Mafalda e a televisão - UERJ

N12 | 2009.1

Mafalda e a televis?o:

a comunica??o de massa nos quadrinhos de Quino

Camila da Gra?a Sandoval Bacharel em Comunica??o, com habilita??o em Rela??es P?blicas, pela

FCS/UERJ

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Resumo: Este artigo busca entender a rela??o da personagem Mafalda, do cartunista argentino Quino, com a televis?o. Para isso, foram analisadas cinquenta tiras sobre televis?o, selecionadas entre as quase 2000 hist?rias publicadas pela Editora Martins Fontes no livro Toda Mafalda. Buscaremos, atrav?s da an?lise dessas tiras, entender a import?ncia da televis?o e da cultura de massa em uma forma de comunica??o massiva, as hist?rias em quadrinhos. Palavras-chave: Mafalda; Hist?ria em quadrinhos; Comunica??o de massa. Abstract: This article seeks to understand the relationship of the character Mafalda, from the argentine cartoonist Quino, with the television. To do so, fifty strips about TV were analyzed, selected among the nearly 2,000 stories published by Editora Martins Fontes in the book "Toda Mafalda". We will seek, through the analysis of these strips, to understand the importance of television and mass culture in a massive form of communication, the comics. Keywords: Mafalda; Comics; Mass communication.

Mafalda e a televis?o: a comunica??o de massa nos quadrinhos de Quino

Introdu??o

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Mafalda ? uma menina argentina de seis anos que mora em Buenos Aires com seus pais. Apesar da pouca idade, ela se interessa por pol?tica e pela situa??o mundial, faz perguntas sobre a China e o Vietn? e demonstra preocupa??o com o que ? debatido pela ONU, sem deixar de lado as brincadeiras com os amigos Felipe, Manolito e Susanita. Com sua habilidade de contestar o modo como as coisas funcionam, Mafalda tornou-se uma das mais famosas personagens de hist?rias em quadrinhos.

Ela foi criada pelo cartunista argentino Quino em 1963, para uma campanha publicit?ria de uma marca de eletrodom?sticos que nunca chegou a ser veiculada. O autor criou uma fam?lia tipicamente argentina e coube a Mafalda, desde o in?cio, o papel de questionadora. Suas tiras foram originalmente publicadas entre 1964 e 1973 em tr?s publica??es argentinas: no seman?rio Primera Plana (at? 1965); no di?rio El Mundo de Buenos Aires (de 1965 at? 1967); e no seman?rio Siete D?as (de 1968 at? a ?ltima tira, publicada em 25 de junho de 1973) (LAVADO, 2001, p.47).

Ainda na d?cada de 1960, surgiram os primeiros ?lbuns com as hist?rias j? publicadas em jornal e, em 1969, a personagem chega ? Europa com o lan?amento, na It?lia, do livro Mafalda a Contestataria. Na introdu??o desse livro, intitulada "Mafalda ou a recusa", Umberto Eco classificou Mafalda como "a personagem dos anos sessenta" (ECO, 2003). Mas as tiras da "hero?na `enraivecida' que recusa o mundo tal como ele ?" (ECO, 2003) mant?mse atuais, abordando temas t?o universais como pol?tica, fam?lia, guerras e, claro, os meios de comunica??o.

Apesar de terem sido publicadas tanto em um jornal di?rio quanto em revistas semanais, as hist?rias de Mafalda apresentam basicamente o mesmo formato em todas as publica??es, podendo ser classificadas como uma "tira di?ria de jornal cuja situa??o tem?tica define-se em tr?s ou quatro planos" (CIRNE, 1975. p.37).

Uma caracter?stica do desenho de Quino ? a simplicidade das formas, que se tornou uma marca de Mafalda. Ao mesmo tempo, o conte?do das hist?rias n?o pode ser considerado simples, uma vez que enfoca quest?es de cunho pol?tico e social. Como diz Cirne, "os quadrinhos ? quando assim desejam seus autores ? podem se voltar para temas `s?rios'" (CIRNE, 1975, p.96).

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Para Umberto Eco, "ningu?m nega que as hist?rias em quadrinhos (quando atingem certo n?vel de qualidade) assumam a fun??o de questionadoras dos costumes" (ECO, 2003). E talvez seja essa caracter?stica que torne Mafalda t?o universal e atemporal.

Al?m disso, as hist?rias em quadrinhos s?o uma importante forma de reflex?o sobre o cotidiano. Por terem sido publicadas em ve?culos di?rios ou semanais, as tiras de Mafalda estavam, muitas vezes, relacionadas ?s not?cias do dia anterior, da Argentina ou do mundo. Desse modo, as tiras s?o fonte de refer?ncias para entender os acontecimentos da ?poca pela vis?o de quem viveu aquele momento, como a chegada da televis?o ?s casas argentinas.

Este artigo tem como objetivo estudar a rela??o de Mafalda com a televis?o. Metodologicamente, foram selecionadas cinquenta tiras sobre o assunto entre as quase 2000 publicadas no livro Toda Mafalda, da Editora Martins Fontes. Para fundamentar o estudo, recorreu-se ao referencial te?rico de autores como Beatriz Rahde, Jes?s Mart?n-Barbero, Umberto Eco, Briggs e Burke.

Mafalda e a cr?tica da televis?o

Quando Mafalda surgiu, em 1964, a televis?o se difundia pelo mundo. Como era uma novidade tecnol?gica, ainda n?o havia certeza sobre seu impacto na vida de crian?as e adultos, o que acabou gerando um ambiente de discuss?o sobre o assunto, um processo parecido com o que aconteceu com a Internet h? menos tempo. Al?m do debate acad?mico sobre o tema, os pr?prios meios massivos j? existentes, como jornais e revistas, come?aram a discutir as conseq??ncias da televis?o na sociedade.

Em meio a esse clima de incerteza frente a uma nova tecnologia de comunica??o de massa, as tiras de Quino refletiam esses questionamentos, desde o dilema de se ter ou n?o um aparelho de televis?o em casa at? a d?vida sobre a influ?ncia do novo meio na imagina??o das crian?as. Como uma das caracter?sticas marcantes de Mafalda ? a reflex?o sobre os acontecimentos do dia-a-dia, o debate sobre a televis?o tamb?m teve espa?o nos questionamentos da personagem.

Para efeitos de an?lise, dividimos as tiras de Mafalda sobre a televis?o em seis categorias. Essa divis?o leva em considera??o o papel que o meio televisivo assume em cada uma das hist?rias e as reflex?es que os personagens fazem sobre ele, al?m de enfocar, mais especificamente, as tiras que apresentam a rela??o de Mafalda e de seu irm?o, Guile, com a TV.

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Ter ou n?o ter TV

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A rela??o de Mafalda com a televis?o come?a a ser mostrada quando as crian?as da escola descobrem que ela n?o tem um aparelho em casa. A menina ? cercada por outros alunos, que a consideram um "animal raro", ou ainda uma "idiota".

A partir de tal acontecimento, a TV torna-se uma quest?o central na vida da personagem. O pai de Mafalda, que, como muitos na ?poca, se recusava a adquirir um aparelho de televis?o, tenta fazer a filha esquecer o assunto comprando-lhe um chocolate, o que acaba n?o tendo o efeito desejado.

A menina inicia, ent?o, uma campanha para que sua fam?lia adquira uma televis?o, inclusive adotando, em uma das tiras, a "guerrilha" em "vegeta??o densa". No in?cio, o pai de Mafalda se mostra relutante, com medo de que a filha se torne uma "teleman?aca" e questiona um pronunciamento do Papa1, que dissera que a TV "une as fam?lias", mas acaba convencido e finalmente adquire um televisor.

Apesar de toda a discuss?o sobre comprar ou n?o uma televis?o, ? importante lembrar que n?o h? como conter o avan?o tecnol?gico, nem as transforma??es socioculturais que ele causa. Isso fica claro na obra de Asa Briggs e Peter Burke, Uma hist?ria social da m?dia. As tecnologias da comunica??o s?o entendidas pelos autores como fatos relacionados a mudan?as sociais e culturais, assim como interligadas a tecnologias mais antigas. A partir dessa perspectiva, os meios aparecem n?o como alheios ? realidade, mas como reflexo do ambiente em que surgem e se desenvolvem.

Desse modo, Briggs e Burke identificam caracter?sticas da m?dia atual que s?o "mais antigas do que em geral se imagina" (2004, p.14) e que foram se adaptando ?s mudan?as nas comunica??es. Um exemplo disso seriam os bal?es com falas das hist?rias em quadrinhos que, segundo os autores, s?o uma adapta??o dos textos em forma de rolo que sa?am da boca de imagens de santos em obras de arte religiosa medieval. Ou seja, as formas de comunica??o de massa n?o apareceram de repente, junto com os jornais, o r?dio ou a televis?o: elas est?o ligadas a formas mais antigas de comunica??o, agora adaptadas ?s novas tecnologias.

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No dia em que a televis?o chega ? sua casa, Mafalda fica t?o emocionada que desmaia. Mas as quest?es em rela??o ao novo aparelho ainda estariam longe do fim.

Liberdade x Controle

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Logo ap?s a compra do aparelho, os pais da personagem come?am a se questionar se devem deixar a filha assistir ? televis?o livremente ou se controlam os hor?rios e programas a que ela assiste. Usam "m?todos ing?nuos", como esconder o televisor com uma planta e tentam conversar com a filha, o que acaba sendo in?til, j? que tamb?m eles ficam hipnotizados pelas imagens da TV.

Em seu livro Imagem: est?tica moderna e p?s-moderna, Maria Beatriz Furtado Rahde analisa a import?ncia das imagens na contemporaneidade, j? que estamos em constante contato com elas, atrav?s, por exemplo, dos quadrinhos, da televis?o e das fotos. Para a autora, ? essencial que as pessoas sejam educadas para compreender as imagens, que se tornaram cotidianas na modernidade, atrav?s dos jornais ilustrados, da televis?o, do cinema, dos outdoors, "estabelecendo a comunica??o visual de massa" (2000, p.34). Rahde defende que as crian?as e jovens deveriam aprender, na escola, a compreender essas imagens presentes no cotidiano contempor?neo.

O debate sobre o impacto das imagens da televis?o nas crian?as parece ter ficado restrito aos pais que, como na fam?lia de Mafalda, tentam orientar seus filhos na escolha dos programas a serem assistidos. Por?m, a educa??o formal, na opini?o de Rahde, n?o soube se adaptar a essa nova situa??o. Segundo a autora,

Trazer imagens para a sala de aula, no sentido de serem debatidas, estudadas, criticadas e pesquisadas ? trazer o cotidiano que se est? vivenciando [...]; ? estudar a produ??o art?stica do homem em diversos per?odos culturais que deram origem aos novos movimentos da p?s-

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