A DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO …



A Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional[1]

Miguel Calmon Dantas

Professor de Direito Constitucional da Universidade Salvador – UNIFACS – e do Instituto de Educação Superior Unyahna de Salvador – IESUS.

Pós-graduando em Direito Público pela Universidade Salvador – UNIFACS.

Procurador do Estado e Advogado.

Sumário: 01. Função Administrativa e Legalidade. 02. Discricionariedade Administrativa perante a Juridicidade. 2.1. Formas de Atribuição da Discricionariedade e sua localização. 2.2. Discricionariedade e termos jurídicos indeterminados. 2.3. Vinculação e Controle Jurisdicional da atividade administrativa discricionária. 03. Conclusão. 04. Bibliografia consultada

01. Função Administrativa e Legalidade.

A discricionariedade administrativa é um dos temas que mais reflexão e controvérsia enseja na doutrina jurídica, não sendo uma daquelas questões que carecem de repercussão práticas; ao contrário, a delimitação do que seja a discricionariedade administrativa, suas manifestações, sua localização e a forma de seu exercício são aspectos fundamentais em um Estado Constitucional, em especial pelo reflexo concernente ao controle jurisdicional dos atos administrativos.

Não obstante isso, cumpre analisar que não se pode investigar quaisquer das atividades dos órgãos constitucionais responsáveis pelo exercício da soberania popular sem considerar, forçosa e indeclinavelmente, os postulados científicos que decorrem do constitucionalismo contemporâneo, responsável por uma remodelação da clássica e assim denominada ‘separação de poderes’[2].

Assim, vislumbra-se que, após a Constituição Federal de 1988, com todas as características que lhe são pertinentes, compondo um Estado Constitucional Democrático de Direito que se funda em princípio jurídicos detentores de inafastável caráter normativo, associado à Supremacia da Constituição, impõe-se a devida compreensão da função administrativa e da discricionariedade que lhe é pertinente como uma das manifestações típicas dos atos administrativos.

Nesse sentido, injustificável se entremostra a sustentação do cabimento do exercício de qualquer poder que não se sujeite à juridicidade em um Estado de Direito, que não se reduz à legalidade, sendo abrangente das várias manifestações de juridicidade habilitadas pela ordem constitucional e que apresentem consonância com o seu conteúdo axiológico, formado por princípios relacionados com os postulados da isonomia material, com a dignidade da pessoa humana e com a Justiça.

Outrossim, além de ter por fundamento a juridicidade, todo e qualquer poder deve ser manifestado de forma finalisticamente orientada, seja para realização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos pelo art. 3º da Carta Magna, seja para prestar efetividade aos direitos fundamentais, em sentido mais amplo.

Nesse contexto, inadmissível se afigura a tão clássica quanto equivocada definição da função administrativa como expressando a mera execução da lei de ofício, pois a Administração, tanto quanto o julgador, não se encontra numa posição de autômato diante do texto legal, de infalível aplicação sobre todas as circunstâncias fáticas possíveis de ensejar uma atuação necessária a curar o interesse público que com elas esteja relacionado.

A função administrativa, em verdade, corresponde ao dever de prover a satisfação do interesse público mediante atos materiais ou jurídicos, sob o regime jurídico administrativo; nesse sentido, há de se destacar, com Celso Antônio Bandeira de Mello[3], que todos os poderes que sejam cometidos à Administração pelo legislador estarão finalisticamente orientados ao desempenho do dever decorrente da necessidade de curar o interesse público.

Assim, a Administração só possui poderes e só pode exercê-los na medida em que instrumentalizem o exercício dos deveres derivados do exercício de sua função, implicando, por si só, o dever de atuar; não tem, por conseguinte, a Administração Pública, a livre disposição de seus poderes e suas competências, configurando deveres-poderes resultantes das prerrogativas emprestadas à sua atuação, contra-balanceadas pelas correspondentes sujeições, compondo o regime jurídico administrativo através do respectivo binômio de prerrogativas e sujeições.

Constata-se que a função administrativa é uma função serviente, ou seja, comporta um âmbito de atividades praticadas com o desiderato de melhor servir a consecução do interesse público que cumpre seja curado pela Administração Pública, interesse público este que não se assemelha ao interesse secundário do Estado, enquanto pessoa jurídica, mas ao interesse primário, denominado por Eros Roberto Grau de interesse social[4].

Tal função tem sua importância sobrelevada em um Estado que se caracteriza constitucionalmente como Estado social, cumprindo-lhe prover as condições necessárias ao fornecimento das condições mínimas de vida digna à coletividade, em concreto atendimento ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e aos objetivos fundamentais previstos pelo art. 3º da Constituição, de modo a impor uma atuação administrativa mais flexível e ágil, em face da necessária eficiência que deve orientar a atuação da Administração no exercício das funções que se relacionem com a função administrativa que lhe é cometida, quais sejam, de fomento, de prestação de serviços públicos, de polícia e de intervenção na ordem econômica[5].

Posto isto, assentado que a função administrativa se vincula à satisfação do interesse público, há de se destacar que, em regra, não é à Administração a quem compete aferir o que seja interesse público, ou como se manifesta o interesse público em dado caso ou situação; como a atividade da administração é serviente, não pode dispor acerca do que seja interesse público, que, necessariamente, deve ser explicitado pelo legislador e pela constituição.

Compete ao legislador, através da lei, em cumprimento às diretrizes e tarefas constitucionais e, em parte e diretamente, à própria constituição, a explicitação do interesse público a ser curado nas várias situações e casos em que esteja envolvido, de modo a impor o exercício da função administrativa, ocasionando a inexorável associação do princípio da indisponibilidade do interesse público pela Administração e o princípio da legalidade[6].

Outrossim, a exigência de lei a demarcar o exercício da função administrativa decorre do imprescindível fundamento democrático orientador da atuação de todos os poderes públicos, expressando a manifestação dos representantes do povo, únicos aptos a restringir os direitos e liberdades individuais em prol da supremacia do interesse público, desde que o faça em estrita compatibilidade material com as normas constitucionais, sujeitando-se a normatividade principiológica que dela decorre e resguardando, sempre, o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, a fim de que possua, também, legitimidade material.

Nesse sentido, o princípio da legalidade não possui mais apenas o caráter formal que lhe era atribuído, sendo substituída a sua concepção, enquanto expressão da exigência de lei formal, pelo princípio da juridicidade, ou, da legalidade material, a fim de englobar integralmente o âmbito normativo do sistema jurídico a que esteja vinculada a Administração no exercício de determinada atividade, abrangendo os princípios e regras constitucionais e os atos normativos praticados pela própria Administração, permitindo sua diferenciação com o princípio da reserva legal[7], como registra Germana de Oliveira Moraes, ao inseri-la no âmbito da conformação principiologia e dirigente da ordem constitucional, com a distinção entre lei e direito[8].

De fora parte isso, o âmbito de delimitação das competências administrativas continua a pertencer ao legislador, que não consegue, seja por impossibilidade material, seja por impossibilidade jurídica, antever de forma completa a multiplicidade das situações susceptíveis de ocorrerem na complexidade social para relacionar o desempenho da função administrativa a cada uma delas, exsurgindo, por conseguinte, a justificação da imprescindibilidade do poder discricionário, conferindo à autoridade administrativa um necessário poder de decisão para aferir, de acordo com o caso concreto, em que sentido a tutela do interesse público impõe, ou não, a atuação da Administração.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro expõe algumas causas de justificação da discricionariedade administrativa, seja por impossibilidade material, não sendo capaz o legislador de externar fórmulas lingüísticas que obstaculizam qualquer espectro de apreciação ou de liberdade de decisão na complementação de seu sentido pela autoridade administrativa, consistindo nos denominados ‘conceitos jurídicos indeterminados’[9], seja por impossibilidade jurídica, ante o caráter de formação gradual do ordenamento jurídico, tal como desenvolvido por Kelsen.[10]

De qualquer sorte, cumpre explicitar que a discricionariedade, sendo imprescindível no âmbito de um Estado Democrático de Direito, não existe sem a legalidade, como já ressaltado, antes a pressupõe, resultando da incapacidade do legislador para antever de forma completa as múltiplas e inumeráveis, imprevisíveis, situações que envolvam o interesse público a impor uma atuação da Administração, manifestando-se, em verdade, não através de um poder, mas de um dever que é atribuído explicitamente por uma norma legal habilitante à Administração Pública.

Hodiernamente, a relação de sujeição da atividade administrativa à legalidade vem sendo objeto de novas reflexões, ante a necessidade de desempenho eficiente de suas funções, pelo que Garrido Falla[11], retomando a discussão entre vinculação negativa e positiva à legalidade[12], registra dois entendimentos diversos que expressam distintas formas de submissão à lei, um deles significando apenas a vinculação negativa, ou seja, considerando que seria lícita a atuação administrativa desde que não houvesse violação às leis existentes, não podendo praticar atos contra legem, ressaltando a função de buscar a consecução do interesse público; de outra parte, expõe a existência do entendimento da haver a vinculação também positiva, ou seja, “las atribuiciones y facultades administrativas tienen su apoyo inmediato en la ley, siendo imposible todo el tipo de actuación que no haya sido previamente encomendado a la Administración pública por el legislador”, postulando, ao final de tais considerações, uma posição eclética.

Com efeito, a questão do grau de sujeição, a sua intensidade, é bastante discutida, pois, como visto, em se considerando a vinculação apenas negativa, a Administração poderia atuar discricionariamente para a satisfação do interesse público como reputasse mais conveniente e oportuno, independentemente de norma jurídica habilitante para isto; em se adotando a doutrina que postula a vinculação positiva, concluir-se-ia que a Administração deveria exercer apenas as competências que lhe fossem juridicamente cometidas visando à satisfação do interesse público predeterminado, mais ou menos genericamente, pela constituição e pelo legislador.

A repercussão se reflete na susceptibilidade de controle jurisdicional da atuação administrativa, eis que no âmbito da vinculação negativa, não haveria controle se inexistente a norma jurídica habilitante[13].

De qualquer sorte, afigura-se que não pode, na ordem constitucional pátria, haver atuação administrativa sem norma legal habilitante, ou seja, inexistirá atuação discricionária ou vinculada se não houver competência extraída da lei, enquanto resultado da manifestação de órgão democraticamente legitimado para tanto, constitucionalmente habilitado, em observância ao devido processo legislativo.[14]

Reitere-se, pois, caber ao legislador, em regra, a predeterminação do interesse público, a fim de legitimar a supremacia do interesse público sobre o privado, princípio informador da atuação administrativa e em razão do qual são atribuídas as prerrogativas exercidas pela Administração em derrogação do direito comum, embora imponha, de forma correlata, as sujeições conseqüentes.

A distinção entre a atividade discricionária e a vinculada[15] existirá em virtude da forma de regulação do exercício da função administrativa que seja estabelecida pelo legislador, pois a norma jurídica pode regular de forma integral a atuação administrativa, ou deixar ao administrador a possibilidade de valorar, em cotejo com todo o sistema jurídico, ou seja, em estrita observância à juridicidade, inclusive sujeitando-se aos princípios constitucionais, em busca da consecução do interesse público cuja satisfação lhe tenha sido cometida pela prática daquela atividade administrativa, a melhor medida que se lhe afigure pertinente ao atendimento da finalidade pública, procedendo a um juízo de conveniência e oportunidade.

Faz-se mister ressaltar, portanto, que a função administrativa exercida através de competência discricionária permite a constatação da existência de um dever discricionário, tal como compreendido magistralmente por Celso Antônio Bandeira de Mello, aplicando a sua concepção de dever-poder[16] também quanto a esta manifestação da Administração Pública, pelo caráter acessório e instrumental de que se reveste a discricionariedade quanto ao atendimento das finalidades legalmente impostas em razão da imprescindível tutela e promoção do interesse público, legal e constitucionalmente demarcado, ante a impotência e incapacidade do legislador que, ao contrário do que pensado ao início do iluminismo, não sustenta mais o mito do legislador racional.

Em se tratando de um dever, não pode ser concebido enquanto tal, pela própria carga semântica da expressão, sem que haja um sistema de controle do exercício desta atividade conferido a um órgão legitimado para tanto constitucionalmente; em outros termos, a conclusão de que a discricionariedade, enquanto relacionada intrinsecamente ao exercício da função administrativa, atividade serviente do interesse público demarcado pela Constituição e pelas leis, submissa à principiologia e pelo regramento constitucional, exprime-se através de um dever, cujo melhor desempenho só advirá se couber ao administrador a aferição de conveniência da prática de determinado ato e da oportunidade ou não de realizá-lo, impõe a existência de um controle.

Logo, evidencia-se a inexorável necessidade de um controle efetivo, a fim de que sejam reprimidos os abusos no exercício da competência discricionária, com a aplicação da sanção pertinente, justificando a existência de um controle jurisdicional sobre a atividade discricionária, ainda que não abranja toda a sua extensão, sendo conseqüência dos freios e contrapesos que integram a estrutura da tripartição de funções enquanto técnica de limitação do exercício do poder.[17]

Dessarte, importa proceder à análise da discricionariedade administrativa no âmbito do regime jurídico administrativo sujeito à inflexão normativa da ordem constitucional, a fim de se verificar a sua consistência e a extensão do controle jurisdicional, evidenciando os aspectos regrados, ou não, pelas normas atributivas de competência, explanando, ainda, a alteração do sentido de vinculação, de modo a implicar uma alteração na aludida extensão do controle.

02. Discricionariedade Administrativa perante a Juridicidade.

A despeito de já haver sido explicitados os contornos gerais da discricionariedade administrativa, há de se deter mais especificamente na análise da caracterização da discricionariedade no sistema jurídico pátrio, norteado e conformado pela Constituição, destacando os meios e as formas de controle jurisdicional quanto ao seu exercício.

Uma das dificuldades verificadas na apreciação do tratamento que a doutrina empresta ao tema é a constatação de que não exprime o significante “discricionariedade” uma significação razoavelmente uniforme de acordo com a contextualização a que se refira, ensejando a crítica de Eros Roberto Grau, invocando Dworkin, que concebe a existência de sentidos fracos e sentidos fortes para o aludido termo; aqueles expressam a discricionariedade como capacidade de raciocínio ou a circunstância de caber a última decisão sobre determinada questão a um órgão, sendo insusceptível de controle, enquanto o sentido forte denotaria a ausência de vinculação do órgão responsável pelo exercício da competência discricionária a parâmetros postos por outra autoridade.[18]

Não obstante a divergência quanto à significação, infere-se que a discricionariedade se revela, em verdade, como um âmbito de apreciação, conferido por norma jurídica habilitante, mediante juízo político de conveniência e oportunidade a partir do qual a autoridade administrativa deve atender à finalidade pública que estiver atrelada ao exercício da respectiva competência, ou seja, correspondendo ao sentido forte acima identificado.

Já a vinculação se opera quando a competência legalmente definida não admite qualquer ponderação através de juízo político da conveniência e oportunidade do seu exercício ou da medida a ser implementada, resolvendo-se eventual ambigüidade ou indeterminação semântica no âmbito da atividade interpretativa de concretização e estruturação da norma ao caso concreto, já estando a autoridade administrativa previamente vinculada à verificação dos aspectos regrados que condicionam a prática de determinado ato.

Assim, não parece pertinente a inserção no âmbito da discricionariedade de uma outra técnica de abertura e de flexibilidade do exercício da função administrativa, utilizada com freqüência pelo legislador, qual seja, a adoção de termos jurídicos indeterminados[19] no enunciado normativo, pois não implicam a possibilidade da Administração socorrer-se do juízo político de conveniência e oportunidade para o seu exercício.

Antes de se adentrar, todavia, nas considerações pertinentes aos termos jurídicos indeterminados, torna-se necessário explicitar como o legislador manifesta ou estabelece a discricionariedade.

2.1. Formas de Atribuição da Discricionariedade e sua localização.

Ab initio, urge observar que, sendo a discricionariedade um dever decorrente da forma de atribuição jurídica de uma determinada competência, relacionando-se, necessariamente, ao resultado que consiste na prática, ou não, de um dado ato administrativo, visando à melhor satisfação do interesse público em questão, só podendo ser aferido mediante a valoração do caso concreto, inexiste competência absolutamente discricionária, como reconhecido uniformemente pela doutrina, havendo sempre aspectos regrados vinculantes da autoridade se, mediante o juízo político de conveniência e oportunidade, decidir praticá-lo.

Logo, não há qualquer juízo de conveniência e oportunidade que permita o exercício da competência por autoridade distinta daquela a que foi cometida, sendo o elemento subjetivo sempre regrado, como também se opera quanto à forma e à finalidade.

Quanto à forma, ou seja, a maneira de exteriorização necessária a dotar de publicidade, segurança e certeza o ato que se está a praticar, Maria Sylvia Zanella Di Pietro[20] registra haver uma divergência doutrinária, referindo-se ao entendimento de Jean Rivero[21] que afirma a possibilidade de determinado ato ser praticado sem o atendimento da forma legalmente prevista, abordando, inclusive, a decisão tácita, que advém do silêncio administrativo.

Todavia, não se afigura pertinente tal entendimento, eis que, em verdade, o que pode existir é, eventualmente, a ausência de gravidade pela não observância da forma legalmente prescrita, caracterizando-se apenas como uma mera irregularidade, susceptível, pois, de convalidação[22], desde que, pela ausência de utilização da forma prescrita, não haja prejuízo às garantias e à segurança dos administrados, em especial quanto à publicidade, transparência e certeza que devem pertencer ao ato administrativo; a despeito disso, em sendo a forma predeterminada pelo ordenamento jurídico, deve a autoridade administrativa segui-la, sem o que não estará cumprindo regularmente a sua competência.

Em sentido contrário, se pela análise da norma jurídica atributiva da competência se constatar que ela enseja à Administração, por critérios de conveniência e oportunidade, a opção por uma das formas dentre as quais possibilite para a exteriorização do ato, resultará caracterizada discricionariedade quanto à forma.

No que concerne ao silêncio administrativo, não necessita, por óbvio, de qualquer forma para se manifestar, pressupondo, ao contrário, a omissão, a inércia, a que a lei já atribuiu uma conseqüência jurídica de aprovação ou de rejeição da providência pleiteada junto à Administração.

Concernentemente à discricionariedade quanto à finalidade, também se verifica a existência de divergência doutrinária, havendo quem a considere passível de não ser regrada, restando à Administração, por juízo de conveniência e oportunidade, sua aferição em dado caso concreto, como Celso Antônio Bandeira de Mello[23] entende ao afirmar que a finalidade legal, relacionando-se com valores, e os termos em que estiver expressa, ao se configurarem como conceitos de valor, implicam a existência de plurissignificação, como moralidade pública, salubridade, dentre outros, admitindo um âmbito de apreciação da autoridade administrativa insusceptível de predefinição legal.

Malgrado sejam pertinentes as observações do ilustre administrativista, não se há de concordar com as mesmas pelas premissas já fixadas, dentre as quais a de que não importa em discricionariedade a utilização pelo legislador da técnica de abertura decisória através de termos jurídicos indeterminados, resolvendo-se em questão de interpretação, como será exposto, que pode ser mais ou menos dificultosa a partir de um dado caso concreto, sem autorizar à autoridade administrativa o recurso a juízos políticos de conveniência e oportunidade.

Se há de distinguir, pois, em finalidade mediata, que se expressa no necessário atendimento ao interesse público no exercício de toda e qualquer competência administrativa, estando delimitado e conformado pela principiologia e normativa constitucional e legal, e a finalidade imediata ou típica, relacionada especificamente, de forma regrada, a um específico ato administrativo.

De qualquer sorte, tanto a finalidade mediata quanto a imediata caracterizam-se por estarem expressas juridicamente, do que resulta a inexorável conclusão de inexistir discricionariedade quanto à finalidade[24].

Quanto aos demais elementos do ato administrativo, podendo resultar do exercício de uma competência discricionária ou vinculada, há de se inferir a possibilidade da regra atributiva da competência prevê-los, ainda que se utilizando de termos jurídicos indeterminados, ou não, situação esta que confere à autoridade administrativa responsável pelo exercício da respectiva função um âmbito de decisão que decorre de um juízo político de conveniência e oportunidade.

Nesse ínterim, não parece pertinente a análise procedida pela doutrina com vistas a identificar a causa formal da discricionariedade, sua fonte, sua localização, destacando alguns doutrinadores que estaria na etapa de formação do ato, enquanto outros sustentam que estaria na norma jurídica e, ainda, há quem defenda encontrar-se nos elementos do ato administrativo, como consigna Maria Sylvia Zanella Di Pietro[25].

Em verdade, resulta parcial qualquer análise da discricionariedade que não relacione a sua caracterização na regra atributiva da competência e a conseqüente repercussão nos elementos do ato administrativo a ser praticado.

Com efeito, as regras de conduta compõem-se, como também as de estrutura, que não deixam de disciplinar conduta, através de um descritor ou antecedente, ou hipótese de incidência, que se relaciona pelo vínculo imputacional, mediante um dos modais deônticos, a um comando ou estatuição, ou seja, ao conseqüente normativo.

Em se tratando de competência para o exercício da função administrativa, a regra que a atribui define, necessariamente, o órgão responsável pela sua prática, como também a forma de sua exteriorização e a finalidade típica, como já analisado, pois a finalidade mediata é inferida pela inflexão normativa dos princípios e regras constitucionais e legais; todos estes aspectos são, pois, regrados, ou seja, disciplinados pela regra atributiva da competência.

Enquanto o descritor ou antecedente explicita o recorte fático que enseja o exercício da competência, mediante a prática da função administrativa específica, o comando delimita os aspectos que darão compostura aos efeitos jurídicos que advenham da ocorrência fática dos motivos legais previstos, criando, modificando ou extinguindo relação jurídica.

Assim, a forma, a autoridade competente e a finalidade são elementos do ato administrativo disciplinados pelo comando da regra construída após a atividade compreensiva-interpretativa do aplicador[26], pois estabelecem que, ante a ocorrência dos motivos ou fatos genericamente recortados descritivamente no antecedente normativo, determinada autoridade poderá, deverá ou não poderá – envolvendo os modais deônticos de permitir, proibir ou obrigar –, proceder de determinada forma, com o desiderato de promover a realização da finalidade que é tipicamente referida àqueles motivos de fato.

De outra parte, em virtude da já aludida incapacidade do legislador para predefinir as situações ou hipótese fáticas que ensejem um determinado atuar da Administração, a regra jurídica, malgrado devidamente composta, pode não possuir uma descrição das hipóteses que condicionem peremptoriamente a incidência do comando normativo, exigindo a prática do ato, deixando-a, por conseguinte, ao juízo político da autoridade administrativa, a partir dos critérios de conveniência em exercer ou não a competência e de sua oportunidade, ou não, no que se identifica a discricionariedade quanto à hipótese de incidência, ou quanto à descrição fática da situação que iria impor o exercício da competência.

Estaria caracterizada, dessarte, a discricionariedade quanto aos motivos ou fatos determinantes do exercício da competência, porque não seriam elementos disciplinados pelo descritor da regra jurídica, cabendo à Administração aferir a conveniência e oportunidade de, em face de determinada situação que apresente pertinência com a finalidade legal, praticar o respectivo ato; não haveria o motivo legal, exigindo-se que os motivos de fato reputados como suficientes pela autoridade administrativa, em juízo de conveniência e oportunidade, apresentem-se devidamente caracterizados e se relacionem com pertinência à finalidade típica, de modo a ensejar o exercício da competência, o que deve ficar devidamente assentado na motivação expedida para legitimá-lo.

Assim, em não havendo motivo legal predefinido pelo descritor do antecedente da regra jurídica atributiva do dever de atuar[27], impõe-se que a Administração, ao valorar politicamente dadas circunstâncias que, por razões de mérito, consubstanciadas na conveniência e oportunidade, já aludidas, entenda impositivas do exercício da função administrativa, externe, de forma cabal, os motivos que em que se baseou para assim proceder, justificando a partir da ocorrência dos mesmos, racional e razoavelmente, de maneira argumentativa, a prática do ato de forma proporcional, ou seja, a pertinência com o conteúdo do ato, tendo em vista a finalidade pública que esteja adstrita ao exercício daquela competência, fazendo-o através de uma regular motivação.

Portanto, constata-se a inexorável importância da motivação, dos motivos determinantes e da causa do ato administrativo no exercício de competências que apresentem discricionariedade quanto ao descritor da regra que a institui.

Não obstante isso, pode-se verificar situações normativas em que há devidamente caracterizada a descrição de aspectos fáticos recortados da realidade social que, uma vez ocorrentes, ensejem o exercício da atuação administrativa para curar o interesse público concernente com eles; todavia, o legislador pode não conseguir antever com precisão qual a medida a ser implementada para, configurados os motivos de fato que se adequem aos motivos legais previstos no descritor, atender à finalidade pública respeitante à melhor satisfação do interesse público, circunstância em que conferirá a autoridade administrativa a possibilidade de adotar uma dentre duas ou mais medidas, arrolando as possíveis, ou de adotar a que repute mais oportuna e conveniente, sem sequer listar quais seriam as cabíveis.

Nessas circunstâncias, a discricionariedade decorreria de não ter sido a estatuição definida quanto aos efeitos advindos da ocorrência do suporte fático descrito lingüisticamente no antecedente normativo, conferindo-se à Administração a possibilidade de valorar, mediante razões de mérito, qual dentre as medidas viáveis melhor atenderia à finalidade legal, ou, mesmo em inexistindo um elenco de medidas possíveis, qual a melhor solução para tal desiderato, situação em que só se revestiria de legitimidade se, da mesma forma, procedesse à exteriorização cabal, plausível, da pertinência e razoabilidade do conteúdo do ato a ser implementado mediante uma devida e suficiente motivação.

Também se caracteriza a discricionariedade quanto ao conteúdo do ato se a estrutura normativa associa o descritor com o conseqüente através de expressões que impliquem o modal deôntico “permitir”, resolvendo-se o exercício da competência em virtude de juízo de conveniência e oportunidade.

Resta, pois, devidamente explicitada que a discricionariedade não é um âmbito isento de juridicidade, pois, ao contrário, justifica-se apenas por força de regra jurídica habilitante construída a partir de sua estrutura lingüística, posta pelo legislador, através da atividade compreensiva-interpretativa do aplicador, ensejando o exercício de uma competência em que haja um âmbito de decisão pela autoridade administrativa quanto à conveniência e oportunidade de praticar um ato diante de fatos que considere suficientes, se não houver motivo legal, ou de adotar determinada medida, se inexiste alguma que seja especificamente prevista no comando da regra, ou se existe uma pluralidade de medidas possíveis, ou, ainda, quando lhe é conferida a decisão quanto ao próprio atuar ou não.

A discricionariedade, pois, afigura-se como um âmbito de decisão conferida à Administração a partir de juízo político de conveniência e oportunidade juridicamente conformado, e não mediante juízo estrito de legalidade, a fim de que possa reputar quais os motivos que ensejam a prática de dado ato, ou qual a medida que será implementada para melhor curar o interesse público, sempre decorrente da estrutura normativa da regra.

Posto isto, faz-se mister analisar a vinculação da atividade administrativa, a fim de, efetivamente, verificar se toda a atividade discricionária está isenta de conformação jurídica ou não, e em que sentido se opera o controle jurisdicional.

Antes, porém, cumpre extremar a técnica da discricionariedade da técnica dos termos jurídicos indeterminados, o que se passará a proceder a seguir.

2.2. Discricionariedade e termos jurídicos indeterminados[28].

Como já mencionado, no curso da exposição, alguns doutrinadores consideram que há discricionariedade administrativa quando a lei utiliza-se de expressões vagas, imprecisas, plurissignificativas, ao explicitar o enunciado da regra prescritiva da competência, por restar ao aplicador um âmbito de decisão quanto à interpretação e aplicação da regra e, conseqüentemente, de praticar ou não o ato, com um ou outro conteúdo, a partir da valoração que faça dos termos legais diante da sua contextualização no caso concreto.

Não obstante isso, admite-se que, em algumas circunstâncias, pelas peculiaridades da situação em exame, só poderia ser praticado determinado ato, por ser imprescindível para tutela do interesse público envolvido, entendimento este que exprime a concepção da redução da discricionariedade a zero.

Malgrado a pertinência do entendimento que postula a integração dos termos indeterminados em sede de discricionariedade, sendo adotado por Celso Antônio Bandeira de Mello, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, dentre outros e, na doutrina estrangeira, Miguel Sanchéz Móron[29], considerando haver uma margem de apreciação quando, em face da situação do caso concreto, é incognoscível aferir-se uma única solução que possa ser reputada a correta ante o interesse público envolvido.

Afirma, ainda, que o controle jurisdicional só se circunscreveria à zona de certeza negativa pertencente à significação dos termos em exame, resultando evidente não lhe ter sido emprestado o sentido que seja pertinente diante do caso concreto, não sendo cabível em se tratando de significação que se insira, em face do contexto, na zona de penumbra ou na zona de certeza positiva, nas quais haveria discricionariedade quanto à margem de apreciação necessária à concreção do termo, como se evidencia da doutrina de Sanchéz Móron, que segue transcrita, in verbis:

“En cambio, en caso de duda razonable la aplicación del concepto jurídico indeterminado por la Administración debe reputarse lícita, sin que pueda el juez contencioso-administrativo sustituir los critérios valorativos de la Administración por los suyos propios, puesto que el ordenamiento no ha conferido la potestad discrecional tampoco en estos supuestos a los órganos judiciales, incluyendo en esa potestad la de valorar las situaciones fácticas opinables según su saber y entender.”[30]

Em sentido similar, Celso Antônio Bandeira de Mello assevera que seria “equivocado supor que não se propõe questão de discricionariedade ante o tema dos conceitos vagos, sub color de que apreender-lhes o sentido é operação mental puramente interpretativa da lei, logo, ato da alçada do Judiciário, por ser mera intelecção da lei, algo, pois, absolutamente distinto do ato de volição (único que traduziria discricionariedade) consistente em fazer uma opção administrativa de mérito, segundo critérios de conveniência e oportunidade, por um dentre dois ou mais comportamentos igualmente ensejados pela norma aplicanda. As premissas componentes do raciocínio certamente são verdadeiras, mas não postulam a conclusão extraída.”[31]

Infere-se, pela análise do pranteado mestre, que considera estarem os termos indeterminados no âmbito da discricionariedade por associá-la a um dos sentidos fracos alhures mencionado, ou seja, por não ser susceptível de controle por outro órgão quando a autoridade administrativa cumpre o dever funcional executando determinado ato mediante interpretação dada ao termo indeterminado, reputando despicienda a circunstância de inexistir o âmbito de decisão de mérito, por que recorreria a razões de conveniência e oportunidade, extrajurídicas, para aplicar a regra que abriga o termo, com o que não se concorda.

Em verdade, a doutrina costuma distinguir entre conceitos empíricos, que seriam susceptíveis de determinação diante do caso concreto, e conceitos de valor[32], insusceptíveis de determinação, admitindo uma apreciação de valoração autônoma do aplicador, permanecendo uma margem de apreciação da Administração para dar-lhe concreção, desde que inserida no âmbito da zona de certeza positiva ou, mesmo, na zona de penumbra, a depender do caso concreto.

A despeito disso, há de se preservar a discricionariedade para significar toda a atividade legalmente conferida em que a Administração pode recorrer a razões de mérito; com efeito, o mérito é o próprio núcleo da discricionariedade, do que se infere não poder ser associada sua existência se não houver juízo de mérito, mas apenas juízo de legalidade, ainda que não se possa extrair uma única solução correta deste juízo, não se afigurando pertinente a assimilação apenas pelos efeitos que seriam, supostamente, os mesmos, quais sejam, não haver sujeição ao controle jurisdicional.

De fora parte isso, se assim se entendesse, haveria mais discricionariedade do que vinculação, pois é mais típico dos termos jurídicos, sejam empíricos-descritivos, sejam de valor, a indeterminação, como registra Karl Engish, asseverando que “os conceitos absolutamente determinados são muito raros no Direito”[33], inclusive no exercício da aplicação de outras normas jurídicas que estivessem baseadas em termos indeterminados, do que se poderia inferir a prevalência da discricionariedade sobre o caráter vinculado no exercício de todas as funções de soberania, conclusão incompatível com o Estado Democrático de Direito, a depender do sentido que se empreste à discricionariedade e que deve, como já mencionado, ser aquele que a relaciona com o juízo de mérito.

Com efeito, a característica da linguagem é justamente a plurissignificação, a vagueza, a fluidez, exigindo que o intérprete se utilize de instrumentos desenvolvidos pela hermenêutica contemporânea, a partir dos novos postulados do constitucionalismo, já referidos, na atividade compreensiva-construtiva da norma jurídica a partir da sua expressão literal decorrente da fórmula normativa, do enunciado que, desenvolvido pelo intérprete diante de dado caso concreto, permitirá a sua construção, observando-se o núcleo semântico que deriva das palavras da lei, consistindo a literalidade não mais no resultado da atividade interpretativa, mas apenas no limite objetivo da interpretação.

Nesse sentido, não se afigura pertinente, ao menos em juízo prévio, afirmar-se que haja possibilidade de questionar-se a correção ou incorreção quanto à aplicação de uma norma que contenha um termo indeterminado em seu enunciado lingüístico, desde que o intérprete se mantenha nos lindes do âmbito de interpretação mediante o cotejo concretizador com os dados fáticos que também se sujeitem à interpretação.

A manifestação do aspecto subjetivo do aplicador é inerente ao processo construtivo da norma jurídica, eis que a sua compreensão se orientará pela pré-compreensão que possui no âmbito dos horizontes cognitivos de sua formação, sendo mais um mito a pretensa objetividade absoluta, como registra a Prof. Marília Muricy[34].

Há, pois, de se adscrever a discricionariedade ao seu sentido supra-referido, ocasionando uma certa repercussão prática a distinção entre discricionariedade e termos jurídicos indeterminados porque naquela há um âmbito insusceptível de qualquer espécie de vinculação, concernente ao seu núcleo, à avaliação da conveniência e oportunidade sobre o motivo ou o conteúdo do ato, inexistindo, efetivamente, vinculação quanto ao mesmo.

Concernentemente aos termos jurídicos, a sua atividade de concreção, em preenchimento do âmbito de significação que possua, a partir do caso concreto pertinente, revela-se como uma atividade vinculada pela juridicidade, conformada ao ordenamento jurídico, não implicando a conclusão de que exista possibilidade de revisão judicial plena, pois, no âmbito interpretativo do termo, não se há de sustentar decisões acertadas ou equivocadas, mas razoáveis ou desarrazoadas, por não se operar o direito nos contornos da lógica matemática dedutiva, mas mediante a lógica do razoável, prudencial, baseada na lógica da argumentação.

Eros Roberto Grau expressa seu entendimento em corroboração ao que se vem de expor, expressando a distinção entre termos jurídicos indeterminados, em que há juízo de legalidade, e a discricionariedade, em que há juízo de mérito, político, sustentando o que segue abaixo transcrito, in verbis:

“Inobstante o que acima afirmei relativamente a sujeição de todo e qualquer juízo de legalidade ao exame e controle do Poder Judiciário, devo observar que o controle, pelo Poder Judiciário, mesmo de determinados atos vinculados, há de, em certas circunstâncias, ser relativizado.”[35]

Assim, enuncia que decisões de caráter altamente pessoal, valorações vinculativas, decisões de caráter de prognóstico e as decisões de enformação seriam susceptíveis de controle judicial mais restrito, embora não se caracterizem como decorrentes de atividade vinculada da administração porque não admitem um juízo de mérito.

A partir de tais considerações, se há de discordar, neste ponto, com a doutrina esposada por Enterría e Fernandez, que afirmam tratar-se o problema dos conceitos indeterminados mais de questão respeitante à dificuldade da prova e, conseqüentemente, de operacionalização do controle, do que de isenção de controle jurisdicional, asseverando que seus “supuestos tradicionales no son ya identificados com la idea de exención de control; han pasado a ser únicamente supuestos de dificultad de control, considerando el tema desde la perspectiva procesal de la prueba (...).”[36]

Sempre haverá, pela própria vagueza dos termos jurídicos, pela deficiência comunicacional das palavras da lei, a depender do caso concreto e da compreensão dele que seja procedida pelo aplicador, inclusive pela Administração, um âmbito de interpretação no qual poderá legitimamente se orientar, desde que em compatibilidade com a globalidade do ordenamento jurídico, conformado constitucionalmente.

Já Germana de Oliveira Moraes distingue também a discricionariedade administrativa dos termos jurídicos indeterminados, afirmando que são “técnicas legislativas que traduzem a abertura das normas jurídicas, carecedoras de complementação. Na primeira hipótese, essa complementação faz-se mediante um juízo comparativo de ponderação valorativa dos interesses concorrentes, à luz dos critérios de aptidão, exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito; na última, a valoração administrativa dos conceitos indeterminados de prognose envolve um juízo de prognose, que se encerra no critério da aptidão ou adequabilidade”[37], sustentando, todavia, que as duas técnicas se interceptam quando utilizado na estatuição conceito indeterminado para expressar uma indeterminação dos efeitos.

Não obstante isso, pelas razões já suficientemente expostas, há de se sustentar como pertinente e necessária a distinção entre discricionariedade e termos jurídicos indeterminados.

2.3. Vinculação e Controle Jurisdicional da atividade administrativa discricionária.

A atividade discricionária, como já explicitado, além de fundar-se na própria legalidade, existindo apenas por força da estrutura aberta da norma jurídica atributiva da competência – circunstância que, juntamente com a necessária motivação nos atos realizados sob uma ordem jurídica em que prevalece a juridicidade e a democracia, legitima a sua prática, por consistir num dever que instrumentaliza o melhor exercício da função administrativa, tendo em vista a consecução do interesse público predeterminado pela Constituição e pelas leis –, deve ser susceptível de controle.

Em havendo controle da atividade dos órgãos responsáveis pelo exercício das funções de soberania, a técnica do sistema de freios e contrapesos hodiernamente prevalecente, após a evolução do constitucionalismo, postula que tal atividade seja operacionalizada pelo órgão exercente da função jurisdicional, que, em se tratando de controle sobre a Administração, pode ser um órgão interno à sua própria estrutura, em Estados que tenham aderido ao contencioso administrativo, ou o Poder Judiciário, como consagrado na Constituição Federal pelo inciso XXXV do art. 5º, expressando o princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional, de que é manifestação o direito constitucional de ação em havendo lesão ou ameaça a direito.

Logo, toda a atividade administrativa, inclusive a discricionária, admite vinculação[38], seja em sentido estrito, quanto a norma jurídica atributiva da competência disciplina alguns dos elementos do ato administrativo, seja em sentido amplo, em face de sua conformação à principiologia constitucional, diante da recomposição e reinterpretação do princípio da legalidade, como já visto, substituindo-se pelo da juridicidade constitucionalmente conformada.

Em razão da alteração de tais paradigmas, Germana de Oliveira Moraes procede a uma distinção estabelecendo que o exercício da atividade administrativa discricionária e a balizada por conceitos indeterminados não é vinculada, salvo os aspectos regrados, mas é juridicamente conformada pela principiologia constitucional, associando a vinculação com o direito por regras e a conformação com o direito por princípios[39].

Assim, como já adiantado, no âmbito do constitucionalismo contemporâneo, com o instrumental teórico e hermenêutico cujo desenvolvimento se impôs, a atividade administrativa discricionária, embora não decorrente da inexistência de disciplina nas regras no que concerne à hipótese ou no que respeita ao comando normativo, permanece inserida no sistema jurídico pátrio e, por conseguinte, sujeita à inflexão axiológica derivada da principiologia constitucional, bem como dos objetivos postos pelo constituinte, obrigando as funções constituídas ao desempenho das tarefas e dos programas que lhe tenham soberanamente atribuído a Constituição Federal.

Destarte, pode-se considerar que haveria uma vinculação por regras, quanto aos elementos da norma atributiva de competência discricionária que são disciplinados, bem como quanto a outras técnicas de controle da discricionariedade administrativa, reduzindo o seu âmbito insindicável, como a necessária motivação, a teoria dos motivos determinantes, a apreciação da qualificação jurídica dos fatos determinantes, desde que analisados em cotejo com a causa, e o desvio de finalidade[40].

De outra parte, haveria a vinculação aos princípios constitucionais, sejam os fundamentais, previstos pelo art. 1º, sejam os demais, consagrados explícita ou implicitamente pela Constituição, implicando a conformação do exercício da função administrativa ao conteúdo axiológico constitucionalmente delimitado pelos princípios constitucionais, do que advém a inexorável conclusão de sujeição da Administração, no exercício da atividade administrativa, aos princípios da constitucionalidade, da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da proporcionalidade, da razoabilidade[41], da segurança jurídica, da supremacia do interesse público, da legalidade, e dos demais positivados na Carta Magna, em especial os referidos no seu art. 37, considerando-se os princípios, distintamente das regras.

Os princípios, então, se caracterizariam como espécies de normas, entendidas estas como ordenações materiais de conduta, enquanto aqueles seriam mandados de otimização, significando, nas palavras de Alexy, que “pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no solo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinados por los princípios y reglas opuestos.”[42]

Já as regras seriam mandados peremptórios, que incidem ou não, a partir do caso concreto, resolvendo-se eventual incompatibilidade ou antinomia com o recurso aos critérios cronológico, hierárquico ou da especialidade, excludentes da vigência, da validez e da incidência, respectivamente.

O controle jurisdicional da atividade discricionária, então, deverá, inclusive, fiscalizar a conformação administrativa ao sistema principiológico constitucional, não sendo pertinente objetar-se o eventual problema do risco de haver um governo dos juízes, por gozarem de legitimidade para o exercício desta função em virtude da vontade do próprio constituinte, havendo meios internos de controle da juridicidade das respectivas decisões através do sistema recursal.

Não cabendo discorrer detidamente sobre os critérios ou técnicas de vinculação às regras e aos princípios, ou seja, de vinculação à juridicidade axiologicamente orientada, pelos limites propostos a este estudo, cumpre registrar que permanece, então, no âmbito da discricionariedade, como insusceptível de revisão jurisdicional, apenas o núcleo político consubstanciado no mérito, no juízo de conveniência e oportunidade que seja conferido pelo direito, como já exposto, e, ainda assim, haverá o controle quanto ao conteúdo do ato, tendo em vista os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, além da vinculação ao conteúdo axiológico da Constituição.

Outrossim, faz-se mister salientar que existe, também, vinculação da Administração não somente à juridicidade, mas também às regras técnicas a cuja observância esteja relacionado o exercício de uma competência administrativa, não sendo pertinente defender-se a existência de uma discricionariedade técnica, tanto que Gordillo a ela se refere como regulação técnica, distinguindo as regras técnicas dos aspectos técnicos susceptíveis de controvérsias, salientando que em “el primer caso, si desde el punto de vista de la técnica lo que la administración ha hecho o pretende hacer es indubitable erróneo, la actividad administrativa será ilegítima”[43], ao contrário do que sustenta Sanchéz Móron, para quem não poderia o julgador substituir a apreciação do juízo técnico da Administração.

Com efeito, não há como se vislumbrar qualquer âmbito de apreciação pela Administração em se tratando da análise de regras técnicas que não se relacionem com termos jurídicos indeterminados; em se relacionando, será, de igual sorte, atividade vinculada, mas, a depender da situação, pode não ensejar correção judicial, se houver sido realizada a concretização mediatizante de forma pertinente e no âmbito da interpretação que decorra do cotejo com o contexto subjacente.

Nada obsta, verbi gratia, que um concursando desclassificado porque reprovado em exame médico de habilitação por ter uma deficiência visual que não atenda o exigido pelo edital para exercício de cargo com o qual seja pertinente esta restrição, ou o que for reprovado em avaliação psicológica, provocando a prestação jurisdicional, utilize-se de perícia judicial para demonstrar que o motivo determinante da desclassificação, aferido mediante regras técnicas, não ocorreu, impondo-se a sua correção.

Ressalte-se, ainda, que parte da doutrina sustenta, sob pretensa inspiração democrática, a necessidade de uma substituição do controle substancial da atividade administrativa por um controle procedimental, o que vem se manifestando como processualidade administrativa, com a abertura das decisões administrativas à discussão e ao debate público, com a participação dos cidadãos, como registra Sanchéz Móron[44], devendo ser admitida com ressalvas no âmbito pátrio, por não ser possível sua devida implementação pela flagrante ausência de consciência de cidadania da imensa maioria do povo, ante a carência quanto ao exercício regular do direito à educação, na forma do art. 205 da Constituição Federal.

Logo, não se legitima procedimentalmente ou comunicacionalmente decisões decorrentes de abertura procedimental e dialógica se não existem cidadãos que estejam aptos a travar as discussões, problema este que vem sendo observado quanto às audiências e consultas públicas envolvendo querelas entre as concessionárias de serviços públicos e as agências reguladoras.

Importa, então, atentar-se para que, em um Estado Constitucional Democrático de Direito[45], a legitimidade do exercício das competências pelos órgãos que realizam as funções decorrentes da soberania popular não se satisfaz pelo aspecto meramente formal, tendo de apresentar consonância e conformação à materialização axiológica decorrente dos princípios constitucionais, sendo equivocada a pretendida substituição em prol de uma redução do controle sobre a atuação discricionária.

Evidenciados os âmbitos de vinculação regrada e principiológica que sujeitam a atividade administrativa e os meios e mecanismo de controle jurisdicional do exercício das competências discricionárias, resguardando o núcleo político da decisão, consubstanciado no juízo de mérito, pertinente à avaliação da conveniência e oportunidade, aferida mediante a compreensão da compostura da estrutura normativa da regra habilitante, como explicitado, torna-se necessário afirmar que as conseqüências derivadas do seu exercício abusivo devem ocasionar a inexorável invalidação do ato administrativo praticado.

Questiona-se, ainda, sobre a possibilidade do julgador supostamente substituir-se à Administração para, além de invalidar o viciado, determinar qual o ato que deve subsistir em substituição àquele, o que não é aceito pelos doutrinadores que adotam uma concepção mais restritiva do controle jurisdicional, por considerar que o juiz não pode se substituir à autoridade administrativa na perquirição e definição do interesse público aferido mediante ponderações de mérito; todavia, esta é mais uma das matérias controvertidas relacionadas ao exercício das competências discricionárias em que não são pertinentes afirmações peremptórias.

Mesmo em se tratando de função administrativa exercida com base em competência discricionária, em havendo vício do ato praticado, poderá a Administração, a depender da situação concreta, não apenas invalidá-lo, mas também substitui-lo, como, verbi gratia, quando seja necessário alterar a medida reputada pela Administração como a melhor para atender ao interesse público se se revelar incompatível com a razoabilidade e com a proporcionalidade, havendo outra medida que objetivamente se revele como mais idônea para tanto.

Tais, pois, os âmbitos de vinculação jurídica, e não apenas estritamente legal, que sujeitam a Administração, mediante regras ou princípios, e de vinculação técnica, ensejando a ampla sindicabilidade judicial ao exercício das competências discricionárias, mantendo-se incólume o inatingível mérito do ato, para que possa haver, efetivamente o exercício da função administrativa mediante discricionariedade, concebendo-a como dever principiologicamente orientado, inserindo-se no sistema de freios e contrapesos próprios do Estado Constitucional, que implica uma superação do Estado-legislador.

03. Conclusão.

O tema da discricionariedade administrativa é um dos mais clássicos e intrincados na seara administrativista, em especial pelo caráter inter-relacional que implica sua regular compreensão, tornando-se imprescindível uma perspectiva analítica constitucionalmente conformada, recorrendo-se a postulados de Teoria Geral do Direito, de Hermenêutica Jurídica e da Ciência Jurídica enquanto tal.

Por conseguinte, resta evidenciado que o estudo ora promovido tem por desiderato contribuir para a reflexão dos aspectos relevantes que lhe são pertinentes, procedendo-se a uma tentativa de adscrever aos contornos da juridicidade o exercício da atividade administrativa, como sói ocorrer em um Estado Constitucional, juridicidade esta não apenas formal, mas axiologicamente orientada pela principiologia constitucional, comprometida com as tarefas e programas previstos pelo Poder Constituinte, no âmbito de um constitucionalismo dirigente, não podendo haver nenhum órgão cujo exercício das funções não seja instrumental para realização de um dever que, por si só, já traz intrínseca a impostergável existência de um sistema de controle e garantia, obstando o seu desvirtuamento em prol dos interesses egoísticos dos agentes públicos em geral.

Concebe-se, pois, que o Poder Judiciário, no âmbito da ordem constitucional pátria, é o órgão responsável, porque assim consagrado pelo Poder Constituinte, por velar e impor o império da Constituição e da juridicidade, malgrado existam outros meios de controle interno quanto a atuação discricionária da Administração Pública, no exercício da autotutela, não sendo razoável a impugnação de que não poderia haver um extenso controle por envolver juízos políticos, por força do princípio da separação de poderes, por ausência de legitimidade, obstando um governo de juízes.

Com efeito, o Poder Judiciário possui, em especial no sistema jurídico pátrio, expressivos e variados meios de controle interno de suas decisões, com duas instâncias julgadoras, além dos órgãos de superposição, consistentes no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, exercendo uma função de extrema relevância e que só lhes pode ser imputada por relacionar-se ao controle da juridicidade; com a alteração dos contornos da legalidade para a juridicidade, a importância do controle jurisdicional se sobreleva.

Ademais, ao assim proceder, o Poder Judiciário só teria ingerência em juízos políticos na medida em que houvesse a sujeição da política à juridicidade, permanecendo no exercício regular de sua cara função constitucional, do que advém sua legitimidade, da pia batismal da promulgação da Constituição Federal, momento máximo de manifestação da soberania popular e insusceptível de repetição, pelo que não se pode mais aceitar a pertinência da rígida separação de poderes de Montesquieu que tornava o juiz um autômato programado pelo legislador para ser a “boca da lei” no caso concreto, inserindo-se no âmbito do sistema de freios e contrapesos, como já assentado.

Por conseguinte, pela exposição promovida, espera-se que a discricionariedade se direcione as suas finalidades existenciais apontadas pela doutrina, para que não lhe seja mais merecida a imputação de ser o “Cavalo de Tróia” em um Estado de Direito, o que exige a maior redução possível do âmbito de insidicabilidade jurisdicional, em especial diante de Estados em que a Administração Pública ainda não implementou a emancipação social, com atuação eficiente no desenvolvimento dos direitos fundamentais.

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[1] Artigo agraciado com o Prêmio Alice Gonzalez Borges, instituído pela Associação de Procuradores do Estado da Bahia – APEB, em 2004.

[2] Com efeito, a separação de poderes, em verdade, não se caracteriza por uma separação dos poderes do Estado, mas por uma divisão das funções derivadas do exercício do poder político intrínseco à soberania popular pelos órgãos constitucionalmente previstos. Assim, reputa-se mais pertinente a denominação de tripartição de funções, embora seja também passível de crítica.

[3] Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 32 e ss.

[4] Considera Eros Roberto Grau que “a dogmática do direito público, que o cinde em direito constitucional e direito administrativo, constrói uma noção, para este último, em torno da legalidade, que é, no mínimo, paradoxal. O direito administrativo, ao mesmo tempo em que é concebido como provedor da defesa do indivíduo contra o Estado, apresenta como princípio fundamental o da supremacia do interesse público; e isso ocorre sem que, em regra, seja questionada a dissociação entre interesse público – interesse cujo titular é o Estado – e interesse social – cujo titular é a sociedade.” (Destaques originais), Grau, Eros Roberto, O Direito Posto e o Direito Pressuposto. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 124. Celso Antônio procede à distinção entre interesse público primário e interesse público secundário, em consonância com a doutrina italiana a que faz referência, correspondendo àqueles o interesse da coletividade como um todo, afirmando que só pode a Administração perseguir a satisfação dos seus interesses secundários se corresponderem também aos primários. Ob. cit., p. 33 e ss.

[5] Pietro, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 13ª ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 59 e ss.

[6] O legislador, então, ao demarcar o âmbito de exercício da função administrativa, comete à Administração competências que se manifestam como deveres de atuar no exercício de determinada atividade, material ou jurídica, para buscar a consecução do interesse público, do que decorre a vinculação e a sujeição da Administração à lei, só podendo atuar mediante a existência de competência que fixe a forma desta atuação e os poderes que poderão ser implementados para tanto, como a finalidade a ser atingida.

[7] A exigir que determinada matéria seja disciplina por lei em sentido formal, ou seja, produzida por órgão dotado de representatividade popular e que observou o devido processo legislativo, tal como constitucionalmente previsto.

[8] “(...). Para amoldar-se a essas imposições de contenção do Poder Legislativo e suprir as deficiências na regulação do Poder Executivo, o princípio da legalidade alterará parcialmente seu significado. Ao ordenar ou regular os desempenhos funcionais do Poder Legislativo, assume o princípio da legalidade, como visto, a conotação de legalidade constitucional, com a superação pelo princípio da constitucionalidade. Ao ordenar ou regular a atuação administrativa, a legalidade não mais guarda total identidade com o Direito, pois este passa a abranger, além das leis – das regras jurídicas, os princípios gerais de Direito, de modo que a atuação do Poder Executivo deve conformidade não mais apenas à lei, mas ao Direito, decomposto em regras e princípios jurídicos, com a superação do princípio da legalidade pelo princípio da juridicidade.”. In Moraes, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração Pública. São Paulo: Dialética, p. 23.

[9] Cumpre registrar, de logo, a discordância para com o entendimento da eminente jurista, eis que não se afigura que os denominados ‘conceitos jurídicos indeterminados’ impliquem o exercício de competência discricionária, como será demonstrado.

[10] Pietro, Maria Sylvia Zanella Di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 2001, p. 67-71.

[11] Falla, Fernando Garrido. Tratado de Derecho Administrativo. Vol. I, 13ª ed., Madri: Tecnos, 2002, p. 198-204.

[12] Existente desde os primórdios da função executiva após o constitucionalismo liberal, sob a concepção de vinculação negativa e positiva à lei.

[13] Na Espanha a discussão é intensa, podendo se verificar duas correntes bem definidas que postulam as aludidas posições contrárias, como se percebe da doutrina esposada por Miguel Sánchez Morón[14], adepto da vinculação negativa, que considera uma tese radical a vinculação positiva, defendida, dentre outros, por García de Enterría[15] e Tómas-Rámon Fernandez, procedendo a uma interpretação do art. 103.1[16] da Constituição Espanhola afirmando que, sem dúvida, “la Constitución, al utilizar la expresión sometimento ha querido excluir cualquier posibilidad de actuación administrativa contra legem y contra ius”[17], defendendo uma compreensão mais dinâmica e menos formalista do princípio da legalidade, distinguindo-o do princípio da reserva legal.

Tanto García de Enterría quanto Fernandez entendem que a doutrina da vinculação apenas negativa se baseia em fundamentos equivocados, decorrendo da herança de uma interpretação estanque da separação de poderes e de um suposto fundamento democrático que não ensejaria a sujeição da Administração, no exercício de sua função discricionária, livremente exercida nos contornos da legalidade, sem necessitar de norma habilitante para tanto, sustentando que todo poder que não seja juridicamente conferido tende a ser arbitrariamente exercido, inadmissível, diante da consagração do princípio constitucional de interdição da arbitrariedade pelos poderes públicos constante do art. 9.3[18] da Constituição Espanhola.

Na ordem jurídica espanhola, todavia, há mais pertinência na invocação da vinculação apenas negativa do que na ordem jurídica pátria, por prever a Constituição Federal apenas o regulamento executório, não sendo afetada tal circunstância pela previsão dos regulamentos de organização, admitidos pela Emenda Constitucional nº 32/2001, alterando a redação do seu art. 84, inciso VI, diversamente da disciplina instituída na Constituição Espanhola.

[19] Como registra André Ramos Tavares ao afirmar que lei “portanto, refere-se, tecnicamente, à lei formal, vale dizer, ao ato normativo que emana do poder constituinte originário (Constituição), bem como do órgão legislativo instituído, representativo do poder soberano (leis ordinária, complementares e, excepcionalmente, medidas provisórias) ou órgão para o qual tenha sido transferida tal capacidade legitimamente, nos termos da Constituição (Chefe do Executivo por via da lei delegada). Requer, ainda, que a edição da lei tenha obedecido ao processo legislativo previsto pela própria Constituição.” In Tavares, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 446.

[20] Distinção esta parcial, pois sempre haverá nas competências discricionárias aspectos vinculados definidos pela lei que sujeitem inteiramente a Administração quando da sua prática, como a competência, a forma e a finalidade, embora Celso Antônio, em posição minoritária, entenda que a finalidade pode não estar determinada de forma vinculada, com o que não se concorda, como será exposto. Mello, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 19-20.

[21] E o faz propondo “é preciso refazer a noção mais corrente de discricionariedade, para adequá-la ao próprio direito positivo.” (Destaques no original), ob. cit., p. 14-16.

[22] Observe-se que, se a tripartição de funções obstaculizava a concentração do poder e seu exercício desmesurado e arbitrário, não obstava que cada órgão detentor do exercício de uma das funções decorrentes da soberania a exercesse de forma arbitrária, extraindo-se a necessidade de um constante e cada vez mais aperfeiçoado sistema de freios e contrapesos, em que os órgãos se controlem reciprocamente, sem que haja a possibilidade de um imiscuir-se no exercício das competências típicas do outro.

[23] Grau, ob. cit., p. 143.

[24] Preferindo-se a observação procedida por Eros Roberto Grau, ob. cit., p. 145-151.

[25] Pietro, Maria Sylvia Zanella Di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 2001, p. 82-83. Celso Antônio Bandeira de Mello também considera que pode haver discricionariedade quanto à forma de emanação do ato. Ob. cit., p. 19.

[26] Rivero, Jean. Direito Administrativo. Coimbra: Almedina, 1981, p. 113-114.

[27] Se vinculada a competência para a prática do ato e existentes os motivos de fato previstos pelo descritor da regra de estrutura que a atribui.

[28] Ob. cit., p. 19-21.

[29] Como entende a maioria da doutrina pátria, como Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Zanella, ob. cit., p. 84-86.

[30] Ob. cit., p.76-86.

[31] Expondo-se, de logo, o entendimento esposado de que a regra jurídica, como espécie normativa, resulta da compreensão do intérprete a partir dos enunciados jurídicos textuais, sendo inolvidável a existência de uma dimensão construtiva no processo de sua objetivação pela atividade cognitiva do aplicador.

[32] Como no exemplo dado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, qual seja, exoneração ex officio de servidor ocupante de cargo em comissão passível de exoneração ad nutum. Ob. cit., 84.

[33] A doutrina geralmente atribui aos alemães a precedência na discussão sobre o caráter discricionário ou não dos termos jurídicos indeterminados, bem como a abrangência ou isenção da sindicabilidade judicial sobre a aplicação dos mesmos. Sobre o tema, ver, dentre outros, Pietro, ob. cit. p. 97 e ss., Mello, ob. cit., p. 22 e ss., Engish, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. 6ª ed., Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983 p. 205 e ss. Moraes, ob. cit., p. 55 e ss.

[34] Ob. cit., p. 116-120.

[35] Ob. cit., p. 120.

[36] Ob. cit., p. 24.

[37] Para Engish são os que “(...) contrariamente aos conceitos descritivos, visam dados que não são simplesmente perceptíveis pelos sentidos ou percepcionáveis, mas que só em conexão com o mundo das normas se tornam representáveis e compreensíveis.” Ob. cit., p. 212.

[38] Ob. cit., p. 208.

[39] “Um dos problemas mais destacados do debate contemporâneo no campo da hermenêutica jurídica é o da objetividade possível aos critérios que orientam a aplicação do direito e, principalmente, o da difícil harmonização entre a relevância do significado social das decisões e as demandas de legitimidade de tais decisões, tendo em vista a natureza do fundamento em que se valem. Embora o problema da objetividade apresente, na área jurídica, contornos próprios, não é ele questão que afete exclusivamente a atividade interpretativa desenvolvida pelos juristas. Muito menos podemos qualificá-lo como questão emergente.” Muricy, Marília. Racionalidade do direito, justiça e interpretação. Diálogo entre a teoria pura e a concepção luhmanniana do direito como sistema autopoiético, in Boucault, Carlos E. de Abreu et Rodriguez, José Rodrigo. Hermenêutica Plural, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 103.

[40] Ob. cit., p. 162.

[41] Ob. cit., p. 462.

[42] Ob. cit., p. 71-73.

[43] Restando apenas o juízo de mérito isento de vinculação, embora deva se orientar a autoridade administrativa pelos valores e objetivos constitucionalmente consagrados..

[44] Ob. cit., p. 35-40

[45] O desvio de finalidade pode, também, evidenciar-se como violação a princípios jurídicos.

[46] Apesar de haver parte da doutrina que considera ser a razoabilidade e a proporcionalidade um único princípio, não merece acolhimento tal assertiva, pois o princípio da proporcionalidade resulta como critério para compatibilização de direitos e princípios constitucionais em conflito, bem como para obstar o exercício da regulação legislativa acerca de um direito que não respeite o seu conteúdo essencial, sendo aferido pelos elementos componentes da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, revelando-se como um princípio inerente à concepção de Estado Constitucional, embora haja quem o sustente como reflexo do devido processo legal; já a razoabilidade implica a verificação da racionalidade de determinada medida.

[47] Alexy, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 86.

[48] Gordillo, Agustín. Tratado de Derecho Administrativo. T. 1, 7ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. X-15.

[49] Ob. cit., p. 142-148.

[50] Segundo Canotilho, um “Estado pode considerar-se Estado de direito quando: (1) está sujeito ao direito; (2) actua através do direito; (3) positiva normas jurídicas informadas pela ideia de direito.” In Canotilho, José Joaquim Gomes. Estado de direito. Lisboa: Fundação Mário Soares, 1999, p. 49. A idéia de direito se manifesta, então, pela incorporação dos “princípios e valores materiais que permitam aferir do carácter justo ou injusto das leis, da natureza justa ou injusta das instituições e do valor ou desvalor de certos comportamentos”.Ob. cit., p. 41, a fim de que o direito curve o poder político, sujeitando ao atendimento, quando do seu exercício pelos poderes públicos, do conteúdo axiológico constitucionalmente consagrado.

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