciado, posto no olho da rua, sem saúde, semcavalo, sem nádegas, coberto de dívidas, com o fígado emais vísceras fora do lugar em virtude do muito que "chacoalharam", vê-selogo rodeado pela chusma de credores,ávidos como urubus de charqueada. como está nu, mais nuque job, n?o pode pagar a nenhum - e ganha fama decaloteiro.- parecia um homem sério, e no entanto roubou-mecinco alqueires de milho, diz o da venda, calabrês gordo,enricado no passamento de notas falsas.- tomou-me emprestados cem mil réis para a comprade um cavalo, a jurinho d'amigo (cinco por cento ao mês),já lá v?o cinco anos, e por muito favor pagou-me o premiozinho e deu osarreios por conta. que ladr?o! diz o onzeneiro, sócio do outro na notafalsa.a loja de fazenda chora umas cal?as de algod?o mineiroque lhe fiou em tempo. a farmácia, um quilo de sal-amargofalsificado. abeberado de insultos, o mártir só vê pela frente uma saída:fincar o pé na estrada e fugir... fugir para umaterra qualquer onde o desconhe?am e o deixem morrer em paz.dest'arte, o moderno suplício do estafetamento, além decharquear as carnes duma criatura humana limpa de crimes, dá-lhe ainda delambuja uma bela mortezinha moral.tudo isto a fim de que n?o falte aos soletradores de taisbibocas do sert?o o pábulo diário de graxa preta em fundobranco, por meio do qual se estampam em língua bunda asfacadas que pé espalhado deu no camisa preta, o queijoque furtou o baianinho ao manoel da venda, o romancetraduzido de jorge ohnet, o salvamento da pátria pela altavolataria nacional, o palavreado gordo das ligas disto edaquilo, a descoberta de espi?es onde nada há que espiar,a policultura, o zebu, o analfabetismo, o aliadismo, o germanismo, aspotocas da havas e quanta papalvice grela pormassapés e terras roxas deste país das arábias.a política do coronel evandro em itaoca deu com orabo na cerca des'que em tal pleito o competidor fidêncio,também coronel, guindou a cota??o dos votos de gravata aquinhentos mil réis, e a dos votos de pé-no-ch?o a doisparelhos de roupa, mais um chapéu.o primeiro ato do vencedor foi correr a vassoura doolho da rua em tudo quanto era olhodarruável em matériade funcionalismo público. entre os varridos estava a gentedo correio, inclusive o estafeta, para cuja substitui??o inculcou-se aogoverno o izé biriba.era este biriba um caranguejo humano, lerdo de maneiras e atolambado deidéias, com dois percal?os tremendosna vida - a política e o topete.o topete consistia num palmo de grenha teimosa em lhecair sobre a testa, e t?o insistente nisto que gastava elemetade do dia erguendo a m?o esquerda à altura da frontepara, num movimento maquinal, botar p'r'arriba a crinarebelde. a política escusa dizer o que é.coligados ambos, topete e política comiam-lhe o tempointeiro, de jeito a n?o lhe deixar folga nenhuma para oamanho do sítio, que, afinal, roído pelo cupim da hipoteca,lá foi parar nas unhas dum onzeneiro ladr?o.montou em seguida botequim mas faliu. enquanto biriba arrumava o topete,os fregueses surrupiavam-lhe os mata-bichos; e nas cavaqueiras políticas,os correligionários, depasso que expeliam diatribes contra o governo, sorviamcapilés refrescantes e mascavam bolinhos de peixe por conta da vitóriafutura.além do topete tinha biriba o sestro do "sim senhor"al?ado às fun??es de vírgula, ponto-e-vírgula, dois-pontos eponto final de todas as parvoi?adas emitidas pelo parceiro;e às vezes, pelo hábito, quando o freguês parando de falarentrava a comer, continuava ele escandindo a "sim senhores" a mastiga??odo bolinho filado.-qurup?s 77ao tempo da queda do outro e subida de sua gente,andava biriba reduzido à conspícua posi??o de "fósforo"eleitoral. no pleito trabalhara como nenhum. deram-lhe aspiores miss?es - acuar eleitores tabaréus embibocados nossocav?es das serras, negociar-lhes a consciência, debaterpre?o de votos, barganhá-los com éguas lazarentas e provaraos desconfiados, com argumentos de cochicho ao ouvido,que o governo estava com eles.após a vitória, sentiu pela primeira vez um gozo integral de cora??o,cabe?a e est?mago.vencer! oh, néctar! oh, ambrosia incomparável!o nosso homem regalou as vísceras com o petisco dosdeuses. até que enfim os negrores da vida de misérias lhealvorejavam em aurora. comer à farta, serrar de cima...delícias do triunfo!que lhe daria o chefe?no antegozo da pepineira iminente, viveu a rebolar-seem cama de rosas até que rebentou sua nomea??o para ocargo de estafeta.sem queda para aquilo, quis relutar, pedir mais; naconferência que teve com o chefe, entretanto, as obje??esque lhe vinham à boca transmutavam-se no habitual "simsenhor", de modo a convencer o coronel de que era aquiloo seu ideal.- veja, biriba, quanto vale a felicidade! pilha um empreg?o! vai o reginopara agente e você para estafeta.o mais que ele p?de alegar foi que n?o tinha cavalgadura.- arranja-se, resolveu de pronto o coronel; tenho láuma égua moira legítima, de passo picado, que vale duzentos mil réis. porser para você, dou-a por metade. o dinheiro? ? o de menos. você toma-o deempréstimo ao leandrinho. arranja-se tudo, homem.o arranjo foi adquirir biriba uma égua trotona pelodobro do valor, com dinheiro tomado a três por cento ao talleandro, que outra coisa n?o era sen?o o testa-de-ferro dopróprio fidêncio. dest'arte, carambolando, o matreiro chefepunha a juros o pior sendeiro da fazenda, além de conservar pelo cabrestoda gratid?o ao idiota estafetado.iniciou biriba o servi?o: seis léguas diárias a fazer hojee a desfazer amanh?, sem outra folga além do último diados meses ímpares.inda bem se fora devorar as léguas na só companhia dachupada mala postal. mas n?o lhe saiu serena assim a empresa. como itaocan?o passasse de mesquinho lugarejoempoleirado no espinha?o da serra e desprovido de tudo,n?o transcorria vez sem que os amigos políticos n?o viessem comencomendas a aviar na cidade. ? hora de partir,surgiam aproveitadores com listinhas de miudezas, ou moleques comrecados.- sinhá disse assim p'ra suncê comprar três carretéisde linha cinqüenta, um papel de agulhas, uma pe?a decadar?o branco, cinco ma?os de grampo miúdo e, se sobejarum tost?o, p'ra trazer uma bala de apito p'r'o seu juquinha.todos aqueles artigos existiam em itaoca, um tantinhomais caros, porém o encomendá-los fora visava apenas aeconomia do tost?o da bala de apito.- sim senhor, sim senhor!...n?o lhe escapava da boca outro som, embora o exasperasse a contínuarepeti??o do abuso.além das pequenas encomendas, pouco trabalhosas, surgiam outras de vulto,como levar um cavalo arreado ao sr.fulano que vinha em tal dia, acompanhar a mulher deetcetrano, e que tais. a tibúrcia, cozinheira preta do coletor, cada vezque ia de férias descansar à cidade era o biribao indicado para conduzi-la.foi como o conheci, guardando costa às amazonas. deviagem para itaoca, a meio caminho topo um homem encavalgado na maisavariada égua que jamais meus olhos viram. à garupa iam malas do correioe vários picuás; nosanto-ant?nio, mais picuás além duma vassoura nova enganchada nos arreioscom a palha para cima. estava parado, em atitude idiotizada, segurandopelo cabresto um cavalinho de silh?o. abordei-o, pedindo fogo. aceso ocigarro, indaguei de quem montava a cavalgadura vazia.- "n?o vê" que estou acompanhando a dona engrácia,que é parteira em itaoca. ela apeou um bocadinho e...ouvi rumor atrás: saía do mato uma mulhera?a rúbida,de saias tufadas de goma, tendo na cabe?a um toucadinhocoevo de 5. m. fidelíssima... para n?o vexá-la, pus-me acaminho, n?o sem, voltando a cara de soslaio, regular-mecom os apuros do estafeta para entalar nas andilhas ascinco arrobas da parteira aliviada.e descomposturas...- seu biriba, n?o foi linha 40 que eu encomendei. osenhor parece bobo!quando a fazenda era má:- n?o viu que a chita desbotava? que moda!doía-lhe, sobretudo, carretear para a execrável gente daoposi??o. o coronel contrário n?o se pejava de por intromiss?o deterceiro, neutro ou oposicionista encapotado, abusar da boa-fé do mártir.lembrava-se biriba, com dor d'alma, de um bode de ra?a que lhe deragrandes trabalhospelo caminho - e várias marradas de lambuja; afinal, chegando, verificouque vinha para o inimigo.toda a gente gozou do caso, entre espirros de riso egalhofa.- ? um pax vobis o biriba! trazer o bode da oposi??o!quiá! quiá! quiá!estas e outras foram-lhe azedando os fígados e as víscerascircunvizinhas. biriba emagreceu. biriba amarelou.a égua, coitada, perdeu a fei??o cavalar. seu lomboselara em meia-lua, de modo que por um nadinha n?oraspavam o ch?o os pés do cavaleiro. montado, biriba afundava. sua cabe?acaía quase ao nível duma linha tirada daanca às orelhas da égua. horrendamente pisada, trazia abicha nos olhos permanentes lágrimas de dor; mas em vezde tanta mazela mover ao dó o cora??o dos itaoquenses,regalava-os, e eram chufas sem fim e piadas idiotas acercado "estafeta da triste figura mais a sua bucéfala", comoos batizou um engra?ado local.lazarento como eles, só o cunegundes, c?o sem dono,coberto de sarna, que perambulava a esmo pela cidade,fugindo a moscas e pontapés. pois n?o lhe mudaram onome para biribinha? cachorrada!n?o tardou muito viesse o governo dar sua volta aotorniquete, cortando dez mil réis no ordenado dos estafetas- para salvar-se em certa ocasi?o de apuros financeiros. esalvou-se, esta é que é!.a roupa no fio. a entrada das chuvas uma alma caridosa deu-lhe uma velhacapa de borracha; mas no primeiroaguaceiro verificou biriba que tal capote vazava como peneira, de modo apiorar-lhe a situa??o com a sobrecargadum panejamento absorvedor de litros d'água.biriba, perdida a paciência, murmurou.ai! soube-o logo o chefe e fê-lo vir a contas.- ? certo que o senhor me anda arrenegando do emprego que lhe demos?queria, acaso, ser eleito senador ouvice-presidente? um peda?o de porcalh?o que andava aílambendo embira, morre n?o morre de fome, passa, porgenerosidade nossa, a ocupar um cargo federal com ordenado relativamentebom (aqui biriba tossiu um... sim senhor"), encontra todas asfacilidades, recebe um bom animal e ainda se queixa? que quer ent?o vossaexcelência?biriba intumesceu-se de coragem e declarou querer umacoisa só: a demiss?o. estava doente, surradíssimo, amea?ado de perder deum momento para outro a égua e asnádegas. queria mudar de vida.muda-se, ent?o, de vida assim do pé para a m?o?quer abandonar os amigos? e a disciplina partidária ondefica, meu caro palerma?n?o convinha a ninguém a saída do biriba. quem maisservi?al? lembravam-se dos estafetas anteriores, malcriados, inimigos detrazer um papel d'agulha fosse para quemfosse. n?o sairia. itaoca impunha-lhe o sacrifício de ficar.mas a tortura do diário chocalhar por sete léguas dasvísceras do biriba acabou por desconjuntar nele o cimentoda lealdade partidária. o mártir abriu os olhos. lembrou-se com saudadesdos ominosos tempos do coronel evandro,das delícias do botequim e até do calamitoso período dadegrada??o "fosfórica". piorara após o triunfo, n?o haviadúvida.este livre exame de consciência - crede-me, foi o inícioda queda do coronel fidêncio em itaoca. biriba, o firmeesteio, apodrecia pelo nabo; viria abaixo, e com ele a cumeeira dopardieiro político. a víbora da trai??o armaraninho em sua o o novo pleito se aproximasse, nova vitória lheseria novo triênio de martírio. biriba ponderou de si parasua égua que a salva??o de ambos estava na derrota. demitiam-no, e ele,veterano e mártir do fidencismo, continuariacom jus ao apoio do partido, sem padecer por via coccigiana o contatoodioso das sete horas diárias de socado.deliberou trair.na véspera da elei??o incumbiu-o fidêncio de trazer dacidade um papel importantíssimo para o tribofe das urnas.sei lá o que era! um "papel". a palavra "papel" dita assimem tom de mistério traz no bojo coisasfidêncio frisou a gravidade da incumbência - a maiorprova de confian?a jamais dada por ele a um cabo eleitoral.- veja lá! a nossa sorte está nas suas m?os. isto é queé confian?a, hein?partiu biriba. recebeu na cidade o "papel" e rodoupara trás. a meio caminho, porém, tomou por uma errada,foi ter à biboca dum negro velho, soltou a égua, pegou deprosa com o gorila. caiu a noite: biriba deixou-se ficar.alvoreceu o dia seguinte: biriba quieto. dez dias se passaram assim. aocabo, arreou a égua, montou e botou-se paraitaoca como se nada houvera acontecido.foi um assombro a sua apari??o. baldadas as tentativaspara apanhá-lo no dia do pleito e nos posteriores, deram-nocomo papado pelas on?as, ele, égua, mala postal e "papel".vê-lo agora surgir s?ozinho da silva foi um abrir de boca eum pasmar à vila inteira. que houve? que n?o houve?a todas as perguntas biriba armava na cara a supremaexpress?o da idiotia. nada explicava. n?o sabia de nada.sono cataléptico? feiti?o? n?o compreendia o sucedido.afigurava-se-lhe ter partido na véspera e estar de volta nodia certo.ficaram todos maravilhados, com asníssimas caras.fidêncio delirava na cama, com febre cerebral. perderaa elei??o redondamente. "derrota fedida", arrotavam osvencedores, atochando foguetes de assobio.em conseqüência do inexplicável eclipse do estafeta senhoreou-se dorebenque o ex-ominoso evandro. come?ou aderrubada. o olho-da-rua recebeu em seu seio tudo quantocheirava a fidencismo. a vassoura da demiss?o, porém,poupou a... biriba.o novo cacique aproximou-se dele e disse:- demiti toda a canalha, biriba, menos a você. você éa única coisa que se salva da quadrilha do fidêncio. fiquesossegado, que do seu lugarzinho ninguém o arranca, nemque o céu chova torqueses.pela derradeira vez em itaoca, biriba balbuciou o "simsenhor". ? noite deu um beijo no focinho da égua e saiu decasa pé ante pé. ganhou a estrada e sumiu.e nunca mais ninguém lhe p?s a vista em cima...nota:rapador: pasto de aluguel muito sovado; rapado.meu conto de maupassantconversavam no trem dois sujeitos. aproximei-me e ouvi:- "anda a vida cheia de contos de maupassant; infelizmente hápouquíssimos guys..."- "por que maupassant e n?o kipling, por exemplo?"- "porque a vida é amor e morte, e a arte de maupassant é nove em dez umenquadramento engenhoso do amore da morte. mudam-se os cenários, variam os atores, mas asubst?ncia persiste - o amor, sob a única face impressionante, a queculmina numa posse violenta de fauno incendido de luxúria, e a morte, oestertor da vida em transe, oquinto ato, o epílogo fisiológico. a morte e o amor, meucaro, s?o os dois únicos momentos em que a jogralice davida arranca a máscara e freme num delírio trágico."- "n?o te rias. n?o componho frases. justifico-me. navida, só deixamos de ser uns palha?os inconscientes a mentirmos ànatureza quando esta, reagindo, p?e a nu o instinto hirsuto ou acena o'basta' final que recolhe o mau atorao pó. só há grandeza, em suma, e 'seriedade', quandocessa de agir o pobre jogral que é o homem feito, guiado edirigido por morais, religi?es, códigos, modas e mais posti?os de suainven??o - e entra em cena a natureza bruta."- "a propósito de que tanta filosofia, com este calor dejaneiro?..."o comboio corria entre s?o josé e quiririm. regi?o arrozeira em plenafaina do corte. os campos em sega tinhamo aspecto de cabelos louros tosados à escovinha. pura paisagem européiade trigais.a espa?os feriam nossos olhos quadros de millet, emfuga lenta, se longe, ou rápida, se perto. vultos femininosde cesta à cabe?a, que paravam a ver passar o trem. vultosde homens amontoando feixes de espigas para a malha??odo dia seguinte. carro??es tirados a bois recolhendo o cereal ensacado. ecomo caía a tarde e a mantiqueira já erauma pincelada opaca de índigo a barrar a imprimaduraevanescente do azul, vimos em certo trecho o original do"angelus"...- "já te digo a propósito de que vem tanta filosofia."e, enfiando os olhos pela janela, calou-se. houve umapausa de minutos. súbito, apontando um velho saguarajiavultado à margem da linha e logo sumido para trás, disse:- "a propósito dessa árvore que passou. foi ela comparsa no 'meu conto demaupassant"'.- "conta lá, se é curto."o primeiro sujeito n?o se ajeitou no banco, nem limpouo pigarro, como é de estilo. sem transi??o foi logo narrando.- "havia um italiano, morador destas bandas, que tinha vendola naestrada. tipo mal-encarado e ruim. bebia,jogava, e por várias vezes andou às voltas com as autoridades. certo dia- eu era delegado de polícia - uns piraquaras vieram dizer-me que em talparte jazia o 'corpo morto'de uma velha, picado à anizei a diligência e acompanhei-os. '? lá naquelesaguaraji', disseram ao aproximarem-se da árvore que passou. espetáculorepelente! ainda tenho na pele o arrepio dehorror que me correu pelo corpo ao dar uma topada balofanum corpo mole. era a cabe?a da velha, semi-oculta sobfolhas secas. porque o malvado a decepara do tronco, lan?ando-a a algunsmetros de dist?o por sistema eu desconfiasse do italiano, prendi-o.havia contra ele indícios fortes. viram-no sair com a foice,a lenhar, na tarde do crime.entretanto, por falta de provas, foi restituído à liberdade, mau gradomeu, pois cada vez mais me capacitava dasua culpabilidade. eu pressentia naquele sórdido tipo - enegue-se valor ao pressentimento! - o miserável matadorda pobre velha".- "que interesse tinha no crime?"- "nenhum. era o que alegava. era como argumentava a logicazinha trivialde toda a gente. n?o obstante, eu otrazia de olho, certo de que era o homicida."o patife, n?o demorou muito, traspassou o negócio esumiu-se. eu do meu lado deixei a polícia e do crime sóme ficou, nítida, a sensa??o da topada mole na cabe?a davelha.anos depois o caso reviveu. a polícia obteve indíciosveementes contra o italiano, que andava por s?o paulonum grau extremo de decadência moral, pensionista doxadrez por furtos e bebedices. prenderam-no e remeteramno para cá, onde ojúri iria decidir da sua sorte.- "os teus pressentimentos..."o sujeito sorriu com malícia e continuou.- "n?o resistiu, n?o reagiu, n?o protestou. tomou otrem no brás e veio de cabe?a baixa, sem proferir palavra,até s?o josé; daí por diante (quem o conta é um soldadoda escolta) metia amiúde os olhos pela janela, como preocupado em verqualquer coisa na paisagem, até que defrontou o saguaraji. nesse pontoarmou um pincho de gatoe despejou-se pela janela fora. apanharam-no morto, decr?nio rachado, a escorrer a couve-flor dos miolos perto daárvore fatal."- "o remorso!"- "está aqui o 'meu conto de maupassant'. tive aimpress?o dele nas palavras do soldado da escolta: 'veio decabe?a baixa até s?o josé, daí por diante enfiou os olhospela janela até enxergar a árvore e pinchou-se'. no progresso ingênuo danarrativa, li toda a tragédia íntima daquelecérebro, senti todo um drama psicológico que nunca seráescrito..."- "? curioso!", comentou o outro, pensativamente.mas o primeiro sujeito acendeu o cigarro e concluiusorridente, com pausada lentid?o:- "o curioso é que mais tarde um dos piraquarasdenunciadores do crime, e filho da velha, preso por picarum companheiro a foi?adas, confessou-se também o assassinoda velhinha, sua m?e...""meu caro, aquele pobre oscar fingall o'flahertiewills wilde disse muita coisa, quando disse que a vidasabe melhor imitar a arte do que a arte sabe imitar a vida."nota:na primeira edi??o de urupês, o trabalho "meu conto de maupassant"tinha o artigo precedendo o possessivo: "o meu conto de maupassant"."pollice verso"dos dezesseis filhos do coronel inácio da gama, cedorevelou o ca?ula singulares aptid?es para médico. pelo menos assimjulgara o pai, como quer que o encontrasse nahorta interessadíssimo em destripar um passarinho agonizante.- descobri a voca??o do nico, disse o arguto sujeito àmulher. dá um ótimo esculápio. inda agorinha o vi lá foradissecando um sanha?o vivo.h?o de duvidar os naturalistas estremes que o homemdissesse dissecar. um coronel indígena falar assim com esterigor de glótica é coisa inadmissível aos que avaliam ogênero inteiro pela meia dúzia de pafurícios agaloados doseu conhecimento. pois disse. este coronel gama abria exce??o à regra;tinha suas luzes, lia seu jornal, devorara emmo?o o rocambole, as memórias de um médico e acompanhava debates dac?mara com grande admira??o pelo ruibarbosa, o barbosa lima, o nilo e outros. vinha-lhe daí umcerto apuro na linguagem, destoante do achavascado ambiente glóssico dafazenda, onde morava.quem nada percebeu foi dona joaquininha, a avaliarpelo ar emparvecido que deu à cara.- dissecando - explicou superiormente o marido - quer dizer destripando.- e deixou você que ele cometesse semelhante malvadeza? - exclamou aexcelente senhora, compadecida.- lá vens com a pieguice!... deixa-o brincar, que é daidade, eu em pequeno fazia piores e nem por isso vireinenhum ogre.(outra vez! "ogre!" o homem nascera precioso. esteogre devia ser reminiscência do ogre da córsega, napole?ochamado. perdoem-lho à guisa de compensa??o à parcim?nia da esposa, cujovocabulário era dos mais restritos.)dona joaquina fechou a cara, e quando o pequeno facínora entrou noquintal pediu-lhe contas da perversidade,asperamente. o coronel, que nesse momento lia na rede asfolhas recém-chegadas, houve por bem interromper a ingest?o de umflamante discurso sobre a quest?o do amapápara acudir em apoio ao fedelho.- uma vez que será médico, n?o vejo mal em ir-sefamiliarizando com a anatomia...- a anatomia está ali! - rematou a encolerizada senhora apontando a varade marmelo oculta atrás da porta.- eu que saiba que o senhor me anda com judiarias aospobres animaizinhos, que te disseco o lombo com aquelaanatomia, ouviu, seu carniceiro?o menino raspou-se; o coronel retomou resignado o fiodo discurso; e o caso do sanha?o ficou por ali.mas n?o ficou por ali a malvadez do nico. acautelava-se agora. era àsescondidas que "depenava" moscas, brinquedo muito curioso, consistente emarrancar-lhes todas aspernas e asas para gozar o sofrimento dos corpinhos inertes. aos griloscortava as saltadeiras, e ria-se de ver osmutilados caminharem como qualquer bichinho de somenos.gatos e c?es farejavam-no de longe, aterrorizados. foraele quem cortara o rabo ao mísero joli da agregada emiliana, e era quemdescadeirava todos os gatos da fazenda.isso, longe. em casa, um anjinho. e assim, anjo internamente e dem?nioextramuros, cresceu até a mudan?a de voz.entrou nesse período para um colégio, e deste pulou parao rio, matriculado em medicina.o emprego que lá deu aos seis anos do curso soube-oele, os amigos e as amigas. os pais sempre viveram empulhados, crentes deque o filho era uma águia a plumar-se,futuro torres homem de itaoca, onde, vendida a fazenda,ent?o moravam. nesta cidade tinham em mente encarreiraro menino, para desbanque dos quatro esculápios locais, unsonagros, dizia o coronel, cuja veterinária rebaixava os itaoquenses àcategoria de cavalos.pelas férias o doutorando aparecia por lá, cada vez "maisoutro", desempenado, com tiques de carioca, "ss" sibilantes, roupas carase uns palavreados técnicos de embasbacar.quando se formou e veio de vez, estava já definitivo,nos vinte e quatro anos. n?o se lhe descreve aqui a cara,porque retratos por meio de palavras têm a propriedade defazer imaginar fei??es às vezes opostas às descritas. dirse-á unicamenteque era um rapaz espigado, entre louro ecastanho, bonito mas antipático - com o olhar do stuartholmes, diziam as meninas doutoras em cinemas. no queixo trazia barba demédico francês, coisa que muito avultaa ciência do proprietário. doentes há que entre um doutorbarbudo e um glabro, ambos desconhecidos, pegam semtir-te no peludo, convictos de que pegam no melhor.o doutor inacinho, entretanto, aborrecia aquele meioacanhado "onde n?o havia campo- "isto aqui", contava em carta aos colegas do rio, "éum puro degredo. clínica escassa e mal pagante, sem margem para grandeslances, e inda assim repartida por quatro curandeiros que se dizemmédicos, perfeitas vacas dehipócrates, estragadores de pepineira com suas consultinhas de cinco milréis. o cirurgi?o da terra é um doyende sessenta anos, emérito extrator de bichos-de-pé e cortador de verrugascom fio de linha. dá iodureto a todo omundo e tem a imbecilidade de arrotar ceticismo, dizendoque o que cura é a natureza. estes rábulas é que estragamo negócio", etc.negócio, pepineira, grandes lances - está aqui a psicologia do novomédico. queria pano verde para as boladasgordas.- "além disso", continuava, ?-me insuportável a ausência de yvonne e devocês. n?o há cá mulheres, nemgente com quem uma pessoa palestre. uma pocilga! asboas p?ndegas do nosso tempo, hein?"ora aqui está: yvonne, os amigos, as p?ndegas foram omelhor do curso. com m?o diurna e noturna manuseou-osa estes tratadistas de anatomia, da fisiologia, da cala?aria, eagora torturavam-no saudades.yvonne voltara à pátria, deixando cá a meia dúzia deamantes que depenara a morrerem de saudades dos seusencantos. antes de ir-se, deu a cada parvo uma estrelinhado céu, para que, a tantas, se encontrassem nela os amorosos olhares. osseis idiotas todas as noites ferravam osolhos, um no "taureau" (ela distribuíra as constela??es emfrancês), outro na "?crevisse", outro na "chevelure de bérenice", oquarto, no "bélier", o quinto em "aritarés", e oderradeiro na "?pi de la vièrge".a garota morria de rir no colo dum apache monmartrino, contando-lhe ahistória c?mica dos seis parvos brasileiros e das seis constela??esrespectivas. liam juntos as seiscartas recebidas a cada vapor, nas quais os protestos amorosos emtemperatura de ebuli??o faziam perdoar a ingramaticalidade do francêsantártico. e respondiam de colabora??o, em carta circular, onde sóvariava o nome da estrelae o endere?o.esta circular era o que havia de terno. queixava-se arapariga de saudades, "essa palavra t?o poética que foraaprender no brasil, o belo país das palmeiras, do céu azul,e dos michês". acoimava-os de ingratos, já em novos amores, ao passo quea pobrezinha, solitária e triste "comme lajuriti", consagrava os dias a rememorar o doce passado.eis explicada a raz?o pela qual, nas noites límpidas,ficava inacinho à janela, pensativo, de olhos postos na "chevelure debérenice".o sonho do mo?o era enriquecer às rápidas para reatara gostosura do idílio interrompido.- paris!... - balbuciava a meia-voz nos momentos dedevaneio, semicerrando os olhos no antegozo do paraíso.sonhava-se lá, riquinho, com yvonne pelo bra?o, flamandono "bois", tal qual nos romances; e a realiza??o deste sonhoera o alvo de todos os seus anelos. jurara à amiga ir ter comela logo que a prosperidade lhe abastasse meios. o tempo,entretanto, corria sem que nenhuma piabanha de vulto lhecaísse na rede. tardava a boiada...entre os médicos antigos de itaoca, o doutor inacinhogozava péssimo renome - se renome péssimo pode sercoisa de gozo.- uma bestinha! - dizia um. - eu fico pasmado masé de saírem da faculdade cavalgaduras daquele porte! ?médico no diploma, na barbicha e no anel do dedo. forad'aí, que cavalo!- e que topete! - acrescentava outro. - presumido epomadista como n?o há segundo. n?o diz humores ousífilis; é mal luético. eu o que queria era pilhá-lo numaconferência, para escachar...o pai, já viúvo ent?o, esse babava-se d'orgulho. filhomédico, e ainda por cima destabocado e bem falante comoaquele... era de moer de inveja aos mais. enlevava-o, sobretudo, aquelemodo aicandorado de exprimir-se. revia-se nofilho, o coronel...- a terminologia inteira da ciência alopata, coisas emgrego e latim, circunvolve naquela cabecinha - disse eleuma vez ao vigário, que o olhou de revés, por cima dosóculos, ao som daquele mirífico circunvolve.e assim corria o tempo; entre as diatribes das duasciências, a mo?a e velha, com entremeio dos belos vocábulos que o coronelnunca perdia de meter na fala??o.entrementes adoeceu o major mendanha, capitalista aposentado comtrezentas apólices federais, o rockefeller deitaoca. deu-lhe uma súbita afli??o, uma canseira, e a mulher alvoro?ouse.- n?o é nada, isto passa, acalmou ele.- passará ou n?o!... o melhor é chamar um médico.- qual, médico! isto é nada.n?o era t?o nada assim, como pretendia. ? noite agravou-se-lhe o malestar,e o velho, apreensivo, cedeu às inst?ncias da esposa. chamar aqual deles, porém?- pois o moura, disse a mulher, para quem o da suaconfian?a era este moura.- deus me livre! - retrucou o doente. - aquilo éhomem mal-azarado. pois n?o foi quem tratou o zeca, opeixoto, o jer?nimo? e n?o esticaram a canela todos três?- o doutor fortunato, ent?o...- o fortunato! já esqueceu você do que me ele fez porocasi?o do júri, o tranca? cobrar cinqüenta mil réis por umatestado falso? n?o me pilha mais um vintém, o pirata...no doutor elesb?o n?o se falou: era adversário político.- chama-se o galeno...- ? t?o mosca-morta o galeno... - gemeu o doentecom cara de desconsolo. - andou anos a tratar o faria dohotel como diabético, e já o dava por morto quando umcurandeiro da ro?a o p?s saníssimo com um coco da bahiacomido em jejum. eram solitárias o diabetes do homem...só se viver o filho do inácio?!aqui foi a mulher quem protestou.- eu, a falar a verdade, prefiro a ruindade do galeno,a má sorte do moura, e até o elesb?o...- esse, nunca!... - interrompeu o velho, num assomode rancor político.- ... do que a antipatia do tal doutorzinho. os outrosao menos têm a experiência da vida, ao passo que este...- este, quê?- este, mendanha, é mo?o bonito, que o que quer édinheiro e p?ndega, você n?o vê?- qual!... - emberrinchou o teimoso. - sempre há desaber um pouco mais que os velhos; aprendeu coisas novas.no caso de nhazinha leandro, n?o a p?s boa num ápice?- também que doen?a! pris?o de ventre...urup?s 93- seja pris?o ou soltura, o caso foi que a curou. mandechamar o menino.- olhe, olhe! depois n?o se arrependa!...- mande, mande chamá-lo e já, que n?o me estousentindo bem.inacinho veio. interrogou detidamente o major, tomoulhe o pulso,auscultou-o com o semblante carregado e disse,depois de longa pausa:- n?o diagnostico por enquanto, porque n?o sou leviano como "certos" poraí. sem ausculta??o estetoscópicanada posso dizer. voltarei mais tarde.- vê? - disse mendanha à esposa logo que o mo?opartiu. - fosse o moura, ou qualquer dos tais, e já dali daporta vinha berrando que era isto mais aquilo. este é consciencioso. querfazer uma ausculta??o, quê?- estereoscópica, parece.- seja o que for. quer fazer a coisa pelo direito, é oque é.voltou o mo?o logo depois e com grande cerimonialaplicou o instrumento no peito magro do doente. vincou denovo a fisionomia das rugas da concentra??o e concluiucom imponente solenidade.- ? uma pericardite aguda agravada por uma flegmasia hepático-renal.o doente arregalou o olho. nunca imaginara que dentro de si morassemdoen?as t?o bonitas, embora incompreensíveis.- e é grave doutor? - perguntou a mulher, assustada.- ? e n?o é! - respondeu o sacerdote. - seria gravese, modéstia de lado, em vez de me chamarem a mimchamassem a um desses matassanos que por aí igo é diferente. tive no rio, na clínica hospitalar, numerosos casosmais graves e a nenhum perdi. fique descansada que porei o seu maridocompletamente s?o dentrode um mês.- deus o ou?a! - rematou a mulher, acompanhando-oaté a porta e já meio reconciliada com a "antipatia".- ent?o? - perguntou-lhe o doente. - fiz ou n?o fizbem em chamar este mo?o?- parece... deus queira tenhamos acertado, porque istode médicos é sorte.- n?o é tanto assim - reguingou o velho. - os quesabem, conhecem-se por meia dúzia de palavras, e este mo?o, ou muito meengano ou sabe o que diz. fosse o fortunato...e riu-se lá consigo ao imaginar as doencinhas caseirasque o fortunato descobriria nele...a doen?a do major mendanha ninguém soube qual fosse. o lindo diagnósticode inacinho n?o passava de merasonoridade pelintra. bacorejara ao mo?o que o velho tinhao cora??o fraco e qualquer maromba no fígado. isto porquelhe doía, a ele, aqui no "vazio"; aquilo por ser natural.confessá-lo com esta sem-cerim?nia, porém, seria fazer clínica à moda dofortunato, e desmoralizar-se. além do mais,quem sabe lá se n?o estaria ali o sonhado lance? prolongara doen?a... engordar a maquia...inácio n?o enxergava em mendanha o doente, mas umaboiada maior ou menor, conforme a habilidade do seu jogo.a saúde do velho importava-lhe tanto como as estrelas docéu - exce??o feita à "cabeleira de berenice". como desadorasse amedicina, n?o vendo nela mais que um meiorápido de enriquecer, nem sequer lhe interessava o "casoclínico" em si, como a muitos. queria dinheiro, porque odinheiro lhe daria paris, com yvonne de lambuja. ora, omajor tinha trezentas apólices... dependia pois da sua artimanhamalabarizar aquele fígado, aquele cora??o, aquelaspalavras gregas e, num prestidigitar manhoso, reduzir tudoa uns tantos contos de réis bem sonantes.mandou carta à francesinha: "os negócios melhoraram.estou metido em uma empresa que se me afigura rendosa.saindo tudo a contento, tenho esperan?as de inda este anobeijar-te sob a luz da terna confluente dos nossos olhares..."o velho piorou com a medica??o. inje??es hipodérmicas, cápsulas, pílulas,po??es, n?o houve terapêutica que sen?o experimentasse desastrosamente.-? mais grave o caso do que eu supunha - disse odoutor à mulher - e os escrúpulos do meu sacerdócioaconselham-me a pedir conferência médica. os colegas daterra s?o o que a senhora sabe; entretanto, submeto-me aouvi-los.- n?o, doutor! mendanha n?o quer ouvir falar nosseus colegas; só tem confian?a no doutor inácio gama.- nesse caso...inacinho voltou para casa esfregando as m?os. estavasó em campo, com todos os ventos favoráveis. paris corrialhe aoencontro...mau grado seu, na semana seguinte, inesperadamente,o raio do major apresentou melhoras. sarava, o patife! e ainácio palpitou que com mais uma quinzena daquela arriba??o o homem sepunha de pé.fez os cálculos: trinta visitas, trinta inje??es e tal e tal:três contos. uma miséria! se morresse, já o caso mudava defigura, poderia exigir vinte ou trinta.era costume dos tempos fazerem-se os médicos herdeiros dos clientes.servi?os pagos em caso de cura aí comcentenas de mil réis, em caso de morte reputavam-se emcontos. se os interessados relutavam no pagamento, a quest?o subia aostribunais, com base no arbitramento. os árbitros, mestres do mesmoofício, sustentavam o pedido porcoleguismo, dizendo em latim: hodie mihi, cras tibi, cujatradu??o médica é: prepare-se você para me fazer o mesmo,que também pretendo dar a minha cartada.inácio ponderou tudo isto. mediu prós e contras. consultou acórd?os. et?o absorvido no problema andou que ànoite se deixava ficar à janela até tarde, mergulhado emcismas, sem erguer os olhos para a berenice estelar.o que a sua cabe?a pensou ninguém o saberá jamais.têm as idéias para escondê-las a caixa craniana, o courocabeludo, a grenha: isso por cima; pela frente têm a mentira do olhar e ahipocrisia da boca. assim entrincheiradas,elas, já de si imateriais, ficam inexpugnáveis à argúciaalheia. e vai nisso a pouca de felicidade existente nestemundo sublunar. fosse possível ler nos cérebros claros como se lê nopapel e a humanidade crispar-se-ia de horrorante si própria...positivo como era inacinho, supomos que meteu emequa??o o problema das duas vidas.primeira hipótese:cura do major = três contos.três contos = itaoca, pasmaceira, etc...segunda hipótese:morte do major = trinta contos.trinta contos = paris, yvonne, "bois"...depois desta sólida matemática, esta anavalhante filosofia. "a morte é umpreconceito. n?o há morte. tudo é vida.morrer é transitar de um estado para outro. quem morre,transforma-se. continua a viver inorganicamente, transmutado em gases esais, ou organicamente, feito lucílias, necróforas e uma centena deoutras vidinhas esvoa?antes. queimporta para a universal harmonia das coisas esta ou aquelaforma? tudo é vida. a vida nasce da morte. eu preciso, eu'quero' viver a minha vida. há óbices no caminho? afasto-os..."fiquemos por aqui. n?o há tempo para filosofias, porque o major mendanhapiorou subitamente e lá agoniza.morreu.o atestado de óbito deu como causa mortis flegmatitecomplicada com necrose elipsoidal. podia batizá-la de embolia estourada,nó cego na tripa, tuberculose mesentérica,estupor granuloso peristáltico ou qualquer outro dos cemmil modos de morrer à grega.morreu, e está dito tudo. morreu, e o doutor inacinhoapresentou no inventário uma conta de chegar: trinta ecinco contos de réis.os herdeiros impugnaram o pagamento. move-se a traquitana da justi?a.mói-se o palavreado tabelionesco. saemdas estantes carunchosos trabucos romanos. procede-se aoarbitramento.os árbitros s?o fortunato e moura, os quais disseramentre si:- que grande velhaco! mata o homem e ainda porcima quer ficar-se herdeiro! o tratamento, alto-e-meio, n?ovale cem mil réis. que valha duzentos. que valha um contoou três. mas trinta e cinco? ? ser ladr?o!...no laudo, entretanto, acharam relativamente módico opedido - sem dizer relativo a quê.a justi?a engoliu aquele papel, gestou-o com outrosingredientes da praxe e, a cabo de prazos, partejou ummonstrozinho chamado senten?a, o qual obrigava o espólioa aliviar-se de trinta e cinco contos de réis em proveito domédico, mais custas da esvurmadeia forense. inacinho, radiante, embolsouos cobres e reconciliou-se com os doiscolegas que, afinal de contas, n?o eram os cretinos quesupusera.- colegas, o passado, passado; agora, para a vida epara a morte!- pois está visto! - disse fortunato. - tolo andouvocê em abrir luta com os que ajudam o negócio. o coleguismo: eis a nossagrande for?a!...- tem raz?o, tem raz?o. crian?ada minha, ilus?es, farofas que a idadecura...que mais? que voou a paris? ? claro. voou e lá está sobo pálio da grenha astral, a passear com a yvonne no "bois". kao pai escreveu:- isto é que é vida! que cidade! que povo! que civiliza??o! voudiariamente à sorbonne ouvir as li??es do grande doyen e opero em trêshospitais. voltarei n?o sei quando. fico por cá durante os trinta e cincocontos, ou mais, seo pai entender de auxiliar-me neste aperfei?oamento deestudos.a sorbonne é o apartamento em montmartre onde compartilha com o apache dayvonne o dia da rapariga. os trêshospitais s?o os três cabarés mais à m?o.n?o obstante, o pai cismou naquilo cheio d'orgulho,embora pesaroso: n?o estar viva a joaquininha para ver emque altura pairava o nico - o nico do sanha?o estripado...em paris! na sorbonne!... discípulo querido do doyen, ogrande, o imenso doyen!...mostrou a carta aos médicos reconciliados.- isso de hospitais - gemeu o invejoso fortunato - éuma mina. dá nome. para botar nos anúncios é de primeiríssima.- e o doyen? - murmurou, baboso, o embevecido pai.- n?o há como a gente apropinquar-se das celebridades...- ? isso mesmo, concluiu o moura, relanceando umolhar ao fortunato num comentário mudo àquele miríficoapropinquamento. e os dois enxugaram, à uma, os coposda cerveja comemorativa mandada abrir pelo bem-aventuradocoronel.bucólicatanta chuva ontem!... o cedr?o do pasto fendido peloraio - e hoje, que manh?!a natureza orvalhada tem a frescura de uma criancinhaao deixar o banho. inda há rolos de cerra??o vadia nasgrotas. o sol já nado e ela com tanta pregui?a de recolheros véus de neblina... a vegeta??o toda a pingar orvalho,bisbilhante de gotas que caem e tremelicam, sorri como emêxtase. há em cada verg?ntea folhinhas de esmeralda tenrabrotadas durante a noite. a m?o de quem passa n?o resiste:colhe-as de alcance, porque é um gosto mordiscar-lhe apolpa macia.meu deus! o que vai de aranhóis pela relva - nosgalhinhos de joveva, nas flechas de capim, grandes e pequeninos, todosmimosos de desenho, tecidos a fio de seda...compraz-se a noite em agrumar neles milh?es de diamantezinhos que a luzda manh? irisa. malmequeres por toda aparte - amarelos, brancos. e tanta flor sem nome...- flor à-toa, diz a gente roceira.s?o, coitadinhas, a plebe humílima. a nobreza floralmora nos jardins, esplendendo cores de dan?a serpentinasob formas luxuriosas de odaliscas. a duquesa dália, suamajestade a rosa, o samurai cris?ntemo - que fidalguia!bem longe est?o destas aqui, azuleguinhas, um pouco maiores do que umaconta de rosário.n?o obstante, vejo nestas mais alma. leio mil coisas nasua modéstia. lutaram sem tréguas contra o solo tramadode raízes concorrentes, contra as lagartas, contra os bichosque pastam. que tenacidade, que prodígio de economian?o representam estas iscas de pétalas, e o perfume agresteque as oloriza, e a cor - tentativa de azul - com que seenfeitam, as feiticeirinhas!s?o belas, sim - da sua beleza, a beleza selvática dascoisas que jamais sofreram a domestica??o do homem.as flores de jardim: escravas de harém... adubo farto,terra livre, tutores para a haste, cuidados mil - cuidadosdo homem para com a rês na ceva... as agrestes morremlivres no hastil materno; as fidalgas, na guilhotina da tesoura. fábulado lobo e do c?o...que ar! a gente das cidades, afeita a sorver um indecoroso gás feito depó em suspens?o num misto de mauazoto e pior oxigênio, ignora o prazer sadio que é sentir ospulm?es borbulhantes deste fluido vital em estado de virgindade. ooxigênio fresquinho foi elaborado naquele momento pela vegeta??o vi?osa.respirá-lo é sorver vida ànascente.ali, o rio. ingazeiros desgalhados pendem sobre ele asfran?as, cujas pontas lhe arrepiam o espelho das águas.caem na corrente flores mortas. o movedi?o esquife condulas com mimo atéa barulhenta corredeira próxima; láirritado, amarfanha-as, fá-las peda?os - e as coitadinhasviram babugem.margeia o rio a estrada, ora d'ocre amarelo, ora roxoterra; aqui, túnelsob a verdura picada no alto de nesg?esde luz; além, escampa. nos barrancos há tocos de raízesdecepadas pelo enxad?o e covas de formigueiros mortosonde as corruíras armam ninho.surgem casebres de palha.lá na aguada bate roupa uma mulher.rumor no mato... sai dele, de lenha ao ombro, umacabocla.- sirinh'ana, bom dia! que é do luiz?- no eito, coitado.- sarou bem?- chê que esperan?a! melhorzinho. panarício é umafesta!... baitacas em bando, bulhentas, a sumirem-se numcap?o d'anjico. borboletas amarelas nos úmidos. parece umdebulho de flores de ipê.uma preá que corta o caminho.- pega, vinagre!outra casinha, lá longe. e a toca do urunduva, caboclomaleiteiro. este diabo tem no sítio a coisa mais bela dazona - a paineira grande. dirijo-me para lá. um carreirinho entre ro?as,a pinguela, um valo a saltar... ei-la! quemaravilha!derreada de flores cor-de-rosa, parece uma só imensarosa crespa. beija-flores como ali ninguém jamais viu tantos. milheirosn?o digo - mas centenas, uma centena pelomenos lá está zunindo. chegam de longe todas as manh?senquanto dura a festa floral da paineira m?e. voejam rápidos como opensamento, ora librados no ar, sugandouma corola, ora riscando curvas velocíssimas, em trabalhosde amor.que lindo amor - alado, rutilante de pedrarias!respiro um ar cheiroso, adocicado, e fico-me em enlevoa ver as flores que caem regirantes. se afia mais forte abrisa, despegam-se em bando e recamam o ch?o. devemser assim as árvores do país das fadas...o urunduva? ? ele mesmo. amarelo, inchado a arrastara perna...- ent?o, meu velho, na mesma?- melhorzinho. a quina sempre é remédio.- isso mesmo, quina, quina.- ?... mas está cara, patr?o! um vidrinho assim, trêscruzados. estou vendo que tenho de vender a paineira.- n?o vê que o chico basti?o dá dezoito mil réis porela - e inda um capadinho de choro. como este ano carregou demais, vempaina p'r'arrobas. ele quer aproveitar;derruba o...derruba!...- derruba e...- por que n?o colhe a paina com vara, homem de deus?- n?o vê que é mais fácil de derrubar...- derruba!...fujo dali com este horrível som a azoinar-me a cabe?a.aquela maleita ambulante é "dona" da árvore. o urunduva está classificadono gênero "homo". goza de direitos. ?rei da cria??o e dizem que feito à imagem e semelhan?a dedeus.ro?as de milho. a terra calcinada, com as cinzas escorridas peloaguaceiro da véspera, in?a-se de tocos carbonizados, e árvoresenegrecidas até meia altura, e paulama emcarv?o. entremeio, covas de milho já espontando folhinhastenras.- derruba!...adiante, feij?o. o terreno varrido, cor de sépia, pontilhado pelo verdedas plantas recém-vindas, lembra chitade velha: as velhas gostam de chitas escuras com pintasverdes.? aqui o sítio da maria veva. tem ruim fama esta mulher papuda. má atéali, dizem.o marido - coitado - um bobo que anda pelo cabresto- pedro su?. ganhou este apelido desde o célebre dia emque a mulher o surrou com um su? de porco. lá vem ele,de espingardinha...- vai ca?ar?- antes fosse. vou cuidar do enterro.- enterro?...- pois morreu lá a menina, a anica.- pobrezinha! de quê?- a gente sabe? morreu de morte...estúpido!sem querer, dirijo-me para a casa dele. n?o gosto daveva. ? horrenda, bei?o rachado, olhar mau - e aquele papo!- ent?o, nhá, morreu a menina? soube-o inda agorapelo su?...- ?.que resposta seca!- e de que morreu?- deus é que sabe.peste! e como a atrevida?a me olha duro! sinto-me malem sua presen?a.- adeus, sicorax!para alguma coisa sirva a literatura...arrepio caminho, entristecido. a manh? vai alta, já cruade luz. o sol, estúpido; o azul, de irritar. que é dos aranhóis? sumiramsecom o orvalho que os visibiliza. est?oagora invisíveis, a apanhar insetinhos incautos que nháveva aranha devora. a paisagem perdeu o encanto dafrescura e da bruma. está um lugar comum. n?o vejo floresnem pássaros. o excesso de luz dilui as flores, o caloresconde as aves. só um caracará resiste ao morma?o, empoleirado numtronco seco de peroba. está de tocaia aos pintos do urunduva, orapinante.um vulto... ? mulher... será a inácia? vem de trouxa àcabe?a. ? ela mesma, a preta agregada aos su?s.- ent?o, rapariga?- ai, seu mo?o, vou-me embora. alguém há de ter dóda velha. na casa da peste papuda, nem mais um dia!antes morrer de fome...- que coisa houve?- n?o sabe que morreu a aleijadinha? pois é, morreu.morreu, a pobre, só porque ontem esta sua negra foi nobairro do libório e a chuva me prendeu lá. se eu pudesseadivinhar...- mas de que morreu a menina, criatura?- sabe do que morreu? morreu... de sede! morreu, sim,eu juro, um raio me parta pelo meio se a coitadinha n?omorreu...aqui solu?os de choro cortaram-lhe a voz.- ... de seeeede! meu deus do céu, o que a gente n?ovê neste mundo!a menina era entrevada e a m?e, má como a irara. diziasempre: pestinha, por que n?o morre? boca à-toa, a comer,a comer. estica o cambito, diabo! isto dizia a m?e - m?e,hein? a inácia, entretanto, morava lá só para zelar da aleijadinha. eraquem a vestia, e a lavava, e arrumava o pratinho daquele passaricoenfermo. sete anos assim. excelentenegra!- coisa de três dias 'garrou uma doencinha, dor decabe?a, febre. dei chá de hortel?; nada. dei cidreira; nada.sempre a quentura da febre. disse comigo: "vou lá nobairro e trago uma dose." fui, é longinho, três quartos delégua. o curador me deu a dose, mas quem disse de podervoltar? uma chuvarada... pousei no libório. hoje, manh?zinha, vim.entrei alegre, pensando: a coitadinha vai sarar. eu quepisei na alcova, dou com a menina espichada na esteira,fria. anica! anica! quando vi bem que estava morta deverdade, ah, seu mo?o, berrei como nunca na minha vida.- "nhá veva, de que jeito morreu anica, conte, conte!"nhá veva quieta, repuxando a boca. uma pedra! caíem cima da menina, beijei, chorei. nisto, uma cutucada era o zico, aquelenegrinho, sabe? olhei p'ra ele: fez jeitode me falar longe da taturana. lá fora me contou tudo. amenina, des'que eu saí piorou. mas quietinha sempre. noite alta, gemeu.- "cala a boca, peste!", gritou do outro quarto a m?e- m?e, veja!- "quero água, nhá m?e."- "cala a boca, peste!"a menina calou. mais tarde gemeu outra vez, baixinho.- "quero água! quero água!"ninguém se mexeu.- "e tu, negrinho safado, por que n?o acudiu a menina?"- "n?o vê! eu conhe?o nhá veva!..."seu pedro, aquele trapo, esse estava na pinga de tododia. ninguém na casa para chegar uma caneca d'água àboca da doentinha. ela, um chorinho ainda; depois, maisnada. de manh?...lágrimas escorriam a fio pela cara da preta e solu?os dedor cortavam-lhe as palavras.- de manh? foram encontrar a menina morta na cozinha, rente ao poted'água. arrastou-se até lá, o anjinho quenem se mexer na cama podia - e morreu de sede dianteda água!...- quem sabe se...- n?o bebeu, n?o! o pote, em cima da caixa, ficavaalto, e a caneca estava tal e qual no lugarzinho do costume.n?o bebeu, n?o! morreu de sede, o anjo!enxugou as lágrimas na manga.- agora vou no libório. se ele me quiser, fico. se n?o,sou bem capaz de me pinchar nesse rio. este mundo n?opaga a pena...sol a pino. des?nimo, lassid?o infinita...o mata-paupíncaros arriba e pirambeiras abaixo, a serra do palmital escurece demataria virgem, sombria e úmida, tramadade taquaru?us, afestoada de taquaris, com grandes árvoresvelhas de cujos galhos pendem cipós e escorrem barbas-depau e musgos..quem sobe da várzea, depois de transpostas as capoeiras da raiz, aoemboscar-se de chofre no frio túnel vegetalque é ali a estrada, inevitavelmente espirra. e se é homemdas cidades, pouco afeito aos aspectos bravios do sert?o,depois do espirro abre a boca, pasmado da paulama. extasia-se ante agraciosa copa dos samambaiu?us, ante as borboletas azuis, ante asorquídeas, os liquens, tudo.sofrea o animal sem o sentir mas n?o pára. vai parardiante, na volta fria, onde um broto d'água gelada, a fluirentremeio às pedras, o tenta a sorver um gole aparado emfolha de caeté. bebida a água, e dito que nas cidades n?o hádaquilo, leva-lhe a vista o soberbo mata-pau que domina ogrot?o.- que raio de árvore é esta? - pergunta ele ao capataz, pasmado mais umavez.e tem raz?o de parar, admirar e perguntar, porque éduvidoso existir naquelas sertanias exemplar mais truculento da árvoreassassina.eu, de mim, confesso, fiz as três coisas. o camaradarespondeu à terceira;- n?o vê que é um mata-pau.- e que vem a ser o mata-pau?- n?o vê que é uma árvore que mata outra. come?a,quer ver como? - disse ele escabichando as frondes com oolhar agudo em procura dum exemplar típico. está ali um!- onde? - perguntei, tonto.- aquele fiapinho de planta, ali no gancho daquelecedro - continuou o cicerone, apontando com dedo e bei?o uma parasitamesquinha grudada na forquilha de umgalho, com dois filamentos escorridos para o solo. - come?a assinzinho,meia dúzia de folhas piquiras; bota p'rabaixo esse fio de barbante na ten??o de pegar a terra. e vaiindo, sempre naquilo, nem p'ra mais nem p'ra menos, atéque o fio alcan?a o ch?o. e vai ent?o o fio vira raiz e pegaa beber a sust?ncia da terra. a parasita cria f?lego e cresceque nem embaúva. o barbantinho engrossa todo dia, passa a cordel, passa acorda, passa a pau de caibro e acabavirando tronco de árvore e matando a m?e, como esteguampudo aqui - concluiu, dando com o cabo do relhono meu mata-pau.- com efeito! - exclamei admirado. - e a árvore deixa?- que é que há de fazer? n?o desconfia de nada, aboba. quando vê no seu galho uma isca de quatro folhinhas, imagina que éparasita e n?o se precata. o fio, pensaque é cipó. só quando o malvado ganha alento e garra deengrossar, é que a árvore sente a dor dos apertos na casca.mas é tarde. o poderoso daí por diante é o mata-pau. aárvore morre e deixa dentro dele a lenha podre.era aquilo mesmo! o lenho gordo e vi?oso da plantafacinorosa envolvia um tronco morto, a desfazer-se em carcoma. viam-sepor ele arriba, intervalados, os terríveis cíngulos estranguladores;inúteis agora, desempenhada já amiss?o constritora, jaziam frouxos e atrofiados.imagina??o envenenada pela literatura, pensei logo nasserpentes de laocoonte, na víbora aquecida no seio do homem da fábula,nas filhas do rei lear, em todas as figurasclássicas da ingratid?o. pensei e calei, tanto o meu companheiro eracriatura simples, pura dos vícios mentais que oslivros inoculam. encavalgamos de novo e partimos.n?o longe dali a serra complana-se em rech? e a matamingua em capoeira rala, no meio da qual, em terreirodescoivarado, entremostra-se uma tapera. esverdece o mel?o-de-s?o-caetanopor sobre o derruído tapume do quintalejo, onde laranjeiras com erva-depassarinhoe uma ou outra planta doméstica marasmam agoniadas pelo matosufocante.- antigo sítio do elesb?o do queixo d'anta, explicouo camarada.- largado? - perguntei.- há que anos! des'que mataram o homem ficou assim.bacorejou-me história como as quero.- mataram-no? conte lá isso como foi.o camarada contou a história que para aqui trasladocom a possível fidelidade. o melhor dela evaporou-se, afrescura, o correntio, a ingenuidade de um caso narrado porquem nunca aprendeu a coloca??o dos pronomes e por issomesmo narra melhor que quantos por aí sorvem literaturasinteiras, e gramáticas, na ?nsia de adquirir o estilo. grandesfolhetinistas andam por este mundo de deus perdidos nagente do campo, ingramaticalíssima, porém pitoresca nodizer como ninguém.elesb?o morava com o pai no queixo d'anta, onde nascera. quando apuberdade lhe engrossou a voz, disse ao velho:- meu pai, quero casar.o pai olhou para o filho pensativamente; em seguidafalou:- passarinho cria pena é para voar. se você já é homem, case.o rapaz pediu-lhe que pusesse em prova a sua virilidade.o pai refletiu e disse:- derrube o jataí da grotinha, sem tomar f?lego.elesb?o afiou o machado, arrega?ou as mangas e feriuo pau. em toada de compasso, bateu firme a manh? inteira.? hora do almo?o, o pan pan continuava sem esmorecimento. só quando o solaprumou no pino é que a madeiragemeu o primeiro estalido.- está no ch?o - disse o pai, que se acercara do filhoexausto mas vitorioso. - pode casar. ? homem.elesb?o trazia d'olho uma menina das redondezas, filhado balaieiro jo?o poca, a rosinha, bilro sapiroquento detreze anos, feiosa como um rastolho.- meu pai, eu quero a rosinha poca.- case. mas ou?a o que digo. os pocas n?o s?o boagente. os machos ainda servem - o jo?o é um coitado, opedro n?o é má bisca; mas as saias nunca valeram nada. am?e da rosa é falada. laranjeira azeda n?o dá laranja-lima.você pense.- meu pai, o futuro é de deus. eu quero casar com arosinha.- pois case.deliberado com tal firmeza, elesb?o tratou de sitiar-se.arrendou a rech? da tapera, ro?ou, derrubou, queimou,plantou, armou a cho?a. barreadas que foram as paredes,pediu a menina e casou-se.rosa só o era no nome. no corpo, simples bot?o inverni?o, desses quemelam aos frios extempor?neos de maio.olhos cozidos e nariz arrebitado, tal qual a m?e. feia, masda feiúra que o tempo às vezes conserta. talvez se fiassenisso o noivo.elesb?o, rijo no trabalho, prosperou. aos três anos delabuta era já sitiante de monjolo, escaro?ador e cevadeira, (1)com dois agregados no eito.prole, até esse tempo nenhuma; e isso entristecia a casa.mas resignavam-se já ao vazio da esterilidade quando certanoite soou choro de crian?a no terreiro.n?o se conta o terror de ambos - aquilo era na certaalma penada de crian?a morta pag?. como, entretanto, apobre alma berrasse com pulm?es muito da terra, e cadavez mais, elesb?o duvidou do bruxedo e, acendendo umabra?ada de palha, lan?ou-a fora pela janela. o terreiro clareou até longee eles viram, a pouca dist?ncia, uma criaturinhade gatas a berrar com desespero de quem é absolutamente deste mundo.- e n?o é que é uma crian?a de verdade? - exclamouele, saído de um assombro e entrado noutro. - e agora?- pois é recolhê-la, disse rosa, cujo instinto de mulhersó via no caso um pobre enjeitadinho ao léu, a reclamarconchego.recolheu-o elesb?o, depondo o chorincas no colo daesposa. rosa o estreitou ao seio, acalmando-o, ao mesmotempo que "assentava" o marido.- se n?o aparecer a m?e, cria-se o aparecido. faz tantafalta um chorinho por aqui...no dia seguinte bateram nas vizinhan?as em indaga??es, sem nada colheremexplicativo do estranho caso. resolveram, pois, adotar o pequeno.o pai de elesb?o, consultado, ponderou:- n?o presta criar filho alheio.mas como o consulente armasse cara de vacila??o, remendou logo a suafilosofia:- também n?o é caridade enjeitar um enjeitado - eficou-se nisso.rosa conservou o pequeno e deu com ele criado à for?ade leite de cabra e caldinhos.? medida, porém, que medrava, o menino punha a nua má índole congenial. n?o prometia boa coisa, n?o.- eu avisei, recordou o velho, como elesb?o se queixasse um dia da ruimcasta do recolhido.- meu pai disse também que n?o era caridade enjeitarum enjeitado...- ? verdade, é verdade... - confirmou o filósofo de péno-ch?o, e calouse.manuel aparecido era o nome do rapazinho. como tivesse olhos gateados ecabelos louros de milho, denunciadores de origem estrangeira, puseram-lheos vizinhos aalcunha de ru?o.ganhou fama de madra?o, e o era perfeito, inimigo deenxada e foice, só atento a negociatas, barganhas, espertezas. amado pelarosa como filho, livrava-o ela da sanha doesposo escondendo suas malandragens, porque elesb?o vivia amea?andoendireitá-lo a rabo de tatu.n?o endireitou coisa nenhuma. com dezoito anos era oru?o a peste do bairro, atarantador dos pacíficos e trai?oeiro para comos escoradores.- ? ruim inteirado! - dizia o povo.por esse tempo navegava rosa na casa dos trinta o a n?o estragaram filhos, nem se estragou ela emgrosseiros trabalhos de ro?a, valia muito mais do que emmenina. o tempo curou-lhe a sapiroca, e deu-lhe carnes aboa vida. de tal forma consertou que todo o mundo gabavao arranjo.- ninguém perca a esperan?a. olhem a mulher doelesb?o, aquela poquinha sapiroquenta, como está chibante!...a sua boniteza residia na saúde dos olhos e na gordura.na ro?a, gordura é sin?nimo de beleza - gordura e "olhosazuis que nem uma conta"...além disso, rosinha cuidava de si. virou faceira. sempre limpa, vestidade boas chitas da sua cor, cabelos bemalisados para trás, torcidos em pericote lustroso à for?a depomada de lima, n?o havia na serra pimpona assim nemmo?a de fazenda com pai coronel.suas rela??es com o ru?o, maternais até ali, principiaram a mudar derumo, como quer que espigasse em homem o menino. por fim degeneraram emnamoro - medroso no come?o, descarado ao cabo. a má casta das pocas,desmentida no decurso da primavera, reafirmava-se emplena saz?o calmosa. o ver?o das pocas! que forno...tudo transpira. transpirou nas redondezas a feia maromba daqueles amores.boas línguas, e más, boquejavamo quase incesto.quem de nada nunca suspeitou foi o honradíssimo elesb?o; e como na portados seus ouvidos paravam os rumoresdo mundo, a vida das três criaturas corria-lhes na toadamansa a que se dá o nome de felicidade.foi quando caiu de cama o pai de elesb?o, doente develhice.mandou chamar o filho e falou-lhe com voz de quemestá com o pé na cova:- meu filho, abra os olhos com a poca...- por que fala assim, meu pai?o velho ouvira o zunzum da má vida; vacilava, entretanto, em abrir osolhos ao empulhado. correu a m?o trêmula pela cabe?a do filho, afagou-a emorreu sem maispalavra. sempre fora amigo de reticências, o bom velho.elesb?o regressou ao sítio com aquele aviso a verrumarlhe os miolos.passou dias de cara amarrada, acastelandohipóteses.vendo o marido assim demudado, casmurro, de prazenteiro que era, rosacaiu em guarda. chamou de bandao ru?o e disse-lhe:- lesb?o, des'que morreu o pai, anda amode que ervado. mas n?o ésentimento, n?o. ele desconfia... as vezespega de olhar para mim dum jeito esquisito, que até megela o cora??o...manuel segurou o queixo e refletiu. continuar naquelavida era arriscado. ir-se, pior; nada possuía de seu e trabalhar paraoutrem n?o era com ele. se elesb?o morresse...n?o se sabe se houve concerto entre os amásios. maselesb?o morreu. e como!certa vez, de volta da vila próxima ali pelo escurecer,caiu de borco na volta fria, barbaramente foi?ado na nuca.descobriram-lhe o cadáver pela manh?, bem rente ao mata-pau.a justi?a, coitadinha, apalpou daqui e dali, numa cegueira... desconfioudo ru?o - mas cadê provas? era oru?o mais fino que o delegado, o promotor, o juiz - maisaté que o vigário da vila, um padre gozador da fama deenxergar através das paredes...a viúva chorou como mamoeiro lanhado - fosse desentimento, de remorso ou para iludir aos outros. talvezsem cálculo nenhum pelos três motivos.manuel permaneceu na casa. viviam como filho e m?e,dizia ela; como marido e mulher, resmungava o povo.o sítio, porém, entrou logo a desmedrar. comiam doplantado, sem lembran?a de meter na terra novas sementes.o mo?o ambicionava vender as benfeitorias para mergulhar no oeste, e comorosa relutasse deu de maltratá-la.estes amores ser?dios s?o como a vide: mais judiamdeles, mais revi?am. ?s brutalidades do ru?o respondia aviúva com redobros de carinho. seu peito maduro, onde oestio no fim anunciava o inverno próximo, chamejava emfogo bravo, desses que roncam nas retran?as dos taquaru?uzais. e issovingava elesb?o, esse amor sem jeito, semconta, sem medida, duas vezes criminoso sobre sacrílego e,o que era pior, aborrecido pelo facínora, já farto.- coroca! sapicuá de defunto! cangalha velha!n?o havia insulto com o pi?o do veneno plantado nanota da velhice que lhe n?o desfechasse, o monstro.rosa depereceu a galope. adeus, gordura! boniteza outoni?a, adeus! saiasa ruflar tesas de goma, pericote luzidiorecendente a lima, quando mais?- o ru?o dá cabo dela, como deu cabo do marido - eé bem-feito.voz do povo...um dia o ru?o amea?ou de largá-la, se n?o vendessetudo, já e já; e a pobre mulher deu ao bandido essa derradeira prova deamor. vendeu por uma bagatela o que restava acumulado pelo esfor?o dodefunto - a moenda, omonjolo, a casa, o canavial em soca. e combinaram para ooutro dia o ambicionado mergulho na terra roxa.nessa noite rosa despertou sufocada por violenta fumaceira. a casa ardia.saltou como louca da enxerga eberrou pelo ru?o.ninguém lhe respondeu.atirou-se contra a porta: estava fechada por fora. o instinto fê-laagarrar o machado e romper a furiosos golpes astábuas rijas. escapa-se da fornalha, rola para o terreiro comas vestes em fogo, precipita-se no tanque e, livre das chamas, cai inertepara um lado - justamente onde vinte anosatrás vira o enjeitadinho chorando ao relento...quando de manh? passantes a recolheram, estava d'olhos pasmados, muda.levaram-na em maca para o hospital, onde sarou das queimaduras, mas nuncamais do juízo.foi feliz, rosa. enlouqueceu no momento preciso em queseu viver ia tornar-se puro inferno.- e o ru?o?- abalou com o dinheiro...aí parava a história do elesb?o, como a sabia o meucamarada. um crime vulgar como os há na ro?a às dezenas,se a lembran?a do mata-pau o n?o colorisse com tintas desímbolo.- n?o é só no mato que há mata-paus!... - murmureieu filosoficamente, à guisa de comentário.o capataz entreparou um momento, como quem n?oentende. depois abriu na cara o ar de quem entendeu egostou.- n?o é por gabar, mas vosmecê disse aí uma palavraque merece escrita. ? tal e qual...e calou-se, de olho parado, pensativo.1915nota:ceifadeira: aparelho rústico de ralar mandioca.bocatortaa quarto de légua do arraial do atoleiro come?am asterras da fazenda de igual nome, pertencente ao major zélucas. a meio entre o povoado e o estir?o das matas virgens dormia depapo acima um famoso p?ntano. pego deinsidiosa argila negra fraldejado de velhos guaiambés nodosos, a taboaesbelta cresce-lhe à tona, vi?osa na folhagemeréctil que as brisas tremelicam. pela inflorescência, longasvaras soerguem-se a prumo, sustendo no ápice um chouri?o cor de telhaque, maturado, se esbruga em paina esvoa?ante. corre entre seus talos abatuíra de longo bico, esaltita pelas hastes a corruíra-do-brejo, cujo ninho bojudo seouri?a nos espinheiros marginais. fora disso, r?s, mimbuiaspensativas e, a rabear nas po?as verdinhentas de algas, atraíra, esse voraz esqualozinho do lodo. um brejo, enfim,como cem outros.notabiliza-o, porém, a profundidade. ninguém ao vê-lot?o calmo sonha o abismo traidor oculto sob a verdura.dois, três bambus emendados que lhe tentem alcan?ar ofundo subvertem-se na lama sem al?ar pé.além de vários animais sumidos nele, conta-se o casodo simas, português teimoso que, na birra de salvar umburro já atolado a meio, se viu engolido lentamente pelobarro maldito. desd'aí ficou o atoleiro gravado na imaginativa popularcomo uma das bocas do próprio inferno.transposto o abismo, a vegeta??o encorpa, até formar amata por cujo seio corre a estrada mestra da fazenda.na manh? daquele dia passara por ali o trole do fazendeiro, de volta dacidade. além do velho, de sua mulherdon'ana e de cristina a filha única, vinha a passeio obacharel eduardo, primo longe e noivo da mo?a. chegarame agora ouviam na varanda, da boca do vargas, fiscal, anotícia do sucedido durante a ausência. já contara vargasdo café, da puxada dos milhos e estava na cria??o.- porcos têm sumido alguns. uma leitoa rabicó e umcapadete malhado dos "polancham", há duas semanas quemoita. para mim - ninguém me tira da cabe?a - o ladr?ofoi o negro, inda mais que essa cria??o costumava se alongar das bandasdo brejo. eu estou sempre dizendo: é preciso tocar de lá o raio domaldelazento. aquilo, deus meperdoe, é bicho ruim inteirado. mas n?o "querem" me acreditar...o major sorriu àquele "querem". vargas, com ojerizavelha ao mísero bocatorta, n?o perdia ensanchas de lhe atribuirmalefícios e de estumar o patr?o a corrê-lo das terras que aquilo, nossasenhora! até engui?ava uma fazenda...interessado, o mo?o indagou da estranha criatura.- bocatorta é a maior curiosidade da fazenda, respondeu o major. filhoduma escrava de meu pai, nasceu, omísero, disforme e horripilante como n?o há memória deoutro. um monstro, de t?o feio. há anos que vive sozinho,escondido no mato, donde raro sai e sempre de noite, opovo diz dele horrores - que come crian?as, que é bruxo,que tem parte com o demo. todas as desgra?as acontecidasno arraial correm-lhe por conta. para mim, é um pobre-diabo cujo crimeúnico é ser feio demais. como perdeu amedida, está a pagar o crime que n?o cometeu...vargas interveio, cuspilhando com cara de asco:- se o doutorzinho o visse!... ? a coisa mais nojentadeste mundo.- feio como o quasímodo?- esse n?o conhe?o, seu doutor, mas estou aqui estoujurando que o negro passa diante do... como é?eduardo apaixonava-se pelo caso.- mas, amigo vargas, feio como? por que feio? explique-me lá essa feiúra.grande parola quando lhe davam trela, vargas entreparou um bocado edisse:- o doutor quer saber como é o negro? venha cá.vossa senhoria 'garre um juda de carv?o e judie dele; cavoque o buracodos olhos e afunde dentro duas brasasalumiando; meta a faca nos bei?os e saque fora os dois;'ranque os dentes e só deixe um toco; entorte a boca de viésna cara; fa?a uma coisa desconforme, deus que me perdoe.depois, como diz o outro, vá judiando, vá entortando aspernas e esparramando os pés. quando cansar, descanse.corra o mundo campeando feiúra braba e aplique o pior noestupor. quando acabar 'garre no juda e ponha rente debocatorta. sabe o que acontece? o juda fica lindo!...eduardo desferiu uma gargalhada.- você exagera, vargas. nem o diabo é t?o feio assim,criatura de deus!- homem, seu doutor, quer saber? contando n?o seacredita. aquilo é feiúra que só vendo!- nesse caso quero vê-la. um horror desse naipe merece uma pernada.nesse momento surgiu cristina à porta, anunciando café na mesa.- sabe? - disse-lhe o noivo. - temos um belo passeioem perspectiva: desentocar um gorila que, diz o vargas, éo bicho mais feio do mundo.- bocatorta? - exclamou cristina com um reverberode asco no rosto. - n?o me fale. só o nome dessa criaturajá me p?e arrepios no corpo.e contou o que dele sabia.bocatorta representara papel saliente em sua imagina??o. pequenita,amedrontavam-na as mucamas com a cuca,e a cuca era o horrendo negro. mais tarde, com ouvir àscrioulinhas todos os horrores correntes à conta dos seusbruxedos, ganhou inexplicável pavor ao not?mbulo. houvetempo no colégio em que, noites e noites a fio, o mesmopesadelo a atropelou. bocatorta a tentar beijá-la, e ela, emtranses, a fugir. gritava por socorro, mas a voz lhe morriana garganta. despertava arquejante, lavada em suores frios.curou-a o tempo, mas a obsess?o vincara fundos vestígiosem su'alma.eduardo, n?o obstante, insistia.- ? o meio de te curares de vez. nada como o aspectocru da realidade para desmanchar exageros de imagina??o.vamos todos, em farrancho - e asseguro-te que a piedadete fará ver no espantalho, em vez dum monstro, um simples desgra?adodigno do teu dó.cristina consultou-se por uns momentos e:- pode ser - disse. - talvez vá. mas n?o prometo!na hora verei se tenho coragem...a matura??o do espírito em cristina desbotara a vivacidade nevrótica dosterrores infantis. inda assim vacilava.renascia o medo antigo, como renasce a encarquilhada rosade jericó ao contato de uma gota d'água. mas vexadade aparecer aos olhos do noivo t?o infantilmente medrosa,deliberou que iria; desde esse instante, porém, uma imperceptível sombraanuviou-lhe o rosto.ao jantar foram o assunto as novidades do arraial - eternas novidades dealdeias, o fulano que morreu, a sicrana que casou. casara um boticário emorrera uma meninade quatorze anos, muito chegada à gente do major. particularmentecondoída, don'ana n?o a tirava da idéia.- pobre da luizinha! n?o me sai dos olhos o jeito dela,t?o galante, quando vinha aqui pelo tempo das jabuticabas.ali, naquela porta - "dá licen?a, don'ana!" - t?o cheiade vida, vermelhinha do sol... quem diria...- e ainda por cima a tal história de cemitério... interveio cristina.papai soube?corriam no arraial rumores macabros. no dia seguinteao enterramento o coveiro topou a sepultura remexida, como se foraviolada durante a noite; e viu na terra frescapegadas misteriosas de uma "coisa" que n?o seria bichonem gente deste mundo. já duma feita sucedera caso idêntico por ocasi?oda morte da sinhazinha esteves; mas todosduvidaram da integridade dos miolos do pobre coveirosarapantado. esses incréus n?o mofavam agora do visionário, porque opadre e outras pessoas de boa cabe?a, chamadas a testemunhar o fato,confirmavam-no.imbuído do ceticismo fácil dos mo?os da cidade, eduardo meteu a riso acoisa muita fortid?o de espírito.- a gente da ro?a duma folha d'embaüva penduradano barranco faz logo, pelo menos, um lobisomem e trêsmulas-sem-cabe?a. esse caso do cemitério: um c?o vagabundo entrou lá earranhou a terra. aí está todo o grandemistério!cristina objetou:- e os rastos?- os rastos! estou a apostar como tais rastos s?o os dopróprio coveiro. o terror impediu-lhe de reconhecer o molde do casco...- e o padre lisandro? - acudiu don'ana, para quemum testemunho tonsurado era documento de muito peso.eduardo cascalhou uma risada anticlerical e, trincandoum rabanete, expectorou:- ora, o padre lisandro! pelo amor de deus, don'ana!o padre lisandro é o próprio coveiro de batina e coroa! apropósito...e contou a propósito vários casos daquele tipo, os quaisno correr do tempo vieram a explicar-se naturalmente, comgrande cara d'asno dos coveiros e lisandros respectivos.cristina ouviu, com o espírito absorto em cismas, a belademonstra??o geométrica. don'ana concordou da boca para fora, pordelicadeza. mas o major, esse n?o piou sim nemn?o. a experiência da vida ensinara-lhe a n?o afirmar comdespotismo, nem negar com "oras- há muita coisa estranha neste mundo... - disse,traduzindo involuntariamente a safada réplica de hamletao cabe?a forte do horacio.zangara o tempo quando à tarde o rancho se p?s derumo ao casebre de bocatorta.ventava. rebojos de nuvens prenhes sorviam as últimasnesgas do azul.os noivos breve se distanciaram dos velhos que, a passos tardos, seguiamcomentando a boa composi??o do futuro casal. n?o havia nisso exagero depais. eduardo, emboravulgar, tinha a esbelteza necessária para ouvir sem favor oenc?mio de rapag?o, e cristina era um ramalhete completodas gra?as que os dezoito anos sabem compor.donaire, eleg?ncia, distin??o... pintam lá vocábulos esbei?ados pelo usoesse punhado de quês particularíssimoscuja soma a palavra "linda" totaliza?lábios de pitanga, a magnólia da pele acesa em rosasnas faces, olhos sombrios como a noite, dentes de pérola...as velhas tintas de uso em retratos femininos desde a sulamita n?o pintammelhor que o "linda!" dito sem mais enfeites além do ponto de admira??o.vê-la mordiscando o hastil duma flor de catingueirocolhida à beira do caminho, ora risonha, ora séria, a cor dasfaces mordida pelo vento frio, madeixas louras a brincarem-lhe nastêmporas, vê-la assim formosa no quadro agreste duma tarde de junho, eracompreender a express?o dosroceiros: linda que nem uma santa.olhos, sobretudo, tinha-os cristina de alta beleza. naquela tarde, porém,as sombras de sua alma coavam nelespenumbras de estranha melancolia. melancolia e inquieta??o. o amorosoenlevo de eduardo esfriava amiúde antesuas repentinas fugas. ele a percebia distante, ou pelo menosintrospectiva em excesso, reticência que o amor n?o vêde boa cara. e à medida que caminhavam recrescia aquelaesquisitice. um como intáctil morcego diabólico riscava-lhea alma de voejos pressagos. nem o estimulante das brisasásperas, nem a ternura do noivo, nem o "cheiro de natureza" exsolvido daterra, eram de molde a esgar?ar a misteriosa bruma de lá dentro.eduardo interpelou-a:- que tens hoje, cristina? t?o sombria...e ela, num sorriso triste:- nada!.. por quê?nada... ? sempre nada quando o que quer que é lucilaavisos informes na escurid?o do subconsciente, como sutilíssimosziguezagues de sismógrafo em prenúncio de remota como??o telúrica. masesses nadas s?o tudo!...- ? esquerda, pelo trilho!a voz do major chamou-os à realidade. um carreiromal batido na macega esgueirava-se coleante até a beiradum córrego, onde se reuniram de novo.o major tomou a frente, e guiou-os floresta adentropelos meandros duma picada. era ali o mato sinistro ondese alapavam bocatorta e o seu cachorro lazarento, merimbico, nometresandante a satanismo para o faro do poviléu.?s sextas-feiras, na voz corrente do arraial, merimbico virava lobisomeme se punha de ronda ao cemitério, comlamentosos uivos à lua e abocamentos às pobres almaspenadas - coisa muito de arrepiar.o sombrio da mata enoiteceu de vez o cora??o de cristina.- mas, afinal, para onde vamos, meu pai? afundar noatoleiro, como o simas? meu pai já fez o testamento?- já, minha filha - chasqueou o major -, e deixo obocatorta para você...cristina emudeceu. retransia-a em doses crescentes ovelho medo de outrora, e foi com um estremecimento arrepiado que ouviu oladrido próximo de um c?o.- ? merimbico - disse o velho. - estamos quase.mais cem passos e a mata rasgou-se em clareira, na qualcristina entreviu a biboca do negro. fez-se toda pequeninae achegou-se a don'ana, apertando-lhe nervosamente as m?os.- bobinha! tudo isso é medo?- pior que medo, mam?e; é... n?o-sei-quê!n?o tinha fei??o de moradia humana a alfurja do monstro. ? laia deparedes, paus-a-pique mal juntos, entressachados de ramadas secas. porcobertura, presos, com pedras chatas, molhos de sapé no fio, defumado epodre. emredor, um terreirinho atravancado de latas ferrujentas, trapos e cacariavelha. a entrada era um buraco por onde malpassaria um homem agachado.- olá, caramujo! sai da toca que est?o cá o sinh? mo?oe mais visitas! - gritou o major.respondeu de dentro um grunhido cavo. ao ouvir t?odesagradável som, cristina sentiu correr na pele o arrepiodos pesadelos antigos, e num incoercível movimento depavor abra?ou-se com a m?e.o negro saiu da cova meio de rastos, com a lentid?o demonstruosa lesma. a princípio surgiu uma gaforinha arru?ada, depois otronco e os bra?os e a traparia imunda quelhe escondia o resto do corpo, entremostrando nos rasg?eso negror da pele craquenta.cristina escondeu o rosto no ombro de don'ana - n?oqueria, n?o podia ver.bocatorta excedeu a toda pintura. a hediondez personificara-se nele,avultando, sobretudo, na monstruosa deforma??o da boca. n?o tinha bei?os,e as gengivas largas,violáceas, com raros cotos de dentes bestiais fincados àstontas, mostravam-se cruas, como enorme chaga viva. etorta, posta de viés na cara, num esgar diabólico, resumindo o que o feiopode compor de horripilante. embora se lheestampasse na boca o quanto fosse preciso para fazer daquela criatura aculmin?ncia da ascosidade, a natureza malvada fora além, dando-lhe pernascambaias e uns pés deformados que nem remotamente lembravam a forma do péhumano. e olhos vivíssimos, que pulavam das órbitas empapu?adas, veiadosde sangue na esclerótica amarela. epele grumosa, escamada de escaras cinzentas. tudo nelequebrava o equilíbrio normal do corpo humano, como se ateratologia caprichasse em criar a sua obra-prima.? porta do casebre, merimbico, cachorro à-toa, todoossos, pele e bernes, rosnava contra os importunos.don'ana e a filha afastaram-se, engulhadas. só os homens resistiram ànauseante vista, embora a eduardo otolhesse uma emo??o jamais experimentada, misto de asco,piedade e horror. aquele quadro de suprema repuls?o,novo para seus nervos, desnorteava-lhe as idéias. estarrecido como emface da górgona, n?o lhe vinha palavra quedissesse.o major, entretanto, trocava língua com o monstro, queem certo ponto, a uma pergunta alegre do velho, arrega?ouna cara um riso. eduardo n?o teve m?o de si. aquele risonaquela cara sobreexcedia a sua capacidade de horripila??o. voltou orosto e se foi para onde as mulheres, murmurando:- ? demais! ? de fazer mal a nervos de a?o...seus olhos encontraram os de cristina e neles viram aexpress?o de pavor da preá engrifada nas puas da suindara- o pavor da morte...quando deixaram a floresta, morria a tarde sob o chicote dum ventoprecursor de chuva.- foi imprudência, cristina, vires sem um xalinho decabe?a ao menos!... queira deus...a mo?a n?o respondeu. d'olhos baixos, retransida, respirava a largoshaustos, para desafogo dum aperto de cora??o nunca sentido fora dospesadelos.generalizara-se o silêncio. só o major tentava espanejara impress?o penosa, chasqueando ora o terror da filha, orao asco do mo?o; mas breve calou-se, ganho também pelomal-estar geral.triste anoitecer o daquele dia, picado a espa?os pelosurdo rev?o dos curiangos. o vento zunia, e numa lufadamais forte trouxe da mata o uivo plangente de merimbico.ao ouvi-lo, um comentário apenas escapou da boca do major:- diabo!fechara-se a noite e vinham as primeiras gotas de chuva quando pisaram noalpendre do casar?o.cristina sentiu pelo corpo inteiro um calafrio, como sea sacudisse a corrente elétrica.no dia seguinte amanheceu febril, com ardores no peitoe tremuras amiudadas. tinha as faces vermelhas e a respira??o opressa.o rebuli?o foi grande na casa.eduardo, mordido de remorsos, compulsava com m?onervosa um velho chernoviz, tentando atinar com a doen?ade cristina; mas perdia-se sem bússola no báratro das moléstias. nesse emmeio, don'ana esgotava o arsenal damedicina anódina dos símplices caseiros.o mal, entretanto, recalcitrava às chasadas e sudoríferos. chamou-se oboticário da vila. veio a galope o eusébiomacário e diagnosticou pneumonia.quem já n?o assistiu a uma dessas subit?neas desgra?asque de golpe se abatem, qual negro avej?o de presa, sobreuma família feliz, e estra?oam tudo quanto nela representaa alegria, e esperan?a, o futuro?noites em claro, o rumor dos passos abafados... e odoente a piorar... o médico da casa apreensivo, cheio devincos na testa... dias e dias de duelo mudo contra amoléstia incoercível... a desesperan?a, afinal, o irremediável antolhadoiminente; a morte pressentida de ronda aoquarto...ao oitavo dia cristina foi desenganada; no décimo osino do arraial anunciou o seu prematuro fim.- morta!...eduardo escondia as lágrimas entre as almofadas doleito, repetindo cem vezes a mesma palavra.alcan?ava-lhe o significado tremendo e, no entanto, quantas vezes aouvira como a um som oco de sentido!a imagem de cristina morta, a esfervilhar na dissolu??o dentro da terragelada, contrapunha-se às vis?es dacristina viva, toda mimos d'alma e corpo, radiosa manh?humana de cuja luz toda se impregnara sua alma. cerrandoos olhos, revia-se durante o passeio fatal, envolta nas brumas de vagospressentimentos. vinham-lhe à memória assuas palavras dúbias, a sua vacila??o. e arrepelava-se porn?o ter adivinhado na repulsa da mo?a os avisos informesde qualquer coisa secreta que tenazmente a defendia. taispensamentos, enxameantes como moscas em torno à carneviva da dor de eduardo, coavam nele venenos cruéis.fora, o sol redoirava cruamente a vida.brutalidade!...morria cristina e n?o se desdobravam crepes pelo céu,nem murchavam as folhas das árvores, nem se recobria decinzas a terra...espezinhado pela fria indiferen?a das coisas, fechou-sena clausura de si próprio, torvo e dolorido, sentindo-seamarfanhar pela pata cega do destino.correram horas. noite alta, acudiu-lhe a idéia de ir aocemiterinho beijar num último adeus o túmulo da noiva.por sobre a vegeta??o adormecida coava-se o palor cinéreo da minguante.raras estrelas no céu, e na terra nenhum rumorejo além do remoto uivar deum c?o - merimbico talvez - a escandir o concerto das untanhas quecoaxavam glu-glus nas aguadas.eduardo alcan?ou o cemitério. estava encadeado o port?o. apoiou a testanos frios var?es ferrujentos e mergulhouos olhos queimados de lágrimas por entre os carneiros humildes, em buscado que recebera cristina.no ar, um silêncio de eternidade.brisas intermitentes carreavam o olor acre dos cravos-de-defunto floridosna tristeza daquele cemitério da ro?a.seu olhar pervagava de cruz em cruz na tentativa deatinar com o sítio onde cristina dormia o grande sono,quando um rumor suspeito lhe feriu os ouvidos. direis umarranhar de ch?o em rasp?es cautelosos, ao qual se casavao resfolego duma criatura viva.pulsou-lhe violento o sangue. os cabelos cresceram-lhena cabe?a. alucina??o? apurou os ouvidos: o rumor estranho lá continuava,vindo de um ponto sombreado deciprestes. firmou a vista: qualquer coisa agachava-se na terra.súbito, num rel?mpago, fulgurou em sua memória acena do jantar, o caso de luizinha, as palavras de cristina.eduardo sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos e, ganho dump?nico desvairado, deitou a correr como um louco rumo àfazenda, em cujo casar?o penetrou de pancada, sem f?lego,lavado em suor frio, despertando de sobressalto a famí gritos de espanto, que o cansa?o e o bater dosdentes entrecortavam, exclamou entre arquejos:- est?o desenterrando cristina... eu vi uma coisa desenterrandocristina...- que loucura é essa, mo?o?- eu vi... - continuava eduardo com os olhos desmesuradamente abertos. -eu vi uma coisa desenterrando cristina...o major apertou entre as m?os a testa. esteve assim imóvel uns instantes.depois sacudiu a cabe?a num gesto dedecis?o e, horrivelmente calmo, murmurou entre dentes, como em resposta asi próprio:- será possível, meu deus?vestiu-se de golpe, meteu no bolso o revólver e atirando três palavrasenigmáticas à estarrecida don'ana, gritoupara eduardo com inflex?o de a?o na voz:- vamos!magnetizado pela energia do velho, o mo?o acompanhou-oqual son?mbulo.no terreiro apareceu-lhes o capataz.- venha conosco. a "coisa" está no cemitério.vargas passou m?o de uma foice.- vai ver que é ele, patr?o, até juro!o major n?o respondeu - e os três homens partiram acorrer pelos campos em fora.a meio caminho, eduardo, exausto de tantas emo??es,atrasou-se. seus músculos recusaram-lhe obediência. ao defrontar com oatoleiro, as pernas lhe fraquearam de vez eele caiu, ofegante.entrementes, o major e o feitor alcan?avam o cemitério,galgavam o muro e aproximavam-se como gatos do túmulode cristina.um quadro hediondo antolhou-se-lhes de golpe: um corpo branco jazia forado túmulo - abra?ado por um vultovivo, negro e coleante como o polvo.o pai de cristina desferiu um rugido de fera, e qual feramal ferida arrojou-se para cima do monstro. a hiena, maugrado a surpresa, escapou ao bote e fugiu. e, coxeando, cambaio, seminu,de trope?os nas cruzes, a galgar túmulos comagilidade inconcebível em semelhante criatura, bocatorta saltou o muro efugiu, seguido de perto pela sombra esgani?ante de merimbico.eduardo, que concentrara todas as for?as para seguir delonge o desfecho do drama, viu passar rente de si o vultoasqueroso do necrófilo, para em seguida desaparecer mergulhando na massaescura dos guaiambés.voando-lhe no encal?o, viu passar em seguida o vultodos perseguidores.houve uma pausa, em que só lhe feriu o ouvido o rumor da correria.depois, gritos de cólera, d'envolta a umgrunhir de queixada caído em mundéu - e tudo se misturou ao barulho daluta que o uivo de merimbico dominavalugubremente.o mo?o correu a m?o pela testa gelada: estaria nas unhasdum pesadelo? n?o; n?o era sonho. disse-lho a voz alterada do feitor,esbo?ando o epílogo da tragédia:- n?o atire, major, ele n?o merece bala. p'ra que serveo atoleiro?e logo após eduardo sentiu recrudescer a luta, entreimpreca??es de cólera e os grunhidos cada vez mais lamentosos do monstro.e ouviu farfalhar o mato, como se porele arrastassem um corpo manietado, a debater-se em convuls?es violentas.e ouviu um rugido cavo de supremo desespero. e após, o baque fofo de umfardo que se atufana lama.uma vertigem escureceu-lhe a vista; seus ouvidos cessaram de ouvir; seupensamento adormeceu...quando voltou a si, dois homens borrifavam-lhe o rostocom água gelada. encarou-os, marasmado. ergueu-se, malfirme, apoiado a um deles. e reconheceu a voz do major,que entre arquejos de cansa?o lhe dizia:- seja homem, mo?o. cristina já está enterrada, e o negro...- ... está beijando o barro, concluiu sinistramente o vargas.ao raiar do dia, merimbico ainda lá estava, sentado naspatas traseiras, a uivar saudosamente com os olhos postosno sítio onde sumira o seu companheiro.nada mais lembrava a tragédia noturna nem denunciava o túmulo de lodoa?aimador da boca hedionda que babujara nos lábios de cristina o beijoúnico de sua vida.o comprador de fazendaspior fazenda que a do espig?o, nenhuma. já arruinaratrês donos, o que fazia dizer aos praguentos: espiga é o queaquilo é!o detentor último, um davi moreira de souza, arrematara-a em pra?a,convicto de negócio da china; já lá andava,também ele, escalavrado de dívidas, co?ando a cabe?a, numdes?nimo...os cafezais em vara, ano sim ano n?o batidos de pedra ou esturrados degeada, nunca deram de si colheitade entupir tulha. os pastos ensapezados, enguanxumados,ensamambaiados nos topes, eram acampamentos de cupins com entremeios demacegas morti?as, formigantes decarrapatos. boi entrado ali punha-se logo de costelas àmostra, encaro?ado de bernes, triste e dolorido de meterdó.as capoeiras substitutas das matas nativas revelavampela indiscri??o das tabocas a mais safada das terras secas.em tal solo a mandioca bracejava a medo varetinhas nodosas; a cana-caianaassumia aspecto de caninha, e esta viravaum taquari?o magrela dos que passam incólumes entre oscilindros moedores.pioravam os cavalos. os porcos escapos à peste encruavam na magrémfara?nica das vacas egípcias.por todos os cantos imperava o ferr?o das saúvas, dia enoite entregues à tosa dos capins para que em outubro setoldasse o céu de nuvens de i?ás, em saracoteios amorososcom enamorados savitus.caminhos por fazer, cercas no ch?o, casas d'agregadores engoteiradas,combalidas de cumeeira, prenunciandofeias taperas. até na moradia senhorial insinuava-se a broca, aluindopanos de reboco, carcomendo assoalhos. vidra?as sem vidro, mobíliacapengante, paredes lagarteadas...intacto que é que havia lá?dentro dessa esborcinada moldura, o fazendeiro avelhuscado por for?a dassucessivas decep??es e, a mais, roído pelo cancro feroz dos juros, semesperan?a e sem conserto, co?ava cem vezes ao dia a coroa da cabe?agrisalha.sua mulher, a pobre dona isaura, perdido o vi?o dooutono, agrumava no rosto quanta sarda e pé-de-galinhainventam os anos de m?os dadas à trabalhosa vida.zico, o filho mais velho, saíra-lhes um pulha, amigo deerguer-se às dez, ensebar a pastinha até às onze e consumiro resto do dia em namoricos mal-azarados.afora este malandro tinham a zilda, ent?o nos dezessete, menina galante,porém sentimental mais do que mandaa raz?o e pede o sossego da casa. era um ler escrich, amo?a, e um cismar amores de espanha!...em tal situa??o só havia uma aberta: vender a fazendamaldita para respirar a salvo de credores. coisa difícil, entretanto, emquadra de café a cinco mil réis, botar unhasnum tolo das dimens?es requeridas. iludidos por anúnciosmanhosos alguns pretendentes já haviam abicado ao espig?o; mas franziam onariz, indo-se a arrenegar da pernadasem abrir oferta.- de gra?a é caro! - cochichavam de si para consigo.o redemoinho capilar do moreira, a cabo de co?adelas,sugeriu-lhe um engenhoso plano mistificatório: entreverarde caetés, cambarás, unhas-de-vaca e outros padr?es deterra boa, transplantados das vizinhan?as, a fímbria dascapoeiras e uma ou outra entrada acessível aos visitantes.fê-lo, o maluco, e mais: meteu em certa grota um paud'alho trazido daterra roxa, e adubou os cafeeiros margeantes ao caminho suficiente paraencobrir a mazela doresto.onde um raio de sol denunciava com mais viveza umvício da terra, ali o alucinado velho botava a peneirinha...um dia recebeu carta de um agente de negócios anunciando novopretendente. "você tempere o homem, aconselhava o pirata, e saibamanobrar os padr?es que este cai.chama-se pedro trancoso, é muito rico, muito mo?o, muitoprosa, e quer fazenda de recreio. depende tudo de vocêespigá-lo com arte de barganhista ladino."preparou-se moreira para a empresa. advertiu primeiroaos agregados para que estivessem a postos, afiadíssimosde língua. industriados pelo patr?o, estes homens respondiam com manhaconsumada às perguntas dos visitantes,de jeito a transmutar em maravilhas as ruindades o lhes é suspeita a informa??o dos proprietários,costumam os pretendentes interrogar à socapa os encontradi?os. ali, seisso acontecia - e acontecia sempre, porqueera moreira em pessoa o maquinista do acaso - haviadiálogos desta ordem:- "geia por aqui?"- "coisinha, e isso mesmo só em ano brabo."-"o feij?o dá bem?"-"nossa senhora! inda este ano plantei cinco quartase malhei cinqüenta alqueires. e que feij?o!"- "berneia o gado?"- "qual o quê! lá um ou outro carocinho de vez emquando. para criar, n?o existe terra melhor. nem erva nemfeij?o-bravo. (1) o patr?o é porque n?o tem for?a. tivesse eleos meios e isto virava um fazend?o."avisados os espoletas, debateram-se à noite os preparativos dahospedagem, alegres todos com o revi?ar das esperan?as emurchecidas.- estou com palpite que desta feita a "coisa" vai! disse o filho maroto.e declarou necessitar, à sua parte, detrês contos de réis para estabelecer-se.- estabelecer-se com quê? - perguntou admirado o pai.- com armazém de secos e molhados na volta redonda...- já me estava espantando uma idéia boa nessa cabe?ade vento. para vender fiado à gente da tudinha, n?o é?o rapaz, se n?o corou, calou-se; tinha raz?es para isso.já a mulher queria casa na cidade. de há muito traziad'olho uma de porta e janela, em certa rua humilde, casabaratinha, d'arranjados.zilda, um piano - e caix?es e mais caix?es de romances...dormiram felizes essa noite e no dia seguinte mandaram cedo à vila embusca de gulodices de hospedagem - manteiga, um queijo, biscoitos.na manteiga houve debate.- n?o vale a pena! - reguingou a mulher. - sempres?o seis mil réis. antes se comprasse com esse dinheiro ape?a de algod?ozinho que tanta falta me faz.- ? preciso, filha! as vezes uma coisa de nada engambela um homem efacilita um negócio. manteiga é graxa e a graxa engraxa!venceu a manteiga.enquanto n?o vinham os ingredientes, meteu dona isaura unhas à casa,varrendo, espanando e arrumando o quarto dos hóspedes; matou o menosmagro dos frangos e umaleitoa manquitola; temperou a massa do pastel de palmito,e estava a folheá-la quando:- "ei, vem ele!" - gritou moreira da janela, onde sepostara desde cedo, muito nervoso, a devassar a estradapor um velho binóculo; e sem deixar o posto de observa??ofoi transmitindo à ocupadíssima esposa os pormenores divisados.- ? mo?o... bem trajado... chapéu panamá... parece ochico canhambora...chegou, afinal, o homem. apeou-se. deu cart?o: pedrotrancoso de carvalhais fagundes. bem-apessoado. ares demuito dinheiro. mocet?o e bem-falante, mais que quantosaté ali aparecidos.contou logo mil coisas com o desembara?o de quemno mundo está de pijama em sua casa - a viagem, osacidentes, um mico que vira pendurado num galho d'embaúva.entrados que foram para a saleta de espera, zico, incontinenti, grudou-sede ouvido ao buraco da fechadura, acochichar para as mulheres ocupadas na arruma??o da mesa o que iapilhando à conversa.súbito, esgani?ou para a irm?, numa careta sugestiva:- ? solteiro, zilda!a menina largou disfar?adamente os talheres e sumiu-se.meia hora depois voltava trazendo o melhor vestido eno rosto duas redondinhas rosas de carmim.quem a ess'hora penetrasse no oratório da fazenda notaria nas vermelhasrosas de papel de seda que enfeitavamo santo ant?nio a ausência de várias pétalas, e aos pés daimagem uma velinha acesa. na ro?a, o ruge e o casamentosaem do mesmo oratório.trancoso dissertava sobre variados temas agrícolas.- o canastr?o? pff! ra?a tardia, meu caro senhor, muito agreste. eu soupelo poland chine. também n?o é mau,n?o, o large black. mas o poland! que precocidade! quera?a!moreira, chucro na matéria, só conhecedor das pelhancas famintas, semnome nem ra?a, que lhe grunhiam nospastos, abria insensivelmente a boca.- como em matéria de pecuária bovina - continuoutrancoso -' tenho para mim que, de barreto a prado, andam todoserradíssimos. pois n?o! er-ra-dís-si-mos! nemsele??o, nem cruzamento. quero a ado??o i-me-di-a-ta dasmais finas ra?as inglesas, o polled angus, o red lirtcoln.n?o temos pastos? fa?amo-los. plantemos alfafa. penemos.ensilemos. o assis (2) confessou-me uma vez...o assis! aquele homem confessava os mais altos paredros da agricultura!era íntimo de todos eles - o prado, (3) obarreto, (4) o cotrim... (5) e de ministros! "eu já aleguei isso aobezerra... (6)nunca se honrara a fazenda com a presen?a de cavalheiro mais distinto,assim bem relacionado e t?o viajado.falava da argentina e de chicago como quem veio ontemde lá. maravilhoso!a boca de moreira abria, abria, e acusava o grau máximo de aberturapermitida a ?ngulos maxilares, quando umavoz feminina anunciou o almo?o.apresenta??es.mereceu zilda louvores nunca sonhados, que a puseram de cora??o aospinotes. também os teve a galinhaensopada, o tutu com torresmos, o pastel e até a água do pote.- na cidade, senhor moreira, uma água assim, pura,cristalina, absolutamente potável, vale o melhor dos vinhos.felizes os que podem bebê-la!a família entreolhou-se; nunca imaginaram possuir emcasa semelhante preciosidade, e cada um insensivelmentesorveu o seu golezinho, como se naquele instante travassem conhecimentocom o precioso néctar. zico chegou aestalar a língua...quem n?o cabia em si de gozo era dona isaura. oselogios à sua culinária puseram-na rendida; por metadedaquilo já se daria por bem paga da trabalheira.- aprenda, zico - cochichava ela ao filho -' o que éeduca??o fina.após o café, brindado com um "delicioso!", convidoumoreira o hóspede para um giro a cavalo.- impossível, meu caro, n?o monto em seguida às refei??es; dá-mecefalalgia.zilda corou. zilda corava sempre que n?o entendia umapalavra.? tarde sairemos, n?o tenho pressa. prefiro agora umpasseiozinho pedestre pelo pomar, a bem do quilo.enquanto os dois homens em pausados passos para láse dirigiam, zilda e zico correram ao dicionário.- n?o é com s - disse o rapaz.- veja com c - alvitrou a algum trabalho encontraram a palavra cefalalgia.- "dor de cabe?a!" ora! uma coisa t?o simples...? tarde, no giro a cavalo, trancoso admirou e louvoutudo quanto ia vendo, com grande espanto do fazendeiroque, pela primeira vez, ouvia gabos às coisas suas. os pretendentes emgeral malsinam de tudo, com olhos abertos sópara defeitos; diante de uma barroca, abrem-se em exclama??es quanto aoperigo das terras frouxas; acham más epoucas as águas; se enxergam um boi, n?o despregam avista dos bernes.trancoso, n?o. gabava! e quando moreira, nos trechosmistificados, com dedo trêmulo assinalou os padr?es, omo?o abriu a boca.- caquera? mas isto é fantástico!...em face do pau-d'alho culminou-lhe o assombro.- é maravilhoso o que vejo! nunca supus encontrarnesta zona vestígios de semelhante árvore! - disse, metendo na carteirauma folha como lembran?a.em casa abriu-se com a velha.- pois, minha senhora, a qualidade destas terras excedeu de muito à minhaexpectativa. até pau-d'alho! isto épositivamente famoso!...dona isaura baixou os olhos. a cena passava-se na varanda. era noite.noite trilada de grilos, coaxada de sapos,com muitas estrelas no céu e muita paz na terra. refestelado numa cadeirapregui?osa, o hóspede transfez o sopor dadigest?o em quebreira poética.- este cri-cri de grilos, como é encantador! eu adoro as:noites estreladas, o bucólico viver campesino, t?o sadio e feliz...- mas é muito triste!... - aventurou zilda.- acha? gosta mais do canto estridente da cigarra,modulando cavatinas em plena luz? - disse ele, amela?ando a voz. - ? queno seu cora??ozinho há qualquer nuvema sombreá-lo...vendo moreira assim ati?ado o sentimentalismo, e dessa feita passível deconseqüências matrimoniais, houve porbem dar uma pancada na testa e berrar: "oh, diabo! n?o éque ia me esquecendo do..." n?o disse do que, nem erapreciso. saiu precipitadamente, deixando-os sós.prosseguiu o diálogo, mais mel e rosas.- o senhor é um poeta! - exclamou zilda a um regorjeio dos mais sucados.- quem o n?o é debaixo das estrelas do céu, ao ladoduma estrela da terra?- pobre de mim! - suspirou a menina, palpitante.também do peito de trancoso subiu um suspiro. seusolhos al?aram-se a uma nuvem que fazia no céu as vezesda via láctea, e sua boca murmurou em solilóquio umrabo-d'arraia desses que derrubam meninas.- o amor!... a via láctea da vida!... o aroma das rosas,a gaze da aurora! amar, ouvir estrelas... amai, pois sóquem ama entende o que elas dizem.era zurrapa de contrabando; n?o obstante, ao paladarinexperto da menina soube a fino moscatel. zilda sentiusubir à cabe?a um vapor. quis retribuir. deu busca aosramilhetes retóricos da memória em procura da flor maisbela. só achou um bogari humílimo:- lindo pensamento para um cart?o-postal!ficaram no bogari; o café com bolinhos de frigideiraveio interromper o idílio nascente.que noite aquela! dir-se-ia que o anjo da bonan?a distendera suas asas deouro por sobre a casa triste. via zildarealizar-se todo o escrich deglutido. dona isaura gozava-se dapossibilidade de casá-la rica. moreira sonhava quita??es de dívidas, comsobras fartas a tilintar-lhe no bolso.e imaginariamente transfeito em comerciante, zico fiou, anoite inteira, em sonhos, à gente da tudinha, que, cativade tanta gentileza, lhe concedia afinal a ambicionada m?oda pequena.só trancoso dormiu o sono das pedras, sem sonhos nempesadelos. que bom é ser rico!no dia imediato visitou o resto da fazenda, cafezais epastos, examinou cria??o e benfeitorias; e como o gentilmancebo continuasse no enlevo, moreira, deliberado na véspera a pedirquarenta contos pela espiga, julgou de bomaviso elevar o pre?o. após a cena do pau-d'alho, suspendeu-o mentalmentepara quarenta e cinco; findo o examedo gado, já estava em sessenta. e quando foi abordada amagna quest?o, o velho declarou corajosamente, na vozfirme de um alea jacta:- sessenta e cinco! - e esperou de pé atrás a ventania.trancoso, porém, achou razoável o pre?o.- pois n?o é caro - disse -, está um pre?o bem maisrazoável do que imaginei.o velho mordeu os lábios e tentou emendar a m?o.- sessenta e cinco, sim, mas.., o gado fora!...- é justo, respondeu trancoso.- ... e fora também os porcos!...- perfeitamente.- ... e a mobília!- ? natural.o fazendeiro engasgou; n?o tinha mais o que excluir econfessou de si para consigo que era uma cavalgadura. porque n?o pedira logo oitenta?informada do caso, a mulher chamou-lhe pax vobis.- mas, criatura, por quarenta já era um negoci?o! justificou-se o velho.- por oitenta seria o dobro melhor. n?o se defenda. eununca vi moreira que n?o fosse palerma e sarambé. ? dosangue. você n?o tem culpa.amuaram um bocado; mas a ?nsia de arquitetar castelos com a imprevistadinheirama varreu para longe a nuvem. zico aproveitou a aura parainsistir nos três contos doestabelecimento - e obteve-os. dona isaura desistiu de talcasinha. lembrava agora outra maior, em rua de prociss?o- a casa do eusébio leite.- mas essa é de doze contos, advertiu o marido.- mas é outra coisa que n?o aquele casebre! muitomais bem repartida. só n?o gosto da alcova pegada à copa;escura...- abre-se uma clarabóia.- também o quintal precisa de reforma; em vez docercado das galinhas...até noite alta, enquanto n?o vinha o sono, foram remendando á casa,pintando-a, transformando-a na mais deliciosa vivenda da cidade. estava ocasal nos últimos retoques, dorme-n?o-dorme, quando zico bateu à porta.- três contos n?o bastam, papai, s?o precisos cinco. háa arma??o, de que n?o me lembrei, e os direitos, e o aluguelda casa, e mais coisinhas...entre dois bocejos, o pai concedeu-lhe generosamenteseis.e zilda? essa vogava em alto-mar dum romance defadas. deixemo-la vogar.chegou enfim o momento da partida. trancoso despediu-se. sentia muito n?opoder prolongar a deliciosa visita,mas interesses de monta o chamavam. a vida do capitalistan?o é livre como parece... quanto ao negócio, considerava-oquase feito; daria a palavra definitiva dentro de semana.partiu trancoso, levando um pacote de ovos - gostaramuito da ra?a de galinhas criada ali; e um saquito de carás- petisco de que era mui guloso. levou ainda uma bonitalembran?a, o rosilho do moreira, o melhor cavalo da fazenda. tanto gabarao animal durante os passeios, que o fazendeiro se viu na obriga??o derecusar uma barganha proposta e dar-lho de presente.- vejam vocês! - disse moreira, resumindo a opini?ogeral. - mo?o, riquíssimo, direit?o, instruído como umdoutor e no entanto amável, gentil, incapaz de torcer ofocinho como os pulhas que cá têm vindo. o que é ser gente!? velha agradara sobretudo a sem-cerim?nia do jovemcapitalista. levar ovos e carás! que mimo!todos concordaram, louvando-o cada um a seu modo.e assim, mesmo ausente, o gentil rica?o encheu a casa durante a semanainteira.mas a semana transcorreu sem que viesse a ambicionada resposta. e maisoutra. e outra ainda.escreveu-lhe moreira, já apreensivo e nada. lembrou-sedum parente morador na mesma cidade e endere?ou-lhecarta pedindo que obtivesse do capitalista a solu??o definitiva. quantoao pre?o, abatia alguma coisa. dava a fazendapor cinqüenta e cinco, por cinqüenta e até por quarenta,com cria??o e mobília.o amigo respondeu sem demora. ao rasgar do envelope, os quatro cora??esda espiga pulsaram violentamente:aquele papel encerrava o destino de todos quatro.dizia a carta: "moreira. ou muito me engano ou estásiludido. n?o há por aqui nenhum trancoso carvalhais capitalista. há otrancosinho, filho de nhá veva, vulgo sacatrapo. ? um espertalh?o quevive de barganhas e sabe iludir aos que o n?o conhecem. ultimamente temcorrido oestado de minas, de fazenda em fazenda, sob vários pretextos. finge-se àsvezes comprador, passa uma semana emcasa do fazendeiro, a caceteá-lo com passeios pelas ro?as eexames de divisas; come e bebe do bom, namora as criadas,ou a filha, ou o que encontra - é um vassoura de marca!- e no melhor da festa some-se. tem feito isto um centode vezes, mudando sempre de zona. gosta de variar detempero, o patife. como aqui trancoso só há este, deixo deapresentar ao pulha a tua proposta. ora o sacatrapo a comprar fazenda!tinha gra?a..."o velho caiu numa cadeira, aparvalhado, com a missivasobre os joelhos. depois o sangue lhe avermelhou as facese seus olhos chisparam.- cachorro!as quatro esperan?as da casa ruíram com fragor, entrelágrimas da menina, raiva da velha e cólera dos homens.zico prop?s-se a partir incontinenti na peugada do biltre, a fim dequebrar-lhe a cara.- deixe, menino! o mundo dá voltas. um dia cruzo-me com o ladr?o e justocontas.pobres castelos! nada há mais triste que estes repentinos desmoronamentosde ilus?es. os formosos palácios d'espanha, erigidos durante um mês àcusta da mirífica dinheirama, fizeram-se taperas sombrias. dona isaurachorou atéos bolinhos, a manteiga e os frangos.quanto a zilda, o desastre operou como pé-de-ventoatravés de paineira florida. caiu de cama, febricitante. encovaram-se-lheas faces. todas as passagens trágicas dosromances lidos desfilaram-lhe na memória; reviu-se na vítima de todoseles. e dias a fio pensou no suicídio.por fim, habituou-se a essa idéia e continuou a viver.teve azo de verificar que isso de morrer de amores, só emescrich.acaba-se aqui a história - para a platéia; para as torrinhas segue aindapor meio palmo. as platéias costumamimpar umas tantas finuras de bom gosto e tom muito de rir;entram no teatro depois de come?ada a pe?a e saem mal asamea?a o epílogo.já as galerias querem a coisa pelo comprido, a jeito deaproveitar o rico dinheirinho até o derradeiro vintém. nosromances e contos, pedem esmiu?amento completo do enredo; e se o autor,levado por fórmulas de escola, lhesarruma para cima, no melhor da festa, com a caudinhareticenciada a que chama "nota impressionista", franzem onariz. querem saber - e fazem muito bem - se fulanomorreu, se a menina casou e foi feliz, se o homem afinalvendeu a fazenda, a quem e por quanto.s?, humana e respeitabilíssima curiosidade!- vendeu a fazenda o pobre moreira?pesa-me confessá-lo: n?o! e n?o a vendeu por artes domais inconcebível qüiproquó de quantos tem armado nestemundo o diabo - sim, porque afora o diabo, quem é capazde intrincar os fios da meada com la?os e nós cegos, justamente quandovai a feliz remate o crochê?o acaso deu a trancoso uma sorte de cinqüenta contosna loteria. n?o se riam. por que motivo n?o havia trancoso de ser oescolhido, se a sorte é cega e ele tinha nobolso um bilhete? ganhou os cinqüenta contos, dinheiroque para um pé-atrás daquela marca era significativo degrande riqueza.de posse do bolo, após semanas de tonteira, deliberouafazendar-se. queria tapar a boca ao mundo realizandouma coisa jamais passada pela sua cabe?a: comprar fazenda. correu emrevista quantas visitara durante os anos demalandragem, propendendo, afinal, para a espiga. ia nisso, sobretudo, alembran?a da menina, dos bolinhos davelha e a idéia de meter na administra??o ao sogro, dejeito a folgar-se uma vida vadia de regalos, embalado peloamor de zilda e os requintes culinários da sogra. escreveu, pois aomoreira anunciando-lhe a volta, a fim defechar-se o negócio.ai, ai, ai! quando tal carta penetrou na espiga houverugidos de cólera, entremeio a bufos de vingan?a.- ? agora! - berrou o velho. - o ladr?o gostou dap?ndega e quer repetir a dose. mas desta feita curo-lhe abalda, ora se curo! - concluiu, esfregando as m?os noantegozo da vingan?a.no murcho cora??o da pálida zilda, entretanto, bateuum raio de esperan?a. a noite de su'alma alvorejou ao luarde um "quem sabe?" n?o se atreveu, todavia, a arrostar acólera do pai e do irm?o, concertados ambos num tremendo ajuste decontas. confiou no milagre. acendeu outravelinha a santo ant?nio...o grande dia chegou. trancoso rompeu à tarde pelafazenda, caracolando o rosilho.desceu moreira a esperá-lo embaixo da escada, de m?osàs costas.antes de sofrear as rédeas, já o amável pretendenteabria-se em exclama??es.- ora viva, caro moreira! chegou enfim o grande dia.desta vez, compro-lhe a fazenda.moreira tremia. esperou que o biltre apeasse e mal trancoso, lan?ando asrédeas, dirigiu-se-lhe de bra?os abertos,todo risos, o velho saca de sob o paletó um rabo de tatu erompe-lhe para cima com ímpeto de queixada.- queres fazenda, grandíssimo tranca? toma, toma fazenda, ladr?o! - elepte, lepte, finca-lhe rijas rabadas coléricas.o pobre rapaz, tonteando pelo imprevisto da agress?o,corre ao cavalo e monta às cegas, de passo que zico lhesacode no lombo nova série de lambadas de agravadíssimoex-quase-cunhado.dona isaura ati?a-lhe os c?es:- pega, brinquinho! ferra, joli!o mal-azarado comprador de fazendas, acuado comoraposa em terreiro, dá de esporas e foge à toda, sob umachuva de insultos e pedras. ao cruzar a porteira inda teveouvidos para distinguir na grita os desaforos esgani?adosda velha:- comedor de bolinhos! papa-manteiga! toma! em outra n?o hás de cair,ladr?o de ovo e cará!...e zilda?atrás da vidra?a, com os olhos pisados do muito chorar,a triste menina viu desaparecer para sempre, envolto emuma nuvem de pó, o cavaleiro gentil dos seus douradossonhos.moreira, o caipora, perdia assim naquele dia o úniconegócio bom que durante a vida inteira lhe deparara afortuna: o duplo descarte - da filha e da espiga...notas:1. feij?o-bravo: plantas venenosas para o gado.2. assis brasil;3. ant?nio prado;4. luiz pereirabarreto;5. eduardo cotrim, homens de muita autoridade em assuntos de pecuária, naépoca;6. josé bezerra, ministro da agricultura.o estigmafui um dia a itaoca levado pelas simples indica??es dosujeito que me alugou a cavalgadura.- n?o tem errada, é ir andando. em caso de dúvida,pegue a trilha dos carros que vai certo.assim fiz e lá cheguei sem novidade.no dia da volta, porém, choveu à noite como só chovepor aqueles socav?es, e na primeira encruzilhada parei o o enxurro houvesse diluído todos os sulcosda carraria, ali fiquei alguns minutos feito o asno de buridan,à espera d'algum passante que me abrisse os olhos.n?o apareceu viv'alma, e minha impaciência empurrou-meao acaso por uma das pernas do v embara?ador. caminheicerca de hora na dúvida, até que a vista duma fazendadesconhecida me deu a certeza do transvio.resolvi portar. abeiro-me do port?o e grito o "ó decasa". abre-mo um negro velho, ocupado em abanar feij?ono terreiro.- o patr?ozinho é lá em cima, na casa-grande.dirijo-me para lá, depois de entregue o cavalo, e subo aescadaria de pedra fronteiri?a ao casar?o senhorial.um grupo de crian?as brincava por ali, em torno deuma fogueirinha de cavacos fumarentos.- fuma?a para lá, santinha para cá!ao avistarem-me, calaram-se e fugiram, com exce??o damais taluda, que permaneceu no lugar, esfregando os olhosavermelhados e lacrimosos do fumo.- papai está?estava e ia chamá-lo respondeu, esgueirando-se pelacasa adentro.as outras, com o dedinho na boca, via-as a me espiaremda porta, à qual logo assomou esbelta menina aí entre quatorze edezesseis anos, de avental azul e corada como quemesteve a lidar em forno.- fa?a o favor de entrar! - disse-me com linda voz,sorridente, de passo que seus olhos vivos todo me examinavam d'alto abaixo, num relance.- sente-se e espere um bocadinho.- a menina é filha do...- n?o, senhor. prima. mas moro aqui des'que morreram meus pais.- t?o nova e já órf?!...- de pai e m?e. tinha seis anos quando os perdi nafebre amarela de campinas. o primo trouxe-me de lá e...aqui rangeu a porta e enquadrou-se nela o dono dacasa.reconhecemo-nos incontinenti, com igual espanto.- bruno! - berrou ele. - que milagre!- e tu, fausto, onde te vim desentocar, eu que esperava ver surgir ummatut?o desconfiado!abra?os, explica??es, perguntas atropeladas.fausto n?o cessava de admirar a coincidência.- há quantos anos n?o nos vemos? dez, no mínimo...- desd'a opa da cola??o de grau. como passa o tempo!...pois, meu caro, prendo-te por cá. já n?o te vais daqui semconhecer o meu seio de abra?o e matar bem matadas assaudades.durante estas expans?es, a menina do avental n?o arredou pé da sala, eeu, volta e meia regalava meus olhos nalinda criatura que ela era.fausto, percebendo-o, apresentou-ma.- laurita, minha prima...- já nos conhecemos - disse eu.- donde? - exclamou fausto surpreso.- daqui mesmo, de há cinco minutos.- farsista! olha, laura, vê lá que nos tragam o cafépara aqui!a menina, ao retirar-se, p?s no andar esse requebro queo instinto aconselha às mo?as na presen?a de um homemcasadoiro.- galantinha, hein? - disse fausto, mal se fechou a porta.- linda! - exclamei, carregando com fúria o i. - quefrescura! que corado!- o corado corre à conta do forno. est?o lá todos aassar bolinhos de milho. n?o conheces minha mulher? família leme, dapedra fria. casei-me logo depois de formado, e aqui vivo alternando seismeses de ro?a com outrostantos de capital.- excelente vida! ? o sonho de toda a gente.- n?o me queixo, nem quero outra.- colheste, ent?o, o pomo da felicidade?fausto n?o respondeu, e como o café entrasse no momento, a conversa mudoude rumo. trouxe-o laura, combolinhos quentes.- estou adivinhando, dona laurita, que este foi enrolado pelas suas m?os!- galanteei eu, tomando um deles.- qual? - acudiu a menina. - esse que tem marca decarretilha?- sim!ela desferiu a mais sonora das risadinhas.- justamente os que têm marca s?o da lucrécia...- ora você, cascalhou fausto, a confundir as artes da prima com as dapreta!- os meus s?o estes - disse laura, apontando os n?ocarretilhados.provei um, e:- realmente, a diferen?a é enorme.novo pizzicato da menina.- pois a massa é a mesma e tudo tempero da lucrécia...fausto p?s fim aos meus desazos convidando-me para sair.- estás muito chucro no galanteio. vem daí ver a cria??o, que é o melhor.saímos e percorremos toda a fazenda, o chiqueir?o doscanastr?es, o cercado das aves de ra?a, o tanque dos pekins;vimos as cabras toggenburg, o gado jersey, a máquina decafé, todas essas coisas comuns a todas as fazendas e queno entanto examinamos sempre com real prazer.fausto era fazendeiro amador. tudo ali demonstravalogo dispêndio de dinheiro sem a preocupa??o da rendaproporcional; trazia-a no pé de quem n?o necessita da propriedade paraviver.ao jantar apresentou-me a sua mulher.n?o condisse com o molde que cá tenho de boa mulhera esposa do meu amigo. de fei??es duras, olhar d'ave derapina, nariz agudo, era positivamente feia e provavelmente preendi o caso do meu fausto: casara rico. a fazenda viera-lhe às m?ospor intermédio da esposa.na presen?a dela fausto mudava de tom. de naturalbrincalh?o, embezerrava-se numa sisudez que me era estranha; isso medisse que casaram os bens, os corpos, mas n?oas almas.também laurita se coibia, e as crian?as mostravam umodioso bom comportamento de meter dó. a mulher gelava-os a todos com oolhar duro e mau de senhora absoluta.foi um alívio o erguer-nos da mesa. fausto lembraraum giro pelos cafezais e como já estivessem arreadas ascavalgaduras, partimos. sem demora voltou o meu amigoà expansibilidade anterior, com a alegre despreocupa??odos anos acadêmicos. a conversa correu por mil veredas epor fim embicou para o tema casamento.- aquele nosso horror à coleira matrimonial! comoesbanjávamos diatribes contra o amor sacramento, benzidopelo padre, gatafunhado pelo escriv?o... lembras-te?- e estamos a pagar a língua. ? sempre assim na vida:a libérrima teoria por cima e a trama férrea das injun??espor baixo. o casamento!... n?o o defino hoje com o petulante entono desolteiro. só digo que n?o há casamento - hácasamentos. cada caso é um especial.- tendo aliás de comum - disse eu - um mesmotra?o: restri??o da personalidade.- sim. é mister que o homem ceda cinqüenta por centoe a mulher outros tantos para que haja o equilíbrio razoávela que chamamos felicidade conjugal.- "felicidade conjugal", dizes bem, restringindo com oadjetivo a amplid?o do substantivo.a vista do cafezal interrompeu-nos as confidências. erasetembro, e o aspecto das árvores estrelejadas de florinhasdava uma sensa??o farta de riqueza e futuro. corremo-loem parte, gozando o "prazer paulista" de ver ondular porespig?es e grotas a onda verde-escura dos cafeeiros alinhados.- no teu caso - perguntei - foste feliz?fausto retardou a resposta, mastigando-a.- n?o sei. cedi os cinqüenta, e espero que minha mulher imite a minhaabnega??o. ela porém, mais tenaz, embirra em n?o chegar a tanto.procuramos o equilíbrio ainda...- e laura? - perguntei estouvadamente...fausto voltou-se de golpe, ferido pela pergunta. encarou-me a fito,vacilante em revelar-me o fundo de sua alma.depois, como atravessássemos um sombrio trecho de caminho, com, barrancosacima, avencas vi?osas, samambaias ebeg?nias agrestes, disse apontando para aquilo:- sabes o que é uma face noruega? cá tens uma. n?obate o sol. muita folha, muito vi?o, verdes carregados, masnada de flores ou frutas. sempre esta frialdade úmida. laura... ? como umraio de sol matutino que folga e ri na facenoruega da minha vida...calou-se, e até à casa n?o mais pronunciou uma sópalavra. compreendi a situa??o do meu querido fausto, en?o lhe invejei as riquezas adquiridas por semelhante pre?o.deixei o paraíso, que assim se chamava a fazenda, comtrês impress?es n'alma: deliciosa, a da menina dos bolinhos,no seu avental azul, corada como as rom?s; penosa, a damegera entrevista na criatura feia e má, rica o suficiente paraadquirir marido como quem adquire um animal de luxo. aterceira n?o a define aí qualquer adjetivo espipado - complexa, sutil emdemasia para caber em moldes vulgares. erao vago pressentir duma equa??o sentimental cujos termos o raio de sol, aface noruega e o meu fausto - vagamenteperambulavam dentro da minha imaginativa, às cabriolas.nunca tornei àquelas bandas, nem o acaso me fez encontradi?o com qualquerdas três personagens.este mundo, entretanto, é uma bola pequenina. volvidos vinte anos, estavaeu parado diante duma vitrina norio de janeiro, quando alguém me cutucou as costelas.- tu, fausto!- eu sim, bruno!envelhecera fausto quarenta anos naqueles vinte dedesencontro, e o tempo murchara-lhe a expansibilidade folgaz?. enquantopalestrávamos, uma a uma subiam-me àtona da memória as cenas e pessoas do paraíso, a fascinantelaurita à frente. perguntei por ela em primeiro.- morta! - foi a resposta seca e o nas horas claras do ver?o nuvem erradia tapandoàs súbitas o sol p?e na paisagem manchas mormacentas desombras, assim aquela palavra nos velou a ambos a alegriado encontro.- e tua mulher? os filhos?- também morta, a mulher. os filhos, por aí, casadosuns, o último ainda comigo. meu caro bruno, o dinheiron?o é tudo na vida, e principalmente n?o é pára-raios quenos ponha a salvo de coriscos a cabe?a. moro na rua tal;aparece lá à noite que te contarei a minha história - egaba-te, pois serás a única pessoa a quem revelarei o inferno que me saiuo paraiso...eis o que ouvi:- quando a febre amarela em campinas orfanou laurita,eu, como o parente mais bem condicionado, trouxe-a amorar conosco. tinha ela cinco anos e já prenunciava nasgra?as infantis a encantadora menina que seria.eu estava casado de fresco e errara no casamento. minhamulher - n?o o suspeitaste naquele jantar? - era umacriatura visceralmente má.o "má" na mulher diz tudo; dispensa maior gasto deexpress?es. quando ouvires de uma mulher que é má, n?ope?as mais: foge a sete pés. se eu fora refazer o inferno,acabaria com tantos círculos que lá p?s o dante, e em lugarmeteria de guarda aos precitos uma dúzia de megeras.haviam de ver que paraíso eram, em compara??o, os círculos...confesso que n?o casei por amor. estava bacharel epobre. vi pela frente o marasmo da magistratura e a vitóriarápida do casamento rico. optei pela vitória rápida, descurioso de sondarpara onde me levaria a áurea vereda. odote, grande, valia, ou pareceu-me valer, o sacrifício. a experiência de hoje, agarrava a mais reles das promotorias. o viverque levamos n?o o desejo como castigoao pior celerado.- a face noruega!...- era exata a compara??o, gélida como nos corria oviver conjugal no período em que, iludidos, contemporizávamos, tentandoum equilíbrio impossível. depois tornou-se-nos infernal.laura, à propor??o que desabrochava, reunia em si quanta formosura decorpo, alma e espírito um poeta concebeem sonhos para meter em poemas. conluiava-se nela abeleza do diabo, própria da idade, com a beleza de deus,permanente - e o pobre do teu fausto, um exilado em friasibéria matrimonial, cora??o virgem de amor, n?o teve m?ode si, sucumbiu. no peito que supunha calcinado vi?ou operigosíssimo amor dos trinta anos.o vê-la deslizando por ali como a fada mimosa da tristemans?o, ora a florir um vaso, ora a ameigar os pequenos, jácurando os doentes pobres da fazenda, sempre irradiandobeleza, felicidade e gra?a, foi-se-me tornando a raz?o doviver. todas as generosidades e todas as coragens dos anosadolescentes borbulharam em meu peito. compreendi aminha desgra?a: era um cego a quem restituíam os olhos eque, deslumbrado, via do fundo de um cárcere, através dasreixas encruzadas, a aurora, a luz, a vida, tudo inacessível...vitimava-me a pior casta de amor - o amor secreto...correram meses.ao cabo, ou porque me traísse o fogo interno ou porque o ciúme desse àminha mulher uma vis?o de lince,tudo leu ela dentro de mim, como se o cora??o me pulsasse num peito decristal. conheci, ent?o, um lúgubre peda?o de alma humana: a caverna ondemoram os drag?es dociúme e do ódio. o que escabujou minha mulher contra os"amásios"!a caninana envolvia no mesmo insulto a inocência ignorante e a nobrezadum sentimento puríssimo, recalcadono fundo do meu ser.intimou-me a expulsá-la incontinenti.resisti.afastaria laura, mas n?o com a bruteza exigida e demodo a me trair perante ela e todo o mundo. era a primeiravez que eu depois de casado resistia, e tal firmeza encheude assombro a "senhora". tenho cá na vis?o o riso dedesafio que nesse momento lhe crispou a boca, e tenhon'alma as cicatrizes das áscuas que espirraram aqueles olhos.apanhei a luva.estas guerras conjugais portas adentro!... n?o há aí lutacivil que se lhe compare em crueza. na frente de estranhos,de laura e dos filhos, continha-se. maltratava a pobre menina, mas semrevelar a verdadeira causa da persegui??o.a sós comigo, porém, que inferno!durou pouco isso. escrevi a parentes, e dava os primeiros passos para aarruma??o de laura, quando...n?o te recordas do bosque de pinheiros plantados emseguimento ao pomar?- o pinhal d'azambuja!- foi o nome que lhe pus, como andassem uns lagart?es, seus fregueses, ame pilharem as capoeiras. esse pinhal era o passeio favorito de laura.emboscava-se nelecom um livro, ou com a costura, e dess'arte sossegava ummomento da inferneira doméstica.um dia em que saí à ca?a, menos pela ca?ada do quepara retemperar-me da guerra caseira na paz das matas, aomontar a cavalo vi-a dirigir-se para lá com o cestinho decostura.demorei-me mais do que o usual, e em vez de pacatrouxe uma longa medita??o desanimadora, feita de papoacima, inda me lembro, sob a fronte de enorme guabirobeira.ao pisar no terreiro, vi as crian?as a me esperarem naescada, assustadinhas.- "papai n?o viu laura?"- "laura?"estranhei a pergunta, e mais ainda vendo aproximar-sea velha lucrécia, que disse:- "n?o vá ter acontecido alguma para nhá laurita,patr?o! saiu cedo, antes do café, já é quase noite e nada devoltar."- "a senhora...", comecei eu a perguntar n?o sabiaainda o que.- "sinhá está no quarto. andou pelo pomar, voltou ese trancou por dentro. n?o quer enxergar ninguém, pareceque comeu cobra..."o cora??o palpitou-me violento e saí em procura delaurinha. indaguei no terreiro: ninguém a vira. lembreime do pinhal eorganizei uma alvoro?ada batida ao fachos incendidos de galha?a morta quebramos a escurid?o reinante.- "nada!"eu desanimava já de encontrá-la por ali, quando um capataz, desgarrado àfrente, gritou:- certo bosque de portugal onde se juntavam bandidos.- "está aqui um cestinho!"corremos todos. estava lá o cestinho de costura, maisadiante... o corpo frio da menina.morta, à bala!a blusa entreaberta mostrava no entresseio uma ferida:um pequeno furo negro donde fluía para as costelas finaesfria de sangue. ao lado da m?o direita inerte, o meu revólver.suicidara-se...n?o te digo o meu desespero. esqueci mundo, conveniências, tudo, ebeijei-a longamente entre arquejos e sac?esde angústia.trouxeram-na a bra?os. em casa, minha mulher, ent?ográvida, recusou-se a ver o cadáver com pretexto do estado,e laura desceu à cova sem que ela por um só momentodeixasse a clausura. note você isto: "minha mulher n?o viuo cadáver da menina.dias depois, humanizou-se. deixou a cela, voltando àvida do costume, muito mudada de gênio, entretanto. cessara a exalta??ociumosa do ódio, sobrevindo em lugar ummutismo sombrio. pouquíssimas palavras lhe ouvi daí pordiante.a mim, o suicídio de laura, sobre sacudir-me o organismo como o pior dosterremotos, preocupava-me como insolúvel enigma.n?o compreendia aquilo..suas últimas palavras em casa, seus últimos atos, nadainduzia o horrível desenlace. por que se mataria laura?como conseguira o revólver, guardado sempre no meu quarto, em lugar só demim e de minha mulher sabido?uma inspe??o nos seus guardados n?o me esclareceumelhor; nenhuma carta ou escrito judicioso.mistério!mas correram os meses e um belo dia minha mulherdeu à luz um menino.que tragédia! dói-me a cabe?a o recordá-la.a velha lucrécia, auxiliar da parteira, foi quem veio àsala com a notícia do bom sucesso.- "desta vez foi um menin?o!", disse ela. "mas nasceumarcado..."- "marcado?"- "tem uma marca no peito, uma cobrinha coral decabe?a preta."impressionado com a esquisitice, dirigi-me para o quarto. acerquei-me dacrian?a e desfiz as faixas o necessáriopara examinar-lhe o peitinho. e vi... vi um estigma quereproduzia com exatid?o o ferimento de laurinha: um núcleo negro,imitante ao furo da bala, e a "cobrinha", umaestria enviesada pelas costelas abaixo.um raio de luz inundou-me o espírito. compreenditudo. o feto em forma??o nas entranhas da m?e fora a únicatestemunha do crime e, mal nascido, denunciava-o com esmagadoraevidência.- "ela já viu isto?" - perguntei à parteira.- "n?o! nem é bom que veja antes de sarada."n?o me contive. escancarei as janelas, derramei ondasde sol no aposento, despi a crian?a e ergui-a ante os olhosda m?e; dizendo com frieza de juiz:- "olha, mulher, quem te denuncia!"a parturiente ergueu-se de golpe, recuou da testa asmadeixas soltas e cravou os olhos no estigma. esbugalhouos como louca, àmedida que lhe alcan?ava a significa??o.depois ergueu-se de golpe, e pela primeira vez aquelesolhos duros se turvaram ante a fixidez inexorável dos meus.em seguida moleou o corpo, descaindo para os travesseiros, vencida.sobreveio-lhe uma crise à noite. acudiram médicos. erafebre puerperal sob forma gravíssima. minha mulher recusou obstinadamentequalquer medica??o e morreu sem umapalavra, fora as inconscientes escapas nos momentos dedelírio...mal concluíra fausto a confidência daqueles horrores,abriu-se a porta e entrou na sala um rapazinho imberbe.- meu filho - disse ele -, mostra ao bruno a tuacobrinha.o mo?o desabotoou o colete; entreabriu a camisa. pudeent?o ver o estigma. era perfeita ilus?o: lá estava a imagemdo orifício aberto pelo projétil e o do fio de sangue escorrido.veja você, concluiu o meu triste amigo, os caprichos danatureza...- caprichos de nêmesis... - ia eu dizendo, mas oolhar do pai cortou-me a palavra: o mo?o ignorava o crimede que fora ele próprio eloqüente delator.prefácioda 2? edi??o de urup?sesgotada num mês a primeira edi??o deste livro, saiagora a segunda, aumentada, revista e com vários pronomesrecolocados pelo sr. adalgiso pereira, excelente amigoque ainda a enriqueceu de numerosas vírgulas, aspas, hífense outras miudezas cuja ausência empobrecia o original.e para ela entra mais uma, como direi? - o gênero éinclassificável - uma "indigna??o": "velha praga". e tambémo artigo "urupês".explica-se. "velha praga" é a verdadeira m?e deste livro,e n?o seria justo separar a m?e do filho.foi assim o caso. em 1914, nos primeiros meses daguerra, o autor n?o passava de humilde lavrador, incrustadona serra da mantiqueira. terrível ano de seca foi aquele!o fogo lavrou durante dois meses a fio, com fúria infernal.céu toldado, o ar espesso, o crepitar permanente dasmatas em chama, a fumarada invadindo a casa, os olhos aarderem...um fim de mundo.e sempre notícias más, a toda hora.- rebentou outro fogo no varj?o! - vinha dizer umagregado.. (1)mal se ia aquele, vinha outro:- patr?o, o trabiju está queimando!- ent?o, já seis?- ? verdade. há o fogo do teixeirinha, o fogo do maneta,o fogo do jeca...- fogos signés!... que patifes! mas h?o de pagar. denuncio-ostodos à polícia.o capataz sorriu.- n?o vale a pena. s?o eleitores do governo; o patr?on?o arranja nada.- mas n?o haverá ao menos um incendiário oposicionistaque possa pagar o pato?- n?o vê! caboclo é ali firme no governo justamentep'r'amor do fogo.tinha raz?o o homem. eram todos do governo. e oeleitor da ro?a, em paga da fidelidade partidária, goza-sedo direito de queimar o mato alheio.impossibilitado de agir contra eles por meio da justi?a,o pobre fazendeiro limitou-se a "tocar" alguns que eramseus agregados e... a "vir pela imprensa". escreveu e mandoupara as "queixas e reclama??es" d'o estado de s.paulo, a tal catilinária m?e dos "urupês". esse jornal, publicando-afora da se??o de queixas, estimulou o fazendeiroa reincidir. reincidiu. e quando deu acordo de si, virara oque os noticiaristas gravemente chamam um "homem deletras".ora aí está como as coisas se arrumam, e como, por obrae gra?a de meia dúzia de neros de pé-no-ch?o, entra acorrer mundo mais um livro.setembro, 1918nota:agregado: categoria dos que lavram por conta própria um peda?o de terradumafazenda, pagando o uso do terreno com porcentagem nas colheitas; meeiro.velha pragao artigo "velha praga" com que otal fazendeirinho "veio pela imprensa",era o seguinte:andam todos em nossa terra por tal forma estonteadoscom as proezas infernais dos belacíssimos "vons" alem?es,que n?o sobram olhos para enxergar males caseiros.venha, pois, uma voz do sert?o dizer às gentes da cidade que se lá fora ojogo da guerra lavra implacável, fogon?o menos destruidor devasta nossas matas, com furor n?omenos germ?nico.em agosto, por for?a do excessivo prolongamento doinverno, "von fogo" lambeu montes e vales, sem um momento de tréguas,durante o mês inteiro.vieram em come?os de setembro chuvinhas de apagarpoeira e, breve, novo "ver?o de sol" se estirou por outubroadentro, dando azo a que se torrasse tudo quanto escaparaà sanha de agosto.a serra da mantiqueira ardeu como ardem aldeias naeuropa, e é hoje um cinzeiro imenso, entremeado aqui eacolá de manchas de verdura - as restingas úmidas, asgrotas frias, as nesgas salvas a tempo pela cautela dos aceiros. tudo omais é crepe negro.? hora em que escrevemos, fins de outubro, chove. masque chuva cainha! que miséria d'água! enquanto caem docéu pingos homeopáticos, medidos a conta-gotas, o fogo,amortecido mas n?o dominado, amoita-se insidioso naspiúcas, (1) a fumegar imperceptivelmente, pronto para rebentar em chamasmal se limpe o céu e o sol lhe dê am?o.preocupa à nossa gente civilizada o conhecer em quantofica na europa por dia, em francos e cêntimos, um soldadoem guerra; mas ninguém cuida de calcular os prejuízos detoda sorte advindos de uma assombrosa queima destas. asvelhas camadas de húmus destruídas; os sais preciosos que,breve, as enxurradas deitar?o fora, rio abaixo, via oceano; orejuvenescimento florestal do solo paralisado e retrogradado; adestrui??o das aves silvestres e o possível advento depragas insetiformes; a altera??o para o pior do clima com aagrava??o crescente das secas; os vedos e aramados perdidos; o gado mortoou depreciado pela falta de pastos; as cento e uma particularidades quedizem respeitoa esta ou aquela zona e, dentro delas, a esta ou aquela "situa??o"agrícola.isto, bem somado, daria algarismos de apavorar; infelizmente, no brasilsubtrai-se; somar ninguém soma...? peculiar de agosto, e típica, esta desastrosa queima dematas; nunca, porém, assumiu tamanha violência, nem alcan?ou talextens?o, como neste tortíssimo 1914 que, benza-o deus, parece aparentadode perto como o célebreano1000 de macabra memória. tudo nele culmina, vai logo àsdo cabo, sem conta nem medida. as queimas n?o fugiramà regra.raz?o sobeja para, desta feita, encararmos a sério o problema. docontrário, a mantiqueira será em pouco tempotoda um sapezeiro sem fim, erisipelado de samambaias esses dois términosà uberdade das terras montanhosas.qual a causa da renitente calamidade?? mister um rodeio para chegar lá.a nossa montanha é vítima de um parasita, um piolhoda terra, peculiar ao solo brasileiro como o argas o é aosgalinheiros ou o sarcoptes mutans à perna das aves domésticas.poderíamos, analogicamente, classificá-lo entre as variedades do porrigodecalvans, o parasita do couro cabeludoprodutor da "pelada", pois que onde ele assiste (2) se vaidespojando a terra de sua coma vegetal até cair em mornadecrepitude, nua e descalvada. em quatro anos, a maisubertosa regi?o se despe dos jequitibás magníficos e dasperobeiras milenárias - seu orgulho e grandeza, para, emachincalhe crescente, cair em capoeira, passar desta à humildade davassourinha e, descendo sempre, encruar definitivamente na desdita dosapezeiro - sua torturae vergonha.este funesto parasita da terra é o caboclo, espécie dehomem baldio, semin?made, inadaptável à civiliza??o, masque vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiri?as.a medida que o progresso vem chegando com a via férrea,o italiano, o arado, a valoriza??o da propriedade, vai elerefugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pil?o, apica-pau (3) e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiri?o,mudo e sorna.encoscorado numa rotina de pedra,recua para n?o adaptar-se.? de vê-lo surgir a um sítio novo para nele armar a suaarapuca de "agregado"; n?made por for?a de vagos atavismos, n?o se liga àterra, como o camp?nio europeu "agrega-se" tal qual o "sarcopte", pelotempo necessárioà completa suc??o da seiva convizinha; feito o que, salta paradiante com a mesma bagagem com que ali chegou.vem de um sapezeiro para criar outro. coexistem emíntima simbiose; sapé e caboclo s?o vidas associadas. esteinventou aquele e lhe dilata os domínios; em troca, o sapélhe cobre a cho?a e lhe fornece fachos para queimar a colméia daspobres abelhas.chegam silenciosamente, ele e a "sarcopta" fêmea, estacom um filhote no útero, outro ao peito, outro de sete anosà ourela da saia - este já de pitinho na boca e faca à pletam o rancho um cachorro sarnento - brinquinho-a foice, a enxada, a pica-pau, o pil?ozinho de sal, apanela de barro, um santo encardido, três galinhas pevas eum galo índio. com estes simples ingredientes, o fazedorde sapezeiros perpetua a espécie e a obra de esteriliza??oiniciada com os remotíssimos avós.acampam.em três dias uma cho?a, que por eufemismo chamamcasa, brota da terra como um urupê. tiram tudo do lugar,os esteios, os caibros, as ripas, os barrotes, o cipó que osliga, o barro das paredes e a palha do teto. t?o íntima é acomunh?o dessas palho?as com a terra local, que dariamidéia de coisa nascida do ch?o por obra espont?nea danatureza - se a natureza fosse capaz de criar coisas t?o feias.barreada a casa, pendurado o santo, está lavrada a senten?a de mortedaquela e?am as requisi??es. com a pica-pau, o caboclolimpa a floresta das aves incautas. pólvora e chumbo adquire-os vendendopalmitos no povoado vizinho. ? este umtra?o curioso da vida do caboclo e explica o seu largo dispêndio depólvora; quando o palmito escasseia, rareiam ostiros, só a ca?a grande merecendo sua carga de chumbo; seo palmital se extingue, exultam as pacas: está encerrada aesta??o venatória.depois ataca a floresta. ro?a e derruba, n?o perdoandoao mais belo pau. ?rvores diante de cuja majestosa belezaruskin choraria de como??o, ele as derriba, impassível, para extrair ummel-de-pau escondido num oco.pronto o ro?ado, e chegado o tempo da queima, entraem fun??es o isqueiro. mas aqui o "sarcopte" se faz o n?o ignora que a lei imp?e aos ro?ados um aceiro dedimens?es suficientes à circunscri??o do fogo, urde tra?aspara iludir a lei, cocando dest'arte a insigne pregui?a e avelha malignidade.cisma o caboclo à porta da cabana. (4)cisma, de fato, n?o devaneios líricos, mas jeitos de transgredir asposturas com a responsabilidade a salvo. e consegue-o. arranja sempre umálibi demonstrativode que n?oesteve lá no dia do fogo.onze horas.o sol quase a pino queima como chama. um "sarcopte"anda por ali, ressabiado. minutos após, crepita a labaredainicial, medrosa, numa tou?a mais seca; oscila incerta; ondeia ao vento;mas logo encorpa, cresce, avulta, tumultuainfrene e, senhora do campo, estruge fragorosa com infernalviolência, devorando as tranqueiras, esturricando as maisaltas frondes, despejando para o céu golf?es de fumo estrelejado defaíscas.? o fogo-de-mato!e como n?o o detém nenhum aceiro, esse fogo invade afloresta e caminha por ela adentro, ora frouxo, nas capetingas (5)ralas, ora maci?o, aos estouros, nas moitas de taquaru?u;caminha sem tréguas, moroso e tíbio quando a noite fecha,insolente se o sol o ajuda.e vai galgando montes em arrancadas furiosas, ou descendo encostas apasso lento e trai?oeiro até que o detenhaa barragem natural dum rio, estrada ou grota noruega. (6)barrado, inflete para os flancos, ladeia o obstáculo, deixa-o para trás,esgueira-se para os lados - e lá continua oabrasamento implacável. amorda?ado por uma chuva repentina, alapa-se naspi?cas quieto e invisível, para no diaseguinte, ao esquentar do sol, prosseguir na faina carbonizante.quem foi o incendiário? donde partiu o fogo?indaga-se, descobre-se o nero: é um urumbeva qualquer, de barba rala,amoitado numlitro (7) de terra litigiosa.e agora? que fazer? processá-lo?n?o há recurso legal contra ele. a única pena possível,barata, fácil e já estabelecida como praxe, é "tocá-lo".curioso este preceito: "ao caboclo, toca-setoca-se, como se toca um cachorro importuno, ou umagalinha que vareja pela sala. e t?o afeito anda ele a isso,que é comum ouvi-lo dizer: "se eu fizer tal coisa, o senhorn?o me toca?"justi?a sumária - que n?o pune, entretanto, dado onomadismo do paciente.enquanto a mata arde, o caboclo regala-se.- eta fogo bonito!no vazio de sua vida semi-selvagem, em que os incidentes s?o um jacuabatido, uma paca fisgada n'água ou ofilho novimensal, a queimada é o grande espetáculo do ano,supremo regalo dos olhos e dos ouvidos.entrado setembro, come?o das "águas", o caboclo planta na terra em cinzasum bocado de milho, feij?o e arroz;mas o valor da sua produ??o é nenhum diante dos malesque para preparar uma quarta de ch?o ele semeou.o caboclo é uma quantidade negativa. tala cinqüentaalqueires de terra para extrair deles o com que passar fomee frio durante o ano. calcula as sementeiras pelo máximoda sua resistência às priva??es. nem mais, nem menos."dando para passar fome", sem virem a morrer disso, ele,a mulher e o cachorro - está tudo muito bem; assim fez opai, o av?; assim fará a prole empanzinada que naquelemomento brinca nua no terreiro.quando se exaure a terra, o agregado muda de sítio. nolugar, ficam a tapera e o sapezeiro. um ano que passe e sóeste atestará a sua estada ali; o mais se apaga como porencanto. a terra reabsorve os frágeis materiais da cho?a e,como nem sequer uma laranjeira ele plantou, nada maislembra a passagem por ali do manoel peroba, do chicomarimbondo, do jeca tatu ou outros sons ignaros, de dolorosamemória para a natureza circunvizinha.notas:1. piúcas: tocos semicarbonizados.2. assiste: reside; está estabelecido.3. pica-pau: espingarda de carregar pela boca.4. cabana: verso de ricardo gon?alves.5. capetingas: capins de mato dentro, sempre ralos, magrelas.6. grota noruega: grota fria onde n?o bate o sol.7. litro: a terra se mede pela quantidade de milho que nela pode serplantada; daí,um alqueire, uma quarta, um litro de terra.urupêsesboroou-se o bals?mico indianismo de alencar ao adventodos rondons que, ao invés de imaginarem índiosnum gabinete, com reminiscências de chateaubriand nacabe?a e a iracema aberta sobre os joelhos, metem-se a palmilharsert?es de winchester em punho.morreu peri, incomparável idealiza??o dum homem naturalcomo o sonhava rousseau, protótipo de tantas perfei??eshumanas, que no romance, ombro a ombro comaltos tipos civilizados, a todos sobreleva em beleza d'almae corpo.contrap?s-lhe a cruel etrologia dos sertanistas modernosum selvagem real, feio e brutesco, anguloso e desinteressante,t?o incapaz. muscularmente, de arrancar uma palmeira,como incapaz, moralmente, de amar ceci.por felicidade nossa-e de d. ant?nio de mariz -n?o os viu alencar; sonhou-os qual rousseau. do contrário,lá teríamos o filho de araré a moquear a linda meninanum bom brasileiro de pau-brasil, em vez de acompanhá-la em adora??opelas selvas, como o ariel benfazejo dopaquequer.a sedu??o do imaginoso romancista criou forte corrente.todo o cl? plumitivo deu de forjar seu indiozinho refegadode peri e atala. em sonetos, contos e novelas, hojeesquecidos, consumiram-se tabas inteiras de aimorés sanhudos,com virtudes romanas por dentro e penas de tucanopor fora.vindo o público a bocejar de farto, já cético ante o crescentedesmantelo do ideal, cessou no mercado literário aprocura de bugres homénicos, inúbias, tacapes, bonés, piagase virgens bronzeadas. armas e heróis desandaram cabisbaixos,rumo ao por?o onde se guardam os móveis forade uso, saudoso museu de extintas pilhas elétricas que aseu tempo galvanizaram nervos. e lá acamam poeira cochichandoreminiscências com a barba de d. jo?o de castro,com os frankisks de herculano, com os frades de garrett eque tais...n?o morreu, todavia.evoluiu.o indianismo está de novo a deitar copa, de nome mudado.crismou-se de "caboclismo". o cocar de penas dearara passou a chapéu de palha rebatido à testa; o ocaravirou rancho de sapé: o tacape afilou, criou gatilho, deitououvido e é hoje espingarda troxada; o boné descaiu lamentavelmentepara pio de inambu; a tanga ascendeu a camisaaberta ao peito.mas o substrato psíquico n?o mudou: orgulho indomável,independência, fidalguia, coragem, virilidade heróica,todo o recheio em suma, sem faltar uma azeitona, dos perise ubirajaras.este setembrino rebrotar duma arte monta inda se n?odesbagou de todos os frutos. terá o seu "ijuca-pirama",o seu "canto do piaga", e talvez dê ópera lírica.mas, completado o ciclo, vir?o destro?ar o inverno emflor da ilus?o indianista os prosaicos demolidores de ídolos- gente má e sem poesia. ir?o os malvados esgaravatar oícone com as curetas da ciência. e que feias se h?o deentrever as caipirinhas cor de jambo de fagundes varela! eque chamb?es e sornas os peris de cal?a, camisa e faca à cinta!isso, para o futuro. hoje ainda há perigo em bulir novespeiro: o caboclo é o "ai jesus!" nacional.? de ver o orgulho entono com que respeitáveis figur?esbatem no peito exclamando com altivez: sou ra?a decaboclo!anos atrás, o orgulho estava numa ascendência de tanga,in?ada de penas de tucano, com dramas íntimos e flecha?osde curare.dia virá em que os veremos, murchos de prosápia, confessaro verdadeiro av?: - um dos quatrocentos de gede?otrazidos por tomé de souza (1) num barco daqueles tempos,nosso mui nobre e fecundo mayflower.porque a verdade nua manda dizer que entre as ra?asde variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidasentre o estrangeiro recente e o aborígine de tabuinha nobei?o, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolu??o,impenetrável ao progresso. feia e sorna, nada a p?e de pé.quando pedro i lan?a aos ecos o seu grito histórico e opaís desperta estrovinhado à crise duma mudan?a de dono,o caboclo ergue-se, espia e acocora-se de novo.pelo 13 de maio, mal esvoa?a o florido decreto da princesae o negro exausto larga num uf! o cabo da enxada, ocaboclo olha, co?a a cabe?a, 'magina e deixa que do velhomundo venha quem nele pegue de novo.a 15 de novembro, troca-se um trono vitalício pelacadeira quadrienal. o país bestifica-se ante o inopinado damudan?a. (2) o caboclo n?o dá pela coisa.vem floriano; estouram as granadas de custódio; gumercindobate às portas de roma; incitátus derranca o país. (3)o caboclo continua de cócoras, a modorrar...nada o esperta. nenhuma ferrotoada o p?e de pé. social,como individualmente, em todos os atos da vida, jeca,antes de agir, acocora-se.jeca tatu é um piraquara do paraíba, maravilhoso epítomede carne onde se resumem todas as características daespécie.ei-lo que vem falar ao patr?o. entrou, saudou. seu primeiromovimento após prender entre os lábios a palha demilho, sacar o rolete de fumo e disparar a cusparada d'esguicho,é sentar-se jeitosamente sobre os calcanhares. sóent?o destrava a língua e a inteligência.- "n?o vê que...de pé ou sentado, as idéias se lhe entnamam, a línguaemperra e n?o há de dizer coisa com coisa.de noite, na cho?a de palha, acocora-se em frente aofogo para "aquentá-lo", imitado da mulher e da prole.para comer, negociar uma barganha, ingerir um café,tostar um cabo de foice, fazê-lo noutra posi??o será desastreinfalível. há de ser de cócoras.nos mercados, para onde leva a quitanda domingueira,é de cócoras, como um faquir do bramaputra, que vigia oscachinhos de brejaúva ou o feixe de três palmitos.pobre jeca tatu! como és bonito no romance e feio narealidade!jeca mercador, jeca lavrador, jeca filósofo...quando comparece às feiras, todo o mundo logo adivinhao que ele traz: sempre coisas que a natureza derramapelo mato e ao homem só custa o gesto de espichar a m?oe colher - cocos de tucum ou ji?ara, guabirobas, bacuparis,maracujás, jataís, pinh?es, orquídeas; ou artefatos de taquarapoca- peneiras, cestinhas, samburás, tipitis, pios de ca?ador;ou utensílios de madeira mole - gamelas, pil?ezinhos,colheres de pau.nada mais.seu grande cuidado é espremer todas as conseqüênciasda lei do menor esfor?o - e nisto vai e?a na morada. sua casa de sapé e lama faz sorriraos bichos que moram em toca e gargalhar ao jo?o-de-barro.pura biboca de bosquímano. mobília, nenhuma. a cama éuma espipada esteira de peri posta sobre o ch?o batido.?s vezes se dá ao luxo de um banquinho de três pernas- para os hóspedes. três pernas permitem equilíbrio; inútil,portanto, meter a quarta, o que ainda o obrigaria anivelar o ch?o. para que assentos, se a natureza os dotou desólidos, rachados calcanhares sobre os quais se sentam?nenhum talher. n?o é a munheca um talher completo- colher, garfo e faca a um tempo?no mais, umas cuias, gamelinhas, um pote esbei?ado, apichorra e a panela de feij?o.nada de armários ou baús. a roupa, guarda-a no corpo.só tem dois panelhos; um que traz no uso e outro na lavagem.os mantimentos apaiola nos cantos da casa.inventou um cipó preso à cumeeira, de gancho na pontae um disco de lata no alto: ali pendura o toucinho, a salvodos gatos e ratos.da parede pende a espingarda pica-pau, o polvarinhode chifre, o s?o benedito defumado, o rabo de tatu e aspalmas bentas de queimar durante as fortes trovoadas. servemde gaveta os buracos da parede.seus remotos avós n?o gozaram maiores comodidades.seus netos n?o meter?o quarta perna ao banco. para quê?vive-se bem sem isso.se pelotas de barro caem, abrindo seteiras na parede,jeca n?o se move a rep?-las. ficam pelo resto da vida osburacos abertos, a entremostrarem nesgas de céu.quando a palha do teto, apodrecida, greta em fendaspor onde pinga a chuva, jeca, em vez de remendar a tortura,limita-se, cada vez que chove, a aparar numa gamelinhaa água gotejante...remendo... para quê? se uma casa dura dez anos efaltam "apenas" nove para que ele abandone aquela? estafilosofia economiza reparos.na mans?o de jeca a parede dos fundos bojou para foraum ventre empanzinado, amea?ando ruir; os barrotes, cortadospela umidade, oscilam na podriqueira do baldrame.a fim de neutralizar o desaprumo e prevenir suas conseqüências,ele gnudou na parede uma nossa senhora enquadradaem moldurinha amarela - santo de mascate.- "por que n?o remenda essa parede, homem de deus?"- "ela n?o tem coragem de cair. n?o vê a escora?"n?o obstante, "por via das dúvidas", quando ronca atrovoada, jeca abandona a toca e vai agachar-se no oco dumvelho embiru?u do quintal - para se saborear de longecom a eficácia da escora santa.um peda?o de pau dispensaria o milagre; mas entrependurar o santo e tomar da foice, subir ao morro, cortar amadeira, atorá-la, baldeá-la e especar a parede, o sacerdoteda grande lei do menor esfor?o n?o vacila. ? coerente.um terreirinho descalvado rodeia a casa. o mato o beira.nem árvores frutíferas, nem horta, nem flores - nadarevelador de permanência.há mil raz?es para isso; porque n?o é sua a terra; porquese o "tocarem" n?o ficará nada que a outrem aproveite;porque para frutas há o mato; porque a "cria??o" come;porque...- "mas, criatura, com um vedozinho por ali... a madeiraestá à m?o, o cipó é tanto..."jeca, interpelado, olha para o morro coberto de moir?es,olha para o terreiro nu, co?a a cabe?a e cuspilha.- "n?o paga a pena."todo o inconsciente filosofar do caboclo grulha nessapalavra atravessada de fatalismo e modorra. nada paga apena. nem culturas, nem comodidades. de qualquer jeitose vive.da terra só quer a mandioca, o milho e a cana. a primeira,por ser um p?o já amassado pela natureza. bastaarrancar uma raiz e deitá-la nas brasas. n?o imp?e colheita,nem exige celeiro. o plantio se faz com um palmo de ramafincada em qualquer ch?o. n?o pede cuidados. n?o a atacaa formiga. a mandioca é sem-vergonha.bem ponderado, a causa principal da lombeira do cabocloreside nas benemerências sem conta da mandioca. talvezque sem ela se pusesse de pé e andasse. mas enquantodispuser de um p?o cujo preparo se resume no plantar,colher e lan?ar sobre brasas, jeca n?o mudará de vida. ovigor das ra?as humanas está na raz?o direta da hostilidadeambiente. se a poder de estacas e diques o holandês extraiude um brejo salgado a holanda, essa jóia do esfor?o, é queali nada o favorecia. se a inglaterra brotou das ilhas nevoentasda caled?nia, é que lá n?o medrava a mandioca.medrasse, e talvez os víssemos hoje, os ingleses, tolhi?os,de pé no ch?o, amarelentos, mariscando de peneira no t?misa.há bens que vêm para males. a mandioca ilustra esteavesso de provérbio.outro precioso auxiliar da cala?aria é a cana. dá rapadura,e para jeca, simplificador da vida, dá garapa. comon?o possui moenda, torce a pulso sobre a cuia de café umrolete, depois de bem macetados os nós; a?ucara assim abeberagem, fugindo aos tr?mites condutores do caldo decana à rapadura.todavia, est modus in rebus. e assim como ao lado dorestolho cresce o bom pé de milho, contrasta com a cristianíssimasimplicidade do jeca a opulência de um seu vizinhoe compadre que "está muito bem". a terra onde moraé sua. possui ainda uma égua, monjolo e espingarda dedois canos. pesa nos destinos políticos do país com o seuvoto e nos econ?micos com o polvilho azedo de que éfabricante, tendo amealhado com ambos, voto e polvilho,para mais de quinhentos mil réis no fundo da arca.vive num corrupio de barganhas nas quais exercitauma astúcia nativa muito irm? da de bertoldo. a espertezaúltima foi a barganha de um cavalo cego por umaégua de passo picado. verdade é que a égua mancava dasm?os, mas inda assim valia dez mil réis mais do que orocinante zanaga.esta e outras celebrizaram-lhe os engriman?os potreirosnum raio de mil bra?as, granjeando-lhe a incondicional ebabosa admira??o do jeca, para quem, fino como o compadre,"home"... nem mesmo o vigário de itaoca!aos domingos, vai à vila bifurcado na magreza ventrudada serena; leva apenso à garupa um filho e atrás opotrinho no trote, mais a mulher, com a crian?a nova enroladano xale. fecha o cortejo o indefectível brinquinho, aresfolgar com um palmo de língua de fora.o fato mais importante de sua vida é, sem dúvida,votar no governo. tira nesse dia da arca a roupa preta docasamento, sarj?o funadinho de tra?a e todo vincado dedobras; entala os pés num alentado sapat?o de bezerro; ataao pesco?o um colarinho de bico e, sem gravata, ringindo emancando, vai pegar o diploma de eleitor às m?os do chefecoisada, que lho retém para maior garantia da fidelidadepartidária.vota. n?o sabe em quem, mas vota. esfrega a pena nolivro eleitoral, arabescando o aranhol de gatafunhos a quechama "sua gra?a".se há tumulto, chuchurreia de pé firme, com heroísmo,as porretadas oposicionistas, e ao cabo segue para a casa dochefe, de galo cívico na testa e colarinho sungado para trás,a fim de novamente lhe depor nas m?os o "dipeloma".grato e sorridente, o morubixaba galardoa-lhe o heroísmo,flagrantemente documentado pelo latejar do couro cabeludo,com um aperto de munheca e a promessa, paralogo, duma inspetoria de quarteir?o.representa este freguês o tipo clássico do sitiante já comum pé fora da classe. exce??o, díscolo que é, n?o vem aocaso. aqui tratamos da regra e a regra é jeca tatu.o mobiliário cerebral de jeca, à parte o suculento recheiode supersti??es, vale o do casebre. o banquinho detrês pés, as cuias, o gancho de toucinho, as gamelas, tudose reedita dentro de seus miolos sob a forma de idéias: s?oas no??es práticas da vida, que recebeu do pai e sem mudan?atransmitirá aos filhos.o sentimento de pátria lhe é desconhecido. n?o temsequer a no??o do país em que vive. sabe que o mundo égrande, que há sempre terras para diante, que muito longeestá a corte com os graúdos e mais distante ainda a bahia,donde vêm baianos pernósticos e cocos.perguntem ao jeca quem é o presidente da república:- "o homem que manda em nós tudo?"- "sim"- "pois de certo que há de ser o imperador."em matéria de civismo n?o sobe de ponto.- "guerra? t'esconjuro! meu pai viveu afundado nomato p'ra mais de cinco anos por causa da guerra grande. (4)eu, para escapar do "reculutamento", sou inté capaz decortar um dedo, como o meu tio louren?o..."guerra, defesa nacional, a??o administrativa, tudo quantocheira a governo resume-se para o caboclo numa palavraapavorante - "reculutamento".quando em princípio da presidência hermes andou nabalha um recenseamento esquecido a offenbach, o caboclotremeu e entrou a casar em massa. aquilo "haverá de serreculutamento", e os casados, na voz corrente, escapavamà redada.a sua medicina corre parelhas com o civismo e a mobília- em qualidade. quantitativamente, assombra. da noitecerebral pirilampejam-lhe apózemas, cerotos, arrobes eeletuários escapos à sagacidade c?mica de mark pendia-se um chernoviz n?o escrito, monumento degalhofa onde n?o há rir, lúgubre como é o epílogo. a redena qual dois homens levam à cova as vítimas de semelhantefarmacopéia é o espetáculo mais triste da ro?a.quem aplica as mezinhas é o "curador", um eusébiomacário de pé no ch?o e cérebro trancado como moita detaquaru?u. o veículo usual das drogas é sempre a pinga -meio honesto de render homenagem à deusa cacha?a, divindadeque entre eles ainda n?o encontrou heréticos.doen?as haja que remédios n?o faltam.para bronquite, é um porrete cuspir o doente na boca deum peixe vivo e soltá-lo: o mal se vai com o peixe água abaixo...para "quebranto de ossos", já n?o é t?o simples a medica??o.tomam-se três contas de rosário, três galhos de alecrim,três limas de bico, três iscas de palma benta, trêsraminhos de arruda, três ovos de pata preta (com casca;sem casca desanda) e um saquinho de picum?; mete-setudo numa gamela d'água e banha-se naquilo o doente,fazendo-o tragar três goles da zurrapa. ? infalível!o específico da brotoeja consiste em cozimento de bei?ode pote para lavagens. ainda há aqui um pormenor demonta; é preciso que antes do banho a m?e do doentemolhe na água a ponta de sua tran?a. as brotoejas saramcomo por encanto.para dor de peito que "responde na cacunda", cataplasmade "jasmim de cachorro" é um porrete.além desta alopatia, para a qual contribui tudo quantode mais repugnante e inócuo existe na natureza, há a medica??osimpática, baseada na influi??o misteriosa de objetos,palavras e atos sobre o corpo humano.o ritual bizantino dentro de cujas maranhas os filhos dojeca vêm ao mundo, e do qual n?o há fugir sob pena degravíssimas conseqüências futuras, daria um in-fólio d'altof?lego ao sílvio romero bastante operoso que se propusessea compendiá-lo.num parto difícil, nada t?o eficaz como engolir trêscaro?os de feij?o-mouro, de passo que a parturiente vestepelo avesso a camisa do marido e p?e na cabe?a, tambémpelo avesso, o seu chapéu. falhando esta simpatia, há umderradeiro recurso: colar no ventre encruado a imagem des?o benedito.nesses momentos angustiosos, outra mulher n?o penetreno recinto sem primeiro defumar-se ao fogo, nem tragana m?o ca?a ou peixe: a crian?a morreria pag?. a omiss?ode qualquer destes preceitos fará chover mil desgra?as nacabe?a do chorincas recém-nascido.a posse de certos objetos confere dotes sobrenaturais. ainvulnerabilidade às facadas ou cargas de chumbo é obtidagra?as à flor da samambaia.esta planta, conta jeca, só floresce uma vez por ano, esó produz em cada samambaial uma flor. isto à meia-noite,no dia de s?o bartolomeu. ? preciso ser muito esperto paracolhê-la, porque também o diabo anda à cata. quem conseguepegar uma, ouve logo um estouro e tonteia ao cheirode enxofre - mas livra-se de faca e chumbo pelo resto da vida.todos os volumes do larousse n?o bastariam para catalogar-lheas crendices, e como n?o há linhas divisóriasentre estas e a religi?o, confundem-se ambas em maranhadateia, n?o havendo distinguir onde pára uma e come?aoutra.a idéia de deus e dos santos torna-se jeco-cêntrica. s?oos santos os graúdos lá de cima, os coronéis celestes, debru?adosno azul para espreitar-lhes a vidinha e intervir nelaajudando-os ou castigando-os, como os metedi?os deusesde homero. uma torcedura de pé, um estrepe, o feij?oentornado, o pote que rachou, o bicho que arruinou - tudodiabnuras da corte celeste, para castigo de más inten??es ouatos.daí o fatalismo. se tudo movem cordéis lá de cima, paraque lutar, reagir? deus quis. a maior catástrofe é recebidacom esta exclama??o, muito parenta do "allah kébir" dobeduíno.e na arte?nada.a arte rústica do camp?nio europeu é opulenta a pontode constituir preciosa fonte de sugest?es para os artistas deescol. em nenhum país o povo vive sem a ela recorrer paraum ingênuo embelezamento da vida. já n?o se fala nocamponês italiano ou teut?nico, filho de alfobres mimosos,propícios a todas as flora??es estéticas. mas o russo, o hirsutomujique a meio atolado em barbárie crassa. os vestuáriosnacionais da ucr?nia nos quais a cor viva e o sarapantadoda ornamenta??o indicam a ingenuidade do primitivo,os isbás da litu?nia, sua cer?mica, os bordados, os móveis,os utensílios de cozinha, tudo revela no mais rude doscamp?nios o sentimento da arte.no samoieda, no pele-vermelha, no abexim, no papua,um arabesco ingênuo costuma ornar-lhes as armas - comolhes ornam a vida can??es repassadas de ritmos sugestivos.que nada é isso, sabido como já o homem pré-histórico,companheiro do urso das cavernas, entalhava perfis de mamutesem chifres de rena.egresso à regra, n?o denuncia o nosso caboclo o maisremoto tra?o de um sentimento nascido com o troglodita.esmenilhemos o seu casebre: que é que ali denota aexistência do mais vago senso estético? uma chumbada nocabo de relho e uns ziguezagues a canivete ou fogo peloroli?o do porretinho de guatambu. ? tudo.?s vezes surge numa família um gênio musical cujafama esvoa?a pelas redondezas. ei-lo na viola: concentra-se,tosse, cuspilha o pigarro, fere as cordas e "tempera". e ficanisso, no tempero.dir?o: e a modinha?a modinha, como as demais manifesta??es de arte popularexistentes no país, é obra do mulato, em cujas veias osangue recente do europeu, rico de atavismos estéticos,borbulha d'envolta com o sangue selvagem, alegre e s?o donegro.o caboclo é soturno.n?o canta sen?o rezas lúgubres.n?o dan?a sen?o o cateretê aladainhado.n?o esculpe o cabo da faca, como o cabila.n?o comp?e sua can??o, como o felá do egito.no meio da natureza brasílica, t?o rica de formas ecores, onde os ipês floridos derramam feiti?os no ambientee a infolhescência dos cedros, às primeiras chuvas de setembro,abre a dan?a dos tangarás; onde há abelhas de sol,esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, cor, perfume, vidadionisíaca em escach?o permanente, o caboclo é o sombriourupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso dasgrotas.só ele n?o fala, n?o canta, n?o ri, n?o ama.só ele, no meio de tanta vida, n?o vive...notas:1. tomé de souza veio ao brasil com um carregamento de 400 degregados euns tantos jesuítas.2. aristides lobo: "o país assistiu bestificado à proclama??o darepública."3. o presidente hermes da fonseca!4. guerra grande: guerra do paraguai.biografiademonteirolobatoa 18 de abril de 1882, em taubaté, cidade de s?o paulo,nasce o filho de josé bento monteiro lobato e olímpiaaugusta lobato. recebe o nome de josé renato monteirolobato, que por decis?o própria modifica mais tarde parajosé bento monteiro lobato, desejando usar uma bengalado pai gravada com as iniciais j.b.m.l.juca - assim era chamado - brincava com suas irm?smenores ester e judite.naquele tempo n?o havia tantos brinquedos, eram toscos,feitos de sabugo de milho, chuchus, mam?o verde, etc...adorava os livros de seu av? materno, o visconde detremembé.sua m?e o alfabetizou, teve depois um professor particulare aos 7 anos entrou num colégio.leu tudo o que havia para crian?as em língua portuguesa.em dezembro de 1896, presta exames em s?o paulo dasmatérias estudadas em taubaté.aos 15 anos perde seu pai, vítima de congest?o pulmonar,e aos 16 anos, sua m?e.no colégio funda vários jornais, escrevendo sob pseud?nimo.aos 18 anos entra para a faculdade de direito por imposi??odo av?, pois preferia a escola de belas-artes.? anticonvencional por excelência, diz sempre o quepensa, agrade ou n?o. defende a sua verdade com unhas edentes, contra tudo e todos, quaisquer que sejam as conseqüências.em 1906 diploma-se bacharel em direito, em maio de1907 é nomeado promotor em areias, casando-se no anoseguinte com maria pureza da natividade (purezinha), comquem teve os filhos edgar, guilherme, marta e rute.vive no interior, nas cidades pequenas, sempre escrevendopara jornais e revistas, tribuna de santos, gazeta denotícia, do rio e fon-fon, para onde também manda caricaturase desenhos.em 1911 morre seu av?, o visconde de tremembé, edele herda a fazenda buquira, passando de promotor afazendeiro.a geada, as dificuldades levam-no a vender a fazendaem 1917 e a transferir-se para s?o paulo.mas na fazenda escreveu ojeca tatu, símbolo pra a revista do brasil e come?a a editar seus livrospara adultos. uru pês inicia a fila em 1918.surge a primeira editora nacional, monteiro lobato &cia., que se liquidou, transformando-se depois em companhiaeditora nacional, sem sua participa??o.antes de lobato, os livros do brasil eram impressos emportugal. com ele, inicia-se o movimento editorial brasileiro.em 1931 volta dos estados unidos da américa do norte,pregando a reden??o do brasil pela explora??o do ferroe do petróe?a a luta que o deixará pobre, doente e desgostoso.havia interesse oficial em se dizer que no brasil n?ohavia petróleo. foi perseguido, preso e criticado porqueteimava em dizer que no brasil havia petróleo e que erapreciso explorá-lo para dar ao seu povo um padr?o de vidaà altura de suas necessidades.já em 1921 dedicou-se à literatura infantil. retorna a ela,desgostoso dos adultos que o perseguem injustamente. em1943, funda a editora brasiliense para publicar suas obrascompletas, reformulando inclusive diversos livros "narizinho arrebitado", lan?a o sítio do pica pau amareloe seus célebres personagens. por intermédio de emília,diz tudo o que pensa; na figura do visconde de sabugosa,critica o sábio que só acredita nos livros já escritos; donabenta é o personagem adulto que aceita a imagina??o criadoradas crian?as, admitindo as novidades que v?o modificandoo mundo; tia nastácia é o adulto sem cultura, quevê no que é desconhecido o mal, o pecado. narizinho epedrinho s?o as crian?as de ontem, hoje e amanh?, abertasa tudo, querendo ser felizes, confrontando suas experiênciascom o que os mais velhos dizem, mas sempre acreditandono futuro.e assim o pó de pirlimpimpim continuará a transportarcrian?as do mundo inteiro ao sítio do picapau amarelo,onde n?o há horizontes limitados por muros de concreto ede idéias tacanhas.em 4 de julho de 1948, perde-se esse grande homem,vítima de colapso, na capital de s?o paulo.mas o que ele tinha de essencial, seu espírito jovem, suacoragem, está vivo no cora??o de cada crian?a. viverá sempre,enquanto estiver presente a palavra inconfundível de"emília". ................
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