ASSIS, POMPÉIA, BARRETO, AZEVEDO: A CRÔNICA E O ESPORTE



A CRÔNICA COMO FONTE E O REMO NO RIO DE JANEIRO

DA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XIX/XX

Autor: Prof. Victor Andrade de Melo

Instituição: Universidade Federal do Rio de Janeiro

Trabalho encaminhado para o Grupo de Trabalho Temático - 12

'Educação Física/Esporte e Memória, Cultura e Corpo'

A CRÔNICA COMO FONTE E O REMO NO RIO DE JANEIRO

DA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XIX/XX

Acreditando na relevância da utilização de fontes literárias como forma de melhor compreender o esporte no Rio de Janeiro do final do século XIX e transição para o século XX, este estudo teve por objetivo identificar as representações sobre o remo entre os principais cronistas da sociedade carioca daquele momento. Tal gênero literário foi escolhido devido às suas características, que melhor permitiriam o alcance do objetivo. Ao final, percebe-se que, de forma menos ou mais crítica, por certo influenciados por sua visão da cidade e das mudanças pelas quais passava, o esporte não passou desapercebido pelos cronistas. Por certo suas representações trazem-nos grandes contribuições para que melhor possamos compreender a difusão do campo esportivo pela sociedade brasileira.

História e ficção teriam rígidos limites e diferenças inseparáveis? Quais seriam suas fronteiras? Machado de Assis poderia nos dizer de forma irônica:

"E repare o leitor como a língua portuguesa é engenhosa. Um contador de histórias é justamente o contrário do historiador, não sendo um historiador afinal mais do que um contador de histórias. Por que essa diferença? Simples, leitor, nada mais simples. O Historiador foi inventado por ti, homem culto, letrado humanista; o contador de histórias foi inventado pelo povo, que nunca leu Tito Lívio e entende que contar o que se passou é só fantasiar" [1].

O mesmo autor ainda apresentaria outro indício, da mesma forma irônica: "Mais tarde, poetas e historiadores concordariam em dizer que as três pessoas da ilha é que deram ocasião ao título desta; a diferença é que os poetas diriam a cousa em verso, sem documentos, e os historiadores di-la-iam em prosa, com documentos" [2].

Não tendo a concordar que história e literatura sejam produções de natureza semelhante. Entre outras dimensões, os estudos históricos têm uma estrutura metodológica diferenciada, compromissos diferentes e o historiador não tem plena liberdade de narrativa. Mas por certo não vejo uma barreira intransponível entre literatura e história. Os avanços recentes da historiografia, principalmente no que se refere à valorização da narrativa e a possibilidade de uso de fontes as mais diversas possíveis, acabam por forjar uma proximidade entre ambas e a Literatura pode conceder grandes contribuições para a História, assim como vice-versa[3].

A aproximação recente da História com a Antropologia e com a Teoria Literária tem apresentado a literatura como uma das fontes possíveis para a reconstrução histórica de um determinado objeto[4]. Por certo são cada vez menores as restrições a tal uso, conforme se refutam e relativizam os questionamentos à suposta falta de objetividade dessas fontes se comparadas a outras tradicionalmente utilizadas no exercício historiográfico. Assume-se que cada fonte carrega suas peculiaridades e todas, em certo sentido, somente apresentam uma determinada representação, carecendo de 'objetividade absoluta', devendo ser manipuladas com rigor e consideração às suas características intrínsecas.

No caso das fontes literárias, os desafios se encontram na compreensão da obra do autor como um todo: no entendimento de suas dimensões estilísticas, do movimento a qual o escritor se filia e sua inserção no momento histórico de sua produção, parâmetros que se desconsiderados podem seriamente deslocar as análises procedidas.

"A proposta é historicizar a obra literária (...), inseri-la no movimento da sociedade, investigar as suas redes de interlocução social, destrinchar não a suposta autonomia em relação à sociedade, mas sim a forma como constrói ou representa a sua relação com a realidade social" [5].

Mesmo não sendo stricto sensu um especialista na literatura carioca do século XIX, e logo sabedor dos riscos das análises a serem apresentadas, procurei na medida do possível considerar as questões acima na elaboração deste estudo, produzido no decorrer do desenvolvimento de minha tese de doutoramento[6], por acreditar na relevância da utilização de fontes literárias como forma de melhor compreender o esporte no Rio de Janeiro do século XIX. Efetivamente acreditava que seria importante identificar as representações sobre essa prática cultural entre os mais férteis intérpretes da sociedade carioca daquele momento.

Ao colocar tal posicionamento, o faço menos para fugir das críticas necessárias e mais para assumir os limites deste estudo, cujo objetivo é colher indicadores sobre o esporte no Rio de Janeiro do século XIX e transição para o XX na obra de importantes literatos daquele momento. Neste estudo especificamente estarei fazendo uso de crônicas, por certo a fonte literária mais utilizada no desenvolvimento de minha tese de doutoramento.

A utilização prioritária de crônica teve claras razões. Primeiro por se tratar de um estudo sobre o Rio de Janeiro, cidade que reconhecidamente tem uma forte ligação com esse gênero: "Há entre o Rio de Janeiro e a crônica uma tal afinidade que chega a ser difícil fazer a história da cidade sem se evocar (...) um dos numerosos cronistas que, tendo ou não nascido aqui, dela falaram" [7].

Segundo Beatriz Resende, o Rio de Janeiro é a cidade da crônica, guardando com tal gênero uma relação especial e muito próxima, construída no decorrer dos anos: "Que a crônica é a modalidade de literatura urbana, não resta dúvida, mas no caso brasileiro há esta peculiaridade: é no Rio de Janeiro que o gênero nasceu, cresceu, se fixou" [8].

Outra razão para a utilização de crônicas como fontes privilegiadas são as próprias características desse gênero literário. A crônica está diretamente ligada ao imediato, ao cotidiano, escrita de forma mais emocional e tendo que cumprir prazos e limites de espaço das revistas e jornais, dessa forma sendo praticamente um 'retrato literário' da cidade: "Existe, assim, em torno da crônica uma respiração, um clima, que a liga ao cotidiano da cidade que a inspirou; nela a cidade se escreve" [9]. Não sendo pretensamente objetiva, e sim claramente subjetiva, a crônica permiti-nos captar as diferentes representações, o efêmero, o momentâneo[10].

Exatamente devido a extrema subjetividade da crônica, cabe ao historiador compreender a obra do autor como um todo. Além disso, deve-se considerar que tal subjetividade de alguma forma reflete o momento a que se reporta o cronista:

"...o historiador encontra na crônica não apenas a personalíssima escrita do cronista, mas o espírito do tempo (...) Assim (...) não é difícil encontrar na crônica da virada do século XIX para o século XX uma constante em torno à questão da subordinação do 'progresso' à ordem, quase sempre na perspectiva dominante na época, mas também por vezes para relativizá-la - como o faz com maestria Machado de Assis - ou mesmo para negá-la - como no caso de algumas crônicas pungentes de Lima Barreto" [11].

Ocupando a princípio a seção 'folhetim' nos jornais, desde o início os cronistas procuravam incorporar o aspecto social e político, por diversas vezes de forma crítica e corajosa, embora algumas vezes se rendessem aos 'projetos de modernidade' encaminhados pelas elites. Mas em geral denunciavam a crescente separação social, sempre de maneira agradável, direta e cosmopolita, antenando o local com as novidades mundiais.

Não por acaso bem cedo o esporte esteve tematizado, diretamente ou como pano de fundo, nas crônicas, afinal era uma prática cultural cada vez mais presente no cotidiano da cidade e uma clara influência européia na sociedade carioca[12]. Além disso, o cronista do final do século XIX marca bem o gosto pelo mundanismo e a vocação para o lazer que se desenvolve na cidade do Rio de Janeiro, onde o esporte ganha papel de destaque.

Assim, jornais e crônicas foram de grande importância para a difusão do campo esportivo na cidade do Rio de Janeiro, contribuindo com o forjar de representações fundamentais na construção dos sentidos e significados dessa prática cultural nos seus primórdios no século XIX.

Enfim, considerando as crônicas como férteis fontes que podem nos permitir acesso as miudezas do cotidiano (as paixões, as sensibilidades, os sentimentos, o rosto humano da história), chamando a atenção daquilo que pode parecer de pouca importância, mas está eivado de sentidos, é que este estudo foi desenvolvido. A princípio, crônicas relativas ao turfe, ao remo e mesmo a outros esportes (ou práticas ainda não esportivas) foram utilizadas. Neste artigo, por questões estruturais, optou-se por apresentar as análises referentes ao remo, um dos esportes a pioneiramente se organizar e marcante nas mudanças ocorridas na cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX; modificações que trouxeram repercussões para a própria organização do campo esportivo em terras brasileiras[13].

Comecemos então por nosso maior cronista e autor em língua portuguesa: Machado de Assis. As crônicas Machadianas têm sido bastante utilizadas como relevante fonte para a compreensão do cotidiano e do contexto cultural do Rio de Janeiro[14]. Tendo sua obra adequada ao estilo realista, embora não se adaptasse exatamente aos pressupostos estéticos desse movimento, uma das possibilidades mais interessantes de sua crônica é permitir compreender como o setor urbano das elites cariocas em ascensão se posicionavam perante as mudanças sócio-culturais comuns no quartel final do século. Sobre o autor, afirma Richard Morse: "O essencial não é se Machado foi um conservador, ou um jornalista minucioso ou um espectador irônico, mas que ele teve sua própria visão coerente do espetáculo" [15].

Mesmo sendo crítico de alguns aspectos da modernidade, inclusive da aceleração da vida cotidiana e de correntes filosóficas que chegavam ao Brasil naquele fim de século (incluindo o positivismo e a crença desenfreada na ciência), tal crítica não era de forma alguma panfletária. Machado preferia mostrar de forma irônica e com sutileza certos males se enraizavam no cotidiano carioca.

Machado escreveu esclarecedoras crônicas dedicadas a algumas práticas não esportivas (como touradas e patinação), ao turfe (esporte que mais tematizou), ao boxe, às corridas de bicicletas, a capoeira, aos jogos olímpicos e também aos banhos de mar e ao remo[16]. Em relação às regatas, Assis escreveu somente uma crônica. Esse número pequeno, menor em relação a outras práticas, pode até mesmo significar um certo afastamento do autor em relação ao remo, uma prática exaltada e plenamente adequada ao 'projeto de modernidade' que tentava-se implementar no Rio de Janeiro do final do século XIX[17].

Vale a pena identificar como Assis incorporou os banhos de mar, uma das práticas crescentes no cotidiano da cidade no decorrer do século XIX, de grande importância como precursora do desenvolvimento do remo, em um de seus romances mais conhecidos: Dom Casmurro. Nessa obra pode-se perceber como a questão do desafio estava diretamente ligada a essa nova prática cultural 'moderna', bem como a valorização de uma nova estética corporal. Lembremos que Escobar morre afogado em um dia de mar agitado. Vejamos primeiro o diálogo entre Escobar e Bentinho:

"- O mar amanhã está de desafiar a gente, disse-me a voz de Escobar, ao pé de mim.

- Você entra no mar amanhã?(Bentinho)

- Tenho entrado com mares maiores, muito maiores. Você não imagina o que é um bom mar em hora bravia. É preciso nadar bem, como eu, e ter estes pulmões, disse ele batendo no peito, e estes braços; apalpa" [18].

E depois o trágico desfecho:

"Era um escravo da casa de Sancha que me chamava: - Para ir lá...sinhô nadando, sinhô morrendo (...) Em caminho, fui adivinhando a verdade. Escobar meteu-se a nadar, como usava fazer, arriscou-se um pouco mais fora que de costume, apesar do mar bravio, foi enrolado e morreu. As canoas que acudiram mal puderam trazer-lhe o cadáver" [19].

Ganhando grande e crescente espaço na cidade, não é surpreendente que os banhos de mar chamassem a atenção do olhar atento e crítico de Artur Azevedo. Azevedo foi um dos mais populares, mais críticos e maiores jornalistas de sua época, captando bem o clima do Rio de Janeiro na transição do Império para a República. Na obra de Azevedo, desfilam uma grande variedade de tipos caricaturais e uma ironia constante à sociedade de seu tempo. Por certo, tais características adequavam suas crônicas ao gosto popular. O próprio Azevedo afirmava que preferia escrever para o povo do que para os freqüentadores da rua do Ouvidor.

Na crônica 'Banhos de Mar', Azevedo narra a história de um homem velho e rico que se casa com uma mulher mais nova. A mulher havia abandonado um namorado que muito amava por pressão e interesse familiar no matrimônio. A esposa, no entanto, não conseguia engravidar, o que deixava o marido idoso decepcionado. Procurando um médico, esse afirma não ver muitas opções, sugerindo os banhos de mar:

"O médico aduziu, para animá-lo:

- Todavia, Verrier, se não me engano,

Diz que os banhos salgados

Dão belos resultados...

Experimente o oceano! " [20].

Pode-se identificar como os banhos de mar eram vistos como uma alternativa médica, muitas vezes um remédio para todos os males. Seguindo a recomendação, o casal alugou uma casa de praia e por lá ficou por três meses, até que a senhora engravidou de gêmeos:

"- Viva o banho de mar! Ditoso banho!

Dizia, ardendo em júbilo, o marido.

- Eu pedia-lhe um filho, e dois apanho!

Doutor, meu bom doutor, agradecido!" [21].

Azevedo não estava fazendo, na verdade, uma apologia aos banhos de mar e sim criticando a crença exacerbada em seu aspecto medicinal. Mais a frente afirma que o antigo namorado alugara uma casa perto do casal durante a estada na praia, insinuando ter ocorrido uma traição. Inclusive lembra que depois que o velho morreu, casou-se com a viúva e demonstrava amor jamais visto pelos enteados.

Nos escritos de muitos outros cronistas cariocas podemos identificar como o mar realmente passara a ocupar outro espaço na cidade. Se Afrânio Peixoto, ao falar sobre a vida do carioca no fim do século XIX, afirma que "o banho de mar era discreto, sem publicidade, roupas até os punhos e até os tornozelos" [22], já Coelho Neto, o 'príncipe dos prosadores', ao falar dos primeiros momentos de um dia no Rio de Janeiro na primeira década do século XX, nos mostra a diferença:

"O dia raiava (...) Chilros vibravam no ar. Passavam, chalrando, os banhistas que se dirigiam à praia, aos casais, famílias completas com cestas (...) Uma multidão chapinhava na areia úmida que guardava a pegada funda até a onda (...) Havia barracas de lona como brancas pirâmides, mas a maioria dos que mergulhava vinha já pronta nas roupas de flanela dos estabelecimentos balneários (...) Cabeças apareciam longe e gente saia gotejante, gente entrava a correr e todo o mar fervilhava de banhistas (...) A alegria do céu comunicou-se aos que nadavam e gritos alegres vinham do mar, e sempre a sair gente ansiosa para a onda: velhos, senhoras, crianças" [23].

Já Paulo Barreto, o João do Rio, expressa assim suas impressões sobre Copacabana, antes uma praia deserta, na segunda década do século XX:

"Atentei. A praia estava cheia de gente também. Em certos pontos cavalheiros e damas abancados em tôrno de mesas a bebericar; em outros, grupos de observadores; e em tôda sua extensão, a movimentação quase nua da multidão de banhistas (...) crianças corriam (...) Jovens de simples calção, os cabelos presos num lenço de côr aguda, estendiam na areia sob enormes para-sóis, de riscas rubras" [24].

Nesse contexto, as mudanças na forma de encarar a ocupação do mar, progressivamente ligado a um novo estilo de vida 'saudável' e 'moderno', estavam diretamente relacionadas às modificações no contexto sócio-cultural do Rio de Janeiro, fundamentais para permitir o desenvolvimento e a reordenação de sentidos e significados das práticas esportivas, onde se destaca o remo[25]. E João do Rio foi um dos cronistas a melhor marcar o desenvolvimento do esporte naquele fim de século.

Segundo Nicolau Sevcenko, Machado de Assis e João do Rio são cronistas que conseguem bem captar, de locais diferenciados, as mudanças no cotidiano do Rio de Janeiro do fim do século. João do Rio: "... assinala a ampla difusão, os efeitos de mitificação e os modos de celebração entusiasmados dessas mudanças vertiginosas. A ironia cortante afina o diapasão crítico dos dois num arco tenso mas firme" [26].

Em uma de suas crônicas sobre o esporte. ('O futebol', escrita já na segunda década do século XX[27]) João do Rio percebe como os anos finais do século XIX foram marcantes para o desenvolvimento do remo, devido à criação do Club de Regatas do Flamengo[28] e à redução das resistências para com os exercícios físicos ligados ao mar:

"Fazer esporte há 20 anos ainda era para o Rio uma extravagância. As mães punham as mãos na cabeça, quando um dos meninos arranjava um altere. Estava perdido. Rapaz sem um pincenez, sem discutir literatura dos outros, sem cursar as academias - era um homem estragado" [29].

O Flamengo teria sido o clube que renovara a chama do remo na cidade e contribuíra para diminuir as resistências relativas a tal esporte:

"E o clube de Regatas do Flamengo foi o núcleo de onde irradiou a avassaladora paixão pelos esportes (...) As pessoa graves olhavam 'aquilo' a princípio com susto. O povo encheu-se de simpatia. E os rapazes passavam de calção e camisa de meia dentro do mar, a manhã inteira e a noite inteira" [30].

O novo padrão de estética corporal aceita e valorizada também ficava marcado na obra dos cronistas. Se antes Raul Pompéia[31] comentava que os remadores:

"...apresentavam-se com o vestuário próprio, de meia justa ao corpo. Mais do que o aproveitamento dos exercícios de carreira, devia interessar ao observador a desagradável exibição de forma sem elegância e sem músculo que a roupa de meia proporcionava. Bem pobre plástica a da nossa mocidade para um espetáculo de ginásios. Corpore Sano! Meus amigos" [32].

Alguns anos depois João do Rio já afirmava que:

"Rapazes discutiam 'muque' em tôda parte. Pela cidade, jovens, outrora raquíticos e balofos, ostentavam largos peitorais e a cinta fina e a perna nervosa e a musculatura herculeana dos braços. Era o delírio do rowing, era a paixão dos esportes. Os dias de regatas tornavam-se acontecimentos urbanos" [33].

Enfim, se o esporte já se incorporara ao cotidiano da cidade no quartel final do século XIX, com ainda mais força ele estaria presente no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX. Tal fato não passaria desapercebido aos cronistas. Observa Alvaro Moreira, importante poeta e cronista, como o esporte fazia parte de um novo estilo de vida:

"A terra carioca tem o tempo de vida contado às avessas. Os anos vão passando, ela vai ficando mais nova. Quem a procura, na lembrança dos dias coloniais, encontra uma velhinha tristonha (...) Com D. Pedro I, ei-la chegada ao outono (...) Pelo meio do Segundo Império, ela rejuvenesce escandalosamente (...) Quando se proclamou a República, andava a terra carioca nos seus vinte anos...De então para hoje, ficou assim (...) enumera todos os costureiros e chapeleiros de Paris... diz de cor a biografia de todos os artistas de cinema... entende de esportes como ninguém... conversa em francês, inglês, italiano, espanhol... ama os poetas... toma chá com furor.. .e dança tudo. É linda!" [34].

E foi mais uma vez João do Rio que percebeu como um novo esporte crescia rapidamente e ocuparia o lugar do remo na preferência da população: o futebol.

"...o Rio compreendeu definitivamente a necessidade dos exercícios, e o entusiasmo pelo futebol, pelo tênis, por todos os outros jogos, sem diminuir o da natação e das regatas - é o único entusiasmo latente do carioca. (...) Não! Há de fato uma coisa séria para o carioca: - o futebol!" [35].

Mas no que se refere ao remo, foi realmente Olavo Bilac que melhor expressou o significado das regatas para a cidade a partir da ótica das elites dirigentes, destacadamente em sua crônica 'Salamina'[36], segundo João do Rio 'a ode definitiva às regatas'. Defensor entusiasmado da 'modernidade' e das reformas urbanas, Bilac era um fã ardoroso do remo, segundo ele plenamente adequado a um novo estilo de vida em construção para a cidade[37]. Em tal crônica, Bilac começa exaltando a beleza do mar em mais um dia de regata e a agitação ao redor desse acontecimento social:

"Em cada janela de palacete, um grupo feminino tagarelava. Entre ondas do povo, passavam carruagens, conduzindo gente alegre. E a vozeria da multidão em terra, e a matinada ensurdecedora das lanchas no mar, apitando, - enchiam o ar de riso e delírio" [38].

Bilac mostra como o público assistente era originário das mais diversas camadas sociais, inclusive com grande freqüência de mulheres. Contudo, identifica que os locais nos quais assistiam a competição eram diferenciados segundo sua condição econômica: arquibancadas, janelas das casas, parapeitos do cais, barcos alugados.

Bilac mostra também o frenesi e a participação ativa da torcida ao assistir as regatas e mais uma vez reforça a idéia de que um novo modelo de estética corpórea já era aceito e muitas vezes estimulado: "São seis, os barcos que entram na justa naval. Em cada um deles, 4 rapazes, de braços nus, mostrando os nós reforçados dos bíceps..." [39].

Em outro de seus escritos ('Chronica'), Bilac deixa ainda mais claro o seu entendimento sobre a importância do remo para a cidade em transformação:

"Basta comparar a grande geração, que actualmente envelhece no Rio de Janeiro, à geração nova que ahi se está formando com o exercício do remo, para ver que benefícios se estão colhendo do desenvolvimento do sport-náutico. Ver essa mocidade, exhuberante de saúde e de alegria - é cousa que encanta e orgulha (...) O contacto diário com o ar livre e com os perigos do mar salva-a do desanimo e do abatimento moral" [40].

Nem sempre o entusiasmo de Bilac com o remo era seguido por outros cronistas. Por exemplo, quando publicou uma crônica exaltando a construção e a inauguração do Pavilhão de Regatas, na Praia de Botafogo, Carlos Laet criticamente pede que o autor também escreva sobre as dificuldades pelas quais passa a cidade: "... mas daqui lhe pedimos, ao estimado poeta, que também nas suas horas vagas componha algumas elegias, deplorando as torturas a que vivemos sujeitos pelas demolições inflectidamente feitas" [41].

Enfim, de forma menos ou mais crítica, por certo influenciados por sua visão da cidade e das mudanças pelas quais passava, o esporte não passou desapercebido pelos cronistas daquele momento. Por certo suas representações trazem-nos grandes contribuições para que melhor possamos compreender a difusão do campo esportivo pela sociedade brasileira. E este estudo deve ser considerado apenas como a 'ponta do iceberg'. Indubitavelmente a continuidade da utilização de crônicas, bem como de outros estilos literários, como fonte privilegiada muitas contribuições ainda pode trazer para nossos estudos históricos.

Referências Bibliográficas

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[1]. 'Touradas' (ASSIS, 1877). In: ASSIS, 1995, p.55.

[2]. 'Devaneios de um rei' (ASSIS, 1892). In: ASSIS, 1995, op.cit., p.79.

[3]. Maiores informações sobre as relações entre História e Literatura podem ser obtidas nos estudos de Margarida de Souza Neves (In: RESENDE, 1995) e Sidney Chalhoub e Leonardo Affonso de M. Pereira (1998).

[4]. HUNT, 1992.

[5]. CHALHOUB, PEREIRA, op.cit., p.7.

[6]. MELO, 1999.

[7]. RESENDE, 1995, p.11.

[8]. RESENDE, 1995. In: RESENDE, op.cit., p.35.

[9]. RESENDE, 1995, op.cit., p.11.

[10]. Machado de Assis, por exemplo, mesmo por diversas vezes negando ser um historiador, não exitava em se considerar um 'historiador das miudezas'.

[11]. NEVES, op.cit., p.23.

[12]. Maiores informações sobre a presença do esporte na imprensa do Rio de Janeiro do século XIX podem ser obtidas nos estudos de Melo (op.cit.) e Eduardo Alexandre Dantas da Veiga, Fernanda Salazar e Melo (1997).

[13]. Maiores informações podem ser obtidas no estudo de Melo (op.cit.).

[14]. Maiores informações podem ser obtidas no prefácio de Dirce Cortes Riedel à obra de Miécio Táti (1991).

[15]. 1995, p.212.

[16]. TÁTI, op.cit.

[17]. Maiores informações sobre o remo podem ser encontradas no estudo de Melo (op.cit.).

[18]. ASSIS, 1997, p.212.

[19]. ibid., p.215.

[20]. In: COSTA, 1993. p.105.

[21]. ibid., p.107.

[22]. PEIXOTO, Afrânio. A vida carioca no fim do século XIX. apud. COSTA, Nélson, 1961, p.270.

[23]. NETO, Coelho. O despertar da cidade. apud. COSTA, 1961, op.cit., p.73.

[24]. BARRETO, Paulo. Copacabana. apud. COSTA, 1961, op.cit., p.50.

[25]. MELO, op.cit.

[26]. SEVCENKO, 1998, p.523.

[27]. apud. COSTA, 1961, op.cit., p.278.

[28]. Segundo o autor, este clube: "É o novo ground. O Clube de Regatas do Flamengo tem uma dívida a cobrar dos cariocas. Dali partiu a formação das novas gerações, a glorificação do exercício físico para a saúde do corpo e a saúde da alma".

[29]. ibid., p.278

[30]. id., p. 279.

[31]. Abolicionista e republicano, Raul Pompéia foi também um cronista bastante popular no fim do século XIX, publicando sua obra não só nos jornais do Rio, como também de Minas e São Paulo.

[32]. In: POMPÉIA, 1996, p.65.

[33]. BARRETO, Paulo. O futebol, op.cit. apud. COSTA, 1961, op.cit., p.279.

[34]. MOREIRA, Alvaro. Cidade Mulher, 1923. apud. COSTA, 1961, op.cit., p.21.

[35]. BARRETO, Paulo. O futebol, op.cit. apud. COSTA, 1961, op.cit., p.279.

[36]. Nessa crônica, Bilac narra a regata referente ao Campeonato Brasileiro de Remo de 1900.

[37]. Os clubes de remo reconheceram a contribuição de Bilac ao desenvolvimento do esporte, concedendo a ele o título de membro honorário da Federação Brazileira de Sociedades de Remo (MELO, op.cit.).

[38]. apud. MENDONÇA, 1909, p.398.

[39]. ibid., p.398.

[40]. apud. MENDONÇA, op.cit., p.397.

[41]. LAET, apud. BRENNA, 1985, p.483.

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