Práticas sobre o homem: esboço de uma crítica ao ...



e-ISSN 1980-6248

ARTIGOS

A anal?tica da finitude como uma semiologia dos saberes e das pr?ticas sobre o homem: esbo?o de uma cr?tica ao pensamento

antropol?gico na Educa??o

The analytic of finitude as a semiology of the knowledges and the practices about man: towards a criticism of anthropological thinking in

Education

Rodrigo Barbosa Lopes (i)

(i) Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho - UNESP, Presidente Prudente, SP, Brasil, , rodrigo@fct.unesp.br

Resumo: Neste trabalho, apresenta-se o esbo?o de uma cr?tica aos argumentos que promovem a imagem antropol?gica do pensamento como concep??o fundamental ? Filosofia da Educa??o, isto ?, como um tipo e um emprego particulares de Antropologia filos?fica. Com efeito, esta concep??o moderna da Filosofia define a Educa??o como a realiza??o de um projeto antropol?gico fundamental, e ? nesse sentido que a Filosofia da Educa??o pretende elucidar o sentido da Educa??o como media??o da exist?ncia hist?rico-social do homem no mundo. Para a an?lise deste problema, considerar-se-? a anal?tica da finitude, investigada por Michel Foucault em Les mots et les choses, como uma semiologia dos saberes e das pr?ticas sobre o homem. Espera-se que os argumentos apresentados contribuam para aprofundar a cr?tica ? concep??o antropol?gico-humanista predominante nas reflex?es sobre a Educa??o e indiquem, por outro lado, a possibilidade de investigar o exerc?cio do pensamento filos?fico no campo da Educa??o como uma experi?ncia e um acontecimento. Palavras-chave: Antropologia filos?fica, Filosofia da Educa??o, Michel Foucault, Gilles Deleuze, experi?ncia

V. 28, Suppl.1 2017

277-295

277

`



e-ISSN 1980-6248

Abstract: This paper delineates a criticism of the arguments that promote the anthropological image of thinking as a fundamental concept to the Philosophy of Education, that is, as a particular type and use of philosophical anthropology. Indeed, this modern concept of Philosophy defines education as the realization of a fundamental anthropological project, and it is in this sense that the Philosophy of Education intends to elucidate the meaning of education as the mediation of the social-historical existence of man in the world. To analyze this problem, the paper considers the analytic of finitude, researched by Michel Foucault in Les mots et les choses, as a semiology of the knowledges and the practices about man. The arguments here presented are expected to contribute to further develop the criticism of the anthropological-humanist conception predominant in the reflections on education, indicating, on the other hand, the possibility of an investigation of the exercise of philosophical thinking in the field of education as an experience and an event. Keywords: philosophical anthropology, philosophy of education, Michel Foucault, Gilles Deleuze, experience

Nota introdut?ria

Neste trabalho, damos lugar ? an?lise dos argumentos com os quais pretendemos promover a imagem antropol?gica do pensamento como concep??o fundamental ? Filosofia da Educa??o, isto ?, como a configura??o do pensamento filos?fico que v? nela o reconhecimento, prioritariamente, de um tipo e um emprego particulares de Antropologia filos?fica. Com efeito, essa concep??o moderna da Filosofia entende a Educa??o como a realiza??o de um projeto antropol?gico fundamental, e ? nesse sentido, precisamente, que a Filosofia da Educa??o promove o objetivo de elaborar uma imagem do homem como sujeito da Educa??o e com vista a elucidar o sentido da Educa??o como media??o da exist?ncia hist?rico-social do homem no mundo. Portanto, propondo-se como uma Antropologia da Educa??o.

Contudo, por n?o ser capaz de pensar sen?o em termos de representa??o, isto ?, por media??o e generalidade, a concep??o de Antropologia como anal?tica do homem revela ? configura??o antropol?gica da Filosofia da Educa??o o quanto ela se assemelha ? condi??o que recusava em outras posturas filos?ficas: o fato de serem formas dogm?ticas de pensamento. Mas ? em raz?o dessa conforma??o conceitual que ela se esquece de algo tamb?m fundamental: que essa antropologiza??o do pensamento ? ainda e inteiramente uma forma de dogmatismo, porquanto permanece no intuito de promover a assimila??o da imagem antropol?gica do pensamento ? concep??o de uma Filosofia da Educa??o.

V. 28, Suppl.1 2017

277-295

278

`



e-ISSN 1980-6248

Iniciamos este artigo com uma investiga??o acerca do surgimento e da elabora??o de um dom?nio de questionamentos sobre o homem, para o qual o conceito de finitude humana ? constitutivo do que poder?amos chamar de uma Antropologia filos?fica. Logo de partida, ? poss?vel reconhecer, na forma??o hist?rica desse regime de saber que Foucault (1966) chamou, em Les mots et les choses1, de "anal?tica da finitude", a configura??o antropol?gica pr?pria ?s ci?ncias humanas e, mesmo que na atualidade elas renunciem a esse passado, ainda ? poss?vel encontrar nelas os efeitos dessa concep??o. Para a enuncia??o desse problema espec?fico que se estende ao campo do pensamento filos?fico sobre a Educa??o, admitamos inicialmente o modo como Foucault o caracterizou em duas entrevistas a partir das quais podemos entrever a indica??o de uma an?lise poss?vel.

Uma primeira aproxima??o com o assunto pode ser buscada na entrevista concedida a Alain Badiou, intitulada "Philosophie et psychologie"2, de 1965. Encontramos nesse texto muitas quest?es que Foucault (2001c) faz passar por um exame cr?tico das rela??es que podem ser pensadas e mantidas entre a Filosofia e a Psicologia. Damos uma aten??o especial a duas delas: ? perguntado ao fil?sofo o que ? a Psicologia e se existem rela??es interiores e exteriores entre a Psicologia como forma cultural e a Filosofia como forma cultural. Contudo, a respeito do surgimento na hist?ria de um per?odo conhecido como Modernidade3, a quest?o de se as

1 Nesta obra de grande profus?o te?rica, Michel Foucault procedeu, por meio da pesquisa arqueol?gica, a uma investiga??o acerca da constitui??o hist?rica dos saberes sobre o homem. Isso significa dizer que, na verdade, n?o se tratava de uma hist?ria das Ci?ncias Humanas, mas de uma investiga??o na qual elas fossem tomadas como institui??es, como pr?ticas ou discursos que definem o homem como objeto de um saber poss?vel, a partir principalmente das ci?ncias emp?ricas ? biologia, economia pol?tica e filologia ? que o analisam nas rela??es fundamentais com a vida, o trabalho e a linguagem; e, por outro lado, a reflex?o filos?fica que o admite como sujeito e fundamento de todas essas positividades. Este ? o problema, da repeti??o do positivo no fundamental e que constitui a "anal?tica da finitude", que comp?e a cr?tica ? imagem antropol?gica do pensamento.

2 Embora a publica??o desta entrevista seja datada de 1965, a fonte utilizada como refer?ncia para o artigo consta da edi??o Quarto de Dits et ?crits, publicada pelas ?ditions Gallimard. Esta nova edi??o reagrupa, em dois volumes, os quatro volumes estabelecidos pela Biblioth?que des Sciences Humaines, em 1994. Para a presente edi??o, de 2001, o primeiro volume re?ne os textos de Michel Foucault publicados de 1954 a 1975, e o segundo volume, os textos publicados de 1976 a 1988. Esta nova edi??o foi estabelecida sob a dire??o de Daniel Defert e Fran?ois Ewald, com a colabora??o de Jacques Lagrange e, para todos os efeitos, ? a edi??o que utilizamos com refer?ncia. Portanto, as cita??es diretas feitas no corpo do texto s?o de tradu??o nossa.

Acerca desta entrevista indicada acima, a discuss?o prov?m de emiss?es produzidas pela radio-t?l?vision scolaire de 1965 a 1966, concebidas por Dina Dreyfus e realizadas por Jean Fl?chet (Dossiers p?dagogiques de la radio-t?l?vision scolaire, 27 f?vrier 1965, pp. 65-71).

3 Com o objetivo de elaborar uma arqueologia das Ci?ncias Humanas, caracteriza??o a mais geral do livro Les mots et les choses, Foucault ponderou que o objetivo pretendido por essa an?lise n?o poderia decorrer simplesmente de uma hist?ria das ideias ou das ci?ncias. Na verdade, o n?vel arqueol?gico da an?lise foucaultiana permitiu descobrir e avaliar os sistemas de saber subjacentes ?s tr?s grandes fases do pensamento ocidental, convencionalmente chamadas pelo fil?sofo de Renascen?a, ?poca Cl?ssica e Modernidade. No caso da Modernidade, Foucault a

V. 28, Suppl.1 2017

277-295

279

`



e-ISSN 1980-6248

Ci?ncias Humanas s?o formas culturais que pretendem se fundar sobre um saber positivo acerca do homem e das coisas humanas comp?e, junto com outras interroga??es, um conjunto bem definido de problemas ao qual Foucault dispensaria um estudo extenso e erudito apenas um ano depois, com a publica??o de Les mots et les choses4.

Com efeito, como resposta ? primeira quest?o, Foucault fez uma pondera??o acerca da tentativa de definir a Psicologia como uma ci?ncia; e sugeriu que talvez ela tivesse mais a ver com uma forma cultural, no que isso tem de aproxima??o com toda uma s?rie de fen?menos conhecidos pela hist?ria do Ocidente como de natureza cultural. Contudo, ? a respeito da segunda quest?o que verificamos a indica??o de duas respostas para a identifica??o da Filosofia e da Psicologia como formas culturais. Depois de considerar que talvez um dos grandes problemas o qual temos de enfrentar atualmente seja a compreens?o da Filosofia como "a forma cultural a mais geral na qual poder?amos refletir sobre o que ? o Ocidente" (Foucault, 2001c, p. 466), o fil?sofo reconhece, em primeiro lugar, que de fato a Psicologia e, por meio dela, as ci?ncias humanas em geral est?o, desde o s?culo XIX, em uma rela??o de aproxima??o e cruzamento com a Filosofia; talvez numa rela??o de certa depend?ncia das primeiras em rela??o ? Filosofia. Pergunta Foucault: "Esse entrela?amento da filosofia e das ci?ncias humanas, como podemos conceb?-lo? " (2001c, p. 467).

Uma resposta poss?vel ? concordar com a tese de que a Filosofia, no decorrer de sua hist?ria, circunscreveu no campo dos saberes filos?ficos um dom?nio de conhecimento reservado ao estudo da alma ou do pensamento, no geral, e que agora as ci?ncias humanas estariam mais bem preparadas para investigar de um modo claro, met?dico e positivo o que a Filosofia guardava apenas para os assuntos de metaf?sica. Isso quer dizer, nas palavras de

definiu como a "Idade do Homem" e procurou demonstrar de que modo nessa ?pist?m? o homem ?, ao mesmo tempo, sujeito e objeto total de seu pr?prio saber.

4 O tema da cultura no contexto de Les mots et les choses, al?m de extremamente dif?cil, deve ser, por si s?, objeto de uma investiga??o independente, meticulosa e exeg?tica. Certamente, n?o ? este o prop?sito aqui. O que tra?amos, na verdade, foi uma op??o metodol?gica de aproxima??o inicial ao tema da anal?tica da finitude e do esbo?o de uma cr?tica ao pensamento antropol?gico na Educa??o a partir de duas entrevistas concedidas por Michel Foucault, Philosophie et psychologie (1965) e Qui ?tes-vous, professeur Foucault? (1967), que vieram ? p?blico, portanto, quase simultaneamente ? publica??o de Les mots et les choses, em 1966. Algumas vezes e de forma expl?cita, Foucault usou na primeira dessas duas entrevistas a express?o "forme culturelle" para se referir ?s rela??es entre a Psicologia e a Filosofia, e destas em rela??o ?s Ci?ncias Humanas. Assim, desde um ponto de vista metodol?gico, preferimos manter tais caracter?sticas em nosso texto, n?o obstante saibamos da import?ncia de analisar a obra dedicada a Uma Arqueologia das Ci?ncias Humanas a partir de um dos temas centrais da pesquisa arqueol?gica de Foucault, o Discurso, sob o signo do qual ele investiga o aparecimento das Ci?ncias Humanas e do pr?prio Homem como objeto de um saber poss?vel.

V. 28, Suppl.1 2017

277-295

280

`



e-ISSN 1980-6248

Foucault (2001c), "que a velha tarefa filos?fica que havia nascido no Ocidente com o pensamento grego, esta velha tarefa deve agora ser retomada com os instrumentos das ci?ncias humanas " (p. 467). Mas Foucault denuncia, precisamente, que essa tomada de posi??o est? intrinsecamente ligada a uma perspectiva filos?fica, que ? o positivismo. E quanto a isso, o fil?sofo n?o negligenciar? o fato, em Les mots et les choses, do quanto o positivismo tem de semelhante ? anal?tica da finitude, por pretender encontrar a verdade objetiva sobre o homem em ci?ncias positivas, como se ela pudesse ser reduzida a uma causalidade detect?vel pelas ci?ncias emp?ricas.

Todavia, ? outra a perspectiva que Foucault considera enquanto persiste o problema de como explicar o entrela?amento entre a Filosofia e as Ci?ncias Humanas. No que diz respeito ? empresa filos?fica e cient?fica, ou apenas cultural, de conhecer o ser do homem e as formas hist?ricas de sua constitui??o, o que precisa ser considerado cuidadosamente ? o fato de que o homem apenas surgiu para o saber ocidental em fins do s?culo XVIII, como um ser emp?ricotranscendental, isto ?, duplamente analisado por saberes que o revelam como um ser vivente, falante e produtivo, por um lado; e tamb?m por uma reflex?o sobre essas condi??es materiais e positivas que revelasse, afinal, o ser mesmo do homem, suas diferen?as culturais, por exemplo, mas precisamente a unidade dos termos, que o faz ser homem. E nisso apenas se poderia reconhecer, no limite poss?vel para o pensamento filos?fico, uma Antropologia. Analisa Foucault (2001c) que:

? que isso talvez fa?a parte do destino da filosofia ocidental que, desde o s?culo XIX, alguma coisa como uma antropologia tenha se tornado poss?vel; quando eu digo antropologia, eu n?o quero falar dessa ci?ncia particular que chamamos antropologia e que ? o estudo das culturas diferentes [ext?rieures] da nossa; por antropologia, eu entendo esta estrutura propriamente filos?fica que faz com que agora os problemas da filosofia estejam todos alojados no interior desse dom?nio que podemos chamar o da finitude humana. (p. 467)

Este ? um aspecto muito importante. Na verdade, trata-se de um tra?o hist?rico fundamental, no qual a Filosofia ? tomada como a forma cultural a partir da qual todas as ci?ncias do homem s?o, em geral, poss?veis. Isso, advertiu Foucault, ? o que devemos pensar, na atualidade e depois, na medida em que ainda n?o compreendemos bem a nossa estranha depend?ncia a esse modelo ou regime de saberes, de tal modo que ainda o experimentamos como uma necessidade para o pensamento, um paradigma com o qual precisamos romper. N?o nos desprendemos completamente dessa imagem antropol?gica, e ainda dogm?tica, do

V. 28, Suppl.1 2017

277-295

281

`

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download