Agenda 21 da Cultura - Barcelona



Agenda 21 da Cultura

Contexto histórico e universalismo

Vitor Ortiz*

Os anos 90, no mundo, foram intensamente marcados pelas mudanças radicais decorrentes do fenômeno da globalização. Mudanças previamente anunciadas ao longo da década de 80, como, por exemplo, pela queda do muro de Berlim, do ponto de vista político, e o pela revolução nas comunicações, que tem um de seus símbolos na transmissão ao vivo, para todo o mundo, da Guerra do Golfo, pela CBN, em 1990.

Na América Latina, o predomínio dos governos de orientação neoliberal estabeleceram os principais contornos da atuação governamental e dos investimentos, sufocados pelas metas econômicas de redução dos déficits públicos, pela prioridade ao pagamento das dívidas externas dos principais países da região e pelo drástico encolhimento do Estado, cujo principal paradigma foram as privatizações e a transferência de responsabilidades do Estado para o mercado.

Ainda na ordem econômica do período, outros dois fatores marcaram fortemente esta última década da Era dos Extremos, conforme Hobsbawn define o Século XX: a abertura dos mercados nacionais e a definitiva financeirização da economia global, com a conseqüente ruptura das fronteiras nacionais. Fatos que colocaram em cheque o tradicional conceito de nação, até então dominante na geopolítica mundial.

Para além da economia – e diante da irreversível derrocada do Estado de Bem-Estar Social – novos temas de ordem social evoluíram fortemente neste contexto de fim da era moderna e princípio da globalização. Um deles, a universalização do ensino e a exigência cada vez maior de especialização da mão-de-obra, trouxe a países como o Brasil o desafio de manter na escola um universo que superou a marca dos 40 milhões de estudantes no ano 2000. Fato que, combinado à escassez de recursos – levou inexoravelmente ao esgotamento da ação cultural educativa na escola formal, suprimindo seu espaço. Em todos os países da América Latina, a educação passa a ser a principal política pública dos governos - com predomínio curricular das ciências exatas sobre as disciplinas da área das humanas - acompanhada de perto pelas ações, programas e investimentos em saúde. Inclusive em Cuba, a ilha do socialismo latino-americano, onde a atuação do governo em favor da saúde pública e da superação do analfabetismo tornaram-se referências para o mundo.

Outro destes novos temas – produto das preocupações sociais contemporâneas – foi sem dúvida a ecologia. A Conferência de Yohanesburgo, em 1972, e a ECO 92, no Rio de Janeiro, refletiram com amplitude singular o impacto das preocupações sociais com o futuro do Planeta que se disseminaram pelo globo, influenciando fortemente a opinião pública mundial.

Da ECO 92, surgiu um dos documentos internacionais mais conhecidos do Planeta: a Agenda 21 para o meio-ambiente, estabelecido como compromisso a ser cumprido pelos governos, pela iniciativa privada e pelo terceiro setor, a fim de que se pudesse reverter a tendência de esgotamento dos recursos naturais e de ameaça à sobrevivência da biodiversidade planetária, gerada pelos modelos de desenvolvimento adotados, propostos especialmente pelas grandes potências. Tornou-se mundialmente conhecido o simbólico Relógio do Fim do Mundo, instalado pelos especialistas do Boletim de Cientistas Atômicos em 1947, na época sob impacto da recente detonação das bombas em Hiroshima e Nagazaki, com a finalidade de medir os ricos de extinção da humanidade.

Dos riscos estabelecidos pelas aventuras bélicas da humanidade até a primeira metade do Século XX, evoluímos para os riscos imputados pelo modelo de desenvolvimento ostensivo, predador e desigual. Modelo estabelecido pelo frenesi capitalista do período pós-guerras, pela modernização da indústria, pela urbanização desenfreada, pelas alterações nos modos de vida e nos comportamentos de consumo, em particular no Ocidente.

No final dos anos 80, os especialistas, os formadores de opinião, as sociedades de um modo geral já estavam totalmente convencidas da seriedade das preocupações ambientalistas, repercutindo de todas as formas os alertas para as ameaças que o futuro reservava à espécie humana.

Com igual intensidade, cresceram também, neste período de final de Século, as preocupações com a desigualdade social. O inchaço das cidades, levado às últimas conseqüências nos fenômenos protagonizados por São Paulo e pela Cidade do México, decorrentes da concentração do progresso industrial; a crise das atividades rurais, forçadas nos países agro-exportadores pela manutenção e estabelecimento de novos subsídios à agropecuária nos países ricos e pela mecanização da agricultura; a concentração cada vez maior da renda tanto nos países do Norte em comparação aos países do Sul, como na comparação entre ricos e pobres em todos os países do mundo, especialmente no bloco em desenvolvimento, foram fatores que contribuíram para uma nova emergência dos movimentos sociais. No Brasil, dois importantes exemplos dessa reação social contemporânea são, sem dúvidas, o surgimento do neo-sindicalismo das centrais sindicais de alta potência, nos anos 80, após o cilo da ditadura militar, e o Movimento dos Sem Terra.

Na virada do Século, todos as preocupações relacionadas às questões ambientais, econômicas e sociais dos cinqüenta anos posteriores à Segunda Guerra havia se agravado em intensidade e repercussão, e o modelo neoliberal mergulhava numa crise de descredibilidade global. O fim da Guerra-Fria havia representado certamente uma evolução democrática das condições políticas globais, mas não reduziu a voracidade das elites e muito menos o grau das desigualdades.

É justo nestes ambientes político, econômico e social que surge o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, embalado pela forte rejeição aos governos neoliberais, cujas políticas de ajuste à globalização econômica deram formato a um Estado Pôncio Pilatos, que lavava as mãos diante de todos os principais dilemas vividos pelas sociedades, negligenciando o papel do Estado, e delegando ao mercado o espaço de atuação e competência cobrado pela sociedade em diversos assuntos.

Porto Alegre foi a cidade escolhida para sede do I Fórum Social Mundial, em 2001, por ter a frente de seu governo, desde 1989, o Partido dos Trabalhadores e outros partidos aliados do campo de esquerda, cujas diretrizes políticas opostas ao neoliberalismo e voltadas para a participação popular, representavam as expectativas de surgimento de um novo modelo, de uma esperança para os segmentos populares e para os movimentos sociais, órfãos dos paradigmas anteriormente ancorados nos portos do socialismo real, da Albânia a Moscou.

Lugar onde pela primeira vez se consolidava um modelo de democracia participativa para a gestão local, Porto Alegre havia inventado o Orçamento Participativo, reunindo a população nos bairros e nas diversas regiões da cidade para definir os investimentos da Prefeitura. Ficou por isso mundialmente famosa depois que a ONU reconheceu o modelo como uma referência para outros governos.

Neste mesmo contexto histórico que conta com o enfraquecimento do Estado Nação e com o crescimento populacional urbano, surge um novo elemento na geopolítica mundial: a emergência de governos locais com voz e influência.

No Brasil, desde o início dos anos 80, também como causa da ampliação do espectro das políticas de educação e saúde, os municípios vinham ganhando novas responsabilidades constitucionais. No final dos anos 80, foi finalmente constituído o Sistema Nacional de Saúde, com a descentralização da gestão pública do setor, onde a União cedeu aos estados e às prefeituras grande parte das responsabilidades e autonomia integral para a gestão local do setor.

O mesmo ocorreu na Constituinte de 1988 com o setor ambiental público, atribuindo aos municípios autonomia para a gestão e licenciamento ambiental em seus territórios, desde que atendidas às exigências legais de organização de um conselho e de um plano municipal de meio-ambiente,.

No setor cultural, a mesma Constituição de 88 reconheceu pela primeira vez que caberia aos municípios o direito de definir e o dever de proteger, preservar e difundir o patrimônio cultural local.

Dois fatores foram decisivos para este empoderamento do local no Brasil, além do lobbie do forte movimento municipalista organizado ao longo da década de 80, com repercussão em todo o país. Um deles foi a carência de recursos no âmbito nacional e a necessidade de enxugamento do Estado Federal. O outro foi o crescimento da demanda e das manifestações sociais por direitos, especialmente pelo direito de participar e influenciar na formulação das políticas e na definição dos investimentos públicos nos diferentes setores de preocupação social. Crescimento este também decorrente do acelerado processo de crescimento das populações urbanas.

Em conseqüência de suas características democráticas e de valorização do papel dos municípios na federação brasileira, a Constituição de 88 trouxe mais recursos para as capitais do país, o que de certo modo explica o sucesso das administrações populares e do modelo de democracia participativa implementada por Porto Alegre a partir de 1989, momento em que a cidade viveu os reflexos da ampliação de suas possibilidades de investimento e de suas competências.

Em 2001, durante o Fórum Social Mundial, a Prefeitura de Porto Alegre, há época sob comando do atual Ministro da Justiça do Governo Lula, o ex-Prefeito Tarso Genro, organizou o I Fórum de Autoridades Locais pela Inclusão Social, com base no crescimento do movimento municipalista em todo o globo, fato que havia já se constituído na América Lática com a criação da FLACMA – Federação Latino-Americana de Cidades e Municípios Autônomos – e, mundialmente, com as redes IULA – Internatonal Union Locals Autorites – e FMCU – Frente Mundial de Cidades Unidas.

Nos primeiros anos de realização do Fórum Social Mundial em Porto Alegre (2001, 2002 e 2003), milhares de pessoas de várias partes do mundo, especialmente da Europa e América Latina, recorreram à Capital Gaúcha no Sul do Brasil, chegando o público geral a alcançar a marca de 150 mil participantes em 2005, último ano de edição do Fórum na cidade. Gente de todos os continentes e de mais de uma centena de países, movimentos sociais de todos os matizes, representantes das lutas contra as desigualdades entre negros, índios e brancos, ativistas sociais, ambientalistas, estudantes, sindicalistas, socialistas, trotskistas, maoístas, comunistas e vários outros movimentos de ordem ideológica – todos opostos à globalização – formularam uma crítica que repercutiu mundialmente.

O Fórum havia nascido como antítese do Fórum de Davos que reunia os líderes das grandes potências mundiais e que havia adquirido os contornos de núcleo central e hegemônico das políticas neoliberais que caracterizavam o fenômeno da globalização econômica.

O Anti-Fórum de Porto Alegre nasceu com o atributo, designado pela imprensa mundial, de Fórum Anti-Globalização, evoluindo para o argumento da Alter-Globalização – uma outra globalização, com o lema Um Outro Mundo é Possível. O argumento menos drástico em relação ao fenômeno da globalização, ou mundialização, como preferem os europeus, expressava a visão de que as conseqüências do mundo que emergia do Século XX e iniciava o novo Século não estavam negativamente restritas ao aprofundamento do fosso entre ricos e pobres no mundo, mas que continha também ingredientes de superação das fronteiras, de ampliação das possibilidades de diálogos entre os povos e de dinamização da comunicação, da informação e do conhecimento no planeta. De certo modo lembrando a insígnia de Lênin, frase de abertura do Manifesto Comunista, que pela primeira vez parecia real e possível: “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!”

O Fórum de Autoridades Locais – organizado pela Prefeitura de Porto Alegre como parte da programação do Fórum Social Mundial – teve o mérito inicial de atrair os governantes de várias das mais importantes cidades do mundo, como o Prefeito de Paris, Beltrand Delanöe, o Prefeito de Roma, Valter Veltroni, e o então Alcaide de Barcelona, Pascual Maragai.

Entre temas recorrentes para as cidades, como os efeitos da urbanização acelerada sobre as regiões periféricas, a habitação, o saneamento básico, a educação e as questões ambientais – todos eles de certa forma relacionados – a segunda edição do FAL, em 2002, trouxe para a mesa a questão da Cultura como nova preocupação dos governantes locais.

O primeiro a tratar do assunto foi o Prefeito de Paris que revelava a crescente preocupação parisiense com os impactos das imigrações sobre o território da cidade e os conflitos decorrentes de seu inevitável crescimento, também como causa tanto da globalização como das desigualdades. Conflito, aliás que se agravou nos últimos anos, transformando-se numa das marcas negativas para a imagem do recentemente eleito Presidente da França, na época o Ministro do Interior, Nicolas Sarkozy.

Repercutindo o novo tema surgido no FAL, a Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre realizou, neste mesmo ano, em setembro de 2002, um encontro internacional de debate sobre o papel dos governos locais no desenvolvimento cultural, buscando atrair aos responsáveis por esta área de dezenas de prefeitura no Brasil e no mundo, em particular aquelas cujos prefeitos, síndacos e alcaides já compunham a rede do FAL. O encontro chamou-se Reunião Pública Mundial da Cultura, aberta a representantes da sociedade civil e de organizações culturais, e que foi concluída com a aprovação de uma proposição a ser incluída na pauta do III Fórum de Autoridades Locais, previsto para ocorrer em janeiro de 2003: que as cidades reunidas no FAL deveriam redigir, a exemplo da ECO 92, uma Agenda 21 da Cultura, que pudesse balizar de aí para adiante as algumas diretrizes das políticas dos governos locais em favor do desenvolvimento cultural e da sobrevivência da diversidade cultural planetária.

Ao longo de 2003 e até maio de 2004, uma comissão formada por representantes dos governos de Porto Alegre, Barcelona, Buenos Aires, Montevidéo, La Paz, Estocolmo e Saint Denny, entre outras cidades que ofereceram aportes significativos, trabalhou para a elaboração da Agenda 21 da Cultura, levada à avaliação e aprovada no IV Fórum de Autoridades Locais, realizado na capital da Catalunha, na abertura do Fórum Universal das Culturas.

Deste processo, que envolveu a realização de diversos seminários e encontros na Europa e América Latina, surgiu um documento abrangente, que procurou enfatizar a analogia entre as preocupações ambientais e a sobrevivência da diversidade cultural, cujo principal paradigma oposto no atual contexto histórico era, sem dúvida, o processo de industrialização e mercantilização da cultura e das comunicações.

“Na atualidade, nos encontramos neste paradigma intelectual que consiste em pensar, de maneira ingênua e errônea, que quanto mais técnica há, mais se compreende as gentes.É este o modelo em que nos encontramos faz já uns cinqüenta anos: mais rádios, mais televisões, mais computadores, igual a mais comunicação... Pensamos que as mensagens criam a comunicação, quando em realidade existe uma ruptura entre elas e ao mesmo tempo uma fascinação muito forte pela economia da comunicação... Estamos fascinados por cabos, por internets, por redes... A conseqüência desta mudança é que quanto mais comunicação, mais intercâmbios, mais abertura, mais globalização existe, mais desestabilizados estão os povos e as culturas.Porque a abertura ao mundo é um fator de desestabilização exceto quando se é a parte dominante...”

(Dominique Wolton – Diretor de Investigação do Centre National de la Recherche Scientifique – França. Artigo publicado pelos cadernos de Interacció’2004 – Barcelona).

A Agenda 21 da Cultura resultou em um documento que de forma surpreendente compõem uma plataforma contemporânea para a gestão cultural local, abrindo os horizontes para o estabelecimento de políticas mais universalista desde o ponto de partida das cidades e dos contextos regionais. Como diria o historiador Peter Burke, na forma de uma força centrípeda, que parte do local em oposição e resistência ao domínio que provém desta outra força centrífuga da globalização, fazendo com que as duas forças moderem seus contatos, e que seja possível emergir daí nem uma coisa nem outra, mas algo melhor do que havia, sem a que se consolide o domínio do teoricamente mais forte.

É hoje um documento que serve muito bem como parâmetro para as políticas públicas de âmbito municipal em qualquer parte do mundo, ao refletir também, em suas diretrizes, nos compromissos propostos e em suas recomendações, a ampliação do campo cultural, com o surgimento de novos atores na cena cultural contemporânea, como as periferias, assim como, de novos conflitos, antes menos visíveis, como as questões de gênero e de convivência social no espaço urbano.

Traz ainda consigo o mérito de ter sido concebido à luz dos direitos culturais, considerando-os parte dos direitos humanos, enfatizando este papel que indiscutivelmente cabe ao Estado em qualquer âmbito e em qualquer área: a garantia dos direitos da cidadania.

Para uma melhor compreensão das abordagens da Agenda 21 da Cultura e de sua utilidade nos contextos atuais, especialmente no Brasil, é inevitável uma leitura atenta de todo o seu conteúdo e extremamente salutar uma comparação com o lugar onde está, vive e convive o leitor. Seja no mais recôndito interior ou na mais agitada das cidades, há muitos pontos de convergência com a realidade atual.

VITOR ORTIZ – Ex-secretário de cultura das cidades de Viamão/RS e Porto Alegre no período de elaboração da Agenda 21 da Cultura. Foi diretor do Centro de Programas Integrados da Funarte. É professor e consultor em gestão cultural pública. Atualmente vive em Porto Alegre, onde coordena o Instituto Hominus e exerce o cargo de Diretor de Relações Institucionais da Bienal do Mercosul.

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