NARRANDO O SERTÃO EM SUAS LINGUAGENS



NARRANDO O SERTÃO EM SUAS LINGUAGENS

Disse-me a poetisa Sonia Carneiro Leão que o sertão é um escampo, é a gênese da poesia, o mistério que fascina, o desconhecido onde o poeta procura adentrar no seu imaginário.

Eu digo que o sertão é tudo isso e, acima de tudo, uma simbologia materializada, onde a poesia reside, convive com a dor, embate-se com a beleza rústica da paisagem e sai vitoriosa na peleja, pela bravura do sertanejo. Na peleja dos cantadores a poesia escancara a alma para abri-la em sorrisos diante da tarde ensolarada. O sonoro gargalhar das casacas-de-couro, no galho do angico seco faz o coro natural, louvando a terra da promissão.

Sertanidade teve seu nascedouro em maio de 1983 numa viagem de ônibus do Recife para Cajazeiras, na Paraíba. A seca devorara todo o verde da vegetação. As ossadas, às margens da rodovia, incensavam o fartum do gado morto. Os urubus banqueteavam-se da fartura macabra. No decorrer de mais de sete horas de viagem rabisquei quase um caderno de papel pautado completo, querendo traduzir a devastação cinérea do sertão. Ali começou, realmente, a minha narração silenciosa, a minha grande interrogação comigo mesmo: como pode a Natureza rebelar-se dessa maneira? E eu escrevia num caderno sobre as pernas ao tempo em que monologava baixinho para a curiosidade de muitos outros passageiros daquele ônibus. Passei uma imagem de pessoa perturbada, e era perturbação mesmo. De quando em vez eu falava para algumas pessoas, da minha estupefação imensurável, especialmente, quando vi uma casinha de taipa, à beira da estrada, as portas entreabertas e a caveira de um animal “decorando” o terreiro varrido no entorno de uma árvore seca. Os poucos sertanejos que entravam no ônibus traziam consigo uma face alegre esboçando um sorriso largo e transmitindo paz de espírito. Parece que o sertanejo já sofreu tanto que desaprendeu a chorar.

Ali realmente nascia, sem que eu soubesse, a minha primeira narração, embora parcial e despretensiosa. Narração escrita sob o manejo rímico e espontâneo do verso decassílabo.

Ante àquela calamidade só uma frase saiu do meu pensamento: SERTANIDADE. Eis o nascedouro desse neologismo que redundou no livro do mesmo nome.

Ao tempo em que eu escrevia, muitas palavras campesinas surgiam no meu pensamento em razão da infância na fazenda, várias delas, ausentes naquele ambiente em combustão rebelde. Outras vivamente fazendo parte do drama natural, compondo aquele cenário abrasivo e incandescente, como: cardeiro, aceiro, coivara, coroa-de-frade, corrimboque, facheiro, fogo-fátuo, jebara, macambira, caatinga, mucunã, carcará, panasco, paud’árco, quicé, seriema. E tantos outros vocábulos característicos do sertão e participantes das estiagens.

O céu, num azul de mar profundo, como se uma enorme película de safira tivesse sido pincelada pela mão divina em toda a abóboda sideral. O horizonte parecia mais distante de mim, devido à ausência de nuvens carregadas.

O sol tremeluzia agressivamente em direção das minhas retinas. O boné de gabardine, também azul, dava-me uma nesga de proteção fortuita, enquanto carcarás voavam rasteiros em busca de cobras e punarés saídos das locas dos lajedos e das moitas dos cactáceos.

Avistei, em todo o trajeto, apenas um triste gavião pousado num galho desfolhado de jurema-preta. Outras asas debandaram em busca da sobrevivência noutras regiões.

Arbustos tortuosos e desfolhados semelhavam-se a braços desnutridos querendo agarrar-se uns aos outros para não cair na fornalha, nem tampouco, destruir a vegetação raquítica, seca e retorcida rastejante a seus pés, parecendo pedir socorro à sombra.

Depois, resolvi transformar os meus rabiscos de viagem num livro eminentemente descritivo das coisas sertanejas: nasceu SERTANIDADE que já me levou a apresentá-lo em Brasília, em Paraty, no Rio de Janeiro e, recentemente, em Portugal, onde foi transcrito em linguagem Braille.

Comecei o livro fazendo outra viagem, agora imaginária, num cavalo também imaginário, de posse de uma simples máquina fotográfica a percorrer o ambiente degradado. Terminei por fotografar com palavras a região do flagelo, da dor e da desesperança.

Revelei o meu filme preto-e-branco,

o retrato exibiu Sertanidade

No Nordeste, saí a cavalgar,

percorri o sobejo das restingas,

contornei as arestas das caatingas

sob o Sol, procurei fotografar

a paisagem sem vida do lugar,

na intenção de mostrar a fealdade

do Sertão quando traz a soledade

e borrifa de suor o meu potranco.

Revelei o meu filme preto-e-branco,

o retrato exibiu Sertanidade.

Xiquexique sem flor junto a facheiros,

galhos secos torcidos nos arbustos,

vegetais tortuosos e combustos

espetando as encostas dos outeiros.

Carrascais entorroam tabuleiros

das coroas furentas, as de-frade

que vicejam naquela imensidade

quando o Sol cobre a rocha em cada flanco.

Revelei o meu filme preto-e-branco,

o retrato exibiu Sertanidade.

Legiões de famintos retirantes

fugitivos do fogo da coivara,

passageiros de muitos paus-de-arara,

buscam vida em terras mais distantes.

Os que ficam são nômades errantes,

filhos órfãos da mãe calamidade,

empurrados à marginalidade

na vivência cruel do atravanco.

Revelei o meu filme preto-e-branco,

o retrato exibiu Sertanidade.

Já cansado de ver triste paisagem,

desisti de esporar o meu cavalo,

preferi buscar água pra lavá-lo,

procurando abrandar nossa viagem.

Entretanto, faltou-nos a coragem,

o cansaço tirou-me a agilidade,

o potranco a mostrar debilidade,

percebi que o cavalo estava manco.

Revelei o meu filme preto-e-branco,

o retrato exibiu Sertanidade.

Meu cavalo cansou. Faltou ração.

Acabaram-se os filmes que comprei,

todos eles eu mesmo revelei,

registrei a crueza do Sertão.

No meu álbum deixei a coleção

tradutora da dor e da orfandade,

com perfis exibindo obesidade,

nessa vida de rude solavanco.

Revelei o meu filme preto-e-branco,

o retrato exibiu Sertanidade.

E naquele ambiente de mormaço,

encerrei na metade o meu roteiro,

procurei descansar num juazeiro,

coloquei a cabeça sobre o braço,

relaxei e dormi, pois o cansaço

reduziu-me o vigor pela metade.

Despertei temeroso da cidade

e sentei-me a pensar, sobre um barranco...

Revelei o meu filme preto-e-branco,

o retrato exibiu Sertanidade.

Os sonetos, a seguir, retratam o panorama congesto da paisagem, onde o panasco (capim endêmico do sertão) perde a tonalidade natural, e vai-se amarelando até a morte iminente ante a torrefação assoladora. Somente os heróicos juazeiros, umbuzeiros e mandacarus permanecem verdejantes. Nessa terra o verde tem vida breve para dar lugar ao bege e ao creme, pela ausência da clorofila.

VERDE-CREME

Sol escaldante ao meio-dia treme

devastando a verdura do carrasco,

atingindo a folhagem do panasco

que começa a morrer em verde-creme.

O sertanejo diante do fiasco,

perde a semente e apavorado teme

que a fome rude e visceral se extreme,

secando a rês e desgarrando o casco.

A cinza da coivara o vento leva,

o vaga-lume vem, é luz na treva

e passa a noite inteira em pisca-pisca.

Sem orvalho, amanhece um novo dia,

a nuvem passa longe e se desvia,

nas terras do sertão sequer chuvisca.

VERDE-OLIVA

Frondosa mancha verde sobre a argila

petrificada em solo que se inflama,

a copa destacável se esparrama

sob um sol causticante que fuzila

baforadas letais de intrusa chama

que a flora do sertão queima e aniquila.

Guriatã faminto, não sibila,

outras asas se vão, fogem da flama.

O lampejar de estrelas no espetáculo

do lume que provém do céu imáculo

transfere brisa e paz ao tabuleiro.

Mas quando o sol expele a brasa viva,

resplandece a folhagem verde-oliva

na fronde colossal do juazeiro!

Até agora declamei poemas (glosa e sonetos decassílabos), esta é uma forma de narrar poesia em SERTANIDADE. Mas, temos outros metros a serem narrados neste livro e agora farei a leitura de um poema em redondilha menor, ou seja, versos de sete sílabas poéticas.

CANA AMARGA

Cana, cana, amarga cana,

o teu corte é minha carga.

No teu eito, na semana,

teu açúcar trava e amarga.

Cana, cana, amarga cana,

a palha corta-me o rosto,

meu destino é meu desgosto,

frágil como o teu pendão.

Teu bagaço, um catrapoço

espalhado pelo chão.

Já sou velho, sendo moço,

no teu corte o meu cansaço,

no manejo do meu braço,

no peso do meu facão.

Cana, cana, amarga cana,

vergado sobre teus feixes,

imploro que não me deixes

a vagar noutra pior.

As gotas do meu suor

derramadas pelo chão,

são as gotas da aflição

de quem não tem outro norte,

na luta de vida e morte,

na busca do pão escasso.

Meu conforto é teu mormaço

na fornalha da queimada,

que deixando a cana assada,

fica a tisna como herança.

Cana, cana, amarga cana,

teu verde sem esperança,

sem sonho na meninice,

nega o leite da criança,

nega o pão para a velhice.

Cana, cana, amarga cana,

falo como boia-fria,

cansado no dia-a-dia

de vida estreita e alma larga.

Cana, cana, amarga cana,

Cana, cana, cana amarga

E a linguagem? Sim, a linguagem inserida no livro provém do português arcaico, oriundo do nosso vernáculo, desde a Península Ibérica. Modo de falar, ainda em voga, nas pequenas e médias cidades nordestinas e em toda a zona rural do Nordeste brasileiro.

Falamos da vegetação, do clima e agora vamos falar um pouco do lado bom do sertão: da hospitalidade daquela gente, do caráter verdadeiro e de uma sinceridade inigualável. Do endeusamento dos rios temporários quando descem rosnando nas enchentes de Janeiro. Das festas de São João, dos Natais floridos pelos ipês roxo/amarelos, as craibeiras douradas e os mulungus escarlates. Da mesa farta quando não há calamidades. E aqui enumeramos as comidas prediletas dos sertanejos. Uma comida regional, numa mistura de indígena com portuguesa, aprimorada pelas mãos competentes das mulheres do sertão.

Vejamos no decassílabo em ritmo de martelo agalopado:

DIETA SERTANEJA

No sertão nós comemos tapioca,

jerimum, feijão-gordo e milho assado,

maxixada e farofa com guisado,

carne seca moída na paçoca,

milho quente dançando na pipoca,

o tutano a brilhar sobre o pirão,

mamão verde no falso camarão,

carne assada comida com angu,

café quente tomado com beiju

logo após de um gostoso rubacão.

Saboroso cuscuz (ralando o milho)

e depois, borrifado em leite quente,

a comida legal de nossa gente,

as espigas ligadas pelo atilho.

Sobremesa crocante do sequilho,

mel de abelha por cima do cará,

a terrina esborrando munguzá,

no domingo a famosa panelada,

manhã cedo a tigela de umbuzada,

mel de furo, castanha e corrumbá.

Mariola, jabá e macaxeira,

o pirão degustado na buchada,

o sabor destacado da cocada,

água doce apanhada na biqueira,

goma pura e farinha sem crueira,

bode assado, e também raspa de queijo,

deixa a boca repleta de desejo

nessa vasta dieta do sertão,

sem falar na panela de capão,

mesa farta a do nosso sertanejo.

A famosa galinha cabidela,

o gostoso feijão baião de dois,

onde a carne cozida com arroz

faz o cheiro emanar lá da panela.

A banana adoçada e com canela,

fava branca cozida e temperada,

jerimum machucado na coalhada,

sem deixar de comer queijo de coalho,

a batata assadinha no borralho

leite cru no curral de madrugada.

A farinha de milho no feijão,

a canjica e a pamonha no jantar,

bolo preto o melhor de paladar,

café forte batido no pilão,

charque assada e farofa de bolão,

o sabor dessa mesa é inconteste,

essa nossa dieta se reveste

das melhores riquezas naturais,

nossas frutas e nossos vegetais

são manjares na mesa do Nordeste.

O sertão tem suas dores, seus sons, sua música e suas alegrias. As dores da estiagem são amenizadas com o inverno, que às vezes falta, mas volta depois. Os sons advém dos aboios, dos chocalhos e do cantar frenético do passaredo. A música vem dos cantadores ao dedilhar suas violas nos baiões e repentes jogando para o mundo a pureza da poesia, nessa forma inigualável de narração: O IMPROVISO DOS CANTADORES.

Narrar é relatar, é dizer, é registrar com palavras. É também, declamar como forma de explicar. No campo da poesia predominam a ênfase e a entonação. A palavra pausada e a pronúncia de acordo com o ritmo e com as rimas, facilitam a compreensão do poema e a assimilação do mesmo. Espero que eu tenha conseguido deixar alguma dessas coisas na concepção de vocês.

Encerrando as minhas palavras agradeço a Sonia Carneiro Leão o convite que me formulou para participar, mais uma vez, deste seu programa literário tão bem dirigido e planejado: A ARTE DE NARRAR.

Agradeço, sinceramente, a Alexandre Santos, Presidente da UBE, extensivo a toda Diretoria daquela querida instituição, aqui intermediada por Rogério Generoso, pela cessão deste espaço e parabenizo a FLIPORTO, na pessoa de Antonio Campos, pela grandiosidade desta festa internacional da literatura neste solo abençoado da MARIM DOS CAETÉS.

MUITO OBRIGADO A TODOS!

Carlos Severiano Cavalcanti.

Olinda, Fliporto, 13 de novembro de 2011

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