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 Carlos Reis

Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (c.reis@fl.uc.pt)

The Special One. Fenomenologia do Her?i Desportivo

The Special One. Phenomenology of the sports hero

Resumo A partir da caracteriza??o do her?i como categoria liter?ria, procede-se a uma reflex?o acerca do her?i desportivo, com recurso a instrumentos de an?lise facultados pelos estudos narrativos. O her?i desportivo ? uma entidade valorizada pela proje??o p?blica das narrativas medi?ticas em contexto de comunica??o de massas; nesse ?mbito, certos g?neros narrativos (como a biografia) procedem ? configura??o de um her?i conformado pela prolifera??o de imagens, sobretudo de TV. Para al?m disso, frequentemente o her?i desportivo concentra si os valores e os desejos do coletivo que representa; quando o her?i ? vencido, a sua queda arrasta a desse coletivo.

Abstract Drawing from the characterization of the hero as a literary category, this study develops a reflection on the sports hero, using the literary tools of narratology as a basis for this analysis. The sports hero is valued by public projection in media discourse in the context of mass communication; in this medium, certain narrative genres (such as the biography) configure the hero shaped through images, especially on television. Furthermore, often the sports hero becomes endowed with collective desires and values of the community he or she represents; when the hero is defeated, it is also a defeat for this community.

Palavras-chave: Her?i, her?i desportivo, futebol, narrativa medi?tica.

Keywords: Hero, sports hero, football, media narrative.

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1. O her?i da minha adolesc?ncia n?o foi um guerreiro, um astronauta, um pol?tico ou um cientista. O her?i da minha adolesc?ncia n?o era portugu?s e nunca o vi em carne e osso; foi um cidad?o da Uni?o Sovi?tica, nascido em Moscovo em 1929 e ali falecido, com pouco mais de sessenta anos de idade. Chamava-se Lev Ivanovich Yashin, media quase um metro e noventa e dele diz-se que foi o melhor guarda-redes que o futebol j? viu, tendo ficado mundialmente conhecido pelo cognome de Ara nha Negra. Digo cognome e n?o alcunha, porque ? pelo cognome que celebramos aqueles cujos feitos s?o dignos de mem?ria (voltarei a isto). Os feitos deste her?i foram os que muitos quiseram imitar: dominar a grande ?rea, comandar a defesa, desfazer cruzamentos, voar para deter um remate trai?oeiro, defender um penalty.

N?o recordarei aqui os t?tulos, os trof?us e as distin??es, algumas de fei??o pol?tica, que o her?i Aranha Negra conquistou e recebeu em vida, enquanto foi guardi?o do D?namo de Moscovo e da sele??o sovi?tica. Bastam-me as imagens (? disso que em

grande parte aqui se trata) que dele ficaram para sempre: o equipamento negro, as luvas tamb?m negras, as joelheiras (?s vezes uma s?, na perna direita), o voo que a fotografia suspendia, a calma de um olhar que intimidava os advers?rios. Foi tudo isso que fez de Yashin um her?i daqueles que jamais dececionam.

Nunca assisti a um jogo do Aranha Negra, ao vivo, no calor do est?dio. Arrisco at? dizer o seguinte: se o tivesse visto, talvez o n?o achasse, por fim, t?o alto, t?o ?gil e t?o dominador. Se para mim ele foi tudo isso -- como quem diz: um fen?meno --, foi porque outros, ? sua maneira fazedores de her?is, assim o descreveram e relataram. Chamavam-se Artur Agostinho, Amadeu Jos? de Freitas e Nuno Br?s, eram relatores de futebol e, num mundo ainda sem televis?o, as suas vozes enchiam umas ondas m?dias em que se dizia a insustent?vel leveza de um ser cognominado Aranha Negra. Desse e de outros her?is, admirados todos gra?as ? media??o do jornalismo desportivo, nos dias da r?dio que Woody Allen evocou, num filme justamente famoso.

2. Trato aqui do her?i desportivo, tal como o encontramos sobretudo na modalidade de alcance planet?rio que ? o futebol. N?o que ele seja, como ? ?bvio, a ?nica modalidade que gera, difunde, d? a consumir e ?s vezes ajuda a corromper her?is; outras o fazem, com as suas l?gicas pr?prias. Todavia, ? aquela dimens?o planet?ria que o futebol ganhou, gra?as a procedimentos de figura??o e de mediatiza??o em contexto de comunica??o social, que eleva os protagonistas da modalidade ? dimens?o de her?is, tamb?m eles planet?rios e dotados de atributos outrora exclusivos das representa??es da literatura, das artes pl?sticas, das lendas e dos mitos inacess?veis ao comum dos mortais. Os her?is de que aqui me ocupo s?o figuras t?o massificadas como os ve?culos e os discursos medi?ticos que fazem do futebol uma presen?a quase obsessiva no nosso quotidiano, assim projetando sobre ele aquelas propriedades e atributos.

Nem de prop?sito: em 2013, um jovem fot?grafo portugu?s, Daniel Rodrigues, ganhou um pr?mio de fotojornalismo do World Press Photo (categoria "Daily Life"), por uma fotografia que tudo diz acerca da dissemina??o

do futebol no quotidiano de qualquer lugar do mundo, mesmo no mais rec?ndito e miser?vel1. As crian?as da Guin?-Bissau que, naquela fotografia, jogam um futebol de p? descal?o em campo improvisado s?o muito pobres e vivem o sonho de um dia serem um Messi, um Cristiano Ronaldo ou um Didier Drogba. E talvez j? o sejam imaginariamente, naqueles minutos de evas?o e de fantasia. ? um pouco disso que a fotografia do jornalista nos transmite: o poder mim?tico e o potencial de emula??o que os her?is desportivos levam at? ?queles que o deus-desporto promete libertar da mis?ria. Os pouqu?ssimos que o conseguem, n?o raro por entre redes de tr?fico de adolescentes e gan?ncias de empres?rios inescrupulosos, chegam a passar por prova??es que s? os predestinados vencem.

Assim tem sido, desde os grandes mitos da Antiguidade: para alcan?ar o estatuto de her?i, H?rcules teve de superar os doze trabalhos que lhe foram impostos como reden??o da culpa; e

1 Ver em ; acesso a 12.7.2014.

Ulisses pagou cara a ardilosa e heroica vit?ria sobre os troianos, penando dez anos at? chegar ao ref?gio do lar perdido. N?o dez anos, mas 19 longos dias (porque a condi??o humana hoje ? menos paciente do que na Antiguidade) foram aqueles que uma crian?a indon?sia passou, na sequ?ncia do tsunami que, em dezembro de 2004, engoliu terras e gentes na remota Indon?sia. Entretanto, a camisola da sele??o portuguesa de futebol que a dita crian?a vestia naquele transe fez nascer um her?i: "o pequeno her?i", dizia o Jornal de Not?cias a 17 de janeiro de 2005, "envergava a camisola da sele??o portuguesa de futebol".

A resist?ncia do jovem Martunis e "o milagre (...) ocorrido em Banda Aceh" (dizia o Di?rio de Not?cias no mesmo dia) foram habilmente associados ao poder redentor do futebol, porque este fez chegar at? ao outro lado do mundo uma das suas imagens de marca. Aquilo que foi insinuado pelos relatos medi?ticos e pelas imagens que o acompanharam veio ? superf?cie do nosso imagin?rio: por for?a de uma esp?cie de meton?mia oculta, a crian?a de 7 anos recebeu do talism? que cobria o seu corpo fr?gil o poder

de superar a morte e ganhou, por um breve tempo, a celebridade que aos her?is est? reservada. Hoje n?o sabemos o que ? feito do jovem Martunis, agora quase adulto; mas naqueles dias de 2005 ele foi um dos her?is a que temos direito e que modernamente s? o desporto nos concede.

3. Sem almejar a densa conceptualiza??o que aqui se n?o justifica, cabe perguntar: de que falamos, quando dizemos de algu?m que ? um her?i? E tamb?m: que sentido faz (e porqu?) transferir uma indaga??o acerca do her?i para o campo do fen?meno desportivo e dos discursos que o narram?

Alinharei alguns t?picos de reflex?o que tentarei disseminar no que se seguir?. Primeiro: o her?i ? um componente estruturante de algumas narrativas, cuja enuncia??o se processa em fun??o dessa figura em quem se centram os conflitos e sobre quem pendem amea?as que s? ele vence. Acentuo esta dimens?o narrativa do her?i, nestes termos: sem narrativa n?o h? her?i. Aquilo que o legitima ? um trajeto de sobre-humana vitalidade, contra obst?culos e contra for?as hostis; desenrola-se esse trajeto num

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tempo potencialmente narrativizado que o her?i atravessa, em movimento de busca e de afirma??o do seu estatuto, com maior intensidade e dramatismo quando esse estatuto se coloca sob o signo da transgress?o de normas, de limites ou de estatutos sociais. Num ensaio c?lebre, agora com quase um s?culo de vida, Gy?rgy Luk?cs falou em her?i problem?tico, a prop?sito do protagonista de Le Rouge et le Noir de Stendhal, e notou que naquele romance ? contada a "hist?ria dessa alma que vai pelo mundo para aprender a conhecer-se, procura aventuras para nelas se testar e, por essa prova, atinge a sua medida e descobre a sua pr?pria ess?ncia" (Luk?cs, 1970: 85).

Segundo: o her?i n?o ? atemporal nem a-hist?rico, pelo que n?o se manifesta do mesmo modo em todas as ?pocas. O her?i da Antiguidade Cl?ssica povoada por mitos ou aqueloutro her?i modelado por ela no s?culo XVI confinam ambos com a condi??o divina e chegam a ofender os deuses, quando quase os igualam: por isso, Baco ataca os novos her?is que, em navega??o ousada, tendem a obscurecer o prest?gio dos deuses (penso, evidentemente, do que se encontra no canto I, 30,

d'Os Lus?adas: "O padre Baco ali n?o consentia/No que J?piter disse, conhecendo/Que esquecer?o seus feitos no Oriente/Se l? passar a Lusitana gente." (Cam?es, 1972: 8). Fernando Pessoa, j? noutro tempo, expressou a inc?moda vizinhan?a dos deuses com os her?is terrenos, com estas palavras meio enigm?ticas: "Como por?m o homem n?o pode ser igual dos Deuses, pois o Destino os separou, n?o corre homem nem se alteia deus pelo amor divino; estagna s? deus fingido, doente da sua fic??o."2.

Terceiro: o her?i n?o ? uma personagem qualquer. Na palavra que o designa, ressoa, de forma bem aud?vel, "uma tonalidade pr?pria que resulta do facto de o lexema her?i provir do vocabul?rio religioso, cultural, antropol?gico, anterior ? sua inclus?o no da cr?tica liter?ria" (Queff?lec, 1991: 242), bem como ? sua utiliza??o no campo da an?lise das narrativas medi?ticas; o que ? facto, por?m, ? que aquela tonalidade pr?pria n?o se perde por completo, mesmo quando se d? a seculariza??o do her?i nas narrativas subsequentes ? laiciza??o das

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sociedades ocidentais, a partir do s?culo XVIII. Exemplo expressivo: Leopold Bloom ? um anti-her?i banalizado pelo quotidiano burgu?s de Dublin, tal como o genial romance de Joyce o representou; do Ulisses hom?rico resta a mem?ria desgastada de um hero?smo m?tico, outrora ro?ando o poder sobrenatural dos deuses, poder que reconhecemos invi?vel e anacr?nico, naquele cen?rio urbano. Anacr?nico, mas n?o perdido para sempre, quanto mais n?o seja como motivo de ironia nost?lgica ou de revis?o modernista.

Quarto: certos tempos hist?ricos s?o especialmente prop?cios ? heroiza??o das personagens narrativas, por raz?es que t?m que ver com as cosmovis?es que as enquadram. O renascimento foi um desses tempos, potenciado por filosofias de vida, por ideais de beleza e por princ?pios de emancipa??o e de plenitude humana que levaram ? redescoberta do homem como her?i do seu tempo, viajante por espa?os inexplorados e renovador do conhecimento de si e do mundo. Por sua vez, o romantismo associou o porte heroico ? reivindica??o do individualismo como atitude

A fenomenologia do her?i decorre da tensa intera??o de certas atitudes recetivas com os dispositivos ret?ricos, em particular narrativos, que procedem ? figura??o do her?i

existencial, ato de rebeldia contra a "normalidade" burguesa ou busca de um absoluto que o comum dos mortais n?o entendia.

Quinto: o her?i enquanto fulcro da narrativa interpela e desafia o leitor. "O her?i provoca a compaix?o, a simpatia, a alegria e a dor do leitor", disse um dos formalistas russos, Boris Tomachevski, em 1925; e a isto acrescentou: "A rela??o emocional decorre da constru??o est?tica da obra e s? nas formas primitivas essa rela??o coincide obrigatoriamente com o c?digo tradicional da moral e da vida social" (apud Todorov, 1965: 295). A partir daqui, posso concluir, por agora: a fenomenologia do her?i decorre da tensa intera??o de certas atitudes recetivas (emo??es, preconceitos, imagens adquiridas, molduras comportamentais) com os dispositivos ret?ricos, em particular narrativos, que procedem ? figura??o do her?i. Em ?ltima inst?ncia, a concretiza??o do her?i, no sentido fenomenol?gico da express?o, depende de atos cognitivos que investem na leitura do relato (do relato desportivo, quando ? o caso) muito mais do que aquilo que a letra do texto revela e

mais tamb?m do que aquilo que o seu autor quis representar.

4. N?o me referi, na minha breve caracteriza??o do her?i, a uma sua propriedade que parece adquirida nas narrativas liter?rias da modernidade (quero dizer: do s?culo XVIII em diante), ou seja, a sua condi??o de entidade ficcional. Direi apenas que essa condi??o ficcional, podendo achar-se vinculada a um tempo e a uma modela??o est?tica espec?ficos (? o caso da novel?stica rom?ntica), n?o ? evidente em todas as ?pocas nem em todos os relatos. Na Antiguidade Cl?ssica ou no Renascimento, a fei??o do her?i imp?e aos homens comuns o respeito reverencial que ? devido a figuras dotadas de exemplaridade religiosa, mitol?gica ou hist?rica, pr?via a um seu eventual estatuto de personagens liter?rias. Noutros termos: as narrativas ?picas ou as can??es de gesta, que exaltavam her?is no universo da guerra ou do proselitismo religioso, n?o eram for?osamente entendidas como literatura, ? luz dos princ?pios est?ticos e dos protocolos institucionais vigentes no nosso tempo.

Isto quer dizer que a problem?tica do her?i n?o ? estritamente liter?ria.

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Ela abre-se a reflex?es de ?ndole filos?fica, ?tico-moral, pol?tica ou doutrin?ria que se n?o restringem ?s pr?ticas liter?rias e aos mundos imagin?rios em que transitam os her?is ficcionais; isso n?o impede que nestes, ou seja, nos her?is ficcionais e liter?rios, se projete uma axiologia do hero?smo provinda daquelas reflex?es. Em 1637, o te?logo jesu?ta Baltasar Graci?n publicou El H?roe, um conjunto de diretrizes que deveriam reger a vida e as decis?es dos governantes, como refer?ncia moral dos homens que eles governam; e abria com um conselho bem significativo: o her?i dever? cultivar o engenho de "ostentar-se ao conhecimento, mas n?o ? compreens?o; alimentar a expectativa, mas nunca saci?-la de todo" (Graci?n, 2001: 17). Dir?amos hoje, como se fal?ssemos de um her?i desportivo (j? l? chegarei): o her?i deve saber gerir a sua imagem (para isso servem os assessores que integram a sua entourage).

Muito tempo depois de Graci?n, em 1841, Thomas Carlyle publicou um conhecido ensaio de forte repercuss?o pol?tica, n?o isento de ambiguidades ideol?gicas, com o t?tulo On

Heroes, Hero-worship and the Heroic in History. Dizia Carlyle: "Tal como a entendo, a Hist?ria Universal, a hist?ria daquilo que o homem realizou neste mundo, ? afinal a Hist?ria dos Grandes Homens que aqui laboraram" (Carlyle, 1840). Foram esses Grandes Homens providenciais ? Maom? e Shakespeare, Lutero e Rousseau, Cromwell e Napole?o, outros ainda, nos dom?nios da religi?o, das letras ou da pol?tica ? que se transformaram em modelos, no mundo em que viveu "the general mass of men". E pouco depois, entre 1883 e 1885, o Zaratustra nietzschiano enunciou os princ?pios constitutivos e as m?ximas que moldavam o comportamento de um her?i-super-homem amea?ado pela "gente mi?da":

"Superai-me, ? homens superiores, as pequenas virtudes, as mesqui nhas prud?ncias, os escr?pulos ?nfimos como gr?os de areia, a agita??o pr?pria de formigas, o contentamento deplor?vel, a ` fe licidade da maioria'!" (Nietzsche, 1996: 336).

N?o me alongo sobre esta que, de certa forma, ? uma "mat?ria perigosa" (diria Cam?es). Sabemos bem o que, pol?tica e historicamente, veio depois de Carlyle e de Nietzsche; e desconfiamos at? que dos seus conceitos de her?i alguma coisa ter? sido herdada, pela via de interpreta??es deformadas, por ditadores, por defensores da superioridade de uns sobre outros, por agentes da intoler?ncia ideol?gica e da viol?ncia pol?tica. Regresso, por isso, a coisas elementares, mas trago comigo alguns dados adquiridos, que s?o os atributos com que se forja o her?i: os sentidos do modelo, da supera??o individual e da calculada gest?o da superioridade, bem como a posi??o de evid?ncia do her?i perante o coletivo, a composi??o de uma sua imagem de mist?rio e de dist?ncia em rela??o a esse coletivo. Tudo isso e tamb?m, como comecei por afirmar, a pertin?ncia e a voca??o da narrativa como construtora de her?is. Na Hist?ria, na fic??o liter?ria, na lenda e na mitologia. E tamb?m no desporto, acrescento agora.

5. Volto, ent?o, ao mundo do desporto para dizer o seguinte: temos os

her?is desportivos que temos porque lemos, ouvimos e vemos relatos medi?ticos constru?dos em fun??o de um leque consider?vel de possibilidades, dependendo de propriedades e de combina??es definidas em campos de caracteriza??o pr?prios. ? este um enquadramento operat?rio que, estando impl?cito em muito do que aqui digo, deixo com os especialistas, em particular com aqueles que se ocupam dos media orientados para grandes massas de recetores.

Dentre esses especialistas, cito Marie-Laure Ryan que, numa an?lise t?o sucinta como esclarecedora, diferenciou as narrativas medi?ticas de acordo com o seu alcance esp?cio-temporal, com as suas propriedades cin?ticas, com a diversidade de c?digos implicados (p. ex., os media chamados multicanais), com a prioridade ou hierarquia dos canais sensoriais, com a materialidade dos signos e suportes tecnol?gicos e com a fun??o cultural e m?todos de produ??o e distribui??o (Ryan, in Herman et alii, 2005: 290291). De acordo com estas distin??es, at? os modestos cromos da bola s?o narrativas medi?ticas em pot?ncia, limitadas por for?a do seu alcance e da

estereotipada rigidez das suas imagens est?ticas; ainda assim, quantas jogadas, quantas fintas, quantas defesas n?o fizeram, no imagin?rio infantil, os her?is dos cromos da bola.

A par destes, fomos conhecendo, ao longo do s?culo XX, outros relatos medi?ticos mais elaborados, no jornal desportivo, na r?dio, escassamente no cinema, mais tarde na televis?o, esta ?ltima agora ajudada (n?o raro com um barroquismo dispersivo da aten??o do espectador) por incont?veis c?maras, por gruas diligentes, por incessantes repeti??es, por ?ngulos inversos, por grandes planos, por imagens congeladas ou em slow mo tion, por estat?sticas precisas, por diagramas minuciosos, por velocidades da bola, por dist?ncias percorridas, por linhas imagin?rias que humilham os ?rbitros. Por tudo isto e tamb?m por comentadores que nada calam, desde o feitio da chuteira at? ? m?dia de golos por campeonato, nos ?ltimos vinte ou at? trinta anos, quase sempre com desprezo pelo gozo e pelo sossego de quem v?.

Seja como for, mesmo neste mundo em que as narrativas medi?ticas s?o exibi??o de si mesmas, n?o passamos

sem her?is, porque sem eles n?o h? espect?culo e nem neg?cio, ? claro. "Si no hay dinero, no hay portero", declarou h? muitos anos Carlos Gomes, um m?tico guarda-redes do Sporting, quando estava para ser transferido para Espanha. Na idade do digital e da informa??o em rede, com a celeridade e com a leveza, com a exatid?o, com a visibilidade e com a multiplicidade que s?o suas propriedades estruturantes (Calvino dixit), nessa idade nova mas j? nossa que ? o s?culo XXI, o espa?o do jogo excedeu os limites f?sicos do campo de futebol, do court de t?nis ou da piscina ol?mpica. Indo al?m da televis?o de alcance planet?rio, a cena de afirma??o dos her?is do desporto, hoje em dia, ? sobretudo o ciberespa?o, ou seja, o "espa?o de comunica??o aberto pela interconex?o dos computadores e das mem?rias dos computadores" (L?vy, 2007: 92).

Nesse novo cen?rio, os jogos s?o cada vez mais videogames e talvez at? passe por a? o futuro da narrativa. Desenvolve-se nos videogames, segundo os especialistas na mat?ria, uma narratividade reelaborada pelas potencialidades do digital e da interatividade; trata-se agora de um jogo

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