Anais Seacom Ufac 2017



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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

COMUNICAÇÃO SOCIAL COM HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

ANAIS DO 6ª SEMANA ACADÊMICA DE COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE: COMUNICAÇÃO DIGITAL E MODELOS DE TRABALHO

RIO BRANCO – ACRE 2017

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UFAC

S471s Semana Acadêmica de Comunicação da Universidade Federal do Acre (6. : 2017 : Rio Branco, AC)

Anais da VI Semana Acadêmica de Comunicação (SEACOM) da Universidade Federal do Acre: comunicação digital e modelos de trabalho, 02 a 04 de agosto de 2017 / organizado por Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. – Rio Branco, 2017.

204 p.: il.

1. Comunicação social – Universidade Federal do Acre. 2. Comunicação digital. 3. Pesquisa Científica. I. Universidade Federal do Acre. II. Centro de Filosofia e Ciências Humanas (UFAC). III. Título.

CDD: 001.4098112

Bibliotecária: Alanna Santos Figueiredo - CRB 11°/1003

6ª SEMANA ACADÊMICA DE COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE: COMUNICAÇÃO DIGITAL E MODELOS DE TRABALHO

02 a 04 de agosto de 2017

CORPO EDITORIAL

Aleta Tereza Dreves Francisco

Aquinei Timóteo Queirós

Francielle Maria Modesto Mendes

Giselle Xavier D’Ávila Lucena

Juliana Lofego Encarnação

Milton Chamarelli Filho

Tatyana Sá de Lima

Wagner da Costa Silva

COMISSÃO ORGANIZADORA

Antoniete Buriti de Souza Alves

Arlete de Almeida Pimentel

Caroline Lamar de Azevedo

Daya de Kássia Pinheiro Campos

Edla Maria de Araújo

Elderico Paula da Silva

Felipe de Souza Pereira

Fernando Lima de Oliveira

Francielle Maria Modesto Mendes

Juliana Lofego Encarnação

Marcio Miguel Santos de Souza

Maria Luzinete Bardales Manuaro da Silva

Pamela Ferreira da Silva

Pamela Luiza Almeida de Souza

Thais Farias de Moura

Victor Mateus Lebre de Souza

Vinicius da Silva Charife

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APOIO

Coletivo Decor Deck

Esquina Verde Instituto Acreano de Fotografia

Grupo Zanatta Alan Rick

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SUMÁRIO

|APRESENTAÇÃO |7 |

|1. JORNALISMO (HISTÓRIA, TEORIA, GÊNEROS JORNALÍSTICOS) E AUDIOVISUAL (RÁDIO/ÁUDIO, TV/VÍDEO, FOTOGRAFIA) |9 |

|2. MULTIMÍDIA (CIBERCULTURA, CONTEÚDOS DIGITAIS E CONVERGÊNCIA TECNOLÓGICA) |67 |

|3.INTERFACES COMUNICACIONAIS (MEIO AMBIENTE, EDUCAÇÃO, ESPORTE, SAÚDE) |113 |

|4. ESTUDOS INTERDISCIPLINARES (TEORIA DA COMUNICAÇÃO, |156 |

|ECONOMIA POLÍTICA, CULTURA, CIDADANIA) | |

APRESENTAÇÃO

A 6ª Semana Acadêmica de Comunicação da Universidade Federal do Acre (UFAC), realizada entre os dias 2 a 4 de agosto de 2017, teve como tema “Comunicação Digital e Modelos de Trabalho”. Na oportunidade, foram realizadas palestras, mesas- redondas, minicursos, apresentação de trabalhos científicos, distribuição de prêmios, além de atividades culturais.

Essa atividade desenvolvida regularmente no curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo é fruto dos esforços dos docentes e discentes, que acreditam que as atividades de extensão são parte importante tanto no processo de formação acadêmica e profissional quanto na integração das relações entre universidade e comunidade externa.

A organização dos Anais do evento é uma forma não somente de apresentar os trabalhos científicos discutidos na Semana Acadêmica, mas também divulgar pesquisas na área de Comunicação na Amazônia brasileira e, então, compartilhar saberes com a sociedade de um modo geral.

Os textos aqui expostos foram apresentados por professores, pesquisadores e estudantes da UFAC e de outras instituições, nas seguintes linhas temáticas: Jornalismo (história, teoria, gêneros jornalísticos); Audiovisual (rádio/áudio, tv/vídeo, fotografia); Multimídia (cibercultura, conteúdos digitais e convergência tecnológica); Interfaces Comunicacionais (meio ambiente, educação, esporte, saúde); e Estudos interdisciplinares (teoria da comunicação, economia política, cultura, cidadania).

Francielle Maria Modesto Mendes Juliana Lofego Encarnação

JORNALISMO (HISTÓRIA, TEORIA, GÊNEROS JORNALÍSTICOS) E AUDIOVISUAL (RÁDIO/ÁUDIO, TV/VÍDEO, FOTOGRAFIA)

A ÉTICA JORNALÍSTICA: UMA ANÁLISE DO LIVRO BAR BODEGA

Ariel Chaves de Lima1 Kelton Pinho da Silva2

Francielle Maria Modesto Mendes3

Resumo

O objetivo do artigo é analisar o comportamento da imprensa nas investigações do caso Bar Bodega, à luz do livro de mesmo nome do Carlos Dorneles: Bar Bodega: Um crime de imprensa. A análise compreende o fato de que a imprensa agiu equivocadamente ao publicar informações sobre o caso sem checar as informações, além disso, vamos discutir a atitude da imprensa em ter como fonte principal e única, a polícia. A abordagem sobre esse tema também mostra a conduta da imprensa desviando-se do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros e as consequências geradas após a conclusão do caso. Sabemos que o princípio básico do jornalismo é sempre ouvir os dois lados da história, então, autores como Guy Debord, Rogério Christofolleti, Luciene Tófolli, Maria Elizabeth Antonieli foram usados para ajudar a embasar esse estudo sobre o livro.

Palavras-chave: Bar bodega; imprensa; fontes; polícia.

Introdução

Com o objetivo de analisar o comportamento da imprensa na investigação do caso “Bar bodega” elabora-se esse estudo tendo como base principal o livro “Bar bodega: Um crime de imprensa” escrito pelo autor Carlos Dornelles. O ponto de partida é um princípio básico do jornalismo: é preciso ouvir os dois lados da história para conseguir chegar a verdade. Então, vamos discorrer sobre o “crime” cometido pela imprensa na apuração das investigações do caso mencionado. O artigo também propõe um debate sobre a conduta da imprensa que descumpre o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros.

A análise desse livro nos provoca uma reflexão sobre o verdadeiro interesse da imprensa na publicação de informações e principalmente sobre sua relação com as fontes, no caso, com a polícia. A fonte não passava confiabilidade, uma vez que, utilizava métodos de tortura com os suspeitos para confessarem um crime que não cometeram, e assim, saciar os desejos da imprensa e da sociedade que acompanhavam o caso.

1 Ariel Chaves de Lima, estudante do 3º período do curso de Jornalismo na Universidade Federal do Acre (UFAC).

2 Kelton Pinho da Silva, estudante do 3º período do curso de Jornalismo na Universidade Federal do Acre

(UFAC).

3 Professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre (UFAC), Doutora em História Social, pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Letras: Linguagem e Identidade pela Universidade Federal do Acre (UFAC).

Além de mostrar o sensacionalismo provocado pela imprensa após o crime, a abordagem sobre esse tema, compreende também as consequências geradas, no meio familiar e social, com a repercussão na acusação de pessoas inocentes, colocadas como culpadas pela imprensa e pela polícia, responsáveis pelo crime do “Bodega”.

A exploração do caso

Como Carlos Dornelles disse em sua obra: “O assassinato de dois jovens de classe média alta era um ingrediente explosivo e de exploração fácil” (DORNELLES, 2007, p. 35). A mídia brasileira na época, logo após o crime, se aproveitou do caso para espetacularizar todas as notícias que falavam sobre violência: “Casos do interior ganharam destaque que nunca tiveram” (DORNELLES, 2007, p. 38). De acordo com Guy Debord (2003), o espetáculo de uma notícia pode ser caracterizado como algo grande e importante, basicamente o que for bom de um fato sempre vai aparecer, essa é a mensagem principal do espetáculo.

O Jornal Nacional, Jornal da Band e Jornal da Record, em suas manchetes e reportagens começaram a utilizar palavras que instauravam o medo. No livro, o autor destaca que o Jornal Nacional mostra uma cidade que estava vivendo momentos de pânico. O Jornal da Band publicou a seguinte manchete: “A excessiva crueldade dos bandidos em São Paulo assusta até a polícia” (DORNELLES, 2007, p. 35). O Jornal da Record divulgou: “Uma onda de violência deixa um rastro de tristeza e revolta em São Paulo. A classe média vira alvo de bandidos” (DORNELLES, 2007, p.35).

Segundo Carlos Dornelles (2007), toda essa divulgação alarmante sobre criminalidade deixou até os turistas assustados, porém eles não viam tanta violência assim, pelo menos foi o que comprovou uma matéria publicada no Caderno de Turismo, na Folha de São Paulo. Dornelles traz a situação daquela época e comenta o que diziam as pesquisas:

Na verdade, os homicídios em São Paulo de 1995 para 1996, tinham aumentado apenas 1,7%, um dos menores índices dos últimos 10 anos. E tinham caído todos os indicadores de roubos e furtos a residências, prédios de apartamentos e escolas. Mas o medo está oficialmente insaturado. (DORNELLES, 2007, p.34).

De acordo com Carlos Dornelles (2007), todas as manchetes e reportagens sobre o crime estavam sendo abordadas de forma exagerada, uma delas é publicada no Diário Popular que faz comparações dos crimes do nazismo na Bósnia com os assassinatos ocorridos em São Paulo. Os jornais locais começaram a oferecer dados e estatísticas para os crimes ocorridos,

cálculos como “um roubo a cada 35 minutos” foram feitos e levados aos noticiários, além disso os leitores passaram a receber até oito páginas de jornal falando sobre o assunto.

Para Rodrigo dos Santos (2015), o jornalista faz mau uso do poder de informar para lucrar atráves do sensacionalismo. A autora Rosa Nivea Pedroso (2001), citada por Tófoli, detalha o uso da linguagem sensacionalista:

[...] valorização da emoção em detrimento da informação; exploração do extraordinário e do vulgar, de forma espetacular e desproporcional; adequação discursiva ao status semiótico das classes subalternas; destaque de elementos insignificantes, ambíguos, supérfluos ou sugestivos; subtração de elementos importantes e acréscimos ou invenção de palavras ou fatos; [...] exposição do oculto, mas próximo; produção discursiva sempre trágica, [...] violenta, [...] grotesca ou fantástica. (NÍVEA, 2001, p. 122-123, apud TÓFOLI, 2008 p. 45-46).

Luciene Tófoli (2008) fala que após as mudanças que ocorreram no jornalismo no final do seculo XX, os profissionais estão agora produzindo mais notícias, com menos recursos, o que as tornam mais um produto a venda.

Segundo Carlos Dornelles (2007), foram realizadas pesquisas pela imprensa mostrando como a violência estava crescendo e aterrorizando a população paulista, porém não colocaram no jornal que essa pesquisa aconteceu depois da exploração do caso.

Na Folha: “Violência é o principal temor paulistano”. Mostra que 29% dos entrevistados apontam a violência, 14% a saúde, 13% o desemprego. O jornal jamais diria é que o número pode ser considerado surpreendentemente baixo, porque a pesquisa foi feita depois das duas semanas da intensa campanha da imprensa (DORNELLES, 2007, p. 61).

As publicações feitas na mídia brasileira também fizeram com que a imprensa fugisse das normas do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Segundo o art. 12º, II, o jornalista não pode divulgar informações: “de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes” (FENAJ, 2007, online).

Conforme Carlos Dornelles (2007), toda informação que a imprensa tinha sobre violência era uma pauta interessante, mesmo que não tivesse nenhuma ligação uma com a outra. No livro, ele descreve duas notícias sem fundamento mínimo, uma delas é uma manchete do jornal Folha de São Paulo: “São Paulo vive onda de sequestros relâmpagos”, porém o autor afirma: “Mas o jornal só foi capaz de achar dois casos naquela semana. E ficou por aí” (DORNELLES, 2007, p. 94). Calos Dornelles mostra mais uma notícia sem embasamento:

A folha dá chamada na capa: “Gangues de jovens adotam revolveres”. O texto diz que “gangues de adolescentes estão trocando armas artesanais, como soco-inglês, por armas de fogo em todo país”. Nenhum estudo, nenhuma pesquisa, nenhum número confiável. (DORNELLES, 2007, p. 95).

O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros fala sobre essa prática de divulgação das informações e suas responsabilidades, o art. 8º, diz que: “O jornalista é responsável por toda a informação que divulga, desde que seu trabalho não tenha sido alterado por terceiros, caso em que a responsabilidade pela alteração será de seu autor” (FENAJ, 2007, online).

No livro, o autor traz algumas acusações feitas pela própria imprensa durante as investigações do caso, uma delas foi publicada no Jornal da Tarde dizendo: “Presos Assassinos do Bar Bodega” e a outra é pelo jornal Estadão: “Assassino do Bar Bodega matou pela segunda vez”. (DORNELLES, 2007, p. 59-60)

A colunista Barbara Gancia, condena os acusados sem mesmo saber quem eles são: “[...] os assaltantes do Bodega são animais que matam por esporte”, ela completa: “São veneno sem antídoto, nenhum presidio recuperaria repteis dessa natureza. A vontade de qualquer pessoa normal e enfiar o cano do revólver na boca dessa sub-raça e mandar ver”. (DORNELLES, 2007, p. 36).

Segundo Fabiana Ribeiro (2012), essa prática julgadora dos noticiários acontece nos momentos de ansiedade de publicar informações e desvia do foco de noticiar fatos. Ricardo Kotscho (2014) fala que um veículo que não segue regras, está se colocando a um nível superior e dessa forma, tem a liberdade de acusar ou fazer o que quiser. O autor completa afirmando: “[...] De vez em quando, convém lembrar que repórter não é polícia e a imprensa não é justiça [...]”. (KOTSCHO, 2014, online)

As atitudes tomadas pela imprensa e pela colunista Barbara Gancia desviaram-se do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiro, o art. 10º diz que: “A opinião manifestada em meios de informação deve ser exercida com responsabilidade”. Já o art. 12º, I, fala que o jornalista deve: “tratar com respeito todas as pessoas mencionadas nas informações que divulgar” (FENAJ, 2007, online). Eugênio Bucci acrescenta sobre o comportamento da imprensa: “Os representantes das mídias devem, sim, ser bem-educados, e muito bem-educados (em todos os sentidos)” (BUCCI, 2000, p. 11).

De acordo com Carlos Dornelles (2007), os apresentadores dos telejornais falavam em pena de morte e colocavam as declarações de familiares para deixar ainda maior a revolta da opinião publica. Christofoletti (2008), diz que não cabe ao jornalista o papel de jugar, ele fala que o profissional da imprensa deve sempre ouvir de maneira igualitária todos os lados da história, para evitar exagero dos fatos e comoção social. Segundo Luciene Tófoli (2008), a

profissão exige que o jornalista nunca deixe se corromper pelos compromissos éticos que é exigido, pois ao contrário disso nada vai estar dentro do jornalismo ético que queremos.

Luiz Ferri de Barros (2003) fala sobre as consequências geradas pela exploração de todos os fatos nas coberturas de crimes:

A reverberação sensacionalista da mídia, explorando emocionalmente todos os fatos relacionados a tal natureza de crimes, super expondo o criminoso quando capturado e prolongando artificialmente a cobertura jornalística, causa intensificação desnecessária de sofrimento às pessoas diretamente atingidas pelos crimes. (BARROS. 2003, online).

Eugênio Bucci (2000) destaca a importância da responsabilidade social e da não promoção de forma errada do poder que os jornalistas têm. O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, segundo o art. 7º, diz que o jornalista não pode: “usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime” (FENAJ, 2007, online).

Conforme Tófoli (2008), o sensacionalismo está ligado ao aumento dos fatos que acontecem. Em outras palavras, é uma espetacularização de notícias ou informações, dando uma importância muito além do que realmente ela tem. Ciro Marcondes Filho (1986) fala que sempre o lado mais chamativo do fato vai interessar o jornalista de um veículo sensacionalista, os detalhes, a história, não é do interesse deles.

De acordo com Luiz Ferri de Barros (2003), a violência é estimulada pelo sensacionalismo, segundo ele, isso acontece porque as ocorrências de criminalidade mostrados na mídia deixam os criminosos se sentindo importantes, como consequência disso, ele fala o que pode acontecer: “As reportagens sensacionalistas a respeito de crimes [...] podem eventualmente induzir novos crimes, ou novas ondas de crimes” (BARROS, 2003, online)

De acordo com a autora Maria Elisabete Antonieli (2009), ocorreram casos na imprensa brasileira em que os jornalistas não souberam colher os fatos e se precipitaram na produção de informações, portanto, acabaram contribuindo para a produção de sensacionalismo. Segundo Carlos Dornelles (2007), as cobranças por informações exclusivas contribuíram para a divulgação desse conteúdo sensacionalista, isso porque os repórteres repassavam essas informações sem nenhuma apuração, tinham acabado de recebê-las.

A fonte exclusiva das informações

Carlos Dornelles (2007) deixa claro que durante a apuração dos fatos a imprensa sempre dava destaque para sua fonte exclusiva que era a polícia. Era uma via de mão dupla, os dois se ajudavam, o espetáculo da notícia tinha uma imprensa com ânsia de publicar as informações em primeira mão e a polícia querendo solucionar o caso. Essa relação que existia entre a polícia e imprensa é marcada pelo seguinte trecho do livro: “Apareceram todos os secretários de segurança, desembargadores, chefões da polícia [...] que adoram locais cheios de jornalistas e, é claro, dezenas de repórteres ávidos por informações exclusivas da polícia” (DORNELLES, 2007, p. 51).

No livro, o autor fala que durante a apresentação dos acusados para a imprensa, a polícia por intermédio do delegado se promoveu, dizendo que não tinham mais nenhuma dúvida que os acusados eram os verdadeiros assassinos, já eles só tiveram espaço para responder perguntas tendenciosas: “Como que você ainda nega que tenha participado [...]”, “Porque você participou?”, “Você estava armado?” (DORNELLES, 2007, p. 54-55).

Outros momentos em que Carlos Dornelles (2007) mostra a parceria entre polícia e imprensa foi quando o delegado anexou no relatório de conclusão do caso várias partes de jornais com matérias e manchetes com a confissão dos acusados e a repercussão do crime. Segundo Richard Pedicini (2010), “Nas notícias publicadas nos jornais, o teor é sempre o seguinte: a acusação afirma e a defesa alega. A imprensa dá toda atenção ao acusador e quase nenhuma ao acusado [...]” (PEDICINI, 2010, apud MARTINS, 2010, online). Pedicini fala sobre como deveria ser o olhar da imprensa para a acusação em casos de crimes:

Se a imprensa olhar para a acusação com um décimo do senso crítico com que olha para o acusado, e conceder a ele um mínimo de credibilidade, as acusações sem fundamento não aconteceriam. Mas não, a prisão sempre é notícia, os argumentos da defesa, nem tanto. (PEDICINI, 2010, apud MARTINS, 2010, online).

Christofoletti (2008) diz que a polícia é fonte de informações e essas informações precisam ser conferidas para se ter certeza. Mesmo sabendo que a polícia está ligada diretamente com o combate ao crime, é preciso ser coerente com as informações de policiais, isso porque a relação deles é profissional e não pessoal. O autor complementa ainda falando que os repórteres devem saber fazer jornalismo, ou seja, consultar a veracidade das informações para poder falar sobre um fato.

O autor Carlos Dornelles (2007) mostra que a imprensa estava tão preocupada em buscar informações da polícia que nunca mostrou interesse em ter outras fontes, caso dos parentes dos presos. Eles acusaram a polícia de tortura, mas a imprensa não se interessou pelos familiares, apenas publicou o que dizia a polícia. O Código de Ética dos Jornalistas brasileiros é bem claro no art. 14º sobre o dever da imprensa antes da publicação de informações:

[...] ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, o maior número de pessoas e instituições envolvidas em uma cobertura jornalística, principalmente aquelas que são objeto de acusações não suficientemente demonstradas ou verificadas; (FENAJ, 2007, online)

A imprensa e a versão da polícia

Segundo Carlos Dornelles (2007), durante as investigações do caso, descobriu-se que nenhum dos acusados pela polícia era o verdadeiro assassino do Bar Bodega, o promotor que havia feito essa investigação paralela com a polícia, recebeu esse pedido de realização da investigação do procurador geral do ministério público após saber por intermédio de policiais militares que as testemunhas não estavam reconhecendo os acusados. A imprensa não recuou e continuava publicando informações contra os acusados que estavam presos e contra a ação tomada pelo promotor.

De acordo com o autor, após a liberação dos rapazes presos, um jornal veicula uma reportagem do promotor em que ele fala que eles foram torturados para que confessassem o crime, porém a matéria se encerra com uma fala de um dos acusados: “Eu matei eles mesmo”. Em outra reportagem, o promotor fala que a polícia não foi feliz na acusação, porém a matéria é concluída com a seguinte fala do delegado: “Tenho certeza de que foram eles” (DORNELLES, 2007, p. 145).

O promotor que tomou a ação de liberar os acusados foi muito criticado pela mídia, segundo Carlos Dornelles (2007), a imprensa publicava as falas dos familiares das vítimas dizendo que o promotor estava errado em liberar os acusados. A conduta da imprensa se omitindo do erro cometido em suas publicações fez com que eles ignorassem o art. 12º, VI, do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros:

Promover a retificação das informações que se revelem falsas ou inexatas e defender o direito de resposta às pessoas ou organizações envolvidas ou mencionadas em matérias de sua autoria ou por cuja publicação foi o responsável (FENAJ, 2007, online).

Após a prisão dos verdadeiros assassinos, Carlos Dornelles (2007) fala que tudo foi noticiado com menos alarde, os jornais falavam com a menor discrição possível do fato e diziam que a polícia agora tinha provas, além disso, após a prisão, o delegado que comandava as investigações não foi encontrado, e o promotor não foi lembrado nas reportagens. A imprensa por sua vez desaparecia com o caso do Bar Bodega, pois as manchetes não eram como antes. O

autor ainda fala que o jornalista Luís Nassif foi o único a criticar a cobertura feita pela mídia durante o caso, porém ninguém deu atenção a ele.

O autor Carlos Dornelles (2007) evidencia claramente que a imprensa não se mostrou interessada em buscar os acusados que foram mencionadas em suas reportagens como autores do crime, após ter cometido esse equívoco em suas publicações informando que eles eram os verdadeiros assassinos. O Código de Conduta da Associação Nacional de Jornais (ANJ) fala que os jornais devem: “Corrigir erros que tenham sido cometidos em suas edições” (ANJ, 1991, online).

Carlos Dornelles (2007) relata ainda que os acusados depois que foram soltos denunciaram os policias pelas torturas recebidas, no entanto o processo feito pelos acusados do crime não teve o interesse da mídia em acompanhar, o juiz do processo não considerou as acusações das vítimas e falou que eram “perigosos e com vida pregressa duvidosa” (DORNELLES, 2007, p. 178).

A morte social

O autor Chrstofoletti (2008) fala que dependendo da magnitude de um fato ocorrido, os veículos de imprensa podem gerar danos sociais, que ele classifica como a morte social. O autor dá mais detalhes falando:

Mesmo que o caso tenha sido arquivado, e os acusados inocentados, eles nunca mais puderam voltar a suas vidas normais. Mesmo que tenham entrado na justiça para buscar compensações pelos erros cometidos, suas vidas não retornaram ao que era antes, e nunca mais serão as mesmas (CHRSTOFOLETTI, 2008, p. 19).

Dornelles (2007) buscou saber o que aconteceu na vida dessas pessoas acusadas pelo crime dez anos depois. Natal, um dos acusados inocentados chegou a trabalhar em uma banca de frutas por dois dias, porém o dono da banca o demitiu alegando que sua fama poderia afastar os clientes. A Gazeta do Povo conta que o passado vivido por essas pessoas, mesmo com a provação de sua inocência, influencia na busca de emprego: “[...] estará marcado para sempre pelo estigma de ser um ex-presidiário. Com esse peso nas costas, fica difícil conseguir um emprego e a tão almejada ressocialização” (GAZETA DO POVO, 2015, online).

A Gazeta do Povo traz uma realidade vivida por acusados quando saem da prisão: “Esses fatos deixam a sociedade receosa em oferecer empregos para ex-presos, que acabam caindo mais uma vez na criminalidade” (GAZETA DO POVO, 2015, online).

Carlos Dornelles (2007) conta que Jailson Ribeiro viveu esse drama, ele era um dos acusados do crime, teve sua vida prejudicada após o caso Bodega, chegou a trabalhar em uma autoescola com seu irmão, mas teve que sair: “Os clientes ficavam falando dele e do caso

bodega, gente do comércio ao lado comentava e isso poderia prejudicar os negócios” (DORNELLES, 2007, p. 189). Jailson saiu, começou a fazer bicos como ajudante de pedreiro e também vendia panos de prato, mas mesmo assim, com pouco dinheiro voltou a ser preso por assalto.

De acordo com Dornelles (2007), Benedito, outro acusado, dez anos depois, participou de um assalto a banco juntamente com Jailson, foi seu primeiro assalto. Ele ficou quatro anos preso e após sair começou a trabalhar como catador de café. Suely, sua mulher fala que: “se não fosse o bodega, Benedito teria mais condições de enfrentar a morte da irmã e não cair na vida que levou”. (DORNELLES, 2007, p. 194)

Carlos Dornelles (2007) relata que outros acusados também tiveram suas vidas prejudicadas após o caso, alguns que tinham um emprego relativamente bom com carteira assinada, acabaram conseguindo dinheiro apenas fazendo bicos, dois foram mortos após deixarem a prisão, outros já não iam na rua a noite, tinham medo da polícia.

Considerações Finais

Após a análise deste livro, conclui-se que o comportamento da imprensa foi um fator preponderante nas informações apresentadas pela polícia. Pessoas inocentes que não tinha ligação nenhuma com o crime foram transformadas em verdadeiros assassinos para a sociedade. A atitude desesperada na cobertura do acontecimento tornou a imprensa uma “vilã”, pois não apurou os fatos em ambos os lados, favorecendo apenas a polícia que queria uma solução imediata do caso.

Além de terem usado os meios de comunicação para incitar a violência, revolta, pânico e a comoção social, percebe-se que todo esse desespero da imprensa durante as investigações, fez com que ela ultrapassasse os limites éticos estabelecidos no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros.

Portanto, apesar da Polícia está ligada diretamente com o crime, uma fonte jornalística deve ser sempre bem apurada para chegar o mais próximo possível da verdade. Diante desse caso, vale ressaltar que a fonte nunca deve ser exclusiva, pois vai privilegiar apenas um dos lados.

O jornalista deve entender o seu papel social, sendo utilizado como um meio para mostrar a veracidade dos fatos e não cometer equívocos que possam prejudicar pessoas e nem favorecer interesses como foi abordado neste artigo. Por fim, a conduta incorreta da imprensa na apuração e na divulgação das informações durante o caso, é bem resumida no art. 4º do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, que diz: “O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, razão pela qual ele deve pautar seu trabalho pela precisa apuração e pela sua correta divulgação”. (FENAJ, 2007, online)

REFERÊNCIAS

ANTONIELI, M. E. A Ética a serviço da comunicação. São Paulo: Altamira, 2009.

BARROS, L. F. O Sensacionalismo da imprensa na cobertura de crimes de natureza psicopatológica e suas consequências. 2003. Disponível em: cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/download/518/699. Acesso em: 17 de janeiro de 2017.

BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Schwarcz Ltda, 2006. CHRSTOFOLETTI, Rogério. Ética no Jornalismo. São Paulo: Contexto, 2008.

DEBORD, Guy. A sociedade do Espetáculo. 2003. Projeto Periferia. Disponível em: . Acesso em: 17 de janeiro de 2017.

DORNELLES, Carlos. Bar bodega: um crime de Imprensa. São Paulo: Globo S.A, 2007.

FEDERAÇÃO NACIONAL DOS JORNALISTAS. Código de ética dos jornalistas brasileiros. Vitória, 2007. Disponível em: .

Acesso em: 18 de janeiro de 2017.

GAZETA DO POVO. Ex-Detentos, realidade e preconceito. 2010. Disponível em: 13f98lvevqviaizh9wji58jta. Acesso em: 25 de janeiro de 2017

KOTSCHO, Ricardo. Artigo: Repórter não é polícia; imprensa não é justiça. 2014. Disponível em: . Acesso em: 24 de janeiro de 2017

TÓFOLI, Luciene. Ética no Jornalismo. Petrópolis: Vozes, 2008.

TÓFOLI, Luciene. Sensacionalismo ou Ética? Eis a questão. 2000. Disponível em: . Acesso em: 19 de janeiro de 2017.

MARTINS, Geiza. Para a imprensa, acusado é culpado. 2010. Disponível em: acusa#author. Acesso em: 17 de janeiro de 2017.

RIBEIRO, Fabiana. A Escola Base, O Bar Bodega, Eloá e o Crime de Imprensa. 2012. Disponível em: eloa-e-o-crime-de-imprensa/94609/. Acesso em: 11 de jan. 2017.

SANTOS, R.D. Jornalismo policial sem violação dos direitos humanos. 2015. Disponível em: policial-sem-violacao-dos-direitos-humanos/. Acesso em: 25 de janeiro de 2017

XORNALISTA. Código de Conduta da Associação Nacional de Jornais. Disponível em: 4d3a19c0a-codigo-conduta-associacao-nacional-jornais.pdf.

Acesso em: 27 de janeiro de 2017.

PREMISSAS ÉTICAS NO JORNALISMO E A FUNÇÃO SOCIAL DA IMPRENSA: UM ESTUDO SOBRE A ATUAÇÃO DA MÍDIA NO LIVRO “BAR BODEGA”

Alyne Brandão Alves4 Edinauro Braga Rodrigues5

Resumo

Este trabalho científico consiste na análise da obra Bar Bodega: Um crime de imprensa de Carlos Dorneles, que visou em seu conteúdo à atuação da imprensa e as falhas éticas cometidas pelos veículos de comunicação que acompanharam o desencadear de fatos após um crime de latrocínio ocorrido no estado de São Paulo no ano de 1996, e teve como vítimas dois jovens de classe média alta. Mas o destaque principal é quanto à prisão e condenação midiática e social de nove jovens indiciados injustamente, sem possuir qualquer relação com o caso. Este estudo procurou apresentar algumas considerações sobre a obra como, a relação do jornalismo com fontes oficiais, o papel que a imprensa exerceu como executora da justiça e o como deixou de lado a função social que deveria exercer. Para fundamentar a análise foram utilizados autores como Christofoletti (2008), Tófoli (2008), Bucci (2000), e Karam (1997).

Palavras-chave: Ética; jornalismo; Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros; Bar Bodega.

O presente artigo constitui-se da análise da obra não ficcional de Carlos Dorneles, Bar Bodega: um crime de imprensa (2007), que aborda o contexto do caso de larga repercussão nacional ocorrido no estado de São Paulo, no bairro de Moema, na madrugada de 10 de agosto de 1996 quando cinco assaltantes atacaram um famoso bar da zona sul e assassinaram dois jovens de classe média alta.

Um caso que provocou grande comoção nacional, desencadeando uma sequência de fatos que acabaram atingindo tragicamente a vida de muitas pessoas, além de suscitar um polêmico debate sobre a ética no jornalismo brasileiro.

Bar Bodega, publicado em 2007, obra dividida em duas partes, “O primeiro poder” e “Dez anos depois”, retoma o caso em questão dando ênfase a cobertura realizada pela imprensa e a relação com a Polícia Civil do Estado de São Paulo e outras instâncias da justiça que atuaram no caso. Destaca também como a pressão da opinião pública orquestrada pela imprensa, contribuiu para o cometimento de graves falhas éticas como provocar a condenação social e denigração da imagem de jovens cidadãos que eram inocentes do crime.

4 Estudante de Graduação do 4° semestre do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre (UFAC).

5 Estudante de Graduação do 4° semestre do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre (UFAC).

A história relatada é fruto da investigação jornalística de Carlos Dorneles que reuniu informações que foram além daquelas veiculadas na imprensa na época do crime. O autor coloca a disposição do leitor depoimentos, cópias integrais de alguns documentos proferidos por instâncias públicas da área da justiça e segurança, recortes de jornais, transcrições de falas de jornalistas, como também das vítimas e outros elementos que contribuem para elucidar como se deu o desenrolar dos fatos.

O livro se inicia pelo relato de como o crime ocorreu. A conduta brutal e inescrupulosa dos cinco assaltantes que foram responsáveis pelas mortes de dois jovens, o dentista de 26 anos José Renato Tahan e da estudante de 23 anos Adriana Ciola, em um dos bares mais badalados da cidade de São Paulo.

O estabelecimento era propriedade de atores conhecidos da Rede Globo de televisão Luiz Gustavo e os irmãos Cássio e Tato Gabus Mendes, o que tornou o caso ainda mais evidente na mídia, mais também pelo fato de tratar-se de uma região onde crimes dessa natureza eram incomuns, além de atingir diretamente a classe média a alta da sociedade paulistana.

Sob uma forte influência da mídia e da sociedade que cobrava da polícia a rápida prisão dos assassinos e o desfecho do caso, a Polícia Civil de São Paulo responsável pela investigação realizou a prisão de nove jovens, que coagidos sob tortura confessaram a participação no crime. Daí em diante, uma sucessão de acontecimentos apresentados na obra leva ao debate de como a ação da imprensa contribui negativamente para o esclarecimento do crime e quem eram os verdadeiros culpados.

Infelizmente, ainda em algumas instituições e profissionais de jornalismo a falta de cautela na divulgação de notícias que não são apuradas com a devida atenção, apresentando ao público informações superficiais e ou manipuladas de forma antiética e não aprofundada. Muitas vezes, devido à pressão pela urgência do “furo jornalístico” na corrida pela divulgação antes da concorrência, não dedicam o tempo necessário para a produção da “pauta”, o que pode levar a falhas graves, que podem ser irreversíveis aos que são veiculados de forma negativa nos meios de comunicação.

Carlos Dorneles vai de encontro a essa prática ao produzir a obra Bar Bodega: um crime de imprensa (2007), com acuidade na apuração de informações, ouvindo fontes de outras versões da história, analisando documentos, saindo a campo, entre outras atitudes que deveriam ser prática comum a todos os jornalistas, demonstrando nada mais que comportamentos éticos necessários à informação objetiva e creditável, possibilitando ao leitor analisar outras conclusões a respeito do caso que ocupou os

principais meios de comunicação do país, mas que cometeram o grave erro de prejulgar e condenar pessoas inocentes.

A investigação de Dorneles apresentada por meio da obra em análise descreve os jovens acusados injustamente e como viviam antes do ocorrido. Como ocorreram os fatos que culminaram na prisão de pessoas que não possuem qualquer relação com o crime. Cléverson Almeida, Marcelo Nunes, Marcelo da Silva, Benedito dos Santos, Jailson Ribeiro, Luciano Francisco, Natal Francisco, Valmir da Silva e Valmir Vieira foram indiciados e condenados socialmente pela imprensa e pela opinião pública, mesmo que depois tenham sido inocentados das acusações sofreram os impactos negativos de forma pessoal, psicológica, social, profissional, o que provocou danos irreversíveis as vidas destes cidadãos e de suas famílias.

Embora o personagem Cléverson, menor de idade, tivesse envolvimento com outros crimes, tendo sua biografia apresentada na obra de maneira detalhada, não possuía qualquer envolvimento com o caso em questão. Também Marcelo Nunes por ter envolvimento com roubo, mas também foi vítima de acusações infundadas de participação no crime do Bar Bodega. Os outros acusados eram jovens trabalhadores, vendedores, pedreiros, mecânicos, feirantes. A única culpa que carregavam era de serem pobres, sem estudo ou pouco, e não possuir quem os defendesse.

A cobertura da imprensa foi evidenciada através dos principais jornais do país como o Jornal Nacional, da TV Globo, Jornal da Band, TV bandeirantes, Jornal da Record, TV Record, são alguns dos meios de comunicação relatados no livro que repercutiram a notícia e passaram a evidenciar outros casos transmitindo ao público uma impressão de caos na segurança e retrataram “uma cidade que estaria vivendo momentos de pânico” (DORNELES, 2007, p. 35).

Programas sensacionalistas que exploram a notícia e relacionaram a outras que não possuíam nenhuma relação direta com o caso contribuíram para criar um clima de insegurança na população, “entrevistam familiares de vítimas que pedem pena de morte, conversam com cidadãos comuns que dizem apavorados e, principalmente, abrem espaço para defensores do olho por olho” (DORNELES, 2007, p. 36).

Um importante critério adotado pela imprensa neste caso foi tomar a polícia como única fonte de todas as informações, o que não é uma exclusividade desta situação específica. Segundo autores como Christofoletti (2008), Karam (1997), entre outros, está relação da imprensa com o Estado, ou mais especificamente com “fontes oficiais”,

pode comprometer o relato dos acontecimentos, pois retrata apenas uma versão dos fatos.

Dorneles (2007) conclui: “Não era nada surpreendente que o delegado se baseasse tanto na imprensa. Os dois lados se amparavam” (DORNELES, 2007, p. 120). Com o desdobrar dos acontecimentos, a imprensa servia como afirmação dos relatos da polícia e a por sua vez a polícia tomava como verdade aquilo que era retratado pelos meios de comunicação.

Lage (2004) afirma que existem alguns problemas na utilização de “fontes oficiais” como únicas origens de informações a imprensa, cita:

Fontes oficiais, como comprovam autores de todas as épocas, falseiam a realidade. Mentem para preservar interesses estratégicos e políticas duvidosas, para beneficiar grupos dominantes, por corporativismo, militância, em função de lutas internas pelo poder... Comumente - e isso não é considerado aético -, sonegam informações de que efetivamente dispõem (os segredos de Estado, os dados confidenciais ou reservados, categoria que costuma expandir-se além do justificável), destacam aspectos da realidade que convêm às instituições... (LAGE, 2004, p. 09).

No caso Bodega, a imprensa tomou como única fonte dos fatos a polícia, instituição oficial, e não ouviram as várias partes envolvidas no caso estabelecendo uma relação de “codepêndencia”, entre “imprensa-polícia”, o que levou a condenação social dos investigados e indiciados como sendo os criminosos procurados pelos assassinatos, tomando evidências como provas e condenando publicamente, fazendo um papel de justiça, antecipando e se precipitando em julgamentos, o que não condiz com a ética que deve ser aplicada no jornalismo.

Christofoletti (2008), em seu livro Ética no Jornalismo, fala sobre a responsabilidade ética do jornalista em suas escolhas e como transmite as informações ao público, afirma que “... as implicações de uma escolha ética podem intervir materialmente sobre a vida de pessoas e grupos sociais” (CHRISTOFOLETTI, 2008, p. 18). O autor retrata a “morte social” que sofre um indivíduo que tem sua imagem exposta negativamente pela mídia, e mesmo que os acusados sejam inocentados os danos sociais são praticamente irreversíveis.

A definição dada por Christofoletti (2008) ao analisar o caso da “Escola Base”, outro erro da imprensa que foi irreversível e prejudicou a vida de muitas pessoas inocentes, também pode ser oportunamente aplicável ao caso Bodega, ele afirma:

Jornalistas e meios de comunicação erraram em diversos momentos dessa história: aceitaram a versão policial como definitiva... apresentaram um noticiário desequilibrado, atribuindo mais peso a acusação; abusaram da exploração do grotesco, de forma apelativa, e agiram num autêntico espírito de manada, correndo como baratas tontas atrás de quaisquer indícios e não se permitindo pensar diferente; em fim, desprezaram as regras básicas da profissão. (CHRISTOFOLETTI, 2008, p. 62).

Um dos mais relevantes princípios éticos do jornalismo constante no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, em seu artigo 4° é “O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, razão pela qual ele deve pautar seu trabalho pela precisa apuração e pela correta divulgação” (CEJB6, 2007, p.5).

Segundo Dorneles (2007), podemos identificar várias incoerências éticas na análise deste caso em questão, também com relação à apuração dos fatos. Muitos jornalistas que se aglomeravam em frente à delegacia no dia em que a polícia indiciou os primeiros acusados de terem participado do crime “As conversas entre os jornalistas, em frente à delegacia, eram baseadas e contatos que um e outro teriam tido com alguma fonte quente” (DORNELES, 2007, p. 51), relatou também “A imprensa, tão ciosa no estabelecimento de fontes na polícia, nunca se preocupou em estabelecer fontes do outro lado” (DORNELES, 2007, p. 108).

Não havia uma averiguação precisa e a polícia era a única a dar versão dos acontecimentos que eram transmitidos pelos meios de comunicação, preferencialmente de forma imediata, para cumprir a acirrada luta pela exclusividade que gera outro fator- problema para a aplicação da ética no jornalismo.

Christofoletti (2008) fala sobre este problema a ser enfrentado para uma melhor atividade jornalística, “Alta exigência, pressão constante e grande concorrência são ingredientes que, somados, podem resultar num certo afrouxamento moral e consequentes atitudes que contrariem valores éticos”. (CHRISTOFOLETTI, 2008, p. 44).

Precipitados em fornecer informações em “primeira mão”, muitos meios de comunicação simplesmente acusam primeiro e talvez investiguem depois, o que leva a falta de credibilidade de determinados veículos de mídia, além do julgamento antecipado de pessoas que ainda não foram condenadas pela justiça.

A maneira como alguns jornais noticiaram a prisão dos suspeitos demonstra esta discordância ética, como relata Dorneles (2007) ao transcrever falas de jornalistas e

6 Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Fenaj, 2007.

manchetes de alguns jornais que divulgaram o caso na época, “O Estado de S. Paulo: Assassinos de jovens do Bar Bodega são presos” (DORNELES, 2008, p. 36) e também o tratamento sub-humano dado pela jornalista Bárbara Gancia, “A colunista Bárbara Gancia escreve que os assaltantes do Bodega são animais que mataram por esporte”. (DORNELES, 2008, p. 59).

No artigo 6° do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, em seu inciso VIII, “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e a imagem do cidadão” (CEJB, 2007, p. 6) podemos perceber claramente a postura antiética dos meios de comunicação que retrataram o caso na época.

A forma como foram expostas as imagens do acusados e a descrição pré- julgadora de veículos de comunicação possibilitaram a degradação da imagem de pessoas que mesmo depois de inocentadas sofreram graves consequências que não puderam ser remediadas, além de não ser observada neste caso a adequada linguagem tão necessária ao bom jornalismo como menciona Christofoletti (2008), “Um primeiro cuidado a ser tomado é com a linguagem. Oferecer notícias claras e acessíveis é uma condição básica” (CHRISTOFOLETTI, 2008, p. 50).

São alguns exemplos dados pelo autor que demonstram a forma como a imprensa tratou os suspeitos, que mesmo sendo absolvidos e postos em liberdade não sendo acusados por este crime, já haviam sido julgados e condenados pela mídia e pela opinião pública, que tem forte influência na construção dos fatos pelos meios de comunicação, a qual o público presume credibilidade.

Tófoli (2008) alerta sobre a concepção de verdade para alguns meios jornalísticos, cita: “A verdade no jornalismo é relativa, condicionada, mitificada e útil aos interesses dos veículos e dos próprios profissionais... a notícia, como todos os documentos públicos, é uma realidade construída possuidora da sua própria validade interna” (TÓFOLI, 2008, p. 38).

Sendo assim, não podemos tomar os acontecimentos relatados pela mídia como sendo relatos exatos, mas sim interpretações da realidade, que dependendo da seriedade do veículo de comunicação a qual se vincula determinada notícia, pode ou não está mais próxima de relatar os acontecimentos como realmente ocorreram, o que não deixa também de ser uma versão dos fatos.

O grande problema de se encarar a verdade por este viés é que para o público, em sua maioria, não possuindo um senso crítico mais elaborado toma como verdade dos fatos tais quais são apresentados por telejornais, rádios, revistas, jornais impressos,

internet e outros meios de transmissão de informações que na realidade são narrativas que representam acontecimentos, são também construções discursivas a partir de pontos de vista.

Outro ponto a ser destacado que se apresenta na obra é a conduta da Polícia Civil de São Paulo em práticas de tortura e abuso de autoridade sobre pessoas de baixa condição financeira, negros, de bairros periféricos, como também a postura da impressa com relação a estes acontecimentos.

Dorneles (2007) apresenta os depoimentos dos jovens que foram acusados e presos injustamente falando sobre tortura. O personagem Valmir, um dos acusados injustamente falou das torturas: “Disse que apanhou duas vezes. Primeiro no 37° Distrito, onde foi espancado por vários policiais. E, depois, no 15° Distrito, foi torturado por dois policiais que os outros chamavam de Marcelo e Bahia” (DORNELES, 2007, p. 112).

Somente depois de muito tempo do desenrolar dos fatos e depois de inocentados, os jovens acusados tiveram a chance de prestar ao jornalista seus depoimentos, embora na época do ocorrido já tivessem denunciado as torturas as quais foram submetidos, não obtiveram a atenção da imprensa.

Dorneles (2007) afirma “O processo tinha virado uma bagunça, mas a imprensa não tinha a menor idéia do que se passava. Nem interesse em saber” (DORNELES, 2007, p. 110). Esta afirmação nos faz refletir como existe o tratamento dado de forma diferenciado a pessoas diferenciadas por suas condições sociais, raça, gênero, etc., pelos meios de comunicação.

Por muitas vezes, temos vistos criminosos políticos tratados por “doutor, “senhor”, por encontrar-se em uma condição social mais elevada ou ocupar um lugar de prestígio social. O contrário do que vemos vinculado à mídia em alguns meios de comunicação, e ainda de forma mais “escrachada” em programas sensacionalistas, que tratam pobres, negros, dentre outras especificidades, como “vagabundos”, “marginais”, “bandidos”, cidadãos que não foram sequer julgados pela justiça, que se presume a instância do poder responsável para tal fim.

Muitas eram as incoerências que cercavam o caso, tanto que o Ministério Público através do promotor Eduardo Araújo da Silva negou-se a acusar os jovens indiciados, pois constatou irregulares nos indícios e declarou não haver provas suficientes, “Além de revelarem contradições inconciliáveis entre si... tais versões afiguram-se, sobretudo, divergentes da verdadeira dinâmica do evento...” (DORNELES,

2007, p. 126). O promotor solicitou a libertação dos acusados e pediu a investigação da conduta dos policiais acusados de tortura.

Como era de se prever, esta atitude gerou insatisfação social, pois a imprensa permanecia na acusação e condenação dos indiciados, ignorando as denúncias de tortura e transmitido uma imagem negativa do promotor: “Nenhum órgão de imprensa investigou as denúncias. Nem os acusados foram procurados, nem os acusadores, nem se procurou qualquer tipo de informação que ligasse os policiais à prática de torturas” (DORNELES, 2007, p. 165).

Nesse fato se afigura mais uma falha ética na cobertura da imprensa, pois a incoerência não repousa somente sobre a inverdade das notícias ou manipulação destas, está também sobre a omissão de informações que podem ser de interesse público, mas que não era conveniente sua divulgação na imprensa tanto para os veículos de comunicação quanto para a polícia a quem a mídia amparava, pois já haviam adotado uma postura condenatória não podendo simplesmente defender aqueles que já haviam apresentado de forma enfática como criminosos, “... a imprensa optou pelo silêncio, como se não tivesse existido” (DORNELES, 2007, p. 166).

Bucci (2000) aponta uma das problemáticas na imprensa servir somente os interesses do “poder”, neste caso o da polícia, pois se estabeleceu uma relação “fonte- jornalista” em que a imprensa estava a serviço do governo, não apresentando ao público versões adversas ou complementares, ou outra fonte qualquer, “falar em jornalismo é falar em vigilância do poder e, ao mesmo tempo, em prestação de informações relevantes para o público, segundo os direitos e necessidades do público” (BUCCI, 2000, p. 18).

O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (2007) prevê em seu art. 1, incisos I e II que os jornalistas não devem divulgar informações visando vantagens econômicas ou transmitir informações de caráter sensacionalista, especialmente quando se tratando de crimes.

Pelo âmbito da responsabilidade social que repousa sobre o “quarto poder”, a imprensa, os veículos de comunicação devem pautar seus atos sobre a idoneidade e ética, não agindo simplesmente para atender as necessidades mercadológicas da concorrência, do lucro e audiência, pois isto pode comprometer a credibilidade dada a determinados veículos, não sendo prática aceitável quando se quer diferir jornalismo sério de sensacionalismo, como também fere princípios éticos para o melhor exercício da profissão jornalística.

No caso Bodega era evidente a parcialidade da imprensa a favor de grupos dominantes da sociedade, pois mesmo depois de presos os verdadeiros culpados do crime que foram: Sandro Márcio, Silvanildo de Oliveira, Francisco Ferreira, Sebastião Alves e Zeli Salete, o caso deixava de ser destaque na mídia e não ouve nenhum tipo de retração pelas injustas acusações apresentadas contra os jovens que foram indiciados inicialmente: “A prisão dos verdadeiros culpados era um atestado revelador demais do tipo de comportamento que a imprensa adota em situações como essa, quando os acusados são pobres, sem assistência jurídica, sem nenhuma possibilidade de defesa” (DORNELES, 2007, pp. 170 e 172).

O juiz José Ernesto de Mattos Lourenço, responsável pelo caso do Bar Bodega, emitiu sua opinião em decisão final na condenação dos verdadeiros culpados, não deixando de fora seu posicionamento quanto à atitude da polícia considerada por ele como “repugnante, vergonhosa, covarde e revoltante” (DORNELES, 2007, p. 173).

Mas, o que realmente se destacou no parecer final foi sua visão quanto à atitude da imprensa “desvairada”, que no afã de noticiar sem dar a devida atenção a princípios éticos vitimou inocentes. Uma afirmação proferida em sentença pelo juiz responsável pelo caso nos remete a pensar em como a imprensa contribui de forma contundente com a “sociedade do espetáculo” como já preconizava Guy Debord (2003), o juiz relatou: “De há muito tempo a imprensa afastou-se da função de noticiar o fato e assumiu ares de julgadora, na ânsia desesperada de noticiar escândalos e explorar a miséria humana, sem se dar conta dos seus limites” (DORNELES, 2007, p. 174).

Nem sempre a justiça atende aos menos favorecidos, pois quanto a investigação dos crimes de tortura cometidos por policiais civis no caso Bodega, não houve cobertura da imprensa com destaque que foi dado quando pessoas da classe média alta foram afetadas. Depois de um ano, com a corriqueira morosidade da justiça quando não existe pressão da opinião pública nem da mídia,foi proferida a senteça pelo juiz Tércio Pires que “rejeitou a denúncia contra os policiais acusados e mandou arquivá-las por falta de fundamento. Disse que não havia provas nem testemunhas das torturas” (DORNELES, 2007, p. 178).

O preconceito com os nove jovens que foram acusados injustamente era evidente não só pelos meios de comunicação, mas também por instâncias da justiça, pela forma como foram tratados e considerados. “Marginais, desocupados, delinquentes” foram os termos usados pelo procurador de Justiça do Ministério Público, Artur Pagliuse Gonzaga, quando da negativa ao recurso feito a senteça do juiz acusando os nove jovens

de serem oportunitas e que desejavam viangar-se da polícia e atrair a atenção da imprensa.

Infelizmente, é inevitável falar como a questão do preconceito racial e social é um fator a ser considerado neste caso. Os relatos das testemunhas do assalto ocorrido no Bodega geram dúvidas veementes quanto a prisão dos jovens: “Ao contrário do que a imprensa e a polícia diziam, os funcionários do bar não estavam conseguindo reconhecer os acusados” (DORNELES, 2007, p. 79).

Os jovens que foram indiciados, de bairros periféricos, classe baixa, baixo grau de escolaridade e negros não possuiam características que fossem condizentes com as dadas pelas testemunhas:

Todas as testemunhas confirmaram que os assaltantes eram mais velhos, com idade aproximada entre 28, e 33 ou 34 anos, com traços nordestinos. Havia pessoas de cor branca, sendo que, num primeiro momento, só foram presos indiciados de cor parda e negra. Essas testemunhas são contundentes. (DORNELES, 2007, p. 139,140).

O racismo institucional se materializa na prática discriminatória da polícia civil no caso Bodega, como também da imprensa, pois de acordo com o conceito apresentado pela primeira vez pelos ativistas do movimento negro Stokely Carmichael e Charles Hamilton em 1967, e reescrito pelo Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI) que passou a existir no Brasil no ano de 2005, a prisão dos jovens está diretamente ligada ao seguinte conceito,

O fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações (PCRI, 2006, p.22).

A forma como os indivíduos acusados injustamente neste caso foram tratados, não é de maneira alguma a postura correta e acertada queadvir das instituições que representam o poder público que deveriam garantir a segurança e os direitos dos cidadãos independete de cor, sexo, classe social.

Os relatos de tortura já deixam isso claro, mas também a maneira como as famílias foram tratadas e sofreram profundos traumas pelo ocorrido. Um dos acusados e depois inocentado, Natal, relatou em entrevista “Só porque a gente mora na periferia

ficam achando que todo mundo é matador, isso e aquilo” (DORNELES, 2007, p. 132), e o tratamento discriminatório dado pelo delegado responsável pelo caso. Segundo Luciano, um dos acusados injustamente, o delegado João Lopes que atuou no caso, deixava claro em suas falas que “não gostava de preto” (DORNELES, 2007, p. 136),isto foi evidenciado em reportagem da Folha de São Paulo de 25 de outubro de 1996.

Além disso, a imprensa quando não agiu equivocadamente omitiu-se, não dando atenção ou crédito para as denúncias vindas dos acusados ou de suas famílias. Só foi possível, ainda que de forma limitada, ouvir o outro lado da história, ou pelos menos uma interpretação de outra versão, o lado daqueles que foram injustiçados e condenados pelas práticas antiéticas da impresa, depois que Carlos Dorneles procurou ouvir relatos das vítimas e dos familias que também acabaram por ser vitimados pela condenação fomentada pela imprensa.

Considerações finais

Ao concluir esta análise, não fazendo uso da pretensão em dizer que aqui se esgotam as possibilidades de abordagem, observamos apenas algumas questões e como a imprensa cometeu desvios éticos na representação midiática do caso Bodega.

Portanto, através dos pontos sugeridos procuramos evidenciar a partir da obra algumas das muitas falhas cometidas pelos meios de comunicação, ao incutir uma visão condenatória e preconceituosa sobre cidadãos, que mesmo indiciados não haviam ainda passado pelo crivo da justiça a quem compete o julgamento.

E mesmo depois de inocentados pela justiça, permaneceram condenados pela imprensa, não tiveram suas imagens reconstituídas de forma positiva pelos mesmos meios de comunicação, pois não houve retratação. E mesmo que houvesse, o alcance negativo foi tão danoso que suas consequências foram irreversíveis.

Os atos precipitados de alguns veículos de comunicação, sensacionalismo, uso da polícia como única fonte de informações foram algumas práticas incoerentes com a ética jornalista prevista em código legal, como também de posturas morais básicas da sociedade,tratando a notícia como um objeto puramente comercial, o que nos leva a questionar assim como Dorneles (2007) “o que interessa saber é de que lado têm permanecido as emissoras de televisão: se ficam do lado do direito à informação ou do lado das conveniências comerciais e políticas que exigem sacrifício da ética” (DORNELES, 2007, p. 34).

O que infelizmente vemos com frequência são empresas jornalísticas que optam por fazer da notícia uma mercadoria agindo de forma “condenável” e não atendendo a princípios éticos necessários para o bom exercício da atividade jornalística, além de atingir e causar danos psicológicos, morais, sociais, materiais àqueles que foram injustiçados.

O jornalismo tem um papel social a ser cumprindo, de atender os interesses da sociedade, para o bem dela, isso inclui o tratamento ético dos cidadãos. Mas, através do livro Bar Bodega: um crime de imprensa, podemos perceber como a imprensa também pode ser uma ferramenta nociva, destrutiva as vidas de alguns. Mesmo havendo princípios éticos balizadores da prática jornalística, ainda somos testemunhas de práticas condenáveis e que põem em jogo a visão positiva que deveria haver sobre o jornalismo que deve ser constituído por convicção e isenção em benefício da sociedade.

Referências Bibliográficas

BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

CHRISTOFOLETTI, Rogério. Ética na Comunicação. São Paulo: Contexto, 2008. CÓDIGO DE ÉTICA DOS JORNALISTAS BRASILEIROS. Fenaj, 2007. Disponível

em: . Acessado em: 04 jun. 2017.

CRI. Articulação para o Combate ao Racismo Institucional. Identificação e abordagem do racismo institucional. Brasília: CRI, 2006.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. [S.I.]: Virtual Books, 2003. Disponível: em . Acessado em 06 jan. 2017.

DORNELES, Carlos. Bar Bodega: um crime de imprensa. São Paulo. Globo, 2007.

GELEDÉS, Instituto da Mulher Negra. Guia de enfrentamento do racismo institucional. Fundo para a Igualdade de Gênero da ONU Mulheres. Disponível em: . Acessado em: 09 jan. 2017.

KARAM, F. J. Jornalismo, ética e liberdade. São Paulo: Summus editorial, 1997.

LAGE, Nilson. Relacionamento do repórter com as fontes: procedimentos e teoria. Disponível em: . Acessado em: 03 jan. 2017.

TÓFOLI, Luciene. Ética no Jornalismo. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

REPRESENTAÇÃO E IMAGINÁRIO NA AMAZÔNIA: UM ESTUDO SOBRE

O JORNALISMO DO G1 ACRE7

Karolini de Oliveira8

RESUMO

Este trabalho teve por objetivo analisar como a região amazônica, principalmente, a acreana, é representada nas notícias publicadas pelo site jornalístico G1/Acre. Sabe-se que historicamente, a região da Amazônia brasileira é marcada por estereótipos que caracterizam o lugar como distante, identificado pela dualidade inferno verde e paraíso tropical, conhecida pela relação entre o ser humano, a fauna e a flora. A partir dessa perspectiva achou-se necessário compreender e discutir como esses conceitos são abordados pelo jornalismo do G1/Acre. Dessa forma, foram analisadas dez matérias publicadas entre os anos de 2013 e 2014. Autores como Priscila Freire, Durval Muniz de Albuquerque Júnior e Ana Pizarro foram utilizados como fundamentação bibliográfica.

Palavras-chave: Representação; Imaginário; Amazônia; G1/Acre.

Durante esta pesquisa buscou-se compreender como se dá a construção discursiva sobre o estado do Acre no site G1/Acre, e se esse discurso reforça antigos preconceitos que tratam a região como atrasada em relação às demais regiões do país. O site G1/Acre é hospedado no Portal de Notícias do G1 nacional, no . Todos ligados ao Grupo Globo. O veículo disponibiliza o conteúdo de jornalismo das diversas empresas do Grupo – jornais televisivos, rádio, revistas, impressos e online, além de produzir material próprio.

Para a presente análise foram coletadas 10 matérias publicadas pelo G1/Acre entre 2013 (ano de lançamento do site) e 2014. Os textos de 2013 são: Doutor Raiz usa conhecimentos indígenas para cura de doenças, publicada em 28 de abril; Artesão faz submarino de cupuaçu inspirado em música dos Beatles, publicada em 1º de agosto; Monstros da Amazônia decoram jardim de casa de artesão no Acre, publicada em

25 de setembro; No AC, chargista investe em filmes de animação sobre lendas

7 Este trabalho faz parte do projeto de pesquisa Imaginário na Amazônia: um estudo sobre as representações produzidas pelo jornalismo do G1/AC‖, coordenado pela Prof. Dr. Francielle Maria Modesto Mendes, aprovado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Acre (Fapac) por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

8 Acadêmica do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da Universidade Federal do Acre – UFAC.

amazônicas, publicada em 10 de novembro e; Mulher em trabalho de parto é transportada em rede no Acre, publicada em 16 de dezembro.

Os textos de 2014 são: “Fotógrafo flagra sucuri gigante em seringal no interior do Acre”, publicada em 30 de janeiro; “Jovem que fez vídeo satirizando o AC diz que não esperava sucesso”, publicada em 31 de janeiro; “Isolado em reserva no AC diz não trocar paraíso pelo inferno da cidade”, publicado em 14 de fevereiro; “Carne vendida no interior do AC é transportada em carroça”, publicada em 1º de março; e “Acre tem menor nível de progresso social da Amazônia Legal, diz Imazon”, publicada em 26 de agosto.

Espera-se, com este trabalho, contribuir para o debate a respeito das questões de imaginário e representações sobre a região, principalmente no estado do Acre. Autores como Priscila Freire, Durval Muniz de Albuquerque Júnior e Ana Pizarro foram utilizados como fundamentação bibliográfica.

Amazônia, imaginário, representação

A região amazônica é conhecida pelas lendas que habitam o imaginário das pessoas. Curupira, Mapinguari, Mãe da Mata e Boto cor de rosa são alguns desses personagens que vivem, inclusive, nas histórias infantis (ALENCAR, 2013, online). Esse é o primeiro parágrafo da matéria “No AC, chargista investe em filmes de animação sobre lendas amazônicas”, publicada pelo G1/AC em novembro de 2013. Um exemplo de como a região amazônica é representada por personagens que vivem na consciência coletiva.

Sabe-se da presença de discursos preconceituosos em relação à Amazônia e seus moradores. São pré-conceitos originados, principalmente, no período da colonização, registrados pelos primeiros cronistas de viagem europeus que chegaram à região no século XVI.

Ana Pizarro (2012) e João de Jesus Paes Loureiro (1995) narram esses períodos de colonização da região, relacionando-os com a implementação da cultura europeia nas demais regiões do país, desde quando o rio Amazonas recebeu esse nome a partir da mitologia grega das Amazonas – mulheres guerreiras com apenas um seio por causa da prática de apoiar arco no local onde deveria haver outro mamilo —, passando pela busca do Eldorado, pelo inferno de dificuldades encontradas pelos navegantes, por fatores econômicos nos diferentes estados, até as conclusões de um grande tesouro a ser explorado por eles, em detrimento da ―incapacidade‖ do povo morador da floresta de fazê-lo.

Priscila Freire em Discursos sobre a Amazônia na mídia também ressalta que muitos dos escritos conhecidos sobre a Amazônia sejam representativos mais da própria cultura europeia do que da realidade amazônica (FREIRE, 2015, p.73). Ou seja, muito do que se imagina sobre a Amazônia faz parte de uma construção discursiva criada e organizada pelo outro, o estrangeiro vindo do Velho Continente.

Diante da implementação dessa cultura europeia, e também de conveniência econômica aplicada, principalmente, nos grandes centros como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia, Loureiro (1995) fala que houve um distanciamento de interesses em relação à Amazônia e sua colonização, e essa “distância no espaço passou a ser entendida [também] como distância no tempo” (LOUREIRO, 1995, p.30). Em suma, as manifestações culturais ocorridas fora desses grandes centros, eram tomadas como de folclore, primitivas, ainda que fossem manifestações atuais típicas da cultura popular. Não só as manifestações culturais religiosas mais notadas em si, mas as formas de trabalho e de vida em geral entraram nesse aspecto arcaico, por assim dizer, na visão daquele que se considerava como superior, mais moderno, mais evoluído.

Assim, com os interesses voltados para os grandes centros, as dificuldades de exploração encontradas pelos europeus no novo território e o curto período de sucesso da exploração da borracha na região, Loureiro (1995) afirma que uma situação de isolamento se instaurava e esse isolamento que recobria a Amazônia com o manto de mistério, distância e intemporalidade, que “a impedia de intercambiar seus bens culturais, contribuiu para que se acentuasse sobre ela uma visão folclorizante e primitivista” (LOUREIRO, 1995, p.30).

Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2007) ao falar sobre a origem dos pré- conceitos/estereótipos sobre um lugar, complementando o pensamento de Loureiro (1995), relata que aqueles sentimentos de superioridade em detrimento daquele que é estranho, que possui uma cultura diferente, será caracterizado/descrito com uma definição breve e, geralmente, definitiva. E são estas definições prévias, definições ou descrições que não advêm do conhecimento do outro, “mas que nascem da hostilidade, da distância ou do desconhecimento do outro, que chamamos de preconceito” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p.10).

Contudo, apesar da visão estereotipada e, por vezes, preconceituosa existente sobre a Amazônia e sobre aqueles que lá vivem, “as atuais pesquisas revelam que a Amazônia não é apenas indígena, que os sujeitos sociais são múltiplos e que seu

imaginário revela a turbulenta história da área” (PIZARRO, 2012, p.27-28). Sendo assim, ao tratar-se de uma cultura amazônica, pode-se dizer, de acordo com o pensamento de Loureiro que:

Ela será expressão da sociedade que constitui a Amazônia contemporânea à história dessa sociedade e contemporânea à da ocidental. Uma cultura dinâmica, original e criativa, que revela, que interpreta e cria sua realidade. Uma cultura que, através do imaginário, situa o homem numa grandeza proporcional e ultrapassadora da natureza que o circunda (LOUREIRO, 1995, p.30).

Roger Chartier (2002) ao falar de representação explica que a representação, é como mostrar/dar a ver algo ausente, e também como a “exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou alguém” (CHARTIER, 2002, p. 20). Ele escreve que a representação é uma ferramenta que faz ver, faz lembrar, esse algo ausente e traz a memória o algo ou alguém representado como ele é. Tal como os bonecos de cera, por exemplo, ao serem chamados de representação, eram feitos para representar a dignidade imortal dos falecidos soberanos franceses e ingleses em seus funerais (CHARTIER, 2002). Há, então, uma relação de compreensão entre o que é visto e àquele a quem foi referenciado, o que não significa que tal não possa mudar ou, ainda, que seja único.

Stuart Hall (2016) também discorre sobre o conceito de representação. Para o autor, representar está relacionado com a utilização de símbolos, signos, para trazer à memória ideias sobre um objeto, pessoa, movimento, momento histórico etc. Segundo o autor, a linguagem é grande responsável nesse processo porque possibilita que grupos façam atribuição de significado a algo e, a partir daí, permite a troca de valores através dela própria. Hall explica que a representação “é a produção do significado dos conceitos da nossa mente por meio da linguagem” (HALL, 2016, p.34).

A partir da relação entre conceito e linguagem é que surge a possibilidade de referir-se a algo do mundo material ou imaginário, em suma, essa relação permite o processo de representação. No caso da análise das matérias do G1/Acre, os significados e as representações a respeito da Amazônia são percebidas através dos textos. Assim, a representação está presente nas histórias contadas nas matérias, e é capaz não só de criar imagens que farão referências a algo, mas carregar emoções, conceitos e valores incutidos e compartilhados em forma de texto. Tudo isso feito por meio da linguagem.

Manifestações culturais e preconceitos

Loureiro (1995) explica as diferenças entre as manifestações de cultura mais atuais e as consideradas folclóricas. Trata todas de forma distinta em sincronia (ocorridas em determinado período) e diacronia (estuda mudanças através do tempo), de forma vertical e horizontal, onde a vertical acrescenta ao que já existe, no caso, no que é considerado costume folclórico, e a horizontal, que é a transformação da cultura através dos tempos.

A questão a ser formulada a seguir é que, as manifestações através das artes, danças, cultos religiosos, formas de trabalho, entre outros, fazem parte da história cultural da Amazônia e representam uma forma de expressão social daquele lugar (LOUREIRO, 1995). E, de alguma forma, desde a época da colonização foram mantidos estereótipos sobre a região, de modo que a população e as suas manifestações culturais foram apresentadas como em constante sincronia com antigos costumes, sem que houvesse alguma ou nenhuma transformação até a atualidade. E é esse pensamento, essa atualidade que é mostrada pelos meios midiáticos.

Em primeiro instante, muitas das notícias que aparecem no G1 sobre a Amazônia evidenciam essas características. Tanto as pautas frias, que podem ser publicadas em diferentes épocas nos jornais diários, como as pautas quentes, notícias factuais, tratam o morador da região quase como inerte, permanecendo com o mesmo modo de vida, a mesma forma de trabalho passado de geração em geração, sem que houvesse algum ou nenhum progresso na área.

Notícias como “Doutor Raiz usa conhecimentos indígenas para cura de doenças”, publicada em abril de 2013; “Artesão faz submarino de cupuaçu inspirado em música dos Beatles”, publicada em agosto de 2013; “Monstros da Amazônia decoram jardim de casa de artesão no Acre”, publicada em setembro de 2013, evidenciam o enunciado de Loureiro sobre essas manifestações, pois essas atividades são consideradas arcaicas. Outro título como “ Isolado em reserva no AC diz não trocar paraíso pelo inferno da cidade”, publicado em fevereiro de 2014, também remete a esse pensamento de que o morador está parado no tempo.

No texto sobre o Doutor Raiz, a jornalista Nathacha Albuquerque aborda como o “raizeiro, alquimista da floresta e pajé branco” (ALBUQUERQUE, 2013, online) aprendeu com a avó a fazer os medicamentos naturais. Há histórias semelhantes ao do Doutor, caso do artesão Waldney Pontes Braga, na matéria “Artesão faz submarino de

cupuaçu inspirado em música dos Beatles”. Nessa última notícia, a jornalista Tácita Muniz também conta como o artesão aprendeu a manusear esculturas a partir de produtos da natureza com a avó indígena.

Essa situação faz lembrar aquela visão de que a região amazônica, por não estar entre as regiões do grande centro (São Paulo e Rio de Janeiro), é enxergada ainda na atualidade como lugar distante, primitivo, ultrapassado. Novamente, nas palavras de Loureiro, “a distância no espaço passou a ser entendida como distância no tempo” (LOUREIRO, 1995, p.30). E essa é, todavia, uma ideia bem presente, como nos textos “Carne vendida no interior do AC é transportada em carroça”, publicada em março de 2014, e “Acre tem menor nível de progresso social da Amazônia Legal”, diz Imazon, publicada em agosto do mesmo ano.

Títulos como “Isolado em reserva no AC diz não trocar paraíso pelo inferno da cidade”, publicado em fevereiro de 2014; “Fotógrafo flagra sucuri gigante em seringal no interior do Acre”, publicado em janeiro de 2014; “Pepino gigante chama atenção de moradores no interior do Acre”, publicada em fevereiro de 2013; reforçam a imagem de isolada e de interior subdesenvolvido que se têm sobre a região amazônica. É comum encontrar nos textos o espaço medido em quilômetros e interior do Acre para ressaltar o fator distância. São antigos preconceitos e estereótipos se renovando por intermédio do jornalismo. Preconceitos esses que também estão relacionados ao trabalho, como afirma Loureiro:

[...] o modo de viver e o trabalho do caboclo são considerados pelos segmentos mais abastados da população como primitivos, assemelhados aos do indígena e, por isso, inferiores, embora predominantes. Isto é, justamente as relações de produção e de comercialização que lhes são impostas pelas camadas mais abastadas da população são lesivas aos seus interesses e dificultam ou impedem a melhoria e a elevação do padrão de vida do caboclo, sendo essas mesmas relações que estabelecem e reforçam estereótipos vinculados a eles (LOUREIRO, 1995, p.31).

Alguns entrevistados afirmam sofrer preconceitos por parte de outras pessoas, com desconfiança relacionada aos trabalhos produzidos por eles, trabalhos oriundos dos conhecimentos passados de geração em geração, de conhecimento indígena, como é o caso de Raimundo Nonato da Silva na matéria “Doutor Raiz usa conhecimentos indígenas para cura de doenças”, por Nathacha Albuquerque, em abril de 2013.

Seu Raimundo conta na matéria que aprendeu a fazer os remédios naturais com a avó, descendente indígena. Em alguns momentos, como que para dar credibilidade ao

trabalho do homem, a matéria pontua uma série de prêmios, pessoas famosas que fazem consumo dos medicamentos e outras que afirmam terem sido curadas a partir do uso do conteúdo dos remédios conhecidos como garrafadas.

Além de todos os meios utilizados para dar credibilidade ao trabalho do Doutor Raiz, um pesquisador também é chamado ao debate para completar a matéria jornalística. Segue o trecho:

Rodolfo Minori, músico e compositor, que estuda sobre as culturas amazônicas, explica que a medicina natural faz parte da construção da cultura regional. A credibilidade da medicina natural deve ser expandida através das artes. Por intermédio da cultura regional, de sua divulgação, as tradições e os costumes são conhecidos e respeitados‘, ressaltou o pesquisador cultural (ALBUQUERQUE, 2013, online).

São muitos os fatores que ainda rodeiam o imaginário amazônico neste texto do Doutor Raiz. Há o aspecto religioso, onde uma senhora diz: “Sou muito religiosa e creio que este homem é milagroso” (ALBUQUERQUE, 2013, online), e também os nomes dados ao seu Raimundo e que fazem referência direta aos elementos e povos da floresta: “raizeiro”, “alquimista da floresta”, “pajé branco”, além do próprio nome “Doutor Raiz”.

O que muito chama atenção também é um desejo dele de ir ao programa do Jô para mostrar o preparo da garrafada, porque segundo ele, “ainda existe muito preconceito, justamente pela falta de conhecimento” (ALBUQUERQUE, 2013, online). O programa famoso nacionalmente daria credibilidade ao trabalho que ele desenvolve.

De certa forma, o G1 abordou o assunto buscando dar maior credibilidade ao caso do Doutor Raiz. A jornalista buscou outras fontes que confirmassem o efeito positivo dos medicamentos. Foi possível perceber também que o garrafeiro também informa às pessoas sobre a importância de ir ao médico quando doente.

Um fato semelhante também acontece em “Pepino gigante chama atenção de moradores no interior do Acre”, publicada em fevereiro de 2013. De acordo com o texto, a comerciante Antônia Damacena, ao ganhar o fruto de uma amiga, teria procurado a rádio para dar a notícia.

No texto “Artesão faz submarino de cupuaçu inspirado em música dos Beatles”, publicada em 1º de agosto de 2013, o destaque também é para o exotismo da proposta:

Outra releitura feita por Ney foi uma série de bonecos produzidos de bucha vegetal inspirado na história da Branca de Neve e os sete anões. A peça completa foi vendida por R$ 200. Ele conta que o brinquedo faz sucesso, por ser considerado exótico. ―Eu tenho vários tipos de bonecos de bucha vegetal. Minha avó que ensinou. Ela contava que fazia boneca até de jabuti. Depois de comer o animal, deixava as formigas comerem os ossos. Depois fazia as bonecas e colocava roupa‖, relembra (RIBEIRO, 2013, online).

O próprio artesão ressalta que o sucesso de seu trabalho se dá por ser visto como algo exótico.

Representações sobre os amazônidas

“Eu tenho olho de tigre, lagarto, cobra e macaco”. Esse é o refrão que está correndo o país em muitos sites e redes sociais, feito a partir de uma paródia da música 'Roar', da cantora americana Katy Perry (FULGÊNCIO, 2014, online). Esse trecho do primeiro parágrafo da matéria “Jovem que fez vídeo satirizando o AC diz que não esperava sucesso”, publicada em janeiro de 2014, conta como a jovem acreana Adrielle Farias escreveu a paródia, gravou vídeos e montou um clipe sobre a imagem que se tem da população local.

Histórias, lendas e mitos sobre a Amazônia foram absorvidos pelo imaginário social de tal forma que a atitude da moça, ao produzir um vídeo sobre a região, demonstra a manifestação de um fenômeno que Mendes e Queirós (2016) descrevem como a “amazonização dos amazônidas”. Nessa situação, o autóctone da região passa a reproduzir os conceitos criados e propagados pelos outros a respeito da Amazônia brasileira e acreana.

Em “Fotógrafo flagra sucuri gigante em seringal no interior do Acre”, publicada também em janeiro de 2014, é relatada a possibilidade de uma cobra poder matar pessoas e animais de grande porte como o boi. Mas, ao se deparar com uma situação de morte da cobra (o fotógrafo acredita que a população teria matado o animal por medo do que poderia acontecer às crianças da região) um especialista alerta para a construção de um mito relacionado a esse animal: “ Segundo o especialista, há um mito de que a cobra pode conseguir se alimentar de animais grandes, como boi ou seres humanos”, (RIBEIRO, 2014, online). A matériacomplementa:

Entretanto, não há fatos verdadeiros com relação a esses mitos. Ataques dessa espécie a seres humanos devem ser raros, mas não impossível. São animais não agressivos e lentos, entretanto, causam medo às populações.

Se faz necessário um trabalho de conscientização e educação ambiental à população, para preservar esses animais e não cometer atos brutais muitas vezes levando a morte deles‘, afirma (RIBEIRO, 2014, online).

O alerta do rapaz sobre as consequências que a falta de uma informação pode causar, é de se considerar pertinente ao tema aqui tratado. É preciso discutir, conscientizar sobre as multiplicidades culturais presentes não somente no estado do Acre, mas em toda a Amazônia brasileira e fronteiriça. O G1/Acre, neste quesito, ao abordar a cultura amazônica e abrir espaços para que os povos daqui pudessem se expressar e manifestar seus modos de vida, medos e anseios, abriu, ainda que de forma insuficiente e falha, novas possibilidades de pensamento, permitindo ao leitor ter uma maior compreensão sobre o que é a Amazônia em sua multiplicidade.

Jornalismo e Amazônia

Escrever notícias, artigos, crônicas não é uma tarefa fácil para os jornalistas. Há uma série de regras, orientações, a serem seguidas e tudo isso pode depender, também, do veículo de comunicação e do público que se almeja alcançar. É um trabalho diário, árduo para quem precisa compreender todo um contexto, entender os entrevistados e as versões existentes para enfim passar informação ao público.

Surge, então, a necessidade de se pensar em como escrever sobre as atualidades, sobre os acontecimentos que rodeiam o mundo, como escolher as pautas, como selecionar aquilo que será e o que não será publicado, o que pode ser postado no agora e o que pode ficar para outro momento, como decidir aquilo que pode ser do interesse daquele leitor, ou o que pode ter mais relevância para uma comunidade em geral, pensar em como enquadrar as notícias, e refletir em como se fazer entender da melhor maneira possível.

Nas matérias estudadas, foi possível encontrar entre personagens, títulos e textos, conceitos recorrentes que reforçam antigos pré-conceitos sobre a região. Em muitas das matérias, aspectos que envolvem a distância e o subdesenvolvimento aparecem quase que constantemente no título, no subtítulo ou no lead da notícia. Expressões como no interior do Acre e há tantos quilômetros da capital são recorrentes, e há textos também para retratar algum tipo de problema ou, ainda, algum acontecimento extraordinário, sensacional. Essas questões fazem refletir sobre quando e como a Amazônia é notícia.

A matéria “Mulher em trabalho de parto é transportada em rede no Acre”, publicada em dezembro de 2013, demonstra logo no título como algumas palavras em um jornal podem transmitir e retransmitir uma imagem, um conceito, uma representação sobre um lugar. Sabe-se que o estado do Acre, por ter sido o último estado a integrar a federação brasileira, é tido como um lugar menos desenvolvido em relação aos demais estados. Logo, aspectos como o da grávida transportada em uma rede ajudam a reforçar àquela imagem de região atrasada. É exatamente esse conjunto, Acre como um lugar de atraso, somado aos problemas enfrentados pela população local que reforçam esses conceitos. Sendo necessário, assim, refletir como melhor abordar essas questões.

Nessa última matéria, é relatado o desejo da grávida de ter o seu filho em casa. Se a notícia tivesse recebido outro enquadramento além do factual transportada em rede, as discussões sobre o assunto seriam mais amplas e os conceitos de atraso não estariam tão presentes e reforçados. Há um problema a ser discutido ali. Trata-se de uma questão de saúde pública. Entretanto, algumas poucas mudanças no título e no texto explorariam melhor outras possibilidades.

Considerações finais

A partir dos estudos das notícias selecionadas no G1/Acre, compreende-se que o jornalismo precisa modificar alguns conceitos a respeito da Amazônia acreana. Ele deve se distanciar dos processos de homogeneização, dos estereótipos, do conceito de exotismo e da dicotomia limitadora inferno verde/paraíso tropical.

O conceito de terra distante e subdesenvolvida é reforçado, em algumas matérias pelo jornalismo online do G1/Acre. Alguns desses conceitos são percebidos já nos títulos como “Monstros da Amazônia decoram jardim de casa de artesão no Acre”, publicada em 2013, e “Isolado em reserva no AC diz não trocar paraíso pelo inferno da cidade”, de 2014. Esses textos apresentam as dualidades que cercam a região amazônica. É uma região habitada por criaturas pitorescas e, ao mesmo tempo, lugar onde se pode encontrar o Eldorado.

Algumas discussões encontradas no decorrer das notícias foram importantes para compreender que esse jornalismo também contribui para uma melhor discussão das manifestações culturais no estado, como ocorreu no caso “Fotógrafo flagra sucuri gigante em seringal no interior do Acre”, publicado em 2014. Apesar de representar já

no título a imagem de uma Amazônia distante, perigosa e quase mística pelo tamanho do animal citado, a jornalista obteve sucesso ao dar voz a um especialista que desmistificou uma ideia sobre aquele animal e ainda falou sobre a necessidade de se discutir antigos conceitos existentes sobre a região e sua biodiversidade.

Diante desse contraponto, faz-se necessário pensar a Amazônia brasileira como rica em diversidade de espécies, em cultura, em produção de conhecimentos. Os meios de comunicação podem contribuir, então, para que essa localidade, em destaque, o Acre possa ser vista pela sua pluralidade cultural e não somente pelas suas relações limitadoras com a fauna e a flora ou, ainda, pela riqueza que pode proporcionar ao estrangeiro.

Referências

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REPRESENTAÇÕES SOBRE A AMAZÔNIA BRASILEIRA: UM ESTUDO SOBRE O DOCUMENTÁRIO O ACRE EXISTE

Daya de Kassia Pinheiro Campos Francielle Maria Modesto Mendes

RESUMO

O presente trabalho pretende analisar as representações sociais construídas no documentário O Acre existe (2013), com direção de Bruno Graziano, Milton Leal, Paulo Silva Junior e Raoni Gruber. O estudo discorre sobre os indígenas do Acre, a religião do Daime e o folguedo Jabuti Bumbá. Esses destaques por intermédio dos personagens escolhidos evidenciam os estereótipos e o imaginário quanto ao estado. Além disso, reforça o pensamento de distanciamento, rudimentariedade e até mesmo de isolamento, pois expõe reiteradas vezes personagens vivendo em meio à floresta, unificando as culturas existentes, ao passo que exclui a diversidade que existe nessa localidade. Assim, para embasar os estudos, foram utilizados os autores Stuart Hall, Roger Chartier, Durval Muniz Albuquerque Júnior, Ana Pizarro, entre outros.

Palavras-chave: Amazônia; Imaginário; Representação; O Acre Existe.

Introdução

Estado inexistente ou desconhecido. Esse é o pensamento de inúmeros brasileiros sobre o Acre. E para comprovar essa forma de pensar os paulistanos Bruno Graziano, Milton Leal, Paulo Silva Júnior e Raoni Gruber dirigiram o documentário O Acre existe (2013), lançado na 4ª Edição do Festival Internacional Pachamama – Cinema de Fronteira9.

A narrativa do documentário se inicia na cidade de São Paulo, com o intuito de mostrar a metrópole, civilização, trânsito, prédios, movimento. Ao passo que vão se dirigindo para o Acre, na Amazônia brasileira, começam a apresentar as árvores, os animais e os espaços vazios de gente. A distância e o isolamento são expostos. É como se o Acre fosse local desconhecido e de aventura, outra civilização, com novos modos de vida.

Nasce, assim, o anseio da descoberta, como quando os portugueses e os espanhóis avistaram o território brasileiro e a Amazônia nos séculos XVI e XVII. Os europeus compreenderam o novo, o outro, como diferente e exótico. Como se fosse necessário “reimaginar aquela excepcional Amazônia concebida e fantasiada como o local dos povos primitivos, que ainda não mudaram com todos os processos de colonização e de contatos” (NEVENÉ; SAMPAIO, p. 20, 2015).

O filme apresenta o Acre como um caudal identitário. Relata o período de formação do estado, dos dois ciclos econômicos da borracha (final do século XIX e início do XX), sobre

9 Festival de Filmes realizado no Acre que envolvem, principalmente, Brasil, Peru e Bolívia.

processo de anexação do Acre ao Brasil na década de 1960. Faz menção à doutrina daimista10, aos aspectos culturais de diferentes povos indígenas, ao sindicalista Chico Mendes (que ganhou notoriedade mundial no final da década de 1980), ao folguedo Jabuti Bumbá11.

No Acre, os paulistas visitam a primeira casa acreana após percorrerem uma pequena estrada de barro. É lá que conhecem o primeiro personagem do filme, seu Francisco. Ele ressalta em sua fala que optou por sair da cidade, onde há muito assalto, muita violência, para morar em um sítio tranquilo: “quando cheguei no Acre em 95 era uma tristeza” (O ACRE EXISTE, 2013).

O recorte da fala do personagem já dá indícios dos relatos que virão pela frente. Dos trinta e sete personagens da obra, a maioria revela que gosta de viver no Acre, apesar das distâncias e de outros empecilhos, e até mesmo os “estrangeiros” sentem-se bem e afirmam não querer ir embora.

O Acre existe: personagens, estereótipos e representações

Na chegada dos portugueses e espanhóis no Brasil, segundo a história, os nativos foram hostilizados, discriminados e subjugados. Infelizmente, tais práticas perduraram até a chegada dos estrangeiros, principalmente dos europeus, à região hoje conhecida como Amazônia. Os aventureiros estavam em busca de novos lugares para explorar e acabaram denominando os povos encontrados de exóticos e a floresta de inexplorada. Com isso, surge o “mito do paraíso”, pois esses viajantes viam uma geografia fantástica, com ótimo clima e diversas riquezas. O próprio governo anunciava essa grandeza.

A Amazônia também era apresentada na mesma dimensão vista pelos primeiros conquistadores, como paraíso, como Eldorado, o lugar de enriquecimento rápido, possível para os que fizessem parte do exército convocado pela nação. (PIZARRO, 2012, p. 162).

Essa narrativa está relacionada com riquezas e ouro presentes na Idade Média, pois acreditavam que através da exploração das florestas, iriam conseguir ouro, pedras preciosas e outras riquezas naturais, consequentemente conquistariam enormes fortunas, prestígio. Tudo originado no paraíso verde.

O mistério e a fantasia em relação à Amazônia foram criados por vários exploradores e desbravadores, o mais famoso é o mito do Eldorado, que se expandiu entre os séculos XV e

10 Um dos temas discutidos no documentário é o Daime. Porém, a obra não especifica a qual doutrina daimista ela está se referindo, uma vez que há, pelo menos, três no Acre: o Alto Santo, do mestre Irineu Serra; o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, do mestre José Gabriel da Costa; e a Barquinha, do mestre Daniel Pereira de Mattos. Essas informações podem ser encontradas nos sites das Doutrinas: ; ; . Acessado em 01 de maio de 2017.

11 Manifestação cultural que foi criada por uma família acreana. Surgiu da necessidade de se criar uma manifestação que falasse das peculiaridades locais atravessadas pela ótica popular (SOUZA, 2010).

XVIII. A fábula narra sobre a “existência de um cacique que se banha numa lagoa e após o banho de água, recebe um banho de ouro em pó” (PIZARRO, 2012, p. 80), referindo-se a ideia de riqueza dos europeus.

Assim, Eldorado se tornou um local de procura, a busca por aventuras envoltas de mistério para conquistar riqueza e fama, valores tão almejados pelos europeus da época. De modo que:

o imaginário Greco-romano, por meio da recuperação renascentista e dos claro-escuros medievais, formaram a lente da qual se perfilaram as primeiras imagens da Amazônia. O ambiente de mistério e fantasia que impregna este imaginário, o sentido da riqueza, sinônimo de felicidade (PIZARRO, 2012, p. 82-83).

Nesse sentindo, segundo Ana Pizarro, a “interpelação ao desconhecido sempre foi um atrativo singular de todos os tempos” (PIZARRO, 2012, p. 65). Por isso, a motivação dos documentaristas em conhecer o Acre para o exercício da “fantasia do conhecido-desconhecido”, para se aventurarem no Eldorado envolto de mistérios e com a possibilidade de realizar inúmeras descobertas.

Apesar dessa possibilidade visionária de descobertas e a tentativa de conhecer o outro, houve a apresentação de conceitos pré-estabelecidos, de forma que a partir da análise da obra, se percebe a existência de alguns estereótipos e representações a respeito do Acre.

Os estereótipos são apresentados logo no início por intermédio das falas de humoristas: “Na verdade não sei se você sabe, mas o Acre existe. É porque pensava que ia chegar no Acre e descer de avião, perguntar ‘onde é o Acre’, e a mulher responder: ‘não tem Acre não, é mentira’”; “o Acre também fica no Brasil, sim”; “o Acre existe mesmo pessoal. Alguém duvidava? E não é só isso, ele acaba de ganhar seu primeiro shopping center na capital” (O ACRE EXISTE, 2013). Mais adiante, uma pessoa é questionada com a seguinte frase: “O que você sabe sobre o Acre?”. A resposta é: “ah! Nada, sinceramente nem me interessa, não quero nem saber, já basta morar aqui no Brasil, por mim estaria em Miami” (O ACRE EXISTE, 2013).

Dessa forma se dá o início da manutenção dos estereótipos a respeito do Acre. Os personagens escolhidos se encaixam nesse padrão de estereotipagem para haver uma tentativa de entender a fala do outro, delineando os escolhidos com as características mais simplificadas e reduzidas.

Seu Francisco é o primeiro personagem do filme, chegou na cidade de Rio Branco em 1995, mas, posteriormente, optou por ir morar em um sítio longe da cidade. Na sequência aparece o Senhor Pedralinho, dono de uma pequena loja. Logo depois, o filme mostra uma senhora questionando os documentaristas quanto à existência de Deus e depois um senhor

contando que sua história começou na rodoviária, há trinta e oito anos atrás. Seu objetivo era conhecer Cusco, mas chegou à cidade de Rio Branco e decidiu permanecer até aquele momento. Os personagens escolhidos são aparentemente de classe baixa, sem muita escolaridade, reforçam a simplicidade do local, em alguns momentos, demonstram carência e sofrimento. Alguns dos personagens não são identificados pelo nome e nem a sua localidade dentro do estado, o que determina uma homogeneização dos povos da região amazônica por

intermédio de um discurso estereotipado:

O discurso da estereotipia é um discurso assertivo, repetitivo, caricatural. É uma fala arrogante, de quem se considera superior ou está em posição de hegemonia, uma voz segura e autossuficiente que se arroga no direito de dizer o que o outro é em poucas palavras. (ALBURQUERQUE JÚNIOR, 2012 p. 13).

O estereótipo reduz, pois é conceituado com poucas palavras e sem profundidade. Durval Albuquerque Júnior (2012) explica que o estereótipo é uma espécie de esboço rápido e negativo do que é o outro. “Uma fala redutiva e reducionista, em que as diferenças e multiplicidades presentes no outro são apagadas em nome da fabricação de uma unidade superficial, de uma semelhança sem profundidade” (ALBURQUERQUE JÚNIOR, 2012 p. 13). Além de se apossar das poucas “características ‘simples, vividas, memoráveis, facilmente compreendidas e amplamente reconhecidas’ sobre uma pessoa; tudo sobre ela é reduzido a esses traços que são, depois, exagerados e simplificados”. (HALL, 2016, p. 191).

Assim, as escolhas dos personagens foram simplificadas para reforçar a forma com que os outros enxergam o povo acreano e um dos recursos usados foi a falta de nomeação de algumas pessoas e dos lugares por onde passaram. Albuquerque Junior argumenta que “nomear é dar sentindo, é também demarcar diferenças em relação aos territórios vizinhos, é estabelecer fronteiras” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2012, p. 9).

Os personagens identificados com nomes e por sua história – Doutor Borracha, Nilson, Cícero, Pelé, Tiago Tosh, Seu Jorge, Altino Machado, entre outros – reforçam a ideia de que no Acre as pessoas estão relacionadas à floresta. É como se todos estivessem construindo suas identidades exclusivamente a partir das relações seres humanos/natureza.

Chartier (2002) afirma que as representações construídas sobre o mundo social, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam (CHARTIER, 2002, p.17). Desse modo, os discursos não são neutros, mas embutidos de significados, pois tendem a justificar suas escolhas, conceitos, pontos de vista, poder e autoridade à custa de outros que foram ou são menosprezados por serem considerados inferiores ou menores, seja social, política ou economicamente.

A relação de representação é assim confundida pela acção da imaginação, essa parte dominante do homem, essa mestra do erro e da falsidade, que faz tomar o logro da verdade, que ostenta os signos visíveis como provas de uma realidade que não o é. Assim deturpada, a representação transforma-se em máquina de fabrico, de respeito e de submissão, num instrumento que produz constrangimento interiorizado, que é necessário onde quer que falte o possível recurso a uma violência imediata. (CHARTIER, 2002, p. 22).

É possível perceber essas representações a respeito dos povos indígenas. Muitos deles aparecem na obra, mas suas etnias não são identificadas, suas histórias remetem ao fantástico, a magia e a exaltação da espiritualidade. O contexto em que se inserem é distorcido e diverso da realidade social e histórica dos demais personagens que aparecem na narrativa. Por isso, Priscila Freire afirma que eles são observados com distanciamento: “O olhar de fora trata os sujeitos indígenas de maneira distanciada e com aspectos de subalternidade ao caracterizá-los de alguma forma deslocados da atual dinâmica da sociedade que se caracteriza cada vez mais urbanizada”. (FREIRE, 2015, p. 118).

O imaginário de primitivismo sobre os povos indígenas é reforçado por meio das vestimentas, pinturas no corpo e indumentárias, junto aos rituais religiosos que o filme apresenta. Os diretores não se preocupam em contextualizar esses rituais apresentados, as cantorias e demais aspectos da cultura indígena. Os índios estão envoltos de mistério e magia. Há passagens no filme em que os indígenas aparecem em torno de jogo de luzes e fumaça. É por isso que Nenevé e Sampaio afirmam que os povos indígenas continuam sendo descuidados ao longo do tempo:

Se no passado milhares de povos indígenas foram dizimados pela colonização, ainda hoje muitas vozes são apagadas, desvirtuadas, aniquiladas ou negligenciadas porque o que se ouve são os rumores externos que se impõe sobre os internos (NENEVÉ; SAMPAIO, 2015, p. 20).

De todos os que aparecem nO Acre existe, a única que ganha uma atenção especial, por ser mulher, é a primeira pajé da tribo Yanawaná. Diante disso, é possível concordar com o pensamento de Nenevé e Sampaio (2015) que sugerem a necessidade de repensar o passado a respeito dos povos tradicionais na Amazônia brasileira: “Cremos que devemos reimaginar aquela excepcional Amazônia concebida e fantasiada como local dos povos primitivos, que ainda não mudaram com todos os processos de colonização e dos contatos” (NENEVÉ; SAMPAIO, 2015, p. 20).

Independente da leitura realizada pelos rapazes que dirigem o filme, os personagens representam as diversas Amazônias existentes com características heterogêneas e multiculturais. Os povos indígenas, por exemplo, se diferenciam um dos outros:

(... ) sim, existem povos indígenas, existem sistemas antigos de povoamentos pré-colombianos, como também existe uma Amazônia multiétnica, multicultural, que passa por uma dinâmica. Há a Amazônia urbana como há

um amplo conjunto de comunidades isoladas. São histórias heterógenas, conhecimentos científicos variados, intersecção de histórias indígenas com a dos colonizadores, produção de conhecimento que parte da própria região e dos próprios povos que a habitam. (NENEVÉ; SAMPAIO, 2015, p. 20).

Mas o documentário opta por não fazer diferenciação acerca da Amazônia urbana e rural, dos espaços cidade e floresta. Houve uma dificuldade de estabelecer as fronteiras entre rios e estradas, capital e demais municípios, praças e parques florestais. Tudo é considerado com uniformidade.

A imaginação quanto a Amazônia perfaz o pensamento de dominação e exploração, desperta o interesse sobre o mistério e o desconhecido. O documentário ressalta lugares monótonos, vazios, distantes, perigosos e exóticos, a exemplo da moradia e local de trabalho do Doutor Borracha. O caminho para percorrer até a seringueira, onde recolhe o látex, é longo, sem presença humana, cercado pela mata fechada. Ele cria seus produtos de borracha em uma casa simples, de madeira e sem muitos utensílios, o violão é companheiro para espantar a tristeza e a solidão. Na narrativa fílmica, sua vida se resume àqueles momentos, ora de trabalho solitário ora de poesia e composição.

Outro exemplo é quanto ao seringueiro Nilson, que orgulhosamente apresenta para os visitantes do seringal Cachoeira animais perigosos, como escorpiões, aranhas e cobras. Na fala de Nilson, o sobrinho de Chico Mendes, os animais podem causar doenças, muita dor e até a morte. Mas as dores podem ser curadas com remédios naturais.

Diante desses personagens, prevalece uma constante identificação quanto ao “nós” paulista em contraste com todos “eles” que não os são. Os outros são classificados a partir de um olhar coletivo, homogeneizado, sem muito interesse para os que falam, mas como estão inseridos em uma natureza exuberante e desconhecida passam a ser percebidos. Parafraseando Nenevé e Sampaio (2015), a fantasia foi confirmada pelos “olhos” preparados para ver o que se queria ver:

Quando um escritor estrangeiro discorre sobre a Amazônia, parece que sente quase obrigado a proferir julgamentos acerca da região e condenar o que se faz por aqui. Primeiramente, seu raciocínio ‘lógico’, faz diminuir as pessoas que moram na região, ainda considerada incapazes de perceber com profundidade o que outros, ditos superiores, vindos de outros lugares podem perceber. (NENEVÉ; SAMPAIO, 2015, p. 24).

Contudo, as relações sociais precisam ser interpretadas, pois a partir do documentário se vê uma sociedade complexa e plural que foi diminuída para o singular, sem interligar as percepções políticas, culturais e econômicas. De modo que o homem amazônico é “representado por meio de metáforas vegetais e animais, que salientam sua aderência e passividade em relação ao meio, enquanto a natureza se personaliza, adquire vontade, consciência e voz própria” (MURARI, 2009, p. 155).

Religião Daime e o folguedo Jabuti Bumbá

O Daime teve como fundador o mestre Irineu Serra. Foi na década de 1910 que conheceu a Ayahuasca. Na década de 1930, começou a reunir seguidores em torno dos mesmos princípios religiosos (OLIVEIRA, 2007). Já o folguedo Jabuti Bumbá é uma manifestação artística contemporânea criada, em 2005, por uma família acreana. O movimento cultural nasceu de uma necessidade de se instituir algo que falasse das peculiaridades locais atravessadas pela ótica popular (SOUZA, 2010).

As duas manifestações culturais se diferenciam, pois uma possui princípios religiosos em seus rituais ou cerimônias e utilizam a bebida feita a partir da Ayahuasca, considerada como bebida milenar e retirada da cultura indígena. A outra se evidencia como arte, por conta das músicas e danças, e mescla ciranda, maracatu, entre outras.

O Daime e o Jabuti Bumbá são manifestações culturais do estado do Acre que precisam ser apresentadas de forma contextualizada para que possam ser interpretadas pelo público estrangeiro. Segundo Mendes e Queirós, em alguns momentos, as imagens do Jabuti Bumbá parecem deslocadas no tempo e no espaço do restante das histórias relatadas no vídeo. É como se dentro de uma inexistência existissem outras.

No documentário, dois personagens que se destacam por tentarem explicar a religião do Daime e o Jabuti Bumbá é Cícero e Tiago Tosh. O último disse que sua família não gostou de sua vinda para o Acre, mas que decidiu vir por conta do Daime, uma religião que prega a união, que traz luz às pessoas, ressaltando frases descontextualizadas como “o que tiver que ser, é” ou “as coisas devem funcionar devagar, como devem ser”. Tais falas criam um ideal de que as pessoas, muitas vezes, vêm para o Acre por conta dessa prática religiosa e em busca dessa união professada tanto com o outro como com a natureza.

Já Cícero é apresentado como representante do folguedo popular. Em suas aparições no filme, toca instrumentos, canta músicas ritualísticas e dança acompanhado de membros do grupo que também fazem parte de sua família. Ele ainda discorre sobre a “energia” causada pelo Daime. No entanto, em nenhum momento fica claro como se dá a integração dos adeptos do Daime com a manifestação cultural Jabuti Bumbá.

Em alguns momentos, aparece um grupo cantando e experimentando algo em meio à floresta, reforçando o imaginário de mistério, excentricidade e isolamento existente sobre a região. A edição de imagens pressupõe que o consumo do chá é feito por todos de uma única forma. A interpretação do meio amazônico bem como dos seus personagens se dá por termos simbólicos e culturais, por meio do “poder de representar alguém ou alguma coisa de certa maneira – dentro de um determinado ‘regime de representação’” (HALL, 2016, p. 193), cuja

representação se faz através da estereotipagem, onde “classificamos as pessoas segundo uma norma e definimos os excluídos como o ‘outro’” (HALL, 2016, p. 193).

Assim, os discursos são expostos de forma simplificada impedindo um melhor entendimento daqueles que não conhecem essas expressões culturais do Acre. O assunto é apenas exposto, mas restringindo a situações que enfatizam a sensação de vazio e falta de civilidade, perfazendo uma narrativa fragmentada que impede o conhecimento das múltiplas verdades da população amazônica/acreana.

Breve percurso histórico do Acre

Sempre será “necessário construir um discurso sobre o homem, a cultura e seu comportamento na região. Nesse aspecto, o homem e a mulher dessa região são sujeitos a olhares, espionagens, críticas e julgamentos” (NENEVÉ. SAMAPAIO, 2015, p. 25). Por isso, os documentaristas retrataram os aspectos históricos do Acre, mostrando a Revolução Acreana, a Batalha da Borracha, o papel dos seringueiros no desenvolvimento da região do Acre e a morte de Chico Mendes. Contudo, todos esses episódios são narrados a partir da fala de cidadãos comuns e moradores do estado acreano.

A Revolução Acreana é retratada brevemente, sem muitas explicações, assim como o ciclo econômico da borracha, o fim da guerra e a consequente decadência da borracha. Período este em que “o governo brasileiro recrutou uma grande quantidade de migrantes, entre 1943 e 1945, com o objetivo de trabalhar na extração do látex” (PIZARRO, 2012, p. 160). Além de que:

O destino dos homens eram os seringais, mas, para efeitos do recrutamento, foram convocados para o combate, como tropas de guerra, soldados da borracha; nesse marco e sob esta ideologia, novamente foram levados, a lugares distantes e insalubres da Amazônia, grandes contingentes de trabalhadores, em sua maioria, nordestinos (PIZARRO, 2012, p. 160).

O filme também destaca a história de vida e o assassinato de Chico Mendes, ressaltando sua luta pela preservação e proteção da Amazônia frente aos fazendeiros e aqueles que almejavam grandes riquezas. São abordagens que não permitem um verdadeiro conhecimento sobre a história acreana. Portanto, a forma de retratar os aspectos históricos acreanos resultou em reafirmação do imaginário e dos estereótipos já existentes, pois (re)criaram e enfatizaram o desconhecido que necessita ser descoberto, colonizado e civilizado.

Os quatro rapazes tiveram comportamento semelhante ao dos primeiros colonizadores que chegaram à Amazônia. Eles exploraram a região e suas riquezas culturais, trataram a localidade ora como paraíso ora como inferno, lugar ao mesmo tempo adorável, exuberante e misterioso. Para relembrar uma passagem de Pizarro: “o paraíso se torna inferno, cárcere de

grades verdes, entre mosquitos, umidade, malária, insetos, víboras, faunas animal e humana” (PIZARRO, 2012, p. 147).

A Amazônia não é linear ou uniforme, ela é uma mistura de histórias, sensações, experiências e culturas, por isso quem vai fazer uma narração desse caudal identitário precisa estar atento a sua diversificação de conteúdo, bem como as suas complexidades.

Considerações finais

O documentário “O Acre existe”, produzido por diretores de São Paulo, narrou sobre a existência do Estado, seus aspectos culturais, políticos, históricos e econômicos. Foram viajantes privilegiados que reforçaram representações sociais e estereótipos já existentes em relação ao povo acreano.

O documentário apresenta a população acreana a partir de personagens caricatos e simplórios, não fazendo distinção entre floresta e cidade, entre os próprios índios e suas etnias. Não há diferenças ou estabelecimento de fronteiras entre todas essas gentes plurais.

A homogeneização impede de enxergar os outros com mais profundidade, o contexto em que estão inseridos e uma melhor compreensão de quem são. Isso “proteja na região o olhar dicotômico da modernidade: por um lado, percebe a grandeza, e, por outro, observa, classifica, anota, difunde, informa às academias de ciências da metrópole” (PIZARRO, 2012, p. 101).

A Amazônia assim como o Acre não é um local com narrativas recortadas, sem conexões, mas um lugar plural, cheio de vidas e histórias, não se limitando a rios, animais exóticos, florestas. Essas podem até ser as principais representações construídas a partir do imaginário dos primeiros colonizadores, mas não a essência em si do povo e do estado acreano.

Referências

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2012.

CHARTIER, Roger. A História Cultural – Entre práticas e representações. Difusão Editorial, 2002.

FREIRE, Priscila. Discursos sobre a Amazônia na mídia. Curitiba: Appris, 2015.

HALL, Stuart. Cultura e Representação. Tradução Daniel Miranda e William Oliveira. Rio de Janeiro: PUC Rio: Apicuri, 2016.

MENDES, Francielle Maria Modesto; QUEIRÓS, Francisco Aquinei Timóteo. Caudal identitário: representação, imaginário e estereótipo no documentário O Acre Existe. No prelo. MURARI, Luciana. Natureza e cultura no Brasil (1870-1922). São Paulo: Alameda, 2009.

NENEVÉ, Miguel; SAMPAIO, Sônia M. Gomes. Literaturas e Amazônias: colonização e descolonização. Re-imaginar a Amazônia, descolonizar a escrita sobre a região. Nepan Editora. Rio Branco – Acre, 2015.

O ACRE EXISTE. Direção Bruno Graziano, Milton Leal, Paulo Silva Junior e Raoni Gruber. Estúdio 1+2. DVD (144 min), 2013.

PIZARRO, Ana. Amazônia: as vozes do rio. Tradução Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

RIBEIRO, Darcy. O Brasil como problema. São Paulo: Global, 2015.

SOUZA, Keiliane Custódio de. Intertextualidade na manifestação artística marupiara jabuti-bumbá. Revista Philologus, Ano 16, N° 46. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan./abr.2010, Supl. Disponível em: . Acessado em 16 de junho de 2015.

BAR BODEGA: ETIQUETA VERSUS ÉTICA

Andressa Mendes Osório12 Francielle Maria Modesto Mendes13

Resumo

O objetivo do artigo é discutir os desvios éticos analisados no livro Bar Bodega: um crime de imprensa, baseando-se nos conceitos de ética e etiqueta abordadas pelo autor Eugenio Bucci, explorados no campo jornalístico. O livro Sobre Ética e Imprensa (2000) foi usado como pilar desta pesquisa. A partir disso, apontam-se três pontos em que a imprensa demostrou seguir a etiqueta e em seguida esses pontos são confrontados com o que afirma o código de ética dos jornalistas tendo o intuito de demonstrar que quando os veículos jornalísticos seguem a etiqueta estão automaticamente cometendo desvios éticos. Outros exemplos, além dos apontados no livro analisado também foram usados para comprovar o que defende o trabalho. Autores como Ricardo Noblat e Rogério Christofoletti, bem como artigos do código de ética dos jornalistas foram usados para embasar a pesquisa.

Palavra-chave: jornalismo; etiqueta; ética.

Com o intuito de discutir os desvios éticos ocasionados pela etiqueta, colhidas no livro Bar Bodega: um crime de imprensa são selecionados três erros cometidos demonstrados o que defende o trabalho. A cobertura de uma ocorrência policial com homicídio, um latrocínio, os protagonistas são altamente violados. Moradores de bairro de periferia de São Paulo, e algumas apresentando histórico criminal e social complexo foram erroneamente acusados de cometerem um crime tendo comparação positiva confirmada pela polícia. Coagidos e torturados para confessarem serem os responsáveis, têm suas vidas traumatizadas primeiramente pela polícia e em seguida pela imprensa, seguidora de uma etiqueta que mobiliza as massas com base a agradar e satisfazer grupos dominantes. Assim, desviando-se do papel social e da verdade que o deve buscar.

Presente nas aristocracias a partir do século XVI, a etiqueta tinha como função impor comportamentos que não desestabilizassem o padrão dos poderosos. Essa normalidade a ser mantida, garantia o sucesso das cortes. Esse manual de normas exercido pela aristocracia, como uma espécie de cerimonial, era regido por regras e obrigações. Diferentemente da etiqueta, o código de ética dos jornalistas aponta atitudes

12 Estudante de graduação do 4º período do curso de jornalismo da Universidade Federal do Acre (UFAC).

13 Professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre (UFAC).

que podem ser usadas para ajudar o profissional a resolver as tantas implicações que envolvem atividade jornalística. Regido pelo teor democrático, diferencia-se da etiqueta.

Como defende Eugenio Bucci, essas atitudes não possuem outra função ao ser agradar poderosos.

A etiqueta cria um balé de sorrisos e saudações que celebram a autoridade posta, traduzindo-se numa singular estética da conduta; extrai sua beleza dos meios de glória da hierarquia e do silencio sobre o que se esconde nas alcovas. (BUCCI,2000, p.9- 10)

Ou seja, quando a imprensa age conforme a etiqueta está automaticamente cometendo desvios éticos. Levando-se por esse modelo acaba rompendo com um dos principais princípios do jornalismo, a verdade. No entanto “a verdade não é algo claramente identificável. A verdade é questão de julgamento relativo” (NOBLAT, 2010, p.28). Seguir a etiqueta implica agir para que uma aprovação seja mantida, manipulada e até mesmo inventada. O jornalismo não é feito de cerimônia, mas sim de apuração, checagem e contextualização dos fatos. Aliás, uma das suas funções é fiscalizar os poderes e não se juntar a eles a fim de interesses outros que não em benefícios aos cidadãos. Entre os deveres do jornalista apontado por Noblat, está o cidadão, “é com eles, e não deve ter vergonha de tomar partidos deles” (NOBLAT, 2010, p.17).

A etiqueta é egocêntrica, beneficia somente os seus. A ética nesse aspecto serve de parâmetro e sinalizador de bem comum. Como Bucci afirma:

O jornalismo como o conhecemos, isto é, o jornalismo como instituição da cidadania, e como as democracias procuram preserva-lo, é uma vitória da ética, que buscava o bem comum para todos, que almejam a emancipação que pretendia construir a cidadania, que acreditava na verdade e nas leis justas – uma vitória contra a etiqueta. (BUCCI, 2000, p.10)

Christofoletti também aponta diferença entre etiqueta e ética.

A ética é mais ampla e nos leva À preocupação com as atitudes e com a relação que estabelecemos com as outras pessoas em várias circunstâncias. A etiqueta está mais atenta às aparências e À demonstração de conhecimento e respeito Às convenções sociais. Enquanto a primeira está para a essência, a segunda se liga à forma. (CHRISTOFOLETTI, 2008, p.36).

O caso Bar Bodega (1996) apresentou características da etiqueta. O primeiro deles é a necessidade de culpar alguém, e quando se culpa, deve-se apresentar fatos e provas concretas, não evidências frágeis que pareçam rapidamente harmoniosas. Além

de antiético, comprometer a honra das pessoas é crime previsto no Código Penal Brasileiro. Constando como Calúnia Art.138, Difamação Art.139, Injúria Art. 140.

Alguém tem que ser responsabilizado

A necessidade de apontar culpados para os problemas é a solução mais aparente. Esse desvio mostra que os setores estão esquivando-se de suas obrigações, optando pelo caminho mais rápido e fácil, comprometendo a imagem das pessoas e eximindo sua responsabilidade.

Ao deixar-se levar pela acusação da polícia e divulgar Cléverson como o culpado, assim como os outros personagens, a imprensa não cumpriu seu papel. Colocaram a aprovação e “satisfação” do público como meta, levando-se assim, por julgamentos, não dando oportunidades para contradições.

Se alguém tem que ser o culpado, logo alguém também terá que ser defendido. E o jornalismo não deve esquecer-se de defender a verdade, nada mais. E nessa tomada de decisão, a imprensa esquece-se da conflitante imparcialidade. Culpar um jovem com antecedentes criminais e morador de periferia era mais viável ao invés de procurar fatos novos, buscar outras testemunhas ou simplesmente fazer uso do seu lado investigativo, questionar, por exemplo, por imagens de segurança. Apesar de recente e pouco utilizada, uma região nobre não poderia fazer uso desse tipo de ferramenta? Alguém questionou?

Seguir a etiqueta é não ceder espaço para outros questionamentos além dos óbvios, mas duvidar do que está posto nunca é demais. Nesse ponto, Bucci nos diz

O jornalista é pago para perguntar – e duvidar. Seu santo padroeiro é São Tomé – o apostolo que, no Novo Testamento, quis antes ver as chagas de Jesus Cristo para só depois aceitar que ele era mesmo o cristo ressuscitado. Quanto mais pergunte, confirme e cheque, menos se expõe ao erro. (BUCCI, 2000, p.141)

Casos que tenham tanta atenção e que lidam com a reputação das pessoas, questionamentos nunca serão demais. Mesmo a polícia sendo a fonte “não há perguntas inconvenientes. Pode haver respostas inconvenientes. Mas este é um problema para quem responde”, aponta Noblat (2010, p.62).

Apresentar os culpados para a sociedade paulistana era mais importante do que também discutir como a violência é devastadora por onde passa, não passa, não somente em regiões nobres. Analisar e propor medidas para diminuir a criminalidade, despertar a

participação dos leitores para também propor ideias é o que cabe a imprensa, e não culpar agressivamente como foi feito.

Para Christofoletti, “se a notícia do jornal traz descrição detalhada de cenas e personagens, se há encadeamento lógico na história contada e se esse conjunto nos parece procedente, damos o aval à matéria. Confiamos” (2008, p.28). Entretanto, essa “confiança” passadas ao leitor precisa ser reflexo da apuração e checagem da informação, despertando a criticidade do público e não o julgamento. Afinal, adotar o julgamento de maneira emergencial e elucidativa não contribui e tampouco soluciona o problema.

É preciso agradar o leitor, mas qual leitor?

Buscando agradar os leitores, a imprensa pode ser influenciada a trabalhar somente para satisfazer o público. No entanto, há diferença entre agradar ao público pela postura e trabalho eficaz e agradar ao público dando a ele o que lhe é mais conveniente. No caso Bodega, o que se percebe é uma imprensa totalmente levada a falar o que as pessoas queriam saber (os acusados) e não o que elas de fato precisavam saber (os verdadeiros acusados\ solução do caso), responsabilizando, assim, qualquer um, não importa o que as provas apontavam.

Com a finalidade de demonstrar apoio as classes que em especial foram afetadas, os veículos usuram o seu poder para manipular, incitar o senso de justiça e cobrar por segurança. Mas por que somente a partir do caso Bar Bodega? Os outros casos não mereciam também apoio? Por que não discutir caos tais como acontecem na periferia? Justiça e segurança não são para todos?

A resposta já pode ser identificada no item anterior. Como afirmado, a etiqueta é egocêntrica, não há espaços para discutir os mesmos problemas que acontece, em Moema ou na periferia, por exemplo. A empatia midiática tem uma lista exclusiva e os seus participantes são célebres. A cobertura é tão incisiva que até mesmo os menos favorecidos e vítimas constantes da violência se sentem solidários com os elitizados atingidos. O caso Nardoni, ocorrido em 2008, em que a menina Isabella Nardoni de apenas cinco anos foi assassinada pelo pai e pela madrasta cruelmente, exemplifica essa sensibilidade coletiva. Antes das investigações serem concluídas e descartadas pela polícia, a hipótese apresentada pelo pai da menina que afirmava ter tido a casa invadida e que esse suposto invasor teria matado a filha, despertou inicialmente a sensibilidade pública. Por ser de classe privilegiada e filho de um famoso advogado tributarista,

Alexandre Nardoni, tinha sido inocentado pela população e pelos seguidores da etiqueta, evidentemente.

Como publicado na Folha de São Paulo, pelo jornalista Clovis Rossi:

Se o público brasileiro (no caso, o paulista) adotasse o devido rigor, puniria o delegado responsável pelo caso da menina Isabella Oliveira Nardoni, 5 anos, morta no sábado, por colocar o pai como suspeito. No fundo, estamos diante se gênese idêntica ao escândalo as Escola Base, na qual a mídia foi crucificada, com toda a justiça. Mas faltou mais alguém na cruz: o delegado responsável pela investigação do caso. Vamos rebobinar um pouco a fita e analisar as circunstancias em que se deu a desumana crucificação dos responsáveis pela escola, apontados como abusadores de crianças. Quem detinha, com exclusividade, todas as informações? O delegado. Ninguém mais. Quem repassou as informações aos jornalistas, coletivamente? O delgado. Aos jornalistas, restava um de dois caminhos: duvidar ou acreditar (claro que me refiro aos jornalistas de boa-fé; os que têm índole sensacionalista não precisam acreditar ou duvidar de nada para dar vazão à índole). (ROSSI, 2008, online)

Na tentativa de defender a elite, o jornalista expõe seu posicionamento de forma agressiva. Primeiro ataca o delegado, que é o responsável pelas investigações, tentando desqualifica-lo questionando seu trabalho. Depois, passa ao leitor a ideia de punição, incitando o julgamento. Para tentar comprovar mais ainda seu argumento, traz à tona o exemplo da Escola Base, recordando um erro envolvendo um delegado, erro esse também que contou com a colaboração da imprensa. No entanto, o jornalista acredita ter sido a mídia, vítima e não corresponsável.

Mais: se duvidassem e decidissem não publicar, seria preciso que todos tivessem idêntico comportamento. Um só que publicasse já estaria provocando o dano À reputação dos donos da escola. Agora é um pouco a mesma coisa. O delgado deu entrevista que a Rede Globo, pelo menos, pôs no ar (não vi outros telejornais, mas suspeito que todos o tenham feito). Adiantaria alguma coisa se a Folha, digamos, não publicasse a acusação ao pai da menina?

Salvaria a face do jornal, mas não salvaria o principal, que é a reputação do pai. Nem importa, no caso, se vier a se comprovar que o pai é mesmo culpado. Não cabe ao delegado, ao menos desta fase da investigação, dizer quem é ou não suspeito. Se o pai for de fato culpado, será punido ao fim da investigação. Se for inocente, já está punido. (FOLHA DE SÃO PAULO, 2 de abril de 2008, online)

O apoio recebido pelos acusados é claramente uma amostra da etiqueta. Obtiveram até mesmo a oportunidade de se defenderem nacionalmente através do Programa Fantástico (20 de abril de 2008), que cedeu espaço para o casal. Oportunidades essas que jamais foram concedidas a integrantes de outras classes. Com o desfecho da investigação, o apoio inicialmente concedido transformou-se em julgamento agressivo, pela mídia e, consequentemente, pela população.

Esse é um problema bem mais complexo, a necessidade de satisfação gera um ciclo vicioso. É preciso manter harmonia entre os diferentes níveis da pirâmide que compõem o trabalho jornalístico. Sendo assim, a referência ética que também precisa vir dos cumes é rompida pela etiqueta. Para Bucci:

Quando o jornalismo imagina bastar-se a si mesmo como referência ética, o efeito é que o chefe tende a encarnar o modelo moral absoluto para o subordinado; o chefe do chefe é o suprassumo da virtude até que, no alto da hierarquia, o rei dos reis, ou melhor, o diretor dos diretores nada vê acima de suas sobrancelhas. (BUCCI,2000, p.54)

Quando o jornalismo perde sua autonomia, a imposição do que as massas devem saber e consumir é ditado por interesses. Assim, Fonseca aponta:

A mídia atua nesse ambiente indefinido, constituídos pelos interesses e opiniões privados, mas que se manifestam como públicos. Por mais que intentem atuar numa perspectiva “pública” – o que implica a existência de vários lados e interesses contrastantes -, estarão sempre presos, os meios de comunicação privados, a interesses, compromissos e visões de mundo privados e mercantis e, o que é essencial, tal atuação será desprovida de responsabilização e contrapartidas efetivos pela sociedade e pelo Estado. (FONSECA, 2011, p.54).

Para que não ocorra o que aponta Fonseca, é fundamental a atuação do leitor, devendo assumir seu papel, impedindo que veículos que não tenham a verdade, respeito w interesses públicos como referência possam continuar sendo irresponsáveis, sobrepondo-se a conveniências.

Imprensa como partido político

O apoio político, aparentemente, não proposicional é mais um aspecto da etiqueta. A acirrada disputa eleitoral pela prefeitura de São Paulo não passaria despercebida, e foi considerada como objetivo de campanha.

O latrocínio explorado massivamente ocorreu devido a colaboração da mídia, que já vinha sendo voraz como caso e viu também o evento coo forma de pressionar o estado. O que notamos é que a forte cobertura poderia ter sido também em função de outros interesses. Agravar o caso, bem como medir não medir recursos, é fazer disfarçadamente campanha política. Discutir a violência e a segurança pública tomando o caso Bodega como exemplo, era tocar em problema grave em que a sociedade paulistana parentava enfrentar. No entanto, essa gravidade amplamente noticiada era por ter atingido os elitizados.

E para garantir que o problema era mesmo urgente e necessitava de medidas rápidas e eficazes o mapa da violência foi redesenhado, os casos isolados passaram a ser comuns e o medo da população analisado\ pesquisado de forma ágil, apontando resultados preocupantes. Toda ação e serviço em prol da garantia eleitoral da hierarquia selecionada.

Características como essas culminam no que Bucci afirma ser um partidarismo. “Quando a opinião partidária, prevalece sobre o bom senso e sobre a verdade dos fatos, aí sim, tem-se o que as normas clássicas do jornalismo vão chamar de partidarismo”. (BUCCI,2000, p.112).

O partidarismo assumido pela imprensa revela-nos o apoio concedido, muitas vezes, por ocupantes influentes dos veículos de comunicação. Encarregando seus funcionários a usarem seu trabalho para outros fins. Como nota Bucci:

Quando o assunto é eleição, os donos dos meios de comunicação, na prática, têm mais espaços para se manifestar do que os jornalistas empregados. É um desequilíbrio. Nos editoriais de jornal ou nas capas de revista, as opiniões partidárias que prevalecem são as opiniões da empresa ou do dono. (BUCCI,2000, p.115).

A história nos apresenta um emblemático exemplo desse tipo de conduta. Fernando Collor, ex-presidente, obteve apoio dos amplos veículos de comunicação na campanha em 1990. Sua aprovação para ocupar o cargo mais importante do país foi regada a etiqueta e partidarismo midiático, mesmo ele possuindo um histórico de corrupção.

As pesquisas de intenção de votos é outro recurso usado para influenciar a população a eleger o candidato apoiado pelas hierarquias. Mas, tarde, Collor, eleito com

uma boa aprovação, foi tirado do cargo sobre forte atuação popular e jornalística, culminando seu impeachment, comprovando que há atuação partidária pelos veículos.

O que os códigos dizem

Tomando o Código de Ética dos Jornalistas como parâmetros nos três pontos citados é possível afirmar que ele foi expressamente violado. Reiterando que a imprensa ou veículos de comunicação seguidora da etiqueta condiciona-se automaticamente a desvios éticos. Desvios esses que levados por interesses de grupos, afastam-se da essência do jornalismo, das amplas opiniões e do bem coletivo.

Como expressa o Art. 60 do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (Fenaj,2007, online) é dever do jornalista:

VII – respeitar o direito Á intimidade, Á privacidade, Á honra e a imagem do cidadão

XIV – combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, de orientação sexual, condição física ou mental ou de qualquer natureza.

Como dito, a imagem e honra dos acusados não foram em nenhum momento tratada com cautela e respeito. Todavia, o histórico social e condição econômica se sobrepuseram a obrigação, ética e responsabilidade dos veículos.

Art 70 O jornalista não pode:

V – usar o jornalismo para incentivar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime.

O jornalismo fez ironicamente uma cobertura violenta sobre um caso de violência. Usou sua influência para propagar a intolerância, mas, ressalta-se que, a intolerância a jovens marginalizados e supostamente criminosos e não a intolerância ao descaso e relação Á violência como um todo. A presente nas periferias, nas favelas e precariedade. Como diz o Art. 90 A presunção de inocência é um dos fundamentos da atividade jornalística.

Sendo também uma virtude, a confiança e boa-fé nas pessoas é um fundamento. Mesmo que as circunstancias apontem para somente uma verdade, é imprescindível investigar e apurar as informações, não dando espaço a acusações indevidas e

conclusões dos fatos sem a devida comprovação. Afinal, “o pré-julgamento é um dos principais crimes que o jornalismo comete”, (CRISTOFOLETTI, 2008, p.60).

Art.120 O jornalista deve:

II. – buscar provas que fundamentem as informações de interesse público.

III. – Tratar com respeito todas as pessoas mencionadas nas informações que divulgar.

VI – promover a retificação das informações que se revelem falsas ou inexatas e defender o direito de resposta. Às pessoas ou organizações envolvidas ou mencionadas em matérias de sua autoria ou por cuja publicação foi o responsável.

Esse último preceito sintetiza o caminho que todo jornalista e veículo de comunicação devem prezar para consequentemente garantir sua credibilidade. A verdade como guia, o público como referência e as devidas retificações, quando necessárias, caminham para um jornalismo ético, sem desvios e etiqueta. Esbarrando assim nos descaminhos de interesses senão o de real direito do público.

A ética como cita Bucci (2000) que deveria do grego éthos, está ligada aos costumes. Mostrando-se de forma individual e coletiva e que dessa mesma forma precisa ser refletida constantemente. Considerando também que o manual de ética do jornalista não é uma legislação, ou seja, um manual obrigatório e assegurado por leis, cabendo assim, somente ao indivíduo escolher o que lhe parece mais correto. E tomando também a ética como uma virtude, no Pequeno Tratado das Grandes Virtudes (1999), aponta-se a polidez como a primeira delas. A primeira das grandes e nobres virtudes, no entanto, é a mais carente, a mais superficial.

Quer dizer, para atingir o patamar das outras é necessário mostrar-se polida. No entanto, ser polida pode significar não ser verdadeiramente correta, virtuosa, ética. A polidez é “virtude puramente formal, virtude de etiqueta, virtude de aparato! A aparência, pois, de uma virtude, e somente a aparência.” (COMTE SPONVILLE,1999, p.5), ou seja, assim mostra-se a imprensa, sempre polida, premiada, mas nem sempre correta. Apenas formal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a análise do tema proposto, conclui-se que no caso Bar Bodega, a imprensa seguiu o que propõe a etiqueta. Os interesses de grupos e classes privilegiadas tomadas como referência, desviou a atividade jornalística do seu papel fundamental, a verdade.

Percebe-se também que os desvios éticos parecem seguir uma sequência, assim, ligam-se automaticamente uns aos outros. E falando-se de etiqueta, é mais notória ainda, a irresponsabilidade dos donos dos veículos de comunicação e chefes de redação, facilitando o rompimento ético.

O preconceito e tratamento desigual designado aos economicamente desfavorecido são alguns dos agravantes. Assim como, trabalhar buscando agradar ao público, mesmo que de forma destorcida e inverídica. Da mesma forma que se partidarizar disfarçadamente, como apontado. Tornando assim, os interesses privados em necessidades públicas. A ética aponta a checagem e a investigação, sendo essa uma técnica básica da profissão jornalística. No entanto, essas técnicas tomadas juntamente ao conceito de polidez revelaram-se transgredidas e manipuláveis.

A mesma polidez, aparência ou conveniência, tida, muitas vezes como reflexo da qualidade, competência ou eficácia distorce o trabalho jornalístico e sua essência. Rompendo os bons costumes. Traumatizando vidas. Promovendo desinteresses.

Assim, é preciso sepultar tais comportamentos, fazendo com que a imprensa volte a ser sinônimo de confiança e credibilidade. Mostrando seu verdadeiro vínculo com o jornalismo, a verdade. Bem como, dar voz aos desfavorecidos, buscar e defender o direito de todos acima de benefícios ou privilégios de outrem.

A obra estudada traz ao leitor com riquezas de detalhes os erros acometidos no caso. Ao longo do livro podemos perceber e sentir o qual é delicado o papel do jornalista. É um papel que exige muita responsabilidade, afinal está lidando diariamente com vidas, conceitos e reputações. O código de ética deve ser mais um guia para esses profissionais, sendo a empatia e responsabilidade social o primeiro de todos eles. A partir dos detalhes expostos na obra podemos fazer muitas reflexões acerca do jornalismo. Sendo a mesma uma referência de erros que podem ser evitados. Sendo também um dos casos retratados que vieram a conhecimento de todos, mas que devemos considerar que podem existe outros que não tiveram o mesmo destino, servindo assim como forte exemplo de responsabilidade profissional.

REFERÊNCIAS

BUCCI, Eugenio. Sobre ética e imprensa, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

BRASIL. Código Penal. Decreto Lei n 2.848 de 07 de dezembro de 1940. Vade mecum. São Paulo: Saraiva, 2008.

COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

CHRISTOFOLETTI, Rogério. Ética no jornalismo. São Paulo: Contexto, 2008.

FEDERAÇÃO NACIONAL DOS JORNALISTAS. Código de ética dos jornalistas brasileiros. Vitória, 2007. Disponível em: \federação\cometica\código

_de_ética_jornalistas_brasileiros.pdf. Acesso em: 06 de fevereiro de 2017.

FONSECA, Francisco. Mídia, Poder e Democracia: teoria e práxis dos meios de comunicação. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n.6, p.42-69, Julho- Dezembro, 2011. Disponível em: \index.php\rbcp\article\view\5731\4737> Acesso: 06 de fevereiro de 2017.

LEVIANDADE É CRIME. São Paulo: abril, 2008. Disponível em: \fsp\opiniao\fz0203200803.htm. Acesso em: 05 de fevereiro de 2017.

NARDONI, Alexandre.; JATOBÁ, A.C. Fantástico. São Paulo, Rede Globo, 20 abril 2008. Entrevista cedida a Valmir Salaro.

NOBLAT, Ricardo. A arte de fazer um jornal diário. São Paulo: Contexto:2010. ROSSI, Clóvis. Folha de São Paulo. 2 de abril de 2008, online

MULTIMÍDIA (CIBERCULTURA, CONTEÚDOS DIGITAIS E CONVERGÊNCIA TECNOLÓGICA)

REPORTAGENS E NARRATIVAS: UM ESTUDO SOBRE O JORNALISMO DE DADOS EM A PÚBLICA

Francisco Aquinei Timóteo Queirós14 Francielle Maria Modesto Mendes15

RESUMO

Este artigo analisa a reportagem “Em terra de índio, a mineração bate à porta” presente no conjunto de 21 matérias divulgadas pela Pública – Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo, no período de 3 de maio a 19 de outubro de 2016. A reportagem em estudo compõe o especial “Amazônia em disputa” – que conta com matérias sobre pistolagem e luta pela terra no sudeste do Pará, crimes ambientais em terras da União, assassinatos e grilagem. O objetivo é discutir como a Pública utiliza o jornalismo de dados para a configuração de suas reportagens e narrativas jornalísticas. Leonardo Mancini e Fabio Vasconcellos (2016); Chris Anderson, Emil Bell e Clay Shirky (2013); Daniela Bertocchi (2014); Suzana Oliveira Barbosa e Vitor Torres (2013) serão utilizados como embasamento bibliográfico.

Palavras-chave: Jornalismo de dados; Pública; Amazônia em disputa.

Introdução

O corrente estudo investiga a reportagem “Em terra de índio, a mineração bate à porta” contido no especial “Amazônia em disputa”, organizado pela Pública – Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo. Esse especial conta com 21 reportagens, elaboradas no período de 3 de maio a 19 de outubro de 2016. As informações foram organizadas com vídeos, gráficos, mapas e bases de dados abertos.

O objetivo do trabalho é identificar como os dados são utilizados para a tessitura da narrativa jornalística. Nesse sentido, o artigo leva em consideração as competências investigativa, interpretativa e comunicativa para pensar como as reportagens de dados podem auxiliar na prática do jornalismo pós-industrial.

14 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, na linha de pesquisa Linguagem e Práticas Jornalísticas, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Professor efetivo do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre (UFAC). Bolsista Prodoutoral (Capes). E-mail: aquinei@.

15 Professora Doutora do Programa de Mestrado em Letras e do curso de Graduação em Jornalismo na Universidade Federal do Acre (UFAC). Graduada em Comunicação Social/Jornalismo e Letras pela Universidade Federal do Acre (UFAC). Mestre em Letras (UFAC). E-mail: franciellemodesto@

.

A Agência Pública16 foi fundada em 2011 e segue o modelo de jornalismo sem fins lucrativos para manter a independência. A missão é produzir reportagens pautadas pelo interesse público, sobre as grandes questões do país do ponto de vista da população

– “visando ao fortalecimento do direito à informação, à qualificação do debate democrático e à promoção dos direitos humanos”. Funciona como uma agência: todas as reportagens são livremente reproduzidas por uma rede de mais de 60 veículos, sob a licença creative commons17.

A escolha da matéria de A Pública também se dá pela possibilidade de se vislumbrar novos modelos de negócios no âmbito do jornalismo. As reportagens veiculadas pela Agência seguem o modelo do jornalismo investigativo, focando na apuração em profundidade, problematizando os contextos e as consequências. As reportagens veiculadas pela A Pública se diferenciam do caráter do jornalismo web visto comumente – que é limitado pelo tempo e pela interferência de interesses comerciais. Em contraposição, a Agência aproveita as potencialidades da internet para apresentar as informações com mais complexidade, fazendo uso de recursos como galeria de fotos, imagens, áudio, vídeos, infográficos e base de dados, por exemplo.

Jornalismo pós-industrial

A discussão sobre base de dados e o uso que se faz dessas técnicas para a estruturação da narrativa jornalística é sintomático de um novo momento por que passa a indústria dos media, principalmente, dos jornais. O jornalismo é atravessado por marcas do pós-industrial, isto é, suas práticas não são mais organizadas segundo as

16 A PÚBLICA. Quem somos. Disponível em: < >. Acesso em: 16 dez. 2016.

17 Segundo Flasleandro Vieira de Oliveira (2011), a licença Creative Commons (CC) se caracteriza como uma organização não-governamental sem fins lucrativos, criada oficialmente em 2001 e estabelecida em Massachusetts, com sede na Stanford University. O CC tem origem na Licença Pública Geral do sistema GNU da Free Software Foundation (FSF), concebido por Richard Stallman. O CC foi criado e idealizado pelo professor Lawrence Lessig – que leciona na Escola de Direito da Stanford University e é um dos maiores defensores do movimento denominado Cultura Livre (O movimento denominado Cultura Livre visa a permitir que os elementos culturais produzidos por uma dada sociedade estejam disponíveis para outrem). Conforme o próprio Lessig, a expressão Cultura Livre se refere a culturas que deixam uma grande parcela de seus elementos culturais aberta para que outros possam ter acesso e fazer uso, sem haver a necessidade de pedir permissão. Para o professor da Stanford University, o conteúdo controlado, ou que exige permissão, diminui consideravelmente o potencial de circulação dos elementos culturais de uma dada sociedade. Nesta perspectiva, o CC se constitui num instrumento que viabiliza a abertura dos bens culturais de uma determinada sociedade para que outros tenham acesso.

lógicas do industrial (numa série produtiva), mas envolve uma dinâmica de complexidade que subsome diferentes atores sociais, distintas maneiras de circulação de informações, grande volume de dados, computação, inteligência artificial e algoritmos.

Daniela Bertocchi (2014) explica que o atual cenário apresenta um panorama mediático no qual mais técnicas serão utilizadas na confecção de notícias e reportagens. Emergem, nesse sentido, “análises algorítmicas de base de dados, visualização de dados, solicitações de conteúdos por parte de amadores, produção automatizada de narrativas, criação de narrativas baseadas em dados entre outros” (BERTOCCHI, 2014, p. 2).

O estudo desenvolvido por Anderson, Bell e Shirky (2013) aponta que a era industrial do jornalismo era marcada pela semelhança de métodos entre um grupo relativamente pequeno e uniforme de empresas e a incapacidade de alguém de fora desse grupo de criar um produto competitivo. Essas premissas já não se cumprem atualmente.

Se quisesse resumir em uma sentença a última década no ecossistema jornalístico, a frase poderia ser a seguinte: de uma hora para outra, todo mudo passou a ter muito mais liberdade. Produtores de notícias, anunciantes, novos atores e, sobretudo, a turma anteriormente conhecida como audiência gozam hoje de liberdade inédita para se comunicar, de forma restrita ou ampla, sem as velhas limitações de modelos de radiodifusão e da imprensa escrita. Nos últimos 15 anos houve uma explosão de técnicas e ferramentas. E, mais ainda, de premissas e expectativas. Tudo isso lançou por terra a velha ordem. (ANDERSON; BELL; SHIRKY, 2013, p. 32)

Já o jornalismo pós-industrial explora novos métodos de trabalho e guia suas atividades pelo aparato das mídias digitais. Nessa reestruturação, as instituições jornalísticas voltam-se para novas parcerias, com aproveitamento de dados de caráter público, com uma maior participação de indivíduos e máquinas na produção de informações em estado bruto.

Dessa forma, o papel social desempenhado pelo jornalista também se complexifica. O jornalista pós-industrial não deve se limitar a disponibilizar um conjunto de informações, porém deve contextualizar as informações de modo que chegue ao público e gere repercussão.

Jornalismo de dados

Mar de Fontcuberta (2006) destaca que o jornal vive no momento atual sob o império dos princípios da disjunção, redução e abstração – que em conjunto constituem o que se denomina como “paradigma da simplificação”. A autora explica que a forma “atomizada” de reportar aos contextos sociais implica em uma barreira para se compreender a realidade:

La disyunción y la reducción están presentes en la mayoría de las pautas periodísticas, configurando lo que Abraham Moles denomina "la cultura mosaico" para referirse a los contenidos ofrecidos por los medios de comunicación que define como fragmentarios, atomizados, y expuestos sin ninguna jerarquización. Moles denomina a esos contenidos "átomos de cultura", y considera que son un obstáculo para comprender la realidad. Precisa que el papel de la cultura consiste en proporcionar al individuo una pantalla de conceptos, sobre la cual éste proyecta y ordena sus percepciones del mundo exterior. (FONTCUBERTA, 2006, p. 11)

Para Fontcuberta (2006), a informação deve ser o mais confiável possível e suficientemente completa para permitir a compreensão da atualidade. Deve-se levar em consideração que a compreensão das notícias exige a inserção de um contexto, a explicação de suas causas e uma pergunta que explicite as suas consequências. A autora aponta para a passagem de um pensamento simplificador para uma perspectiva complexa de desvelamento da realidade social.

Anderson, Bell e Shirky (2013) se aproximam do pensamento de Fontcuberta quando destacam que o papel social do jornalista não pode ser resumido a mero narrador de fatos. Os autores destacam que a nova ambiência pressupõe um jornalista que não se restrinja unicamente à rotina de contar histórias, “mas que contextualize a informação de modo que chegue ao público e nele repercuta” (2013, p. 33).

Ao discutir os conceitos de sociedade complexa, Fontcuberta recorre a Edgar Morin (1997). O sociólogo francês explica que a complexidade é uma palavra problema e não uma palavra solução. Para Morin, a separação do conhecimento se viu agravada pela redução do complexo ao simples e por uma hiperespecialização que fragmenta o tecido social. Fontcuberta acrescenta que o pensamento simplificador não é capaz de conceber o singular e a realidade múltipla. Chega-se, nesse sentido ao que se denomina de inteligência cega, “que destruye los conjuntos y las totalidades, y aísla a todos sus objetos de sus ambientes. Morin considera que ello produce una patología contemporánea de pensamiento” (FONTCUBERTA, 2006, p. 10).

Para combater a “patologia contemporânea do pensamento” é preciso entender que o jornalismo passa por profundas transformações e que essas mudanças implicam

em novas maneiras de entender as dinâmicas sociais e as práticas jornalísticas. Sob essa perspectiva, Leonardo Mancini e Fabio Vasconcellos (2016) explicam o crescente interesse pelo jornalismo de dados (JD) – que baseado no modelo pós-industrial – ancora-se em “organizações com estruturas menores, mais dinâmicas e com a internet como aliada, e não inimiga, de suas práticas” (MANCINI; VASCONCELLOS, 2016, p. 70).

Mancini e Vasconcellos (2016) ressaltam que os pesquisadores e jornalistas brasileiros utilizam o termo JD numa acepção investigativa aliada às possibilidades das novas tecnologias. Nesse sentido, como corrobora Träsel (2013), as técnicas consistem na produção, tratamento e cruzamento de uma grande quantidade de dados. O JD permite uma maior eficiência na recuperação de informações, na apuração de reportagens a partir do conjunto de dados, na circulação em diferentes plataformas e na geração de visualizações e infografias.

Dito isso, o que precisa ser problematizado na definição do JD, para nós, em especial na maneira como existe no Brasil, é como a incorporação ou o aprofundamento de algumas dessas competências, até então pouco ou quase nunca utilizadas pelo jornalismo, altera o modo de fazer notícia ou, se preferirem, possibilita o manejo das novas técnicas na construção de conteúdos. Em síntese, não adianta a posse de software de análise estatística se não houver um profissional que conheça essa ferramenta, saiba como ela funciona e como ela pode atender ao propósito do jornalismo de produzir informação e conhecimento relevantes. (MANCINI; VASCONCELLOS, 2016, p. 72)

O documento produzido por Anderson, Bell e Shirky (2013) mostra que a prática jornalística sedimentada sob as tradicionais formas de organização e hierarquização passa por uma profunda mudança. Isso implica em novas maneiras de se organizar, de pensar as práticas e as narrativas jornalísticas e, também, de refletir sobre novos modelos de negócios que englobem a internet, um volume maior de dados e a arquitetura de conteúdos. Dessa forma, pensar o JD não se resume a dispor em tabelas um conjunto multifacetado de números, mas abrange alguns procedimentos como a coleta, organização e exploração de dados para se obter relações que podem ser significativas (MANCINI; VASCONCELLOS, 2016, p. 74).

Os dados, conforme explica Bradshaw (2014), citado por Mancini e Vasconcellos, agora também podem ser lidos e descritos como números, de forma binária 0 e 1 e assumir o formato de documentos confidenciais, fotos, vídeos e áudios. O autor destaca que o trabalho jornalístico sempre esteve envolto por dados. Contudo, o

que se apresenta agora é um conjunto de possibilidades que emergem quando se combina o tradicional faro jornalístico “e a habilidade de contar uma história envolvente com a escala e o alcance absolutos da informação digital agora disponível” (BRADSHAW, 2014 apud MANCINI; VASCONCELLOS, 2016, p. 70).

O JD impõe novas práticas ao trabalho jornalístico. Coddington (2014) apresenta um conjunto de categorias que definem como a figura do jornalista se insere nesse novo cenário. O autor aponta quatro tipologias. A primeira delas diz respeito ao caráter profissional, dispondo em campos opostos as figuras dos jornalistas experientes e os que buscam uma formação em rede. Enquanto os jornalistas experientes estão mais propensos às rotinas e às normas, os profissionais em rede são mais abertos a intercambiar conhecimentos, até mesmo com os não jornalistas. Uma outra categoria diz respeito à transparência das técnicas, isto é, como os jornalistas tornam inteligível a gama de métodos utilizados. A terceira tipologia considera as amostras quantitativas utilizadas, entre elas o Big Data e as bases de dados, por exemplo. A quarta dimensão pressupõe a compreensão do papel do público leitor. Toma-se aqui a noção de público aliada à ideia de partícipe do processo de produção e apreensão da notícia.

Nesse sentido, percebe-se que o JD modifica a forma de apurar, de verificar as informações e, principalmente, de compreender como os dados podem conduzir a reportagem. Sob esse prisma, pode ser afirmado que o dado se configura como uma matriz da pauta e como o catalisador da narrativa jornalística.

A reportagem “Em terra de índio, a mineração bate à porta”

Para o estudo da reportagem “Em terra de índio, a mineração bate à porta” serão utilizadas três categorias de análise, que são: a investigativa, a interpretativa e a comunicativa. A partir dessas competências, busca-se apreender como se dá o tratamento dos dados, como são narradas as histórias e, por fim, como a reportagem converte o apanhado de dados em uma narrativa visualmente inteligível, em uma história.

O especial “Amazônia em disputa” apresenta ao todo 21 reportagens. As bases de dados18 utilizadas para a tessitura das matérias foram divididas nas categorias de Cadastro Ambiental Rural, Comunidades Rurais, Meio Ambiente e Terras. A Pública

18 A PÚBLICA. Base de dados. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2016.

também fez quatro vídeos19 de 11 minutos que explicam a questão indígena, a grilagem de terras, a pistolagem e o conflito agrário na Amazônia Legal. Para corroborar com a visualização dos dados levantados, a reportagem produziu três mapas20 mostrando as regiões percorridas. Por fim, foram feitos três infográficos21 sobre os impactos da mineração em terras indígenas.

Na reportagem “Em terra de índio, a mineração bate à porta”, publicada em 20 de junho de 2016, os jornalistas Caco Bressane, Ciro Barros e Iuri Barcelos utilizam dados do Instituto Socioambiental (ISA); do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM); do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para compor os infográficos e a narrativa da reportagem.

A matéria ancora-se em dados para mostrar que apesar da proibição constitucional, os órgãos federais têm se colocado em campo oposto sobre a validade de registrar processos minerários em território indígena. Segundo a reportagem, um terço das áreas na Amazônia Legal é cobiçado:

Levantamento da Pública com base em dados do Instituto Socioambiental (ISA) e do DNPM mostra que a mineração, uma atividade que sobrevive do proveito da terra, sobretudo a inexplorada, está cada vez mais atraída pelos territórios indígenas do Brasil. Na Amazônia Legal, por exemplo, região que engloba nove estados, um terço das áreas indígenas tem processos desse tipo, que vão do desejo de explorar ouro, diamante e chumbo a minérios como cassiterita, cobre e estanho. Nessa região, a proporção é de uma terra indígena para cada dez processos minerários. Campeão nacional, o Pará concentra 50% desses processos em TIs já identificadas oficialmente pela Funai. Em algumas situações, áreas indígenas paraenses estão completamente cobertas pela cobiça da mineração, que, a despeito da recente queda dos

preços das commodities, teve uma produção que praticamente dobrou na última década e fora fomentada, principalmente, por empresas como a Vale S.A., uma das maiores do mundo no setor e segunda colocada no ranking das empresas com mais processos minerários em TIs. (BRESSANE; BARROS; BARCELOS, 2016, online)

Para compreender como o JD pode embasar e complexificar o processo de investigação, apuração e de escrita da reportagem, tomamos como base o trabalho de Stray (2014). O autor aponta três etapas que diferenciam esse tipo de jornalismo do tradicional.

19 A PÚBLICA. Vídeos. Disponível em: < >. Acesso em: 20 dez. 2016.

20 A PÚBLICA. Mapas. Disponível em: < >. Acesso em: 20 dez. 2016.

21 A PÚBLICA. Infográficos. Disponível em: < >. Acesso em: 20 dez. 2016.

As categorias apontadas pelo autor ficam patentes na reportagem aqui estudada. Stray (2014) destaca que os procedimentos de apuração do JD seguem as etapas da quantificação, da análise e, por fim, do processo de comunicação. A etapa de quantificação transforma o mundo em dados e o processo seguinte – que é de análise – transforma os dados em conhecimento. A partir do momento em que o dado é transformado em conhecimento, o jornalista pode fazer comparações, cruzar informações e levantar hipóteses. A derradeira etapa é transformar a quantificação dos dados e as análises em comunicação. Na etapa final, todos os suportes necessários são reunidos para tornar os dados inteligíveis para o leitor. Na reportagem em estudo, constata-se que os jornalistas utilizam além dos mapas e dos vídeos, um conjunto de três infográficos.

Dos dados a reportagem, a narrativa jornalística segue uma matriz disposta sob a dimensão investigativa, interpretativa e comunicativa. A dimensão investigativa busca identificar se a reportagem apresenta dados coletados pela equipe de jornalistas (responsável por extrair e estruturar o material bruto de alguma base) ou se os profissionais apenas organizaram e produziram os próprios dados.

Reportagens desse tipo tendem a trazer no seu enunciado indicações sobre o esforço da própria equipe ou mesmo indicações sobre o ineditismo do dado apresentado após a busca e/ ou estruturação feita pela equipe. (MANCINI; VASCONCELLOS, 2016, p. 76)

Percebe-se na matéria que além do viés apontado pela dimensão investigativa, a reportagem também exibe marcas da matriz interpretativa. O texto apresenta uma gama profusa de dados – abarcando as causas e as consequências da mineração em terra indígenas. Alia-se, portanto, o conteúdo da reportagem ao seu contexto. O jornalista oscila entre uma análise direta dos dados e das falas dos entrevistados. Tal aspecto pode ser percebido no excerto que segue:

Lideranças indígenas falaram sobre a questão durante o último Acampamento Terra Livre, mobilização indígena realizada em Brasília no mês passado. Os depoimentos evidenciam não só a preocupação com a mineração, mas com a invasão de garimpeiros, atividade também proibida a não índios. A invasão de terras indígenas em busca das riquezas naturais do território vem aumentando. Segundo os dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as ocorrências de violência contra o patrimônio dos indígenas subiram de 11 casos registrados em 2003 para 84 casos em 2014: aumento de mais de 600%. Segundo o Cimi, violência contra o patrimônio são invasões de terras indígenas para exploração ilegal de recursos naturais, posse da terra e danos diversos. (BRESSANE; BARROS; BARCELOS, 2016, online)

Além das matrizes investigativa e interpretativa, outro aspecto importante da enunciação dos dados diz respeito à visualização. Nesse sentido, a dimensão comunicativa procura organizar o conjunto de informações no formato de gráficos, infográficos ou mapas. Na reportagem em análise, foram elaborados três infográficos que explicam a mineração em terras indígenas. Segundo Mancini e Vasconcellos (2016), a visualização permite que o conteúdo da reportagem seja aprimorado pela comunicação visual e “promova/incentive a compreensão analítica da reportagem de dados” (2016, p. 76).

Ademais dos carácteres investigativos, interpretativos e comunicativos, outro aspecto que deve ser levado em consideração é o narrativo. Bertocchi (2014) destaca que a narrativa no contexto específico do ciberjornalismo promove a junção de dados e metadados. Nesse sentido, o conceito de narrativa é reformulado. Passa-se de um modelo estático para uma perspectiva pós-moderna que apreende o texto como processo dinâmico.

(...) as narrativas pós-modernas são formas mais complexas e ganham formatos experimentais oriundos de inovações tecnológicas. Na transição da narrativa tradicional para a pós-clássica (...) a visão passa da "descoberta para a invenção", da "coerência para a complexidade" e da "poética para a política" (BERTOCCHI, 2014, p. 6)

Nesse ambiente de dados e metadados, a figura do jornalista é percebida como um “designer de experiência” – porque se exige que ele tenha competência para assimilar os dados e seja capaz de modelar a narrativa em camadas, “tendo como objetivo uma experiência narrativa centrada nos usuários” (BERTOCCHI, 2014, p. 13).

Suzana Oliveira Barbosa e Vitor Torres (2013) citam Lev Manovich e Elias Machado para explicar que as narrativas jornalísticas se constituem cada vez mais como um espaço estruturado na forma de base de dados. Na reportagem “Em terra de índio, a mineração bate à porta”, a narrativa emerge como um sistema aberto e complexo em que os dados integram métodos de apuração, composição e edição de conteúdos. Percebe-se, portanto, que o JD orienta e apoia o processo de apuração, coleta e contextualização das narrativas.

Considerações finais

O jornalismo pós-industrial aponta para novos caminhos com redações mais enxutas, maior volume de informações e ruptura com os modelos tradicionais de negócio. Diante disso, é preciso encontrar alternativas para que o jornalismo não perca suas funções sociais.

No presente trabalho, tomou-se a reportagem “Em terra de índio, a mineração bate à porta” para problematizar os conceitos de JD, buscando entender de que forma as técnicas jornalísticas podem auxiliar na apuração, análise e investigação. Percebe-se, desse modo, que o JD pode assumir uma narrativa que foge da lógica abissal, abrindo espaço para a complexificação do fato.

Nesse cenário, o jornalismo de Pública desempenha um papel importante na problematização do acontecimento e na articulação da notícia com os aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais. Insere, pois, efetivamente, a notícia como elemento de inteligibilidade do contexto social e de compreensão dos sujeitos que compõem a arena histórica.

A partir dos estudos sobre JD, apreende-se que a prática jornalística centrada na configuração social, econômica e política permite a enunciação de um discurso e de uma narração que problematize e complexifique as distintas realidades que compõem o contexto social. Dessa forma, o jornalismo contemporâneo, mesmo diante de tantas mudanças, pode ir além das simplificações, permitindo-se lançar um olhar heurístico sobre os fatos que compõem a realidade.

REFERÊNCIAS

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TRÄSEL, Marcelo. Jornalismo guiado por dados: relações da cultura hacker com a cultura jornalística. Disponível em: . Acesso em: 14 dez. 2016

DIGITAL INFLUENCER: EXPLORANDO UM CONCEITO22

Pâmela Rocha de FREITAS23 Wagner da Costa SILVA24

Resumo

Os avanços tecnológicos e a popularização da internet possibilitaram novas formas de comunicação. As pessoas ganharam um maior espaço no campo virtual para expor suas opiniões, compartilhar seus gostos e conhecer o cotidiano do outro e divulgar o seu. Na seara virtual, os perfis que mais se destacam passaram a ser chamados de influenciadores digitais. O presente artigo tem a proposta de analisar o conceito de digital influencer à luz de Recuero (2009) e Karhawi (2016), e entender como essas pessoas ganharam espaço e aceitação do público.

Palavras-chave: cibercultura; digital influencer; redes sociais.

Redes sociais e digitais influencer: tecendo aproximações

Desde a sua expansão a partir da década de 90 a internet trouxe uma maior acessibilidade e interatividade para as pessoas. Dinamizou, entre outras coisas, as formas de comunicação. Uma melhoria na qualidade das conexões nos últimos anos e o barateamos no preço de equipamentos que dão acesso à rede tem possibilitado um público cada vez mais conectado. Hoje, pessoas de diferentes idades acessam os conteúdos disponíveis na internet a partir de seus computadores, notebooks, tablets e, principalmente, celulares. São tempos de convergência, de comunicação em tempo real, tempos de navegar.

Nesse contexto de ascensão as redes sociais vem ganhando um maior espaço e aceitação entre a população. Recuero (2009, p.16) destaca que o advento da comunicação mediada pelo computador mais do que permitir aos indivíduos comunicar- se, amplificou a capacidade de conexão, permitindo que redes fossem criadas e expressas nesses espaços: as redes sociais mediadas pelo computador.

22Trabalho apresentado à LT4: Multimídia

23Estudante de Graduação 2º. semestre do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre –Ufac, e-mail: pamela_rocha_@

24Orientador do trabalho. Professor do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre - Ufac, e- mail: wagnercostas@

Para a autora, uma rede social é caracterizada por um conjunto de dois elementos: atores (pessoas, instituições ou grupos; os nós da rede) e suas conexões (interações ou laços sociais). Uma rede, assim, é uma metáfora para observar os padrões de conexão de um grupo social, a partir das conexões estabelecidas entre os diversos atores.

Figueiredo (2009, p.21) afirma que [...] ‘a internet tornou as informações mais acessíveis. As pessoas estão interessadas em interagir umas com as outras, estão em busca de informação, [...] querem ser escutadas e opinar sobre tudo’. Buscam, dessa forma, ter voz e debater o que conhecem e o que querem conhecer, e a internet parece ser o lugar ideal para isso se concretizar.

Boyd & Ellison (2007) definem as redes sociais como: a) a construção de uma persona através de um perfil ou página pessoal; b) a interação através de comentários; e

c) a exposição pública da rede social de cada ator. A pessoa cria um perfil em determinada rede social, alimenta aquele perfil com conteúdo diário, e assim criam vínculos com as pessoas que interagem com ela a partir daquela rede social.

Pode-se pensar que as redes sociais são novidades do mundo globalizado que temos hoje, mas na verdade já são velhas conhecidas da história. Desde os primórdios os homens se reuniam para compartilhar interesses em comum, isso só vem aumentando com o passar dos anos. Hoje nas redes sociais podemos nos conectar a grupos de interesses em comum, independentemente de quais eles sejam, indo de culinária até signos, produzindo conteúdos, compartilhando conhecimentos, tecendo novas possibilidades de interagir com a realidade.

Mais importante ainda do que aumentar a quantidade, a tecnologia permite que todos participem da criação e do fornecimento de informações em seus círculos de convivência. Com a liberação do polo de emissão, qualquer indivíduo pode agir como um jornalista, por exemplo. Gravar um assalto dentro do ônibus e enviar ao telejornal local é uma prática simples hoje em dia. Da perspectiva dos negócios, as redes sociais significam a possibilidade das instituições estabelecerem um canal de interação com o público, onde essa conversa pode ser solicitada, promovida e rentabilizada. (TESSAROLO e SILVA, 2016)

Os meios de comunicação de massa (televisão, rádio, jornais e revistas), nesse novo cenário, parecem já não suprir as necessidades dos consumidores que querem cada vez mais um conteúdo específico, voltado diretamente para eles. Figueiredo (2009, p.21) contextualiza:

Para acompanhar tais transformações, o mercado também precisou mudar a sua forma de comunicação com o seu público, procurando novos meios para comunicar-se e novas formas de abordagem, ficando evidente que as antigas já não eram suficientes para atrair seus consumidores.

Uma das vantagens das redes sociais é a facilidade de emergência social. Por exemplo: um internauta pode conseguir rapidamente 500 seguidores no rede Instagram, enquanto no mundo off-line ele poderia levar quase uma vida toda. Isso seria possível em decorrência de sua popularidade e qualidade naquilo que posta. Figueiredo (2009, p.47) conceitua como instinto propagador dos usuários, que faz com que qualquer novidade que caia no gosto deles se espalhe em ritmo epidêmico na rede.

Vivemos a era do virtual, postamos tudo e queremos saber de tudo. Tiramos fotos indo pra academia, fazemos check-in no Outback, tiramos selfies no trânsito e nos interessamos pela rotina de desconhecidos que partilhem os mesmos interesses que nós. E com isso abrimos espaço para uma nova figura, o digital influencer. Temos uma sociedade baseada na repercussão causada por uma publicação feita no mundo virtual. Para Karhawi (2016, p.50)

Isso significa que a emergência de influenciadores digitais, de sujeitos que lidam não apenas com a criação de conteúdo, mas também com a exposição de sua imagem no ambiente digital, só é possível pelos regimes de visibilidade que aceitam e sustentam essas práticas contemporâneas.

Para se ter noção da dimensão das redes sociais, Mark Zuckerberg, presidente do

Facebook, anunciou no final de junho deste ano que a rede social tinha alcançado a marca de 2

bilhões de usuários25, atualmente a população mundial gira em torno de 7,6 bilhões de pessoas26, fazendo os cálculos, cerca de 26,5% da população mundial está conectada ao Facebook. Já o Instagram nos últimos dois anos dobrou o número de usuários, passando dos 700 milhões27, enquanto o Snapchat engatinha com seus 166 milhões de usuários diários28.

2.0 Entendendo o conceito de digital influencer

Antes até de se pensar em digital influencer como um termo ou encarar isso como um job, Recuero no ano de 2009 nuances do conceitos desse novo personagem do mundo virtual. À época a autora voltava-se para a figura do blogueiros, pessoas que produziam conteúdos em seus blogs, usavam para trocar informações e conversar, e buscavam alcançar um público cada vez maior. ‘Os blogueiros que buscam autoridade preocupam-se em construir uma reputação relacionada a um assunto específico, mais do que apenas ser reconhecidos como alguém que está interessado em alguma coisa’ (RECUERO, 2009, p.113).

Nesse caminho, podemos tomar tal afirmativa como base para entendermos quem são esses influenciadores digitais nos dias de hoje. Atualmente no contexto da internet e das redes sociais, vale ressaltar que não temos o papel de emissor de informação e receptores bem definidos, pois todos conectados podem produzir e consumir conteúdo, em muitos casos até simultaneamente. E isso facilita uma pessoa comum de se tornar conhecida na web, pois ela pode começar a produzir conteúdo em alguma plataforma digital como: Instagram, Snapchat ou YouTube, e ganhar seguidores interessados em suas postagens e conquistar cada vez mais visibilidade no campo virtual.

Os veículos publicitários têm nas novas tecnologias um forte aliado para chegar a seu público. Público esse que está cada vez mais bem dividido em seus nichos de interesses. Figueiredo (2009, p.26) comenta que:

25 Disponível em

26 Disponível em

27 Disponível em < >

28 Disponível em < acoes-da-empresa-despencam/68193>

A internet possibilitou a abertura de novos espaços para os consumidores expressarem o que pensam, opinar, criticar, mostrarem quem são através de conteúdo gerado por eles próprios, características estas que fazem desse momento um marco na história da comunicação.

Quando esses influenciadores escolhem um campo temático para se estabelecer e começam a produzir conteúdo, fidelizando seu público, eles começam a criar parcerias comercias com empresas da área para direcionar cada vez o conteúdo produzido por eles, e se tornarem referência no assunto. É o caso da Gabriela Pugliesi, que é conhecida nas redes sociais pela temática fitness, e tem parcerias com marcas de roupas, suplementos alimentares, nutricionista, academia29.

A construção das web celebridades é constituída agora de forma mais espontânea e menos forçada, ao menos é que eles deixam transparecer, para passar a impressão de pessoas reais, gente como a gente, e se distanciar cada vez mais dos estereótipos das celebridades das mídias tradicionais que quase nunca são acessíveis ao público e são difíceis de alcançar. E isso só é possível pela exposição diária a que se submete a pessoa em questão, a sua rotina exposta em uma rede social.

O que mais atrai o público no perfil do influenciador digital é a escrita na forma da primeira pessoa, a pessoalidade com que o criador de conteúdo fala sobre aquilo que está divulgando, dividindo experiências com as pessoas que o acompanham e dinamizando a publicidade. Karhawi (2016, p.44) afirma que eles ‘têm espaço no ambiente digital, pois precisamos de filtros de informação, e não são filtros genéricos, mas pessoais, que expressem sua opinião sem restrição’.

Mas esses creators não estão só no mundo online, estão na televisão, nos filmes, nos best-sellers, estão nas premiações, nos eventos, em capas de revistas, em matérias de jornais. São pessoas que ganharam espaço no mundo virtual mas conseguiram migrar também pro off-line, numa forma de conquistar cada vez mais espaço e mais público. E para as empresas é importante que se mescle a popularidade de uma pessoa em vários âmbitos da publicidade, e não apenas num único canal de acesso ao público.

29 Pode ser visto em sua página no Instagram Acessado em 19 de Julho de 2017.

Mesmo muitas vezes sem perceber, os internautas criam laços com essas pessoas, pois não as veem como vendedoras de produtos e/ou da sua imagem, mas como amigos conversando e compartilhando suas experiências. Para Karhawi (2016, p.46) o público ‘legitima o influenciador digital na medida em que ele constrói uma relação sincera, genuína e íntima com a comunidade a sua volta’. Mas, vale lembrar que eles são sim vendedores, e não apenas de algum produto em si, mas também vendedores da própria imagem.

A abordagem do influenciador ocorre de forma mais dinâmica e menos mecânica. Um exemplo são as influenciadoras de cosméticos que fazem os tutorias, que são vídeos ensinando o passo a passo de como usar determinado produto, ou as resenhas, que podem ser escritas ou gravadas em vídeo, onde elas detalham como foi o uso do produto, quais as dificuldades, como funciona, e o principal, qual resultado ela obteve com o produto.

Ser influenciador digital é uma profissão. E requer dedicação exclusiva 24 horas por dia, porque se alimenta do material criado e de sua publicidade, então quanto mais material ele produz, mais vínculos ele cria, e mais credibilidade ele passa para seus seguidores, mantendo sua consistência editorial.

3.0 A aplicação do conceito de digital influencer: um olhar inicial

Para entendermos melhor o perfil do influenciador digital, falaremos de dois específicos. A primeira, Camila Coelho, mineira de 29 anos que mora nos Estados Unidos desde os 14 anos de idade. Sempre gostou de maquiagem, e quando trabalhava como maquiadora de departamento na Dior, em 2010, viu pela primeira vez um tutorial de maquiagem no YouTube (na época esse tipo vídeo ainda não eram comuns), e pensou que poderia fazer aquilo também, contou ela em um vídeo no seu canal do YouTube USA30.

A partir daí começou a gravar seus próprios tutoriais em vídeos caseiros com câmeras nada profissionais, e os vídeos foram se tornando populares entre suas amigas, e amigas de amigas e assim foi seguindo. Com cada vez mais visualizações, as pessoas

30Disponível em inglês em

pediam para ela escrever em um blog, fazendo resenhas dos produtos que usava, falando sobre moda e estilo de vida. Assim, 6 meses após a publicação do seu primeiro vídeo, começou um blog chamado Super Vaidosa (hoje o blog leva o nome dela, Camila Coelho).

Atualmente seu blog tem mais de 1 milhão e meio de visitas, possui também quase 6 milhões e quatrocentos mil seguidores no Instagram e seu canal no YouTube Brasil conta com pouco mais de 3 milhões inscritos, somados ainda a 1 milhão de inscritos do canal em inglês. Camila Coelho virou referência não só no mundo dos cosméticos, no mundo fashion também. Esse ano acompanhou pelo terceiro ano consecutivo os desfiles da Dior e Louis Vuitton na semana de moda em Paris31.

Karhawi (2016, p.42) conceitua o perfil do influenciador digital nos dias de hoje

como:

[...] os influenciadores constituem-se como marcas e, em muitos casos, constituem-se como veículos de mídia. Não estamos apenas lidando com influenciadores no âmbito digital [...] o influenciador contemporâneo está nas capas de revistas, em propagandas de televisão, na lista de best sellers das livrarias, estrelando campanhas de grandes marcas.

Esse conceito de Karhawi pode ser identificado em Camila Coelho, que ganhou status de influenciadora dentro e fora do mundo virtual. Ao ser um referência no espaço virtual, a youtuber conquista um grana de número de seguidores e a sua avaliação de produtos, tutorias que faz chamam a atenção de um grande número de pessoas. No entanto, ela também é referência no espaço offline, estrelando campanhas ou fazendo presenças em desfiles importantes, o que fica presente na pesquisa “Liderança de opinião e moda na internet: estudo de caso da blogueira Camila Coelho”

Atualmente o blog Super Vaidosa, conta com parceria comercial fixa com onze marcas que já são consolidadas no mercado de moda e beleza nacionais e internacionais. Entre os nomes estão: Sigma, F*Hits, Avon, Schutz, Ludora e ainda, lojas online como

31Disponível em fashionistas-e-revela-os-cantinhos-secretos-de-paris.html

Flor de Menina, FabulousStore e Bora Colega Shop. (JESUINO, 2014, p.90)

O segundo influenciador é Felipe Neto, um youtuber brasileiro que começou a gravar vídeos em 2010 onde ficou conhecido por discutir e emitir fortes opiniões sobre diversos assuntos, dentre os quais política e estreias de cinema. Seu canal no YouTube Brasil chamado de “Não Faz Sentido” (atualmente o canal leva o seu nome), foi o primeiro canal a conseguir 1 milhão de inscritos, atualmente conta com quase 12 milhões e meio de inscritos32.

Já em 2011 criou em paralelo ao seu canal pessoal, o canal Parafernalha, também no YouTube, que tem um conteúdo mais humorístico. Parafernalha foi o primeiro canal brasileiro a conseguir 2 milhões de inscritos, hoje o número gira em torno de 9 milhões. O conteúdo em ambos os canais é criado exclusivamente para o YouTube. Nessa época também fundou uma agência de canais do YouTube, a Paramaker que produzia canais conhecidos de outros influenciadores como: 5inco Minutos, de Kéfera Buchman e o Eu Fico Loko, de Christian Figueiredo. Posteriormente vendeu a agência para uma multinacional francesa para se dedicar só a criação de seus vídeos33.

Essa visibilidade e influência que Felipe Neto atingiu na rede só é possível segundo Karhawi (2016, p.42-43) pois ‘um influenciador produz conteúdos temáticos, com frequência e credibilidade. Nesse processo, ele deixa de ser um internauta comum e passa a ser encarado como uma mídia autônoma, uma marca’.

Por anos tivemos uma publicidade sem rosto, sem identificação, apenas pensada de uma forma geral para gerar lucros. Hoje em dia, essa publicidade ganhou rosto, os influenciadores digitais, e estão cada vez mais focadas em atrair grupos específicos de pessoas. Isso gera possibilidades para influenciadores de diferentes gêneros, pois com a dinamicidade da internet todo conteúdo tem seu espaço.

Considerações Finais

32 Disponível em

33 Disponível em paramaker-para-multinacional-francesa-retoma-carreira-artistica-17488339

O influenciador digital vem ganhando cada vez mais espaço no mundo das celebridades e principalmente da publicidade, por isso a necessidade de estudar esse sujeito, que nos dias atuais virou uma profissão. Essa influência origina-se da identificação do público com o influenciador, no entanto ele precisa possuir uma linha editorial, e assiduidade na publicação de conteúdos para gerar credibilidade e fidelizar seus seguidores, para ganhar título de expertise e reconhecimento.

Vale lembrar que o trabalho do influenciador não pode ser genérico, ele trabalha com grupos específicos de pessoas e esse é o seu diferencial, saber dialogar com o seu público em particular. Isso que o difere dos grandes veículos de mídia. São didáticas diferentes para públicos diferentes. Eles são divididos por temas como: culinária, cosméticos, fitness, mas, o que eles precisam ter em comum? Serem bons comunicadores, saber interagir com seu público.

No mundo virtual vivemos a emergência da informação, tudo tem que ser postado na hora. E a figura do digital influencer aparece se deferindo das celebridades dos meios de comunicação em massa pois eles estão diariamente compartilhando sua vida e rotina. Ao conhecer e acompanhar a rotina dessas pessoas o público passa a reproduzir certos hábitos após se identificar com o influenciador. Pois eles são vistos como pessoas acessíveis, quase como um amigo, que troca informações e dá dicas de atividades, lugares e serviços.

Com uma linguagem de fácil compreensão e uma conversa quase que íntima, o influenciador transmite ao público credibilidade. Credibilidade essa que dificilmente é vista numa propaganda de televisão, pois é transmitida em um discurso pronto nitidamente focando apenas em lucro para a empresa. Não que o influenciador não esteja ‘vendendo’, mas ele procura abordagens mais suaves e sem ‘cara’ de publicidade.

Portanto, conclui-se que a imagem do influenciador digital passa mais credibilidade pelo fácil acesso e entendimento ao conteúdo por ele produzido, pela dinamização produzida por ele para que o público se identifique com o que está sendo proposto e pelo feedback que permite saber como está a repercussão com as pessoas.

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QUANDO A FONTE É O WHATSAPP: PROBLEMAS ÉTICOS

Alyne Brandão Alves34

Resumo

O presente artigo que se apresenta pretendeu analisar a luz do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros algumas questões relacionadas à influência do aplicativo Whatsapp como fonte para a produção de notícias. As possíveis facilidades que o aplicativo tem oferecido para a profissão jornalística como também os problemas éticos envolvidos na má utilização deste recurso quando utilizado como única fonte de informação. Foram elencados pontos positivos e negativos da utilização desta ferramenta comunicacional e baseados nas orientações contidas no código analisamos a postura do profissional de jornalismo diante do uso desta rede social como fonte de informações. Para fundamentar a proposta foram utilizados autores como Christofoletti (2008), Tófoli (2008), Kenn (2009), Pompéo & Franceschi (2016), entre outros.

Palavras-chave: Ética; jornalismo; Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros; Whatsapp.

A história do jornalismo que está diretamente relacionada com a história da imprensa data seu início no século XIX, embora somente no século XX, com o surgimento dos meios de comunicação social, tenham ganhado maior relevância e destaque. Antes do surgimento da Internet e dos mais modernos avanços tecnológicos que vemos na atualidade, e que tão rápido quanto surgem tornam-se desatualizados, o jornalismo pode ser considerado como um conjunto de técnicas que procuram associar saber e ética de forma a tornar público informações e conteúdos de relevância social, sendo que dos acontecimentos sociais e que surgem as demandas para a atuação jornalística.

Rabaça & Barbosa apud Ferreira et.al (2015):

consideram o jornalismo como a atividade profissional que tem por objeto a apuração, o processamento e a transmissão periódica de informações da atualidade, para o grande público ou para determinados segmentos desse público, através de veículos de difusão coletiva (jornal, revista, rádio, televisão, cinema, etc.” (FERREIRA et. al, 2015, p. 1-2).

Esta definição mais moderna que leva em conta os mais diversos veículos de difusão de informações tem como principal ferramenta a Internet.

O surgimento da Internet que se deu na década de 1960, partindo da atuação militar em circunstância da Guerra Fria onde os Estados Unidos da América através e peritos militares criou a ARPANET - Advanced Research Projects Agency Network, rede da

34 Estudante de Graduação do 4° semestre do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre.

Agência de Investigação de Projetos Avançados dos Estados Unidos como uma ferramenta de comunicação inovadora utilizada contra a antiga União Russa Socialista Soviética (OLIVEIRA, 2007, p. 39).

Inicialmente pensada para fins militares e para atender somente aos interesses econômicos da “elite” a Internet passou ao uso civil e não demorou muito se tornou um meio de comunicação de massa. Essa descoberta possibilitou depois de seus avanços uma revolução em proporções mundiais no que diz respeito aos aspetos sociais, comunicacionais, políticos econômicos, etc.

A atuação jornalística, antes relegada somente à apuração de informações quase que exclusivamente presencial, tendo alguns recursos tecnológicos como televisão, o rádio, o telefone e outros mais que auxiliavam na produção de notícias, hoje podemos dizer sofreu mudanças significativas dadas às novas tecnologias na era digital. O uso de aparatos tecnológicos tornou-se essencial para o jornalismo em todas as suas esferas, televisiva, radiofônica, na web, impressos e muitos outros meios de comunicação.

Com o avanço da tecnologia diversos programas e aplicativos surgiram como forma de facilitar a comunicação entre usuários de todo o mundo. O aplicativo Whatssap surge como uma destas facilidades para a comunicação. Criado em 2009 no Vale do Silício, por dois jovens ex-funcionários da empresa Yahoo, Jan Koum e Brian Acton, o Whatsapp já possuía mais de 450 milhões de usuários em 201435 um crescimento vertiginoso se comparado a outra rede social mundialmente conhecida o Facebook que tendo surgido em 200436, possuía 145 milhões de usuários em 2013. O aplicativo Whatsapp chegou a marca de 1 bilhão de usuários em fevereiro de 201637. Segundo o site Forward foi vendido em 2014 para o Facebook, cuja atual CEO é Mark Zuckerberg, por vinte e dois bilhões de dólares americanos38.

Mark Zuckerberg declarou em seu blog "Isso é quase uma em cada sete pessoas na Terra que usa Whatsapp todo mês para estar em contato com seus amados, amigos e família"39 , disse o time do WhatsApp em um post de seu blog, representando de forma clara como esta ferramenta de comunicação tem alcance em diversas esferas sociais e aplicações diversas.

35 Extraído de

36 Extraído de

37 Extraído de e .

38 Extraído de

39 Extraído de

A democratização da internet oportunizou a disseminação dos mais variados aplicativos e programas de uso gratuito, o que possibilitou ao público o surgimento de uma ampla diversidade de produtores de conteúdos. O aplicativo Whatsapp a qual por meio deste artigo propomos analisar é considerado uma rede social de ampla divulgação de informações e conteúdos produzidos com diversas finalidades.

O programa de celular que disponibiliza atualmente, não só o compartilhamento de informações por meio de mensagens inscritas como também chamadas de voz e vídeo, possibilita a formação de grupos de pessoas por afinidades como, vendas, relacionamentos familiares, humor, hobby, acadêmicos, profissionais, notícias, e a lista não poderia ser completada dada a grande variedade de possibilidades que esta rede social pode oferecer.

Ao contrário de outras plataformas de redes sociais que dependiam de acesso discado de internet e disponibilidade de desktop, o whatsapp tornou-se uma multiplataforma que revolucionou por transmitir dados sem custos para os usuários, diferentemente do SMS cobrado pelas operadoras de telefonia e com pouca versatilidade. O aplicativo surge com mais uma ferramenta para facilitar a comunicação entre usuários do aplicativo, de forma acessível e de baixo custo, tornou-se para alguns quase como que uma “necessidade básica”, sendo utilizada por mais de 1 bilhão de usuários em todo o mundo40, segundo o Estadão Jornal Digital.

A utilização do aplicativo vai além da comunicação entre pessoas possibilitando também grande circulação de informações, o que é utilizado como uma forma de contato entre o público em geral e os meios de comunicação ou produtores de notícias.

Para podermos ter uma dimensão mais real de como as pessoas utilizam o aplicativo entrevistamos três usuários e não usuários do aplicativo Whatsapp, que não serão identificados por seus nomes, mas por profissões e letras, como veremos a seguir.

Muito conhecido e difundido nas várias classes sociais, o aplicativo é manuseado por pessoas com maior ou menor grau de instrução educacional, até mesmo podendo ser utilizados por pessoas com pouca capacidade de leitura, pois o programa possibilita a gravação de áudios e vídeos, requerendo apenas o conhecimento básico do manuseio de algumas teclas. Mas, ainda não podemos afirmar que todos os usuários de telefonia celular têm o conhecimento ou interesse no aplicativo, como é o caso do entrevistado A41.

40 Extraído de .

41 Os nomes verdadeiros dos entrevistados foram omitidos para preservação de identidade.

Em entrevista o empresário A, 48 anos, natural da cidade de Feijó, no Acre, considera que realmente o aplicativo possua grande utilidade para muitas pessoas, mas ele não o utiliza e não o considera essencial, pois desenvolve todas as suas atividades sem a necessidade de uso deste recurso da comunicação, o empresário citou: “Sei que é útil para muitas pessoas, mas para mim não faz diferença, pois não o utilizo. Ainda não me faz falta” (ENTREVISTADO A, 2017).

Mas, nem todos consideram o software dispensável como relatou a usuária do aplicativo e jornalista N42, 32 anos, natural da cidade de Sena Madureira, que atua como assessora de imprensa de uma importante empresa do Estado do Acre, afirma: “em minha profissão todos os recursos de comunicação que são acessíveis e possam auxiliar em meu trabalho são bem vindos, considero úteis e até necessários. Acredito que sem esse recurso teria mais dificuldades para atender a muitas demandas pessoais e também profissionais”, declarou à assessora.

Outra usuária do utilitário a jornalista L43 considera que no contexto atual da comunicação este recurso e muito importante. “... o mundo não é mais o mesmo, sem percebermos nos vemos escravos desses meios de comunicação”, afirmou a jornalista que diz utilizar o aplicativo para contatos profissionais, mas declarou que não o considera como essencial “... como seres humanos, estamos sempre em processo de transformação, se o Whatsapp nos for tirado inventaremos outras formas de comunicação” (ENTREVISTADO B, 2017).

Estes relatos nos levam a sugerirmos alguns pontos positivos e negativos da utilização deste recurso da tecnologia como uma ferramenta que possa auxiliar ou prejudicar a atividade jornalística. Com certeza isso dependerá da forma como é utilizado e da postura ética que o “produtor de notícias”, o profissional da comunicação atuará ao utilizar este recurso.

Não podemos ignorar questões como o conteúdo que circula através do Whatsapp. As informações que se propagam por meio deste programa não possuem garantias legais e a responsabilidade pelos conteúdos é atribuída a quem os elaborou, sendo estas informações fornecidas de maneira independente, não havendo assim qualquer garantia da veracidade de informações.

O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros preconiza em seu Art. 4º “O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, razão pela

42 Idem.

43 Idem.

qual ele deve pautar seu trabalho pela precisa apuração e pela sua correta divulgação.” (FENAJ, 2007, ONLINE). Se somente levássemos em conta este único artigo do código que rege a profissão jornalística a utilização do aplicativo Whatsapp como ferramenta no auxílio à produção de informação e não como única fonte várias práticas antiéticas poderiam ser evitadas no meio jornalístico.

Como já preconizava Andrew Kenn (2009), em sua obra O culto do amador: como blogs, MySpace, Youtube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, cultura e valores, que traz a baila uma crítica sobre a atuação de sites no espaço virtual, o que pode se aplicar de forma categórica no que diz respeito ao Whatsapp: “uma mentira pode dar a volta ao mundo antes que a verdade tenha a chance de calçar as botas” (KEEN, 2009, p.22).

De forma irônica, o autor demonstra como as informações circulam de forma livre através de grupos e mensagens pessoais muitas vezes não é possível saber a origem da mensagem, o que pode gerar problemas até mesmo de cunho jurídico, quando o conteúdo das informações é de caráter negativo como a exposição de pessoas, instituições, situações e informações inverídicas ou mesmo de caráter sigiloso, assim ocorrendo à quebra de legalidade e o prejuízo as que são lesados em seus diretos de personalidade, ou de outros alcances além do âmbito pessoal.

Estes aspectos que até aqui abordamos levamos ao seguinte questionando: até que ponto está ferramenta comunicacional deve ser utilizada como fonte de informação no campo jornalístico? Sabendo que as informações que por este meio circulam podem ou não ser consideradas de cunho verídico. De que outra forma está “rede social” pode ser útil para facilitar o trabalho de jornalistas?

Pompéo e Franceschi (2016) analisando a responsabilidade do compartilhamento de informações por meio do aplicativo Whatsapp e os danos morais que podem ser ocasionados destacam os aspectos negativos da utilização do programa:

apesar de sua promessa de facilitar a comunicação entre os usuários de smartsphones, o que acaba ocorrendo é a difusão de conteúdo de caráter pejorativo e ofensivo, dissociado de qualquer fonte que lhe assegure fidedignidade (POMPÉO; FRANCESCHI, 2016, p. 5).

Claro que não podemos aqui debruçar nosso olhar apenas aos pontos negativos do aplicativo em questão. Devemos reconhecer as facilidades e benefícios para a comunicação que os avanços tecnológicos proporcionaram a profissão jornalística. Uma das mudanças na comunicação através dos canais de difusão de informações como o

rádio, a TV, entre outros e passar a utilizar da interatividade entre o público que passa a meros espectadores a fontes de informações passadas por meio do aplicativo.

Vicente (2014) afirma sobre o uso da ferramenta Whatsapp como forma de interatividade entre o público e os meios de comunicação, relata:

Na atual revolução tecnológica, o aplicativo Whatsapp é o novo meio do processo mecânico formado pela FMCR (fonte, meio, canal e receptor) com características daquela visão alternativa em que a comunicação é uma atividade recíproca em que o usuário tem papel ativo, sem contar seu caráter totalmente multimídia com a possibilidade de envio de mensagens de texto, áudio, vídeo e fotos. (VICENTE, 2014, p.11).

Esta pode ser uma mudança significativa na produção de notícias, quando usuários dispostos nos mais diversos espaços da sociedade passam a transmitir informações sobre acontecimentos quase que de forma instantânea aos acontecimentos fornecendo “interpretações” de situações ocorridas e transmitindo as redações de jornais, rádios, sites de notícias que se utilizam deste recurso para uma mais rápida divulgação.

Dessa maneira, o jornalismo até então privativo às pautas de suas redações, passou a admitir o cidadão como sujeito participativo na “sugestão de pauta” como aconteceu com o Jornal Extra – hiperproximidade - pioneiro em criar plataformas interativas entre as caixas de e-mails e as notificações para as redações fazerem a seleção de fatos relevantes para sua pesquisa e divulgação. Isso tem levado a discussão do chamado jornalismo colaborativo ou Intercast, Ferreira et. al, aborda a questão:

O uso dessas ferramentas traz à tona o conceito de Jornalismo colaborativo, que é muito caro às empresas jornalísticas por agregar informação sem, muitas vezes, pagar por elas ou mesmo sem estabelecer no processo de produção o espaço de reconhecimento desta agregação. Academicamente, esse conceito é definido por BOWMAN E WILLIS (2003) como Intercast: ação de um cidadão ou grupo de cidadãos com um papel ativo no processo de coleta, reportagem, análise e disseminação de notícias e informações (FERREIRA et al. 2015, p.5).

Holanda (2016) descreve que o whatsapp tornou-se um útil instrumento de apoio às redações jornalísticas, do reporte que vai a campo na coleta de informações e pode transmitir de forma rápida as redações. Também serve para aproximar a população do processo de construção da notícia no caso por meio do fornecimento de informações que devem passar por triagem dos editoriais de cada veículo comunicacional a fim de selecionar o que pode ou não virar notícia (HOLANDA, 2016).

O chamado Open Source (jornalismo colaborativo) onde o público passa a fazer parte da produção da matéria interagindo com o meio de comunicação e fornecendo em muitos casos informações para se tornarem notícias. Isso tem contribuído com os meios de comunicação e profissionais de jornalismo em suas pautas, porém aumenta significativamente a responsabilidade do profissional com apuração e checagem da informação recebida por conta de constantes boatos e mentiras compartilhados nas redes sociais e também no aplicativo em questão.

Como apresentado anteriormente precisamos estar atentos também aos malefícios que a incoerente e inadequada utilização desta ferramenta pode ocasionar. Segundo Igor Waltz autor do artigo O “jornalista sentado” e condições de produção (2015), diferente da prática jornalística antes do avanço da tecnologia, nos dias atuais os profissionais passam a maior parte do tempo “encerrados” nas redações perdendo cada vez mais a capacidade investigativa de apuração, checagem de informações coletadas por meio de recursos como o Whatsapp.

Pela grande demanda de trabalho que os jornalistas do século XXI acabam por acumular tornou-se inviável a prática constante ou exclusiva da coleta de informações diretamente onde os fatos ocorrem. Acumulam diversas funções, o que ocasiona uma sobrecarga de trabalho e a notícia passou a ser tratada por muitos como uma mera forma de lucratividade. Aqueles que possuem o “furo” de notícia, muitas vezes não estão dedicando o tempo e atitudes éticas necessárias para a propagação de determinadas informações por não terem apurado os fatos de forma coerente.

Christofoletti (2008) alerta quanto à atual condição que muitos profissionais da comunicação se encontram e como está “pressão” quanto à grande carga de trabalho e acumulo de funções pode está diretamente ligado a posturas éticas, cita:

Alta exigência, pressão constante e grande concorrência são ingredientes que, somados, podem resultar num certo afrouxamento moral e consequentes atitudes que contrariem valores éticos. (CHRISTOFOLETTI, 2008, p. 44).

Tófoli apud Alves & Braga (2017) “alerta sobre a concepção de verdade para alguns meios jornalísticos, cita: A verdade no jornalismo é relativa, condicionada, mitificada e útil aos interesses dos veículos e dos próprios profissionais... a notícia, como todos os documentos públicos, é uma realidade construída possuidora da sua própria validade interna” (TÓFOLI apud ALVES & BRAGA, 2017, p. 6).

Em seu artigo 2° inciso II o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros alerta “a produção e a divulgação da informação devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o interesse público” (FENAJ, 2007, ONLINE). Analisando sob este viés, muitos veículos de notícias não atentado para a relevante responsabilidade social utiliza o Whatsapp como única fonte de informações para a produção de notícias, o que fere de forma direta e explicita a correta postura ética que deve ser tomada diante da responsabilidade de se informar a população. E ainda mais na divulgação de informações que em nada contribuem para a melhoria da sociedade como o compartilhamento de imagens, vídeos e outras informações inadequadas e inapropriadas.

Esta prática quebra de forma direta dois importantes princípios éticos conforme consta nos Códigos da Fenaj “VIII - respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão” e também “Art. 11. O jornalista não pode divulgar informações... II - de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente cobertura de crimes e acidentes”. O jornalista que tenha uma real intenção de proporcionar um bem a sociedade através de seu trabalho, adota a postura ética de não descumprir estas normativas como forma também de garantir direitos básicos da pessoa humana.

Considerações finais

A profissão jornalística assim como muitas outras está marcada pela constante necessidade de renovação e a busca por novas ferramentas que tornem a notícia mais ágil e verdadeira para só assim chegar ao público. Nesta era onde as informações consideradas mais relevantes passam rapidamente dando lugar a outras e outras, em um constante “atualizar e deletar” tornou a utilização de recursos como o aplicativo Whatsapp tão necessária quanto arriscada.

O jornalista, responsável pela interpretação de informações, assim como também devida apuração e checagem da veracidade dos dados, imagens e outros que chegam as redações deve ter toda a postura ética necessária para que a notícia seja produzida e divulgada atendendo aos quesitos éticos necessários e preconizados no Código que rege as práticas destes profissionais.

Mas, precisamos estar atentos aos prejuízos que certas ferramentas de comunicação podem oferecer se não operadas de forma adequada, pois estes mesmo que

surgem com o intuito de facilitar a comunicação podem servir de meio para violação de direitos individuais e coletivos através das redes sociais, como é o caso do Whatsapp.

Cabe aos profissionais da comunicação como também aos veículos a correta apuração dos fatos e a utilização consciente de recursos desta natureza de forma que venha a contribuir e servir de ferramenta para práticas antiéticas no campo da informação.

Referências Bibliográficas

ALVES, Alyne Brandão & RODRIGUES, Edinauro Braga. Premissas éticas no jornalismo e a função social da imprensa: um estudo sobre a atuação da mídia no livro “Bar Bodega”. UFAC, Rio Branco, Acre, 2017.

CHRISTOFOLETTI, Rogério. Ética na Comunicação. São Paulo. Contexto, 2008.

FENAJ. Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. 2007, Online. Disponível em . Acessado em: 12 jun. 2017.

FERREIRA, Paula Araújo. LUZ, Cristina Rego Monteiro da, MACIEL. Inês Maria Silva. As redes sociais como fonte de informação: uso do Whatsapp como ferramenta de apuração da notícia. In. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ, 2015.

HOLANDA, André, MUNIZ, Débora Hagestedt. Whatsapp no jornalismo móvel: um recorte da realidade de quatro veículos alagoanos. Revista Latinoamericana de Jornalismo. Vol.3, nº2. João Pessoa – PB, jul./dez. 2016. p. 50 a 55. Disponível em: . Acessado em 12 jun. 2017.

KEEN, Andrew. O Culto do Amador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

OLIVEIRA, Maria Engel de. Orkut: o impacto da realidade da infidelidade virtual. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

POMPÉO, Wagner Augusto Hundertmarck & FRANCESCHI, André Leandro de. Responsabilidade civil em casos de compartilhamento de mensagens e imagens via whatsapp: direitos de personalidade na era da Internet. In: XI Seminário Nacional Demandas Sociais e Políticas Públicas na Sociedade Contemporânea, Santa Cruz do Sul, RS, 2016. Anais (on-line). Disponível: . Acesso em 11 jun. 2017.

TÓFOLI, Luciene. Ética no Jornalismo. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

TOZETTO, Claudia. WhatsApp supera 1 bilhão de usuários em todo o mundo. Estadão Jornal Digital. Disponível em: . Acessado em: 21 jul. 2017.

VICENTE, Cláudia Aparecida da Costa. A Nova Febre da Comunicação Móvel:

Whatsapp. In: ABCiber – Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura -

VIII Simpósio Nacional da ABCiber. São Paulo, SP, 2014. Disponível em: . Acessado em: 12 abr. 2017.

WALTZ, Igor. O “jornalista sentado” e condições de produção: Considerações sobre práticas profissionais na comunicação em rede. In: 6º Simpósio Internacional de Ciberjornalismo, Campo Grande, MS, 2015. Disponível em: . Acessado em 25 jul. 2017.

ZUCKERBERG, Mark. Whatsapp. [S.I.]: Virtual Article. Disponível em: Acessado em: 21 jul. 2017.

VIDA COTIDIANA NO FACEBOOK

Giselle Xavier D’avila Lucena44

RESUMO: Este artigo tem o intuito de refletir sobre uma visão ampla do conceito Comunicação, reconhecendo-a nos compartilhamentos de conteúdos no Facebook. Não vivemos as mesmas coisas, mas compartilhamos evidências e significados e é isso o que parece tornar o mundo “real”: porque é real para outra pessoa também. Por meio das postagens na rede, encontramos interações que expõem a troca e a colisão de um mesmo “aqui” e “agora”, pautadas em torno de senso comum de rotinas numa atitude natural. Muito além das ferramentas tecnológicas, escapamos de uma visão “midiacentrada” ou “tecnocêntrica”, e atentamos para os processos de mediação onde são estabilizadas as formas sociais. Podemos entender que mais importante que os meios, são as mediações e interações que ocorrem no interior e/ou a partir deles. Como referencial teórico utilizamos, com destaque, Peter Berger e Thomas Luckman (2002), a respeito da construção social da realidade; Éric Maigret (2010), que convoca o problema de ordem comunicacional para entender as relações do homem como mundo; e José Luiz Braga (2011), que nos ajuda a compreender criticamente as interações midiatizadas. Para o objeto empírico, recortamos, de modo qualitativo, 4 postagens localizadas no Facebook. A internet e as redes sociais disponibilizam um espaço onde é possível ampliar o compartilhamento dos significados do mundo cotidiano, as rotinas diárias, as memórias e histórias. Migram para estas redes sociais valores, hábitos, estereótipos e lembranças que não existem ou foram gerados por conta das redes. Isso nos mostra como a vida nas redes digitais é impulsionada, sobretudo, pelas vivências que estão fora dela.

Palavras-chave: Comunicação; Vida cotidiana; Facebook.

Em nosso cotidiano vivemos em meio a saberes, constatações e perspectivas que, dotados de subjetividades, tornam o mundo e a vida coerentes. Nascemos em meio a uma teia de significados, em que os cenários e contextos são construídos e colocados anterior e posteriormente a nós. “A realidade da vida cotidiana aparece já objetivada, isto é, constituída por uma ordem de objetos que foram designados como objetos antes de minha entrada em cena” (BERGER; LUCKMANN, 2003. p. 38).

A realidade da vida cotidiana, descrita por Berger e Luckmann (2003), é distinta de outras realidades possíveis, também produtoras de campos de significação, como as artes, religiões, os sonhos, entre outras, para as quais somos convocados a participar e transitar. A realidade da vida cotidiana se organiza em torno de um “aqui” e “agora”. “Este ‘aqui’ e ‘agora’ é o foco de minha atenção à realidade da vida

44 Mestre em Comunicação e Interações Midiatizadas. Professora do Curso de Jornalismo da UFAC. E-

mail: gisellelucena@

cotidiana. Aquilo que é “aqui e agora” apresentado a mim na minha vida cotidiana é o realissimum de minha consciência” (BERGER; LUCKMANN, 2003. p. 39). O primeiro referente ao meu corpo, o segundo ao meu presente, ambos compõem a realidade em minha consciência.

Essa demarcação temporal e espacial é o mundo que está ao nosso alcance, o mundo pelo qual nos interessamos, onde atuamos, transformamos e trabalhamos. É onde existimos e estamos em interação contínua com os outros, dividindo e compartilhando significados de modo natural, numa “atitude da consciência do senso comum precisamente porque se refere a um mundo que é comum a muitos homens” (BERGER; LUCKMANN, 2003. p. 40).

Nesse sentido, a realidade da vida cotidiana também se caracteriza pelo seu caráter intersubjetivo. Afinal, “não posso existir na vida cotidiana sem estar continuamente em interação e comunicação com os outros” (BERGER; LUCKMANN, 2003. p. 40). Partilhamos o conhecimento do senso comum nas evidências das nossas rotinas, numa atitude natural. Não vivemos as mesmas coisas, mas compartilhamos evidências e significados. E, assim, quando a realidade da vida cotidiana é partilhada com os outros, se colidem um mesmo “aqui” e “agora”. Os significados são válidos desde que sejam trocados, compartilhados e negociados. Mais além: para que a minha vida seja real, ela precisa ser real para os outros também.

Estas dimensões espaciais e temporais também são apontadas por Éric Maigret (2010) em dois modelos de comunicação: o primeiro é definido pela idéia de transmissão e por uma valorização das dimensões espaciais da troca, onde as pessoas se reúnem e propagam suas ideias; já o segundo, incorpora a temporalidade, e refere- se ao quanto o sujeito se apropria, se refaz, e, conseqüentemente, cria sua experiência.

Quando se comunicam em arenas concebidas para tal efeito, os seres humanos procuram, primeiramente, se contar, provar que são ou não são membros de um mesmo grupo, e construir sentido, elaborar redes de pertencimentos e de diferenças constituídas em signos. Esses dois modelos continuam presentes em toda sociedade, embora o segundo corresponda mais propriamente àquilo que é uma sociedade. (MAIGRET, 2010, p. 359).

Ao convocar o problema de ordem comunicacional para entender as relações do homem como mundo, a perspectiva de análise passa a ir além da mensagem e do

meio; de “coisas” e “temas”; e passa a perceber fenômenos e processos sociais. Se sociologia se apresenta como um projeto fundado na recusa de uma ordem natural e divina, e propõe uma “desnaturalização” do mundo, considerando que “não são as tecnologias que produzem o mundo humano, nem uma biologia determinista, nem as regras da linguagem” (MAIGRET, 2010, p. 378), a comunicação, também, ganha a noção de que seu olhar precisa ir além do que o autor chama de visão “midiacentrada” e considerar as mediações.

As mídias se apresentam como objetos que produzem efeitos ou como suportes que servem às rivalidades ou às afinidades entre grupos. As mediações representam os processos pelos quais os atores se encontram em sua multiplicidade interna e externa e estabilizam objetos ditos técnicos, definições de situação, representações, posturas de recepção. As interações ligadas aos meios de comunicação e que constituem os meios de comunicação são apenas um subconjunto das mediações, ainda que as mediações formem o ato de comunicação. (MAIGRET, 2010, 378).

A partir desta visão, podemos entender que mais importante que os meios, são as mediações e interações que ocorrem no interior e/ou a partir deles. Em outras palavras, o problema da comunicação não parece estar, portanto, em evidência nos meios, e sim, no que acarretam suas mediações, bem como as interações que ocorrem no interior e/ou no entorno deles, afinal, os “meios de comunicação são extensões das lutas e das partilhas simbólicas que fazem as sociedades” (MAIGRET, 2010, p. 359).

Considerando o sujeito como um ser que não é único e nem fechado, criando- se por exteriorização e objetivações que permitem processos de socialização, no confronto com os outros, Maigret (2010) expõe três conceitos importantes para o estudo dessas relações: a reflexividade, a experiência e a mediação. O primeiro, segundo o autor, nos permite entender os processos de mediação de forma dinâmica, considerando as contradições e ambigüidades dos sujeitos. A experiência é a relação entre a norma e a maneira como ela é assimilada por nós e pela sociedade, diz respeito a como nos aproximamos e nos apropriamos de algo. A mediação é o que acontece para tornar possível uma relação entre objeto e sujeito. São nas mediações onde são estabilizadas formas sociais. “Os indivíduos se implicam na interação que descobrem já estruturada, mas as formas às quais eles se dobram são de fato produtos cristalizados da interação que podem ainda e sempre se fazer e se desfazer” (MAIGRET, 2010, p. 368). Assim, para Maigret, o texto é...

uma metáfora de vocação naturalista ou sociologista conforme vejamos nos signos uma mecânica inata ou o arbitrário do social. Mais vale observar os humanos e os objetos numa dinâmica de relações, no quadro de um mundo conflitual que aspira a se tornar um mundo comum. (MAIGRET, 2010, p. 382).

Como vimos em Berger e Luckmann (2003) e em Maigret (2010) a comunicação, a interação e o compartilhamento de significados são constituidores do social, depois disso, portanto, é que são formados os meios.

O alongamento da “vida real”

Nos estudos da comunicação e da midiatização, José Luiz Braga (2001, 2011) Adriana Braga (2006) e Marta Rizo (2006) colaboram para a recusa de um comportamento “tecnocentrico”, que enfatiza o efeito radicalmente transformador gerado pela tecnologia computacional, e sugerem que não devemos reconhecer ou olhar a comunicação através dos meios, uma vez que a vida virtual é um “alongamento” da vida real”. Outros autores também compartilham a ideia de que uma das principais características do mundo da vida cotidiana é a intersubjetividade e a construção social dos significados, em uma atitude "natural”; e que, nesse sentido, os fenômenos comunicacionais devem ser explorados com ênfase nas ações e interações dos sujeitos sociais, nos processos que estabelecem as trocas e vínculos. “As atividades online são transformações, complementos ou suplementos de atividades não-online e raramente são substituições ou inteiramente sem precedentes” (BRAGA, 2006).

Para José Luiz Braga (2011), não podemos estudar ora mensagem, ora meio; ora processos de produção, ora de recepção.

o objeto da Comunicação não pode ser apreendido enquanto “coisas” nem “temas”, mas sim como um certo tipo de processos epistemicamente caracterizados por uma perspectiva comunicacional – nosso esforço é o de perceber processos sociais em geral pela ótica que neles busca a distinção do fenômeno (BRAGA, 2011, p. 66).

Nesse sentido, as interações devem ser entendidas como “processos simbólicos e práticos que, organizando trocas entre os seres humanos, viabilizam as diversas ações e objetivos em que se vêem engajados (...), e toda e qualquer atuação que solicita co- participação” (BRAGA, 2011, p. 66). As interações, portanto,

segundo Braga (2011), decorrem do esforço humano de enfrentar o mundo e estar em contato de modo solidário, em conflitos, competição etc.

Nas redes sociais na internet, detectamos uma interatividade difusa e diferida, onde as respostas não são imediatas e pontuais, são, antes, repercussão e redirecionamento. Ao circular na rede, as informações, símbolos e significados passam por uma descontextualização, o que, segundo Braga (2007) é uma característica dos processos de mediatização, caracterizado como um “trabalho de “edição” do material objetivado mediaticamente, pelo usuário que o (re)inscreve em sua conjuntura, realizando articulações através das mediações que acione” (BRAGA, 2007, p. 152-153). Dessa forma, nos é permitido pensar que assim são propagados e recriados campos simbólicos, usos e interações do vivido e do revisto pelos dispositivos de enunciação e circulação de sentidos e significados.

Conteúdos compartilhados

O Facebook é uma rede social, fundada em 2004 por Mark Zuckerberg, que possibilita a seus usuários disponibilizar dados pessoais, fotos, vídeos, links, notas etc, e interagir com demais membros, visitando perfis, fazendo amigos, estabelecendo contatos, enviando comentários e mensagens. A plataforma também permite expressar sentimentos específicos (curtir, amar etc) e “compartilhar” conteúdos (fotografias, vídeos, textos) adicionados por outros usuários. De acordo com dados divulgados em um infográfico produzido pelo Facebook no Brasil, e veiculados pelo site Olhar Digital (2012), da UOL, e Estadão, o brasileiro adiciona, mensalmente, 460 milhões de novas fotos na rede. Os dados também registram 1,6 bilhão de comentários e 1,6 bilhão de "curtir". O Facebook é uma das redes sociais onde é possível visualizar o que Braga (2001) chama de interação social mediatizada, que caracteriza uma “produção objetivada e durável, que viabiliza uma comunicação diferida no tempo e no espaço, e permite a ampliação numérica e a diversificação dos interlocutores”. (BRAGA, 2001).

Uma das formas de participação que tem sido frequente na rede, é o compartilhamento de imagens e/ou montagens, editadas e acompanhadas por frases que compõem uma legenda propondo uma reflexão moral, ética, política, social, cultural, econômica, entre outros. As imagens também podem trazer lembranças das brincadeiras de criança, de programas e desenhos animados que não existem mais, ou

ainda, reforçar estereótipos de diversas naturezas, como profissionais ou regionais. Não é possível saber quem montou a imagem e a disponibilizou – a propriedade intelectual, inclusive, tem sido tema polêmica no que se refere ao compartilhamento de conteúdos na rede.

Muitos perfis não remetem à uma pessoa, são anônimos e suas atualizações são comentadas e compartilhadas por diversos usuários. Na seleção dos exemplos, é possível acessar os comentários feitos, e saber quem e quantas pessoas curtiram e compartilharam o conteúdo a partir de uma mesma fonte.

A Figura 1 retrata um “caderno de perguntas”, uma brincadeira que consiste em montar cadernos com uma pergunta em cada página, e distribuir entre amigos para que cada um responda, numa espécie de corrente, ou, nos estudos atuais, o que chamamos de rede. A legenda “quem participou disso viu o verdadeiro começo das mídias sociais”, alerta para a rede interativa que a brincadeira articulava, numa época em que os usuários, provavelmente, ainda não tinham internet.

Figura 1 Sem título

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Fonte: “Nossa que fail” - Facebook, 2012

A partir desta lembrança, é possível fazer algumas reflexões: A primeira delas é sobre o próprio objeto que a imagem traz: o caderno de perguntas. E, como a própria legenda sugere, imaginar sobre as mídias sociais que conduzem as relações humanas desde antes a ferramenta virtual, sobre a procura do homem de estar em contato e interação. A outra reflexão possível de ser feita, é o fato de a lembrança do caderno ser inserida no Facebook e gerar compartilhamentos e comentários em seu entorno. Em quatro dias, a imagem foi compartilhada mais de 3 mil vezes, e mais de 1.600 pessoas curtiram.

Ao fazer um circulo que liga cada letra exposta na Figura 2, é formado o desenho de um porco. Colocar a imagem da brincadeira junto à legenda “se você sabe o que significa isso... Compartilhe. Afinal, você teve uma infância pura!”, é um convite para o compartilhamento de um universo simbólico e de integrar a uma comunidade dos que tiveram “uma infância pura”.

Figura 2 Sem título

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Fonte: “Ri Muito” - Facebook, 2012

Esta imagem, em 4 dias, foi compartilhada mais de 13 mil vezes, e mais de 5 mil pessoas a curtiram.

Nas redes sociais, o filme “A Lagoa Azul” é muitas vezes tido como um dos mais reprisados nas sessões da tarde da Rede Globo. No final dos campeonatos

brasileiros de futebol, em 2012, com o time vascaíno sendo, mais uma vez, vice- campeão, a imagem da Figura 3 foi disponibilizada no Facebook propondo a enquete: “Qual história se repete mais na Globo?”. Quem acha que é o filme, opta por “curtir”; que acha que é o Vasco sendo vice-campeão, é convidado a compartilhá-la. Em quatro dias, a imagem foi compartilhada mais de 1.600 vezes, e quase 775 pessoas a curtiram.

Figura 3 Sem título

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Fonte: Morre que passa - Facebook, 2012

Outro tipo de conteúdo que tem sido frequente no Facebook é o uso de várias imagens juntas, acompanhadas de legendas que conduzem o pensamento sobre “como as pessoas imaginam”, “como eu imagino”, “como realmente é”. Aqui, são utilizados estereótipos profissionais, como “quando digo que sou músico”, ou situações da vida, como “quando digo que vou chegar tarde em casa”.

Figura 4 Sem título

[pic]

Fonte: Vilson Risi - Facebook, 2012

A imagem da Figura 4 mostra um exemplo que utiliza representações do Estado do Acre. Esta imagem traz como título “Acre”, e propõe retratos do estado sobre “como as pessoas de fora imaginam”, “como as emissoras de TV mostram” e “como é na realidade”. Não entra em análise, aqui, como o Acre é ou não na realidade ou os significados e representações sobre as comunidades indígenas, a floresta ou a urbanidade do lugar. Neste estudo, importa o circuito interativo que impulsiona a postagem e a circulação da imagem na rede. Em 25 dias, a imagem havia sido compartilhada mais de 3.100 vezes, e quase 1.500 pessoas a curtiram.

Considerações finais

A sociedade atribui objetivos, releituras e sentidos sociais em uma atitude natural, seja numa interação mediada pela tecnologia, pelos seus produtos e meios de comunicação ou não. A visão sociológica somada a um olhar mais amplo da comunicação, nos ajuda a considerar que a tecnologia surge para atender a necessidades da sociedade, mas o seu uso se transforma e se descontextualiza, e expõe outras necessidades e demandas, tanto sociais, quanto tecnológicas. A comunicação, a interação e o compartilhamento de significados são constituidores do

social, e por isso,estabelecemos os meios para que ela aconteça. A tecnologia é também e, portanto, uma construção social.

Dessa forma, podemos entender que o acontece no universo virtual é uma extensão ou derivação da vida social já existente, a vida cotidiana, face a face. Não se tratam, enfaticamente, de novas formas de comunicação, de interação, novos hábitos, costumes e valores gerados e ocasionados em virtude da tecnologia e dos meios de comunicação. Trata-se, sobretudo, da ampliação de um espaço onde pode ser inserido um número maior de sujeitos. Espaço, ferramentas e mecanismos que possibilitam que as trocas se mantenham em diferentes contextos temporais e entre interlocutores diversos. Nesse sentido, as transformações na sociedade podem estar mais ligadas às possibilidades de contatos com um maior número de pessoas, com a possibilidade de maiores encontros com “o outro”, com a maior presença de “outros” que afetam a nossa vida.

Considerando que a comunicação está ligada ao amadurecimento e constituição social dos indivíduos, notamos que ao estudar a comunicação é preciso ir além dos meios, das ferramentas e da tecnologia. Escapar de uma visão “midiacentrada” ou “tecnocêntrica” implica em se distanciar do medo da tecnologia e do pessimismo com o mundo moderno, apontado por Zygmunt Bauman; desconfiar da alienação que Adorno detecta na cultura midiática, e não confundir a experiência de mundo com o mundo (ou sua ausência).

Com os exemplos de conteúdos retirados do Facebook, percebemos o quanto os mais diversos símbolos do “cotidiano da vida real” são convocados para o estabelecimento de interações na rede. Não se trata de analisar, intrinsecamente, o conteúdo das imagens e mensagens trocadas, mas, sim, compreender a lógica comunicativa que a permeia, como um fenômeno humano. Os exemplos citados revisitam sentidos partilhados antes mesmo de a internet estar disponível. Migram para estas redes sociais valores, hábitos, estereótipos e lembranças que não existem ou foram gerados por conta das redes. Isso nos mostra como a vida nas redes digitais é impulsionada, sobretudo, pelas vivências que estão fora dela.

As opções “curtir” e “compartilhar” são um convite para o compartilhamento de um mesmo universo simbólico; são convites para fazer parte de um grupo que, como você, entende e decifra aquela informação. Os conteúdos retirados do Facebook nos mostram a busca por pessoas que possam compartilhar e curtir as mesmas coisas, a fim de se criar um espaço interativo em torno das mesmas realidades cotidianas. E,

assim, temos a confirmação de que o meu mundo é real, pois é também real para o outro, a partir do momento em que ele curte e, literalmente, compartilha algo que adicionei em meu perfil.

Entre lembranças de infância, estereótipos profissionais, acontecimentos esportivos, jornalísticos e outros, em suas diversas lógicas, estilos e linguagens, são convocados, também, as formas como as pessoas lembram o Acre e suas representações sociais. No que se refere à negação daquele estado na internet, podemos entender que o que está em questão não é que alguém acredite que o Acre não exista. Tão ou mais importante do que o que as pessoas falam e respondem, é o espaço interativo estabelecido para o compartilhamento dos mesmos universos simbólicos.

Parece haver algo em comum que faz com que, da mesma forma que algumas pessoas se encontrem vestidas com roupas de seus personagens de desenhos animados favoritos; ou para comentar o resultado do campeonato esportivo e inventar várias formas de caçoar com os times perdedores; outras se reúnem para construir “interpretações” em torno da história do Acre. Isso nos sugere que a representação a respeito do Acre ocorre de forma simultânea, em contexto, forma e linguagem, a várias outras. A temática já usualmente propagada na internet – a de que o Acre não existe – se refaz e se atualiza diante das novas formas de compartilhamento de conteúdos e participação na rede on-line.

A internet e as redes sociais disponibilizam um espaço onde é possível ampliar o compartilhamento dos significados do mundo cotidiano, as rotinas diárias, as memórias e histórias. Poderíamos, aqui, tratar da chamada “espetacularização do eu”, que condiz com a proliferação dos discursos em primeira pessoa, com a exaltação do individual nos diários eletrônicos e o culto à singularidade, analisados, entre outros, por Paula Sibilia (2009). Com este estudo, notamos como a internet nos ajuda a entender a necessidade do homem buscar por pensamentos, sentimentos, hábitos e cotidianos semelhantes.

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INTERFACES COMUNICACIONAIS (MEIO AMBIENTE, EDUCAÇÃO, ESPORTE, SAÚDE)

TELEJORNAL PARA SURDOS: ANÁLISE DOS MARCADORES LINGUÍSTICOS DE EXPRESSIVIDADE EM LIBRAS

Israel Queiroz de Lima (UFAC) Alexandre Melo de Sousa (UFAC)

Rosane Garcia (UFAC)

Resumo

O presente trabalho apresenta uma análise dos marcadores linguísticos de expressividade, especialmente o grau superlativo, utilizados pelos apresentadores surdos do telejornal “Primeira mão”, da TV INES (programa em parceria entre o Instituto Nacional de Educação de Surdos e a Associação de Comunicação Educativa Roquette- Pinto), durante a transmissão das notícias em Libras. O referido programa é o primeiro com uma proposta bilíngue, atendendo tanto surdos – pois o jornal é apresentado em Língua Brasileira de Sinais –, quanto ouvintes – uma vez que o jornal possui legendas e narrativa em Língua Portuguesa. Sabendo-se que a Libras, como qualquer língua natural, possui recursos linguísticos próprios para marcar a expressividade, buscamos as marcas de superlativação de adjetivos e advérbios que são utilizados na transmissão das notícias pelos apresentadores surdos. Em Libras, os parâmetros “expressão facial” e “movimento” na produção dos sinais são, notadamente, os responsáveis pela referida marcação de expressividade. Desse modo, selecionados cinco edições do telejornal “Primeira mão”, entre os dias 02/06/2016 e 06/04/2017, com o propósito de selecionar as marcas de superlativo. Para tratar dos aspectos semântico-estilísticos do superlativo utilizamos Bally (1941), Martins (2000) e Sousa (2003). E para o tratamento do bilinguismo e dos aspectos linguísticos da Língua Brasileira de Sinais utilizamos Sacks (1989), Quadros e Karnopp (2004) e Felipe (2013). Preliminarmente, observamos que a expressão facial foi o recurso mais utilizado para superlativar adjetivos e advérbios e marcar a expressividade linguística. Em seguida, a junção dos dois parâmetros – expressão facial e movimento – foi utilizado pelos surdos para a marcação da expressividade.

Palavras-chave: Telejornal; Expressividade; Língua Brasileira de Sinais

Considerações iniciais

No mundo, os surdos vêm conquistando espaços por meio de sua participação na vida social em busca de direitos e reconhecimento legal das línguas de sinais, de acordo com cada país. No Brasil algumas leis contribuíram de forma indireta e direta como conforto linguístico para comunidade surda brasileira. No entanto, a acessibilidade dos surdos às informações transmitidas pelos meios de comunicação ainda está aquém do esperado. Os telejornais são produzidos tendo como público-alvo os ouvintes.

Algumas iniciativas, como a produção do telejornal “Primeira Mão”, na TV INES, constituem a possibilidade de as notícias chegarem ao público surdo de maneira adequada, numa proposta bilíngue. Os âncoras (apresentadores) são surdos e as notícias, portanto, são transmitidas em Libras (com narração e legendas em Língua Portuguesa).

Sabendo-se que a Língua Brasileira de Sinais, como qualquer língua natural, possui recursos linguísticos próprios para marcar a expressividade, buscamos as marcas de superlativação de adjetivos e advérbios que são utilizadas na transmissão das notícias pelos apresentadores surdos, tal como propõe Sousa (2003). Em Libras, os parâmetros “expressão facial” e “movimento” na produção dos sinais são, notadamente, os responsáveis pela referida marcação de expressividade.

Desse modo, o presente trabalho apresenta uma análise dos marcadores linguísticos de expressividade, especialmente o grau superlativo, utilizados pelos apresentadores surdos do telejornal “Primeira mão”, da TV INES (programa em parceria entre o Instituto Nacional de Educação de Surdos e a Associação de Comunicação Educativa Roquette-Pinto), durante a transmissão das notícias em Libras.

Marcos históricos favoráveis ao bilíngue(ismo)

A língua de sinais inicia seus estudos a partir da década 60, quando Stokoe passa a observar e apresentar a análise descritiva da Língua de Sinais Americana – ASL. Neste contexto, o linguística americano registrou os elementos linguísticos de uma língua de sinais a saber: Configuração de Mãos, Localização (ponto de articulação) e o movimento. Tal percepção linguística confere à língua de sinais o seu status linguístico (QUADROS e KARNOPP, 2004, p. 16-17).

De acordo com a Lei n° 10.098/1994 que foi uma lei indireta, porém de extrema relevância, pois foi por meio dela, mais especificamente no seu Capítulo VII, sobre a acessibilidade no sistema de comunicação e sinalização, que o Poder Público definiu questões importantes sobre o tema. O Capítulo VII dispõe três artigos que atendem à eliminação de barreiras na comunicação, à formação de profissionais específicos da Libras e aos serviços de radiodifusão ambientados tecnicamente para o uso de língua de sinais.

Art. 17. O Poder Público promoverá a eliminação de barreiras na comunicação e estabelecerá mecanismos e alternativas técnicas que tornem acessíveis os sistemas de comunicação e sinalização às pessoas portadoras de deficiência sensorial e com dificuldade de comunicação, para garantir-lhes o direito de acesso à informação, à comunicação, ao trabalho, à educação, ao transporte, à cultura, ao esporte e ao lazer.

Art. 18. O Poder Público implementará a formação de profissionais intérpretes de escrita em braile, linguagem de sinais e de guias-intérpretes, para facilitar qualquer tipo de comunicação direta à pessoa portadora de deficiência sensorial e com dificuldade de comunicação.

Art. 19. Os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens adotarão plano de medidas técnicas com o objetivo de permitir o uso da linguagem de sinais ou outra subtitulação, para garantir o direito de acesso à informação às pessoas portadoras de deficiência auditiva, na forma e no prazo previstos em regulamento (BRASIL, 1994).

A lei de acessibilidade acima apresenta e garante alguns direitos comunicacionais às pessoas Surdas/Deficiente Auditiva - D.A, contudo vale lembrar que não é a partir desta lei que os surdos passam a ter alguns direitos linguísticos. Ao observar e analisar os marcos legais pode-se perceber que já existiam outras leis direcionadas ao povo surdo.

Outro marco histórico legal muito importante foi o reconhecimento da Lei nº 10.436/02, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS.

Art. 1o É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados. Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil (BRASIL, 2002).

Conforme a Lei de Libras, no Artigo 1º Parágrafo Único, é possível perceber um princípio bilíngue, pois afirma que a Libras não pode substituir a modalidade escrita da língua portuguesa. Entende-se que as pessoas surdas usuárias de língua de sinais têm a Libras como L1 e a modalidade escrita da língua portuguesa como L2, ou seja, ambas as línguas devem coexistir de forma diária no espaço social em que os surdos convivem, como é o caso da comunidade surda trocando experiências e manifestando sua cultura por meio da Libras. Assim, fazer uso/contato diário com a escrita da língua portuguesa em espaços como restaurantes, escolas, aeroportos, livros, terminais, hospitais proporciona às pessoas surdas uma perspectiva bilíngue. Logo, se o surdo for monolíngue, ele terá problemas de comunicação, tento em vista que a língua oral do país e a Libras são línguas de contato.

Outro documento oficial importante é o Decreto 5.626/05. Neste caso, o que chama a atenção é a abordagem bilíngue expressa no Capítulo VI que trata da garantia do direito à educação das pessoas surdas ou com deficiência auditiva. Nesse capítulo, o foco é o ambiente educacional bilíngue, ou seja, é a partir desse documento que o termo “bilíngue” passa a ser legalizado e a ser conhecido no Brasil.

Já a Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, aprova o Plano Nacional de Educação – PNE e uma das metas estabelecidas voltada para a educação bilíngue pode ser observada no trecho abaixo:

[...] garantir a oferta de educação bilíngue, em Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS como primeira língua e na modalidade escrita da Língua Portuguesa como segunda língua, aos (às) alunos (as) surdos e com deficiência auditiva de 0 (zero) a 17 (dezessete) anos, em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas, nos termos do art. 22 do Decreto no 5.626, de 22 de dezembro de 2005, e dos arts. 24 e 30 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como a adoção do Sistema Braille de leitura para cegos e surdos-cegos (BRASIL, 2014).

A todo o momento quando se trata de concepção bilíngue para surdos, se estabelece a relação com a educação institucionalizada, pois é através dela que o sujeito surdo poderá desenvolver as habilidades linguísticas, saber ler, saber escrever e saber interpretar textos, tanto em libras quanto em língua portuguesa na modalidade escrita.

Assim sendo, é importante esclarecermos as definições dos conceitos dos termos bilíngue e bilinguismo. As diferenças ajudarão a compreender que o sujeito surdo estará sempre exposto a duas intenções linguísticas, a Libras como L1 e a Língua Portuguesa na modalidade escrita como L2 tornado os surdos sujeitos autônomos que transitam diante das línguas extremas.

De acordo com Houaiss (2001), bilíngue é aquele “que fala duas línguas; que é escrito ou apresentado em duas línguas”; e bilinguismo constitui o “uso regular de duas línguas por um falante ou grupo”.

Grosjean (1982) acrescenta que os bilíngues raramente são fluentes nas duas línguas. Ainda com base neste autor, pode haver uma variação entre maior habilidade de fala, leitura, escrita e compreensão das línguas do sujeito falante com certa regularidade, tendo em vista as duas intenções linguísticas diferentes.

Pessoas bilíngues, como explicam Quadros e Massutti (2007, p. 246), têm concepções diferentes de como ver o mundo.

[...] a experiência de nascer, viver e crescer em meio a uma família de pais surdos faz com que a percepção das representações culturais, sociais, políticas e linguísticas sejam atravessadas por substratos filosóficos, éticos e estéticos marcados por tensões em zonas fronteiriças de contato. O universo surdo e o ouvinte marcam as fronteiras dos CODAs (QUADROS, MASSUTTI, 2007).

Como dito anteriormente, as pessoas surdas bilíngues que contemplam a regularidade de duas línguas para o processo de produção e recepção do conhecimento,

além destas habilidades, encontram-se diante de um universo que, mesmo com uma legislação ampla que o ampara, ainda deixa muito a desejar principalmente quando se trata de mídia.

A Constituição Federal, de 1988, garantiu às pessoas com deficiências o direito à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer e, sobretudo, à informação e comunicação. A ideia de “sobretudo à informação e comunicação” se dá pelo fato de que tudo passa pela língua/linguagem. Contudo, vemos que existe predominância da língua portuguesa escrita e falada no âmbito da informação/comunicação, enquanto na língua brasileira de sinais, nem sempre são oferecidas.

O fato de o aparelho televiso estar presente em mais de 95% dos lares brasileiros, sendo o mais vendido/comprado nos últimos quinze anos, conforme aponta o último censo do instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizado em 2010, faz dele um dos principais meios de acesso à cultura, entretenimento e jornalismo em nosso país, principalmente entre as classes C e D. Com o crescimento e o avanço das redes sociais e da internet, a televisão tem perdido força, mas, mesmo assim, em um país em que a leitura é pouco incentivada, ainda segue tomo meio prestigiado de acesso ao mundo (NASCIMENTO apud SOUZA, 2006, s/p).

A mídia televisiva, com base nas normas, colabora para a compreensão, por exemplo, dos elementos componentes em uma notícia, no caso de uma transmissão telejornalística, visto que

[...] nem é só a imagem que expõe o fato, nem é apenas o texto que emite a informação telejornalística, nem é unicamente o som que comunica os acontecimentos. Pelo contrário, a combinação de cada elemento que pode ser utilizado para se comunicar uma notícia é o que realmente atua como aglutinador dos mecanismos de transmissão dos conteúdos jornalísticos (NASCIMENTO apud SOUZA, 2006, s/p.).

Expressividade e subjetividade

Sendo a linguagem produzida por dado falante por necessidade ou desejo de dizer algo, podemos afirmar que a linguagem é primordialmente subjetiva. No dizer de Martins (2000), a subjetividade pode apresentar-se em níveis diferentes que, representadas em um eixo, vão da objetividade máxima à subjetividade máxima. A primeira ocorre quando o enunciado independe do locutor, ou quando a exatidão do enunciado pode ser comprovada pelo interlocutor.

A subjetividade máxima, por sua vez, acontece quando o locutor é manifesto no enunciado através de marcas dêiticas, como pronomes de primeira pessoa (eu, me, mim,

consigo, meu) certos indicadores de tempo e lugar (agora, aqui), alguns demonstrativos (este, isto) etc. (cf. BENVENISTE, 1995, p. 288).

Bally (1941), por seu turno, explicando a relação entre objetividade (linguagem objetiva) e subjetividade (linguagem subjetiva), pondera e conclui que:

Já se vê que um juízo poder ser pensado subjetivamente e expressa em linguagem usual, porém, tão objetivamente como um juízo de fato: A terra gira, a vida curta. No entanto, nas formas aparentemente mais intelectuais mostra-se a subjetividade do pensamento. Assim a frase “Um pai sempre é um pai”, seria simplesmente absurda se nos detêssemos à interpretação material; se o sujeito pai está concebido objetivamente, o predicado significa: “Um pai com as qualidades de um pai” (BALLY, 1941, p.127).

Segundo Câmara Jr. (1976, p. 49), do ponto de vista saussuriano, todas as palavras têm um valor intelectivo, no qual está apoiada a função representativa. Tal função algumas vezes não é claramente demarcada, já que as palavras da língua agregadas a seus significados, não são resultados de uma operação mental “homogênea e consciente” a respeito do “mundo das coisas”. São, na verdade, produtos de uma atividade da inteligência intuitiva que busca unir “experiências parceladas, sem a visão de um conjunto”.

Com isso, como explica Sousa (2003) apoiado em Bally (1941), chega-se à conclusão que a noção de valor está ligada à noção de intensidade; e que a noção de valor pode ser modificada, de acordo com o modo como a percepção pura em se reflete sem nosso raciocínio; e ainda, os fatos da expressão são sempre ativos, sempre realizadores e sempre prontos para atacar qualquer domínio da língua. Nas palavras de Bally (1941, p. 139):

A linguagem intelectual, em sua essência, não pode traduzir a emoção, a não ser mediante um jogo de sensações implícitas. Sendo os signos da língua arbitrários em sua forma - seu significante – e em valor – seu significado -, as associações ligam-se imediatamente ao significante, de modo que permitem surgir uma impressão sensorial, e imediatamente ao significado, transformando o conceito em representação imaginativa. Estas associações enchem-se de expressividade na medida em que a percepção ou a representação imaginativa concordem com o conteúdo emotivo do pensamento.

Vargas, Sousa e Costa (2007, p. 08) explicam que podemos ter expressividade e que ela pode ser marcada em todos os níveis de linguagem: fonológico, morfológico, sintático, textual etc. Felipe (2013, p. 74), por sua vez, explica que: “[...] através de

gestos e postura corporal, das expressões faciais e do olhar, sendo possível apreender estados e sensações como, por exemplo: alegria, tristeza, angústia, insegurança, dúvida, ironia, surpresa [...] que são atitudes comportamentais”.

A TV INES e o Telejornal Primeira Mão

A TV INES é um canal de TV brasileiro, fundado em 24 de abril de 2013, com conteúdo bilíngue, feita para atender a pluralidade de públicos, tem conteúdo 100% acessível à comunidade surda e à comunidade ouvinte. Trata-se do resultado de uma parceria entre a Roquette Pinto - Comunicação Educativa (chamada anteriormente de ACERP) e o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES).

A TV INES prioriza Libras e conta com legendas e locução em todos os produtos – o que a torna única na proposta de integrar os públicos surdo e ouvinte numa grade de programação bilíngue, já que Libras não é a simples gestualização da língua portuguesa e tem gramática, sintaxe e léxico próprios. O desafio diário de produzir um canal de televisão bilíngue e construir narrativas audiovisuais que conjuguem Libras e Língua Portuguesa, integrando públicos, é enfrentado por uma equipe de profissionais de televisão surdos, ouvintes, tradutores intérpretes e profissionais do Ines (INES, s/d)

Ao veicular jornais e programas em Libras, juntamente com legenda descritiva e locução em língua portuguesa, a TV Ines pretende atender à comunidade surda, que possui sua própria língua oficializada através da Lei 10.436/02. Um exemplo de programa voltado para o público surdo é o Telejornal Primeira Mão, que é exibido todas as quintas-feiras, às 19 horas, com o apoio das redes SBT, Rede TV e Agence FrancePresse.

Segundo, Joana Peregrino, diretora da plataforma, o programa constitui uma possibilidade dos surdos terem acesso ao que acontece na sociedade em sua própria língua – ou seja: Libras. O propósito principal do telejornal é levar informações ao público surdo por meio da web 24 horas, em aplicativos para celulares, tablets e televisões conectadas à internet. O canal conta com informações sobre atualidade, cultura, entretenimento, esporte entre outros assuntos de interesse geral e especifico para o povo surdo.

O telejornal promove de forma pioneira a inclusão de surdos no meio de comunicação. Grande parte desse público foi alfabetizada apenas em Libras e, portanto, não consegue assimilar integralmente as informações disponíveis na maioria dos veículos de comunicação, até mesmo em jornais impressos e on-line (LEVIN, 2016).

Metodologia

O presente trabalho apresenta uma análise dos marcadores linguísticos de expressividade em Libras, especialmente o grau superlativo, utilizados pelos apresentadores surdos do telejornal “Primeira mão”, da TV Ines (programa em parceria entre o Instituto Nacional de Educação de Surdos e a Associação de Comunicação Educativa Roquette-Pinto), durante a transmissão das notícias em Libras.

Inicialmente, selecionados cinco edições do telejornal “Primeira mão”, entre os dias 02 de fevereiro de 2016 e 06 de abril de 2017. O telejornal é transmitido todas as quintas-feiras, às dezenove horas, e tem vinte e cinco minutos de duração.

Na etapa seguinte, destacamos e quantificamos os sinais que marcaram expressividade em adjetivos e advérbios, durante a transmissão das notícias pelos âncoras. Em seguida, verificamos a formação dos sinais, tomando como base os parâmetros:

a) Configuração de mão;

b) Ponto de articulação;

c) Orientação;

d) Movimento;

e) Expressão facial e/ou corporal.

Nessa etapa, foi importante verificar quais parâmetros foram utilizados para marcar a expressividade dos sinais superlativados, com o propósito de selecionar as marcas de superlativo e quantificar os recursos mais utilizados.

Análise prévia dos dados

Apresentaremos a análise de quatro situações selecionadas nas edições do telejornal “Primeira Mão”: a primeira do dia 03 de março de 2017, a segunda do dia 23 de março de 2017 e as duas últimas do dia 06 de abril de 2017:

Situação 01:

Na primeira situação, o apresentador está transmitindo, aos telespectadores, a informação: “[...] as pegadas de dinossauro têm aproximadamente 140 milhões de anos”. Para sinalizar o advérbio “aproximadamente”, utiliza-se das marcas de expressão facial (sobrancelhas levantadas e inclinação da cabeça). Além de, simultaneamente, imprimir tensão no braço para enfatizar o sentido de incerteza, proximidade dos dados etc.

Figura 01: Sinalização do advérbio Aproximadamente

Situação 02:

No segundo contexto, quando a apresentadora informa “A carne perde seus nutrientes e deve ser descartada imediatamente”, percebemos que o termo “imediatamente” é marcado pelo parâmetro expressão facial/corporal (elevação das sobrancelhas e abertura da boca de forma mais tensa). Em Libras, o sinal produzido, inicialmente, tem valor de “hora”, no entanto, ao se acrescentar o parâmetro expressão facial passa a significar “imediatamente”. É importante ressaltar que o valor superlativado passa a ideia que o produto em questão (a carne) deve ser descartado o mais rápido possível. A intensificação, portanto, é marcada pelo item adverbial.

Figura 02: Sinalização do advérbio Imediatamente

Situação 03:

Inicialmente, é importante destacar que um sinal, que é traduzido por duas ou mais palavras em língua portuguesa, será representado pelas palavras correspondentes separadas por hífen. Nesse caso, “forte-chuva” corresponde à sentença “As chuvas caem com muita força”. Observa-se que o apresentador, além de sinalizar “chuvas”, acrescenta a expressão facial com duplo sentido para, simultaneamente: primeiro, sinalizar o verbo “cair” e, também, superlativar a expressão adverbial com a

equivalência de “com muita força”. Outra marca de expressividade é percebida pela tensão dos braços na produção do sinal – o que configura, também, marca de expressividade linguística em Libras.

Figura 03: Sinalização da expressão As fortes chuvas

Situação 04:

Nessa situação, o âncora faz referência à vulnerabilidade de meninas. Nesse caso, utiliza a sentença “as meninas são vulneráveis”, mas intensifica o adjetivo “vulnerável” por meio do parâmetro “expressão”, que modifica o sentido45. Nota-se que a intensidade foi marcada na sinalização do adjetivo, além na marca corporal de inclinação dos ombros. Temos, neste caso, expressividade marcada pela superlativação adjetival equivalente a muito vulneráveis ou “vulnerabilíssimas”.

Figura 04: Sinalização do adjetivo vulnerável

Considerações finais

Sabendo-se que a Língua Brasileira de Sinais, como qualquer língua natural, possui recursos linguísticos próprios para marcar a expressividade, buscamos as marcas de superlativação de adjetivos e advérbios que são utilizados na transmissão das notícias

45 Quando o sinal é feito sem a expressão facial, significa “perigo”.

pelos apresentadores surdos. Em Libras, os parâmetros “expressão facial” e “movimento” na produção dos sinais são, notadamente, os responsáveis pela referida marcação de expressividade, como marcaram os dados selecionados e analisados. Verificamos que a marca de expressividade linguística em Libras é marcada duplamente: seja com a expressão facial e a tensão de membros superiores; seja com a expressão facial e o movimento do corpo – ocorrendo simultaneamente. Outras formas linguísticas de marcar expressividade foram verificadas na seleção e análise dos dados, no entanto, ficarão para outra oportunidade de divulgação dos estudos desenvolvidos pelos pesquisadores.

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A CATRAIA: RELATO DE EXPERIÊNCIA COMO EDITOR CHEFE DE UM JORNAL LABORATÓRIO

Elenilson Lima de Oliveira46 Wagner da Costa Silva47 Universidade Federal do Acre - Ufac

Resumo

O presente artigo tem por objetivo discutir os conhecimentos adquiridos no percurso acadêmico, em especial na disciplina de Jornal Laboratórial I do Curso de Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo da Universidade Federal do Acre – UFAC, com a experiência vivenciada na função de Editor Chefe do Jornal Laboratório A Catraia, durante o segundo semestre letivo de 2016. Busca-se refletir sobre a importância do jornal na formação do Jornalista, bem como apresentar o papel de um Editor Chefe, para então expor as experiências, aprendizados e dificuldades enfrentadas no período da disciplina.

Palavras-chaves: Editor Chefe. A Catraia. Jornal Laboratório.

A importância do jornal laboratório na formação do jornalista

Ao se analisar a grade curricular e a rotina acadêmica de um estudante de Jornalismo, pode-se perceber a presença de disciplinas teóricas e práticas, na possibilidade de fazer do futuro profissional alguém que saiba relacionar o contexto, a teoria e a prática, bem como interpretar os fatos do tempo presente. No entanto, para se chegar às condições atuais, o ensino de jornalismo passou por experiências que são necessárias compreender para que seja possível o entendimento da história dessa formação em nível universitário.

Em suas configurações iniciais, os cursos de Jornalismo no Brasil se propunham a uma formação predominantemente humanística, embora já houvesse a preocupação com a qualidade do ensino prático. Neste sentido, Dirceu Fernandes Lopes, no livro Jornal Laboratório – Do Exercício Escolar ao Compromisso com o Público Leitor, afirma:

Redações e oficinas sempre caminharam paralelamente a disciplinas teóricas como Literatura, Política e História na formação dos profissionais, apesar da influência dos cursos de Filosofia a que as escolas de Jornalismo estiveram atreladas por diretrizes governamentais na fase inicial. (LOPES, 1989, p. 19).

46 Acadêmico do 6º período do curso de Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo da Universidade Federal do Acre – UFAC e Editor Chefe do Jornal Laboratório A Catraia do segundo semestre de 2016. E-mail: elenilsonelo@.

47 Professor Adjunto do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre – Ufac. E-mail:

wagnercostas@.

Mesmo diante dessa influência humanística, aos poucos, os cursos de Jornalismo adquiriram sua própria identidade, sendo que um dos pioneiros na inserção de estratégias para o desenvolvimento da parte prática do curso foi Luiz Beltrão, na Universidade Católica de Pernambuco. Beltrão criou o jornal-cobaia, que de acordo com Lopes (1989, p. 27) era um instrumento pelo qual utilizava-se do jornal que circulava na cidade para simular situações profissionalizantes dentro do ambiente acadêmico.

A dinâmica criada por Beltrão acontecia da seguinte forma:

Cada aluno adquiria dois exemplares para análise em sala de aula e como base para todos os trabalhos práticos de reportagem, redação, classificação de originais, diagramação e revisão de provas tipográficas. Durante todo um semestre o jornal serviu de modelo sendo substituído por outro no semestre seguinte. Funcionava como se o tempo se detivesse na véspera daquela edição e era necessário informar ao público no dia seguinte os acontecimentos de interesse e importância registrados no mundo, em qualquer setor de atividade humana, interpretados e comentados no periódico da cidade, que aos poucos seria elaborado na aula como em uma redação. (LOPES, 1989, p. 27)

No jornal-laboratório de Beltrão as matérias eram trabalhadas para se “transformar artigos de colaboradores em notícias, dar redação jornalística a editoriais, proclamas, cópias de acordos judiciais, realizar levantamento e previsão de acontecimentos locais e regionais”. (LOPES, 1989, p. 28).

Embora, além dessa iniciativa, outras também tenham sido desenvolvidas, muitos eram os empecilhos que dificultavam o avanço de tais práticas que visavam colaborar com a formação profissional dos acadêmicos.

Lopes (1989, p. 20) ressalta que para analisar a experiência de 20 anos dos cursos de Jornalismo, a Faculdade Casper Líbero realizou uma pesquisa em 1967, o que contribuiu para a formação de um panorama da situação do ensino de jornalismo em ambiente acadêmico. De acordo com o autor, as crítica principais se direcionaram à falta de aulas práticas e ao excesso de teoria, e, ainda, verificou-se que os donos das empresas jornalísticas avaliaram os cursos negativamente.

Assim, era visível a necessidade de instrumentos práticos que colaborassem na formação dos acadêmicos que, até então, tinham uma grade curricular baseada em disciplinas humanísticas. No entanto,

Essas contribuições esbarravam na falta de infraestrutura dos cursos que não estavam aparelhados para enfrentar uma linha de trabalho mais profissionalizante. A isso somava-se a contínua pressão enfrentada pelos formandos nas redações. Com formação apenas teórica, na maioria dos casos,

eles enfrentavam a ironia e o desprezo dos profissionais formados nos jornais.” (LOPES, 1989, p. 20)

Lopes, ao citar o professor José Marques de Melo, descreve a presença do Jornalismo nas universidades brasileiras em quatro momentos distintos, quais sejam: ético-social, técnico-editorial, político-ideológico e crítico-profissional. É neste último que se observa uma maior preocupação com as atividades práticas no ambiente acadêmico, uma vez que acadêmicos e professores passaram a discutir melhorias para os cursos, criando assim um novo momento de reflexão.

Nasce também nessa etapa a estrutura de redações-modelo melhor equipadas, com ênfase para o aspecto prático, para acabar com o estigma, criado por jornalistas formados nas redações, de que os bacharéis de Jornalismo chegam nos meios de comunicação cheios de teoria na cabeça mas sem nenhuma prática. A ênfase dada aos órgãos laboratoriais visa preparar melhor o estudante para enfrentar a prática nas redações. (MELO, José Marques de, Apud: LOPES, 1989, p. 22, 23)

É neste contexto que os órgãos laboratoriais começam a ser inseridos nas Universidades, o que de acordo com Lopes (1989, p. 23) dá início à mudanças nos cursos por intermédio de uma articulação teórico-prática, fundamental na formação do jornalista. Neste sentido, o ensino profissionalizante, voltado para as atividades práticas, tem como ponto de partida a Resolução nº 03/78, aprovada pelo Conselho Federal de Educação, que estabelecia que as escolas tivessem órgãos laboratoriais. Tal resolução foi, ainda, reforçada pela Resolução nº 2/84 que dispõe sobre o novo currículo mínimo para os cursos de Comunicação Social e faz exigências laboratoriais, determinando um prazo de três anos para sua implantação. A partir de então, o ensino discursivo foi cedendo lugar a uma aprendizagem prática.

Observa-se que historicamente a necessidade da presença do jornal laboratório no currículo do estudante de Jornalismo foi pensada desde a implantação dos primeiros cursos, sendo essencial para a formação de um profissional capaz de aliar teoria, pesquisa e práticas jornalísticas.

Mas Lopes ressalta a necessidade de haver um equilíbrio entre a teoria e a prática, para que o futuro profissional não esteja focado apenas na reprodução de modelos pré-estabelecidos. Desta forma afirma:

Se por um lado, com esse tipo de aprendizado, o formando consegue boas chances no mercado de trabalho, porque foi programado para fazer aquilo que o jornal muitas vezes quer, nem sempre tem a capacidade de se comportar criticamente na atividade profissional e não é capaz de criar, porque reproduz mecanicamente o modelo. (LOPES, 1989, p. 34)

Conforme diz Pacheco, o jornal laboratório é o ambiente da prática do aluno, pois é por intermédio dele que o estudante terá o contato com a realidade das grandes redações. Terá experiências com o factual, o imediatismo das demandas, o jornalismo investigativo, a produção diária, a venda do espaço publicitário e o relacionamento com a comunidade, sendo que todos estes elementos estarão ligados a aspectos pedagógicos que facilitam o ensino-aprendizagem em ambiente acadêmico.

Pacheco segue dizendo que o jornal laboratório pode ser, também,

[...] o espaço da interdisciplinaridade, pois há condições para se integrar disciplinas isoladas como Planejamento Gráfico, Fotojornalismo, Redação em Jornalismo Especializado, entre outras disciplinas, e até outros cursos como Publicidade e Propaganda e Sistemas de Informação. Além disso, possibilita aos alunos relacionarem ensino com pesquisa. (PACHECO)

Ao descrever o projeto do Jornal Portal, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Arcos, Pacheco apresenta os principais objetivos de Jornal Laboratório.

Transformar aulas técnicas em profissionais, permitindo ao aluno a aplicação de conhecimentos adquiridos em outras aulas; consolidar a prática de extensão universitária, através da integração com a comunidade; familiarizar os alunos com os problemas de organização e administração da empresa jornalística; proporcionar o conhecimento e a prática em diversas áreas do jornalismo; colocar os estudantes em contato com os círculos intelectuais, políticos e econômicos, que formam fontes perenes de informação na imprensa; exercitar o texto jornalístico; familiarizar o aluno com a forma gráfica do jornalismo e aprimorar seu senso estético, propiciando-lhe a formação de um acervo de conhecimento nas áreas do design gráfico, sistemas de impressão, diagramação, ilustração e cores. (PACHECO)

Assim, verifica-se que por intermédio do jornal laboratório, o estudante de jornalismo pode aplicar os conceitos aprendidos ao longo da faculdade, de forma interdisciplinar, aliando teoria e prática na produção jornalística. Como futuro profissional, é importante que o acadêmico participe de experiências que simulem as situações vivenciadas no mercado de trabalho, fazendo com que os profissionais recém- saídos das Universidades, possam entrar nas redações com uma bagagem de conhecimentos que não se baseiam apenas em questões humanísticas, mas também técnicas.

O papel do editor

No dia a dia de uma redação, muitas são as atividades desenvolvidas pelos profissionais de comunicação, sejam elas desde a definição da linha editorial, a reunião de pauta, o pensar a notícia, suas nuances, desdobramentos, interesse do público, a

disposição gráfica, as dificuldades da reportagem ou até mesmo as decisões do que abordar ou não, no jornal. Por questões que envolvem o mercado e a divisão do trabalho, visando a qualidade do serviço, dentro da estrutura de uma redação, encontramos funções distintas desempenhadas por profissionais de comunicação.

Silvia Garcia Nogueira, em seu artigo O meio jornalístico e a reunião de pauta: quando a arte expressa o todo, afirma que “a hierarquia dos profissionais dentro das redações é claramente definida e reconhecida em termos de autoridade e função. As posições ocupadas representam formas objetivas de níveis de poder, prestígio e status profissional.” (NOGUEIRA, 2002).

Saber o que cada profissional deve fazer dentro de uma redação é primordial, pois a cada um caberá realizar uma tarefa específica. Nogueira considera ser óbvio que os profissionais destinados aos níveis mais altos da hierarquia possuem maior grau de responsabilidade sobre o jornal impresso, sendo que de, modo geral, detêm maior prestígio e status em relação aos colegas. Assim, a autora lista quais são comumente as funções existentes em uma redação de jornal.

Na base hierárquica das redações, normalmente encontram-se fotógrafos e repórteres, e, em um movimento ascendente, redatores, chefes de reportagem/pauteiros, subeditores, editores, editores executivos, editor-chefe e diretor de redação. Acima dos editores, os demais níveis formam o Aquário, termo que designa tanto os locais quanto os indivíduos que ocupam salas posicionadas estrategicamente dentro das redações, compostas por divisórias com a parte superior em vidro, de onde se pode observar toda a redação mas que possuem uma certa privacidade por contarem com persianas que, se acionadas, impedem que quem está de fora veja o que ocorre lá dentro. Há ainda diagramadores, profissionais da rádio-escuta, os editorialistas e os colunistas, além dos profissionais da informática. (NOGUEIRA, 2002)

Para o presente artigo, é importante frisar a atividade do editor chefe de um jornal. No entanto, é necessário entender, em primeiro lugar, como funciona um jornal enquanto empresa, pois suas atividades tem como um dos focos principais o lucro. Lopes (1989, p. 40) ressalta que assim como qualquer tipo de investimento mercadológico parte do pressuposto de um possível retorno, é válido concluir que a independência e a possibilidade de liberdade, dentro das redações, se mantem “limitada pela própria natureza da empresa jornalística que como qualquer outra num regime capitalista, vê-se condicionada ao lucro para sobreviver”. Isso faz com que a empresa fique exposta aos diversos tipos de pressão, que vão desde os anunciante até o governo legal, que de acordo com Lopes (1989, p. 40), “dependendo do momento político que se

atravessa, tem meios de lançar mão de um grande número de restrições, como a recusa em conceder empréstimos, retirada de publicidade e até censura”.

Lopes continua dizendo que,

Na grande imprensa, principalmente, a divisão do poder é bem clara: de um lado o grupo dos redatores e repórteres que se preocupam com os fatos, que colhem as informações, e, de outro lado, a direção da empresa muitas vezes não composta por jornalistas, mas que determina a linha política do jornal. Os empresários estão cada vez mais preocupados com o lucro e a informação é transformada em mercadoria. (LOPES, 1989, p. 41)

Deste modo, observa-se que o processo de edição apresenta diversos filtro, sendo fundamental o aspecto político no jornalismo. É necessário saber quem decide o que editar e para quem. Assim, Lopes afirma:

Essa filtragem pode ser feita por omissão, quando se deixa de publicar um determinado fato, dando preferência a outro ou mesmo por projeção ou redução desse fato, ou seja, um maior número de linhas, um título maior, um espaço privilegiado na página, uma chamada na primeira página em contraposição a uma matéria pequena, inexpressiva, com um título pequeno, jogada num canto de uma página. (LOPES, 1989, p. 41 e 42)

Nogueira (2002) lembra que “outro modo de organização das atividades jornalísticas dentro das redações é o estabelecimento de rotinas cumpridas diariamente. Entre elas, encontram-se reuniões que são realizadas ao longo do dia, cada uma com um caráter distinto”.

Dentre essa reuniões estão: reunião de pauta, reunião da editoria e reunião de consolidação sendo que a primeira e a última são as mais formais e, geralmente, tem hora certa para começar e terminar; diferentemente da segunda que varia de editoria para editoria e por vezes pode nem ocorrer. Tal reunião, também foi abordada por Nogueira:

Na reunião da editoria, o editor de cada área reúne-se com os subeditores e eventualmente alguns redatores e repórteres, onde são trocadas informações sobre o andamento das apurações dos repórteres e é determinado quem fecha (é responsável) que página no fechamento (momento em que o jornal está pronto para seguir para o processo industrial de impressão gráfica). É uma oportunidade para os editores se encontrarem e também conhecerem o que as outras editorias estão fazendo. (NOGUEIRA, 2002)

É importante frisar a observação feita por Nogueira (2002), ao dizer que “cabe observar que tanto na reunião de pauta quanto na de consolidação, é o editor-chefe quem dá a última palavra sobre o que está sendo discutido ou apresentado.

O Jornal Laboratório A Catraia

O jornal laboratório A Catraia, do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre (Ufac), teve seu nome definido por meio de um concurso. Conforme afirma Silva (2017), toda a comunidade acadêmica teve a oportunidade de contribuir com sugestões sendo que A Catraia, sugestão do professor de sociologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Mauro Rocha, foi o nome escolhido. A proposta se deu devido à regionalização e a questão do fluxo da informação, uma vez que uma catraia trata-se de uma pequena embarcação, semelhante a uma canoa, utilizada para o transporte nos rios.

A primeira edição do jornal A Catraia foi publicada em dezembro de 2004 e teve uma tiragem de 200 exemplares que foram distribuídos pelos alunos. A primeira turma do curso de Jornalismo foi responsável pela edição, que foi produzida quando a turma estava no sétimo período, como uma atividade de extensão. Ao longo dos anos o jornal A Catraia esteve sob a responsabilidade de vários professores na disciplina de Redação III, entre eles: Juliana Lofêgo Encarnação, Wagner da Costa Silva, Francisco Aquinei Timóteo Queirós, Franciele Maria Modesto Mendes e Giselle Xavier d’Avila Lucena. (SILVA, 2017, p. 5)

Um dos problemas enfrentados pelo jornal trata-se da exigência do Ministério da Educação de que sejam produzidas quatro edições do periódico por semestre. Porém, “devido a dificuldades que o curso enfrenta, como a estrutura básica para as disciplinas, que nem sempre permite um suporte para diagramação e impressão do jornal, é produzido por semestre uma a duas edições”. (SILVA, 2017, p. 6)

Em entrevista citada no artigo de Silva (2017), o professor Wagner da Costa Silva, afirma que a produção do jornal laboratório também é prejudicada pela carga horária disponível para trabalhar, o que é insuficiente.

Segundo o professor é importante que a primeira parte da disciplina seja voltada para as questões teóricas, como debater o objetivo da disciplina, porém, com a carga horária estabelecida, as aulas ficam sem aprofundamento. Portanto, como estratégia para o melhor aproveitamento da disciplina, os docentes faziam uso das primeiras aulas para apresentar e introduzir a metodologia utilizada durante o semestre. E depois de ser apresentada a parte teórica de um jornal, todos os alunos contribuíam com as decisões de qual seria o objetivo do jornal, o formato, o público alvo, editorias, equipe e nome. (SILVA, 2017, p. 6)

É importante observar que conforme Silva (2017), a escolha da linha editorial do jornal A Catraia é sempre definida entre a turma. Esse padrão “acarreta na mudança da linha editorial a cada semestre, pois algumas turmas que são mais críticas, envolvidas

com política, outras produzem mais matérias comportamentais, assim, cada turma imprime sua identidade no jornal”. (SILVA, 2017, p. 6)

Silva (2017) ressalta, ainda, que o curso de Jornalismo da Ufac possui uma proposta de Manual de Redação para o Jornal Laboratório A Catraia (2013). Nele se estabelece os objetivos do periódico, que são:

[...] ser político e crítico; ter compromisso com a verdade; ser levado a sério; abrir para a comunidade; estar em contato com a população; ser didático, explicar, educar. Também está definido no Manual que o público alvo do jornal é a comunidade acadêmica e comunidades vizinhas à Ufac – Tucumã, Universitário, Jardim Primavera, Rui Lino e Mocinha Magalhães incluindo, assim, professores, estudantes, comerciantes, funcionários públicos, profissionais liberais e donas de casa. (SILVA, 2017, p. 6-7)

Ainda segundo a proposta do Manual de Redação do Jornal Laboratório A Catraia (2013), a rotina de produção do periódico deve cumprir as seguintes ordens: reunião de pauta com todos os alunos e professores (e distribuição de tarefas), reunião de editorias – definição dos espaços e imagens, entrega das matérias, primeira reunião com os docentes – correções, primeiro espelho das editorias, entrega das matérias e fotos definitivas, projeto gráfico definitivo, fechamento, distribuição e avaliação.

Assim, também em entrevista citada no artigo de Silva (2017), A professora Juliana Lofêgo Encarnação descreve a rotina seguida durante a produção do jornal:

[...] após a apresentação da parte teórica do jornal laboratório, as aulas passam a funcionar como uma redação, onde são realizadas as reuniões de pauta e todos os outros passos até chegar a distribuição e avaliação do periódico. É importante destacar que a revisão das matérias e a diagramação do jornal é feita de forma coletiva, ou seja, conta com a participação de uma quantidade significativa de alunos. Essa metodologia foi trazida pelo professor Wagner da Costa quando retornou do doutorado, e possibilita que todos aprendam com os erros dos outros. (SILVA, 2017, p. 7)

Sobre o formato físico do jornal, “Apesar de duas edições do Jornal A Catraia terem saído com o formato de oito páginas [...], a ideia é que o periódico mantenha o formato de doze páginas. E tenha a identidade da turma que está produzindo o jornal”. (SILVA, 2017, p.7)

Aprendizados

Da experiência vivenciada na atuação como editor chefe do jornal laboratório A Catraia, é possível identificar alguns aprendizados. O percurso da vida acadêmica de um estudante de jornalismo traz consigo o conhecimento de teorias e técnicas que somente a prática é capaz de consolidar.

O curso superior traça na vida do indivíduo uma linha cheia de desafios e obstáculos a serem vencidos. Especialmente, em um curso de Jornalismo é comum que alunos e professores passem por experiências novas, o que geram crescimento e aprendizado. É por meio dessa perspectiva que se pode observar os ganhos traduzidos em capital intelectual, os quais são impossíveis de mensurar.

Dentre as atividades inerentes do editor chefe do jornal A Catraia estão: definir, juntamente com o professor orientador, bem como com os demais integrantes do jornal, qual será a linha editorial adotada; organizar as reuniões de pauta, bem como sugerir temas a serem abordados nas matérias, sempre tomando nota das decisões do grupo; elaborar, em parceria com o professor orientador o espelho do jornal; definir, diante de situações críticas, o momento certo de se mudar o tema de uma pauta impossível de ser consolidada; acompanhar o planejamento gráfico do jornal, desde a escolha da logomarca de identificação, ao seu fechamento, propondo alterações dentro das especificidades da edição; providenciar os tramites necessários para a devida impressão do periódico.

Diante de todas essas atribuições, fica claro o enorme aprendizado recebido ao atuar na função de editor chefe de um jornal laboratório, uma vez que os conceitos teóricos são aplicados na prática, sendo possível não apenas saber fazer o jornal, mas produzi-lo efetivamente. Alie-se a isso, a temática da administração em ambiente jornalístico, voltada para o cumprimento dos cronogramas estabelecidos e a organização da estrutura do jornal.

Dificuldade

Dentre as dificuldades encontradas, os desafios do fazer jornalístico, principalmente no que se refere à construção das matérias são as principais. Enquanto aluno-repórter, que precisa apresentar conteúdo condizente com a reunião de pauta, dentro da linha editorial estabelecida, os prazos, os limites referentes ao texto e a necessidade de estabelecer uma relação entre o texto e a imagem são pontos relevantes. Não apenas encontrar as fontes, mas convencê-las a falar, também são problemas que dificultam o desenvolvimento deste tipo de atividade.

Na condição de aluno, muitos são os nãos recebidos e as portas trancadas, aliadas aos desencontros de horários. Por não possuir disponibilidade integral para o desenvolvimento desse tipo de atividade acadêmica, que exige grande nível de

comprometimento extraclasse, os estudantes se esbarram na impossibilidade de conversar com as fontes nos horários por elas disponibilizados.

Enquanto aluno-editor chefe do jornal laboratório, tais dificuldades se agravam, pois exige-se a necessidade de motivar os demais alunos pela conquista dos resultados. É necessário estar atento às possíveis falhas e às dificuldades dos colegas, para que o objetivo seja alcançado a contento e o jornal possa ser finalizado dentro do prazo e da estrutura pensada inicialmente.

Referindo-se em especial ao jornal A Catraia do segundo semestre letivo de 2016, uma das principais dificuldades encontradas foi quanto a impressão dos jornais, uma vez que no ato da solicitação do serviço junto a Universidade, obteve-se a informação de que esta não dispunha de meios para sua efetivação. De acordo com os representantes, a instituição passava por fase de licitação para a contratação de nova empresa de serviços gráficos.

Diante da demanda, fez-se necessário buscar outras alternativas que sanassem tal problema, como a busca de patrocinadores interessados em colaborar com a reprodução do conteúdo. Após algumas tentativas, a impressão foi viabilizada por um patrocinador. Porém, por questões que envolvem falhas na comunicação entre a gráfica, patrocinador e a equipe do jornal, a impressão não atendeu aos anseios da turma, que pretendia distribuir um jornal com o padrão de tamanho semelhante ao dos jornais comumente veiculados nas bancas. Desta forma, resolveu-se aguardar a conclusão dos procedimentos de licitação da Universidade. Destaque-se que até julho de 2017 nenhuma das edições de 2016 foi impressa.

Outas dificuldades se somam a essa. Embora, em geral, a turma tenha cumprido os prazos estabelecidos, algumas matérias foram entregues com atraso, ou sem todas as especificações pré-estabelecidas. No momento da diagramação, verificou- se a ausência de legendas, bem como de especificação de autoria de fotografias.

Considerações Finais

Os desafios da vida acadêmica trabalham nos futuros profissionais a capacidade de reagir diante das situações apresentadas do mercado de trabalho. No caso dos estudantes de jornalismo, muitas são as práticas vivenciadas ao longo do curso. Dentre essas práticas pode-se destacar atividades de rádio, TV, diagramação, fotografia e oficinas de redação. No entanto, é no jornal laboratório que se alcança o grande momento para a união de boa parte destas práticas.

Em um jornal laboratório são empregadas muitas das técnicas estudadas ao longo do curso, sendo que desta forma o aluno entende, com maior clareza, os problemas enfrentados na vida profissional. Nele explora-se o potencial de comunicar por meio da busca de informação, observando os prazos a serem cumpridos e a linha editorial, elementos que trabalham a visão de limites dos acadêmicos.

Vivenciar as atividades de um Editor Chefe, impulsiona o estudante na busca por melhorias na qualidade de seu próprio ensino-aprendizado, gerando neste indivíduo uma visão holística do ambiente profissional de uma redação jornalística. Tal função induz o acadêmico rumo à tomada de decisões, aliada aos aspectos humanos e administrativos, inerentes da função.

Referências

LOPES, Dirceu Fernandes. Jornal laboratório – Do Exercício Escolar ao Compromisso com o Público Leitor. São Paulo: Summus, 1989. (Coleção Novas Buscas em Comunicação, v.32).

NOGUEIRA, S. G. O meio jornalístico e a reunião de pauta: quando a parte expressa o todo. Revista Alceu - v.3 - n.5 - p. 62 a 73 - jul./dez. 2002.

PACHECO, R. P. de M. A importância do Jornal Laboratório Portal na Formação do jornalista: a perspectiva do aluno. Disponível em:

_A_importancia_do_jornal_laboratorio-Roni.pdf

SILVA, L. C. da S. e SILVA, W. da C. O Jornal Laboratório Como Espaço de Formação: a experiência da Ufac. Disponível em:

COMUNICAÇÃO NO CONTEXTO DA SAÚDE MENTAL NO ACRE: VISIBILIDADE E RECONHECIMENTO DE EXPERIÊNCIAS PARA MUDANÇAS NO CUIDADO

Khelven de Castro Correia Itala Batista de Oliveir Juliana Lofego Encarnação

Resumo

O movimento de reforma psiquiátrica no Brasil mostra que um desafio da saúde mental está na mudança do modelo focado no hospital para a assistência ao usuário em seu território. As mudanças estruturais efetivas devem ser concomitantes com mudanças na concepção social e cultural da sociedade. Esta pesquisa visa identificar processos de comunicação no campo da saúde mental de Rio Branco - Acre, no contexto do Sistema Único de Saúde - SUS, onde coexistem visões diferenciadas sobre as conduções das políticas públicas. Desta forma, busca analisar a divulgação de informações públicas e dar visibilidade a saberes e práticas de pessoas que vivenciam a experiência de adoecimento no cotidiano dos serviços de saúde. As práticas existentes resultam de disputas entre saberes e poderes de diferentes grupos e atores sobre o modo de cuidado a pessoas com transtorno ou sofrimento mental e refletem nos discursos que circulam publicamente na imprensa.

Palavras-chave: Saúde mental; notícias; visibilidade

Introdução

No decorrer da história da saúde houve movimentos de mudança de práticas de cuidado e abordagem dos pacientes com transtorno ou sofrimento mental. Uma conquista dos movimentos sociais organizados da área da saúde no Brasil é Lei 10.216 (BRASIL, 2001), conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, que coloca em pauta o campo da atenção em saúde mental no contexto de consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). A aprovação da lei desencadeou um processo de transformação no modelo técnicoassistencial no país.

Na segunda metade dos anos 80, a luta antimanicomial estabeleceu estratégias que visaram desconstruir práticas e discursos que reduziam a loucura à ideia de doença e, consequentemente, o tratamento baseado no isolamento e contenção medicamentosa. Desta forma, promoveu transformações nos campos teórico, cultural e jurídico, visando modificar a realidade das práticas de cuidado. Nos preceitos defendidos pela reforma psiquiátrica busca-se a superar dificuldades relacionadas à convivência com as diferenças das pessoas, com a intenção de alterar a compreensão social e cultural da loucura (SILVEIRA, R. et al, 2009).

A reforma psiquiátrica no Brasil também foi marcada pelas disputas de poderes e saberes, mobilizações sociais e uso de estratégias de comunicação em vários momentos. Tinha a finalidade de mudar não só o modelo de assistência psiquiátrica como as concepções sociais e culturais na compreensão da loucura pela sociedade (AMARANTE, 1995).

Embora o marco institucional da reforma tenha vislumbrado um avanço na mudança de modelo assistencial em vários Estados do país, são frequentes retrocessos ou estagnações, que implicam no não cumprimento de dispositivos previstos em lei. Muitos serviços funcionam de forma verticalizada, hierárquica, sem discussão ou construção de possibilidades terapêuticas a partir do contexto local e negociação entre profissionais, usuários e familiares. Na região Norte, a implantação de unidades substitutivas ao hospital psiquiátrico ainda está em fase inicial. As práticas terapêuticas se tornam mais humanizadas e diversificadas, mas prevalece a assistência hospitalocêntrica (SILVEIRA, R. et al, 2009; LOFEGO, J. et al, 2009).

No Estado do Acre, uma pesquisa realizada em Rio Branco entre 2007 e 2009, apresentou como resultados a fragilidade da rede de atenção básica, com equipes pouco envolvidas e capacitadas a promover assistência às pessoas com transtorno mental, sendo o foco da assistência no Hospital de Saúde Mental do Acre - Hosmac (SILVEIRA et al., 2009). A pesquisa analisou a oferta de assistência em saúde mental, com foco nas ações no território e no contexto da desinstitucionalização, identificando uma representação social da loucura ligada à periculosidade e isolamento na sociedade, com famílias em situação de vulnerabilidade social.

Decorridos quase 10 anos da pesquisa, poucas mudanças aconteceram em relação ao cenário analisado. O município de Rio Branco possui apenas um Centro de Atenção Psicossocial de atendimento a pessoas com problemas ligados a álcool e outras drogas e o Hosmac ainda é a unidade central de atenção as pessoas com transtorno mental no Estado. Após 15 anos de implementação da legislação brasileira, que indica a extinção dos manicômios a partir da criação de serviços substitutivos visando a assistência centralizada nos sujeitos e suas relações no território (como os centros ou núcleos de atenção psicossocial) e regulamentam direitos do doente mental, permanece forte o modelo do hospital psiquiátrico asilar no cenário local da saúde mental.

Por outro lado, serviços de apoio com diferentes perspectivas de cuidado surgiram e vêm se fortalecendo e ganhando reconhecimento no Estado. A Associação dos Pacientes e Amigos da Saúde Mental do Acre (Apasama) foi criada há 16 anos e tem promovido ações para fortalecer usuários e seus familiares, como oficinas de visando apoiar economia solidária e um curso para ampliar conhecimentos sobre a rede de saúde local para usuários, familiares, profissionais e gestores. Outra iniciativa surgiu como uma oficina de livre expressão artística, baseada nos ideais da psiquiatra Nise da Silveira, e hoje é o Projeto Arte de Ser, em vias de ser cadastrado como um Centro de Convivência Psicossocial vinculado à Secretaria de Estado de Saúde do Acre. O Arte de Ser está sediado em Rio Branco, no Parque Capitão Ciríaco, bairro Seis de Agosto, e oferece durante a semana oficinas que envolvem pintura, música, contação de histórias e outras formas de expressão.

As disputas por poder e hegemonia dos discursos estão presentes nesses contextos, sendo relevantes as reflexões no campo da comunicação em saúde. Observa-se que temas relacionados à saúde mental tem ganhado repercussão na mídia, sendo pautados pela imprensa de diferentes maneiras e contemplam os sentidos variados que versam sobre o louco, a loucura, manicômios e as formas de cuidado e assistência à saúde existentes na realidade. Esta pesquisa buscou identificar como as informações sobre saúde mental vem sendo veiculadas na imprensa de Rio Branco, analisando os diferentes enfoques e discursos presentes nos textos publicados.

Objetivos

Geral

Analisar processos de comunicação no contexto da saúde mental de Rio Branco - Acre, no âmbito das informações públicas veiculadas na imprensa, visando ampliar a visibilidade de saberes e práticas relacionadas às experiências de adoecimento e busca por cuidado no SUS.

Específicos

Dar visibilidade aos discursos de pessoas que vivenciam o cotidiano dos serviços de saúde em experiências de adoecimento e busca por cuidado, a narrativas de usuários do SUS;

Identificar e catalogar as informações públicas no âmbito da saúde mental de Rio Branco – Acre veiculadas na imprensa, entre junho de 2016 a junho de 2017;

Analisar as informações selecionadas a partir da metodologia de análise de conteúdo

Metodologia

No campo da pesquisa foi realizada observação participante em dois momentos: No primeiro trimestre (setembro) houve participação no curso Saúde Mental e Cidadania na Vida Cotidiana, da Associação dos Pacientes e Amigos da Saúde Mental do Acre (Apasama), onde foram conhecidas as práticas de saúde mental no sistema de saúde do Estado do Acre, assim como outras entidades que fazem ações relacionadas a pessoas com sofrimento ou transtorno mental. Nas rodas de conversas sobre o contexto de saúde mental local, o debate incluía profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, psicólogos, técnicos de enfermagem), estudantes, os próprios usuários e seus familiares. Como parte final das atividades do curso foram realizadas visitas nas unidades de saúde, onde os tutores desenvolveram conversas com os profissionais de saúde e usuários.

Foi realizada uma parceria com o Centro de Convivência Arte de Ser, um grupo que acolhe pessoas com ou sem transtornos mentais proporcionando livre expressão artística através de atividades como pinturas, músicas, brincadeiras, rádio ao vivo, contação de histórias e outros. Entre outubro de 2016 e maio de 2017, o grupo de pesquisa participou do processo de criação de um site e página no Facebook, além de um programa de rádio, com o objetivo de dar visibilidade às demandas e informar à sociedade sobre as mudanças que vem ocorrendo na saúde mental do Estado. A proposta é que o programa seja transmitido ao vivo nas unidades de saúde frequentadas pelos usuários, e que haja interação entre pessoas com e sem transtorno mental, que se revezam nas funções de locutores, produtores e ouvintes.

No âmbito das informações públicas sobre saúde mental, buscou-se identificar fluxos da comunicação ou “rede de comunidades discursivas que produzem e fazem circular discursos sobre um determinado tema, direcionado a um determinado segmento da população, num determinado espaço institucional ou geográfico” (ARAÚJO, 2009, p.48). Para isso, foram selecionadas 25 publicações na imprensa local a partir dos meios digitais relacionados ao tema da saúde mental durante o período de junho de 2016 a junho de 2017. Os jornais impressos foram excluídos da pesquisa por apresentar apenas reproduções de matérias veiculadas pelos meios digitais, não havendo matérias originais identificadas no período. A metodologia de análise de conteúdo foi utilizada a fim de gerar categorias empíricas e analíticas, consistindo em 5 etapas: organização do material selecionado para a análise; codificação (recorte; enumeracão; classificação); categorização; inferência e tratamento informático.

Resultados e Discussão

Foram identificadas 25 matérias publicadas nos entre o período de junho de 2016 e junho de 2017. Elas foram inicialmente separadas por três principais categorias relacionadas à abordagem das matérias: aspectos das mudanças da reforma psiquiátrica no Estado do Acre; transtornos mentais na perspectiva do indivíduo; foco no Hosmac como meio de tratamento no SUS. Outras duas categorias são suicídio e outros assuntos, ambas relacionadas ao tema da saúde mental, mas sem abordagem sobre os serviços de saúde. Abaixo é apresentado o quadro das matérias selecionadas para análise:

MATÉRIAS DE SAÚDE MENTAL

|N |data |titulo |local |categoria |

|o | | | | |

|1 |19/05/2016 |Em sessão solene, parlamento estadual discute |A Gazeta do Acre |mudanças da reforma |

| | |sobre saúde mental e luta antimanicomial | |psiquiátrica |

|2 |18/05/2016 |Manifestantes fazem ato contra manicômios em |G1 Acre |mudanças da reforma |

| | |Cruzeiro do Sul | |psiquiátrica |

|3 |07/06/2016 |Família procura por mulher com transtornos |G1 Acre |indivíduo c/ transtornos |

| | |mentais que sumiu no AC | |mentais |

|4 |18/08/2016 |Sesacre capacita profissionais para identificar |Agência Notícias do |Suicídio |

| | |pacientes com comportamento suicida |Acre | |

|5 |12/09/2016 |Rio Branco registrou mais de 30 suicídios em |G1 Acre |Suicídio |

| | |2015, aponta núcleo | | |

|6 |01/10/2016 | |G1 Acre |Outros |

| | |Em Rio Branco, quase 70 idosos moram no 'Lar dos | |(mulheres do Hosmac) |

| | |Vicentinos' | | |

|7 |09/10/2016 |Sesacre realiza ação em homenagem ao Dia Mundial |Agência Notícias do |mudanças da reforma |

| | |da Saúde Mental |Acre |psiquiátrica |

|8 |10/10/2016 |Sesacre celebra Dia Mundial da Saúde Mental |O Rio |mudanças da reforma |

| | | |Branco |psiquiátrica |

|9 |10/10/2016 |Arte de ser abre centro de conivência |O Rio |mudanças da reforma |

| | | |Branco |psiquiátrica |

|10 |10/10/2016 |No dia mundial, Nazareth pede atenção à política |Agência |mudanças da reforma |

| | |nacional de saúde mental |Notícias do Acre |psiquiátrica |

| | | |O Rio | |

| | | |Branco Jornal | |

| | | |Opinião | |

|11 |11/10/2016 |Arte de Ser abre centro de convivência: |Agência |mudanças da reforma |

| | |acolhimento à singularidade humana |Notícias do Acre |psiquiátrica |

| | | |3 de Julho Notícias | |

|12 |08/11/2016 |Após postar foto íntima de médico, jovem vai para|G1 Acre |indivíduo c/ transtornos |

| | |hospital | |mentais |

| | |psiquiátrico | | |

|13 |9/11/2016 |Homem com perda de memória não sabe onde mora e |G1 Acre |indivíduo c/ transtornos |

| | |sonha em ver filhas | |mentais |

|14 |26/12/2016 |Jovem é baleado na cabeça e morre durante troca |G1 Acre |indivíduo c/ transtornos |

| | |de tiros | |mentais |

| | |com a PM | | |

|15 |07/12/2016 |Projeto no Acre usa arte e convivência para |G1 Acre |mudanças da reforma |

| | |tratar transtornos mentais | |psiquiátrica |

|16 |16/12/2016 |Sindicato denuncia falta de remédios e alimentos|G1 Acre |foco no Hosmac |

| | |no Hosmac, em Rio Branco | | |

|17 |Sem data 2016 |Hosmac: um lugar para tratar as doenças da alma |Agência Notícias do |foco no Hosmac |

| | | |Acre | |

|18 |01/01/2017 |Família busca mulher com problemas mentais |G1 Acre |indivíduo c/ transtornos |

| | |desaparecida há 14 dias | |mentais |

|19 |10/01/2017 | |Ac 24 horas |foco no Hosmac |

| | |Sesacre comenta o fato de pacientes do Hosmac | | |

| | |dormirem no chão | | |

|20 |11/01/2017 | |G1 Acre |mudanças da reforma |

| | |MP denuncia falta de estrutura em Hospital de | |psiquiátrica |

| | |Saúde Mental no Acre | | |

|21 |08/02/2017 |Mulher em tratamento contra depressão desaparece |G1 Acre |indivíduo c/ transtornos |

| | |em Rio Branco | |mentais |

|22 |11/03/2017 |Jovem que divulgou foto íntima de médico é solta |G1 Acre |indivíduo c/ transtornos |

| | |após 3 meses na prisão | |mentais |

|23 |20/03/2017 | |Agência Notícias do | |

| | |Estado e município discutem descentralização do |Acre |mudanças da reforma |

| | |atendimento em saúde mental | |psiquiátrica |

|24 |15/05/2017 |Dia das Mães é comemorado em unidades de saúde do|Agência Notícias do |foco no Hosmac |

| | |estado |Acre | |

|25 |23/05/2017 |Homem que sofre de esquizofrenia é procurado |G1 Acre |indivíduo c/ transtornos |

| | |pela família em Rio Branco | |mentais |

Das 25 matérias selecionadas:

• 10 foram classificadas como dando enfoque a aspectos das mudanças da reforma psiquiátrica (corresponde a 40% da amostra): estas englobam discussões e manifestações sobre as mudanças nos serviços oferecidos, na perspectiva da luta antimanicomial, com questionamentos à estrutura do Hosmac e valorização de serviços substitutivos como os Centros de Atenção Psicossocial e o Centro de Convivência Arte de Ser.

• 8 foram consideradas como abordando transtornos mentais na perspectiva do indivíduo (32%), ou seja, dão destaque a um problema pontual de uma pessoa – especialmente desaparecimentos

– e apontam uma ligação com um transtorno mental. A maior parte das matérias relaciona a pessoa como “paciente do Hosmac”, mas não há referências mais detalhadas aos serviços de saúde e tampouco à questão de saúde mental.

• 4 tem foco no Hosmac (16%), o Hospital de Saúde Mental do Acre, sendo duas dessas com abordagem que valoriza o espaço hospitalar na assistência à saúde e duas que apontam os problemas enfrentados pela unidade (falta de remédios, alimentos, colchões).

• 2 tiveram abordagens relacionadas ao suicídio (8%), aqui relacionado por fazer parte do acompanhamento da Saúde Mental do SUS. As matérias apresentam capacitações dos profissionais da rede assistencial e as unidades de atendimento para os casos (Huerb e Hosmac, este último não mais considerada unidade de referência para casos envolvendo comportamento suicida).

• 1 considerada “outros” (4%), pois fala especificamente sobre o Lar dos Vicentinos, uma unidade de acolhimento de idosos, mas cita que as mulheres idosas que vivem no local foram transferidas do Hosmac, pois eram pacientes “institucionalizadas”, ou seja, moravam há muitos anos na unidade.

Ao analisar a quantificação dos dados, pode-se perceber que existem diferentes abordagens nos discursos apresentados pelas matérias jornalísticas, que representam as as políticas e práticas de saúde existentes. Consideradas as categorias separadamente, maioria das matérias (40%) aponta para uma abordagem favorável às mudanças propostas pela reforma psiquiátrica. As matérias com abordagem individualista (32%), costumam focar em um problema pontual de um indivíduo, mas não contextualizam as questões apontadas nem relacionam com serviços ou realidade social. O terceiro tema mais recorrente nas matérias foi classificado como tendo foco no Hosmac (16%), reforçando o hospital psiquiátrico como referencia assistencial. As duas últimas categorias abordam perspectivas que não se configuram afinadas à reforma psiquiátrica e às leis vigentes que embasam a política pública nacional de saúde mental e somadas contemplam 48% das matérias selecionadas.

Estes discursos variados disputam reconhecimento, visibilidade e hegemonia. A concepção de comunicação como uma relação de negociação e concorrência de sentidos orienta a forma de olhar as práticas sociais (ARAÚJO, 2009). O processo de conhecimento ocorre nos embates e nas relações de poder entre discursos, que se formam através de disputas no interior de um campo de práticas, conforme aponta Amarante (1995): As propostas de transformação da assistência psiquiátrica encontram-se imersas em contextos sócio-históricos precisos e, portanto, datadas e matizadas por jogos de interesses, relações entre saberes, poderes, práticas e subjetividades (AMARANTE, 1995, p.45).

Ressalta-se que a pesquisa precisou ser readequada a fim de evitar a aplicação de entrevistas com seres humanos devido à demora na aprovação do projeto junto ao Comitê de Ética em Pesquisa. Esta foi a maior dificuldade identificada pela equipe no decorrer da pesquisa.

Conclusões

A pesquisa proporcionou aos participantes a ampliação do conhecimento sobre a reforma psiquiátrica e a realidade da saúde mental vigente no estado do Acre. Na análise de conteúdo realizada nas informações públicas sobre saúde mental veiculadas na imprensa de Rio Branco

no período de um ano (06/2016 a 06/2017) foi observado que os discursos representam disputas de sentidos que orientam as práticas sociais. Na amostra selecionada 40% das matérias jornalísticas podem ser consideradas afinadas à reforma psiquiátrica e às leis vigentes que embasam a política pública nacional de saúde mental. As outras duas categorias que mais tiveram matéria publicadas foram as que abordaram transtornos mentais na perspectiva do indivíduo e foco no Hosmac como meio de tratamento no SUS, contemplando 48% das matérias selecionadas.

Referências

AMARANTE, Paulo. (coord.) Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995.

ARAUJO, I.; CARDOSO, J. Comunicação e saúde: os princípios do SUS como ponto de vista. In: Cuidar do cuidado: responsabilidade com a integralidade das ações de saúde. PINHEIRO,

R. MATTOS, R.A. Rio de Janeiro: CEPESC: IMS/UERJ: ABRASCO, 2008. P.61-78.

ARAUJO, I. Contextos mediações e produção de sentidos: uma abordagem conceitual e metodológica em comunicação e saúde. Reciis – Revista eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde. Rio de Janeiro, v.3, n.3, p.42-50, set., 2009.

BRASIL. Ministério da Saúde. Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União, seção 1.

FONSECA JÚNIOR, Wilson Corrêa da. Análise de conteúdo. In: DUARTE, J.; BARROS, A. (orgs.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. 2a ed. São Paulo: Atlas, 2008.

LOFEGO, J., SILVEIRA, R. P., CATALAN, X., BARBOSA, L., KEPPER, D. Itinerários

Terapêuticos: prática avaliativa centrada no usuário de longa permanência do Hospital de Saúde Mental do Acre In: PINHEIRO, R.; MARTINS, P.H.(orgs). Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: abordagem multicêntrica 1 a ed. Rio de Janeiro; Recife; SP : CEPESC / IMS-UERJ; Editora Universitária UFPE; ABRASCO, 2009, p. 103-111.

SILVEIRA, R.; REBOUÇAS, M.; MESSIAS, A.C.; CATALAN, X.; ALVES, C.

Desinstitucionalização e modelos assistenciais em saúde mental: avaliação na perspectiva da integralidade. In: PINHEIRO, R. e MARTINS, P.H. (Orgs.). Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: abordagem multicêntrica. 1. ed. Rio de Janeiro: CEPESC / IMS- UERJ; Recife: Editora Universitária da UFPE; São Paulo: ABRASCO, 2009. pp.95102.

CARACTERÍSTICAS DO JORNALISMO AMBIENTAL48

Mônica Candeo Iurk

Resumo

O presente artigo tem como tema as características do jornalismo ambiental baseado em autores como Bueno (2007a, 2007b e 2008), Girardi (2012), Belmonte (2015) e Trigueiro (2003). A partir dos conceitos, recomendações e indicações dos autores elencou-se para essa breve reflexão pontos que chama a atenção da autora sobre o jornalismo ambiental.

Palavras-chave: Jornalismo Ambiental; Características; Conhecimento.

ALÉM DA TÉCNICA

O cuidado com o tratamento das informações e o respeito em relação à audiência são premissas do jornalismo em todas e qualquer editoria. “O Jornalismo Ambiental é, antes de tudo, jornalismo (que é substantivo, o núcleo da expressão) e deve ter compromisso com o interesse público, com a democratização do conhecimento, com a ampliação do debate” (BUENO, 2007a, p. 36). A profissão de jornalista, de acordo com

o Decreto 83.284 de 1979, contempla, entre atividades distribuídas em onze tópicos, “a redação, condensação, titulação, interpretação, correção ou coordenação de matéria a ser divulgada, contenha ou não comentário”; e “entrevista, inquérito ou reportagem, escrita ou falada” (BRASIL, 1979). Porém, para além da técnica, o jornalismo tem, como uma das funções, de acordo com Denis McQuail (2013, p. 493), “fazer um alerta público com relação a possíveis perigos e riscos”. Dessa forma, as informações e dados reportados são tratados de maneira tal para que o leitor conheça, compreenda, entenda e, se necessário, possa refletir, discutir e repercutir o conteúdo apresentado.

O jornalismo ambiental é uma área especializada do jornalismo que, por sua vez faz parte da área da comunicação. Wilson da Costa Bueno (2007a) defende que embora a temática ambiental seja enorme,

48 Esse artigo é parte da pesquisa de mestrado em Comunicação e Linguagens desenvolvida pela autora.

[...] não pode afastar o comunicador e o jornalista ambientais de uma visão dita sistêmica, ou seja, eles precisam ter presente que as pessoas, a natureza, o meio físico e biológico, a cultura e a sociedade estão umbilicalmente conectados. Fica claro, quando se assume esta perspectiva, que é a adequada para se tratar a questão ambiental, que não se pode (ou melhor, não se deve) privilegiar as partes em detrimento do todo. Como sistema, a alteração em uma determinada unidade (seja um ser vivo ou um meio físico – água, solo, ar, clima) provoca impactos em todas as outras e pode romper o equilíbrio que permite a manutenção da vida. (BUENO, 2007a, p. 35).

Bueno defende que o jornalista ambiental tenha a visão ampla, para além do factual e que acrescente o contexto da situação na reportagem. Que siga as técnicas da profissão, mas seja comprometido com a sua audiência. “Ele [jornalista ambiental] precisa ter uma visão mais abrangente do tema (ou pelo menos buscar tê-la sempre) porque caso contrário, irá fechar o seu foco, restringir as suas fontes e ficar à mercê de informações ou dados que servem a determinados interesses”. (BUENO, 2007b, p. 37, sem grifo no original). Nessas condições, Ramos indica o que pode ocorrer quando o jornalismo ambiental não é praticado com idoneidade. O autor aponta que os meios de comunicação de massa têm a responsabilidade sobre a difusão de informações, assim como pela omissão e, “o que é mais grave, muitas dessas mensagens, de forte apelo persuasivo, refletem interesses meramente corporativos e não coletivos, como se deveria supor, uma vez que o meio ambiente engloba toda a coletividade” (RAMOS, 1996, p. 30). Assim, a mensagem transformada em notícia através da narrativa veiculada pela

[...] comunicação de massa se institucionaliza como um referencial do mundo exterior, um sistema de representações que interage com o conhecimento pessoal direto, adquirido pelo indivíduo por meio de sua formação cultural, convivência social e experiência própria. É a partir dessa interação que se consolidam opiniões sobre o mundo, a sociedade e o meio ambiente. (RAMOS, 1996, p. 26).

Embora Ramos (1996) aponte a responsabilidade do jornalista ambiental sobre a visão de mundo apresentada pela mídia à audiência, produzir jornalisticamente sobre o meio ambiente é um desafio. Autores como Dov Shinar (2008) consideram que o que normalmente se torna pauta é o estranho, o diferente, o exótico ou ainda fatos com ocorrência de mortes e perdas materiais, como as catástrofes ambientais de forma factual. Shinar (2008) se aprofunda sobre o espaço que a mídia coloca o meio ambiente, para o autor, o tema se torna atraente quando ocorrem desastres ou curiosidades, algo

excepcional e fora do comum “como na ocasião sem precedentes, quando, em Janeiro de 2004 nevou em Bagdá, pela primeira vez na História da civilização. Isso levou a mídia a abrir aquela janela periférica para citar o aquecimento global” (SHINAR, 2008,

p. 26). E, portanto, para Shinar “A mídia, dificilmente trata dos problemas ambientais com profundidade na pauta das discussões públicas. As exceções são frutos de um esforço pessoal e isolado” (SHINAR, 2008, p. 26). Além de Shinar (2008), Nosty (2008), Carvalho (2016), Trigueiro (2003) e Girardi (2012) indicam que a não inclusão do meio ambiente na pauta do jornalismo diário se deve à dificuldade em cumprir os critérios de valor-notícia49 do jornalismo.

Diferentes estudos sobre o Jornalismo Ambiental convergem para questionamentos sobre como abordar temas complexos para quem tem pouco conhecimento e como falar nos meios de comunicação de massa sobre assuntos complicados. Uma das pesquisadoras que discute a questão na temática científica, envolvendo o meio ambiente no jornalismo científico, é Denise Siqueira (1999), no livro A ciência na televisão: mito, ritual e espetáculo sobre a divulgação da ciência50, em que estudou o programa da Rede Globo Fantástico,

Se, com a especialização na área científica, ‘o homem comum’ tem cada vez menos acesso às últimas descobertas, os meios de comunicação de massas têm a possibilidade de promover a divulgação da ciência a um público muito mais vasto. O problema que se coloca é que a interlocução entre cientista e receptor é tão ‘mediatizada’ que o conteúdo veiculado perde suas caraterísticas originais de objetividade e ganha outras difusas, menos precisas, o que compromete a divulgação da ciência e seu objetivo esclarecedor. (SIQUEIRA, 1999, p. 20).

A forma de mediatizar a que a autora cita remete ao que Andreas Hepp aborda no artigo O que a cultura das mídias (não) é, em que apresenta, com diversos autores, a cultura da mídia em diferentes abordagens. Hepp defende que “os meios técnicos são constitutivos de realidade” (HEPP, 2015, p. 16). Ou seja, de acordo com o que Siqueira

49 De acordo com Gislene Silva (2005, p. 97), valores-notícia são “atributos que orientam principalmente a seleção primária dos fatos – e, claro, que também interferem na seleção hierárquica desses fatos na hora do tratamento do material dentro das redações”.

50 Há autores que abordam o jornalismo ambiental inserido no jornalismo científico e, outros justificam que o jornalismo ambiental é uma especialização do jornalismo que aborda temáticas científicas, como por exemplo, as emissões de gases de efeito estufa. Fabíola Oliveira, no livro Jornalismo Científico, defende que o jornalismo ambiental surgiu em parceria com movimentos ambientalistas, mas unido ao jornalismo científico.

coloca como problema, a forma mediada da informação em 1999, Hepp avalia como parte da cultura da mídia através das construções de realidades nos meios de comunicação de massa. Hepp parte do contexto da Indústria Cultural e a padronização de produtos para a mídia.

Em síntese, apresentada por Belmonte (2015), entende-se que

A partir de sua história, é possível entender o jornalismo ambiental a partir de um conceito descritivo e normativo. Trata-se de uma especialização temática, consolidada no Brasil na última década do século XX, comprometida com uma qualidade de vida planetária e com a construção social de uma realidade mais justa e ecológica. Entre suas características estão: a contextualização socioambiental, a relação risco/limite, os processos longos, a incerteza científica e a complexidade técnica. Para puxar e interpretar todos estes fios com uma abordagem transversal que vai além das consequências em busca das causas e soluções, uma diversidade de fontes é sempre necessária. Assim como um profundo comprometimento ético com a profissão. Profissionalismo e engajamento andam juntos, em permanente tensão. (BELMONTE, 2015, p. 12).

Antônio Teixeira de Barros (2012), utilizando os escritos de Ricardo Garcia (2004), elenca quatro elementos do Jornalismo Ambiental:

A ênfase ao risco – contribui para dar força à matéria, devido ao teor dramático e apelo emocional. Afinal, quanto maior o potencial de risco, maior visibilidade e destaque ao fato, o que faz manter o tema na agenda dos media e nas instâncias de debate público.

A duração indeterminada do processo – acentua o teor dramático, ao gerar suspense entre os receptores e despertar interesse para acompanhar o desenrolar dos fatos. Em muitos casos, o noticiário segue quase a estrutura dos enredos de teledramaturgia, com a divulgação das notícias em formato de sequências ou episódios, com deixas de suspenses para os capítulos seguintes.

A incerteza científica – como há diversidade de interpretações por parte dos especialistas com acesso aos media, esse elemento provoca debate, com opiniões divergentes, o que acentua o interesse da opinião pública e prolonga a permanência do tema na agenda pública.

A complexidade técnica – esse fator pode ser desfavorável à cobertura, ao afastar o público leigo, além de representar um dos principais desafios para os jornalistas da área ambiental: como transmitir informações técnicas sobre áreas especializadas, como energia nuclear, eco-epidemias e outros que exigem conhecimento prévio do receptor? (BARROS, 2012, p. 149, grifos no original).

Belmonte (2015) considera que as quatro características ou elementos apontados por Garcia “são incompatíveis com uma abordagem apressada e à distância, exigindo uma interpretação intensiva da atualidade em profundidade” (BELMONTE, 2015, p. 8). Outra contribuição de Belmonte nesse aspecto é sobre a necessidade de investimento financeiro e de tempo para o trabalho no Jornalismo Ambiental.

Já Wilson da Costa Bueno (2008) trata das inúmeras funções do Jornalismo Ambiental. O autor destaca três delas: a informativa compete ao dia a dia dos cidadãos, o autor indica ser importante que a pessoa saiba o impacto referente aos hábitos de consumo, tenha conhecimento sobre os processos como o efeito estufa e conheça os modelos econômicos produtivos vigentes. A segunda função elencada por Bueno é a pedagógica, que “diz respeito à explicitação das causas e soluções para os problemas ambientais e à indicação de caminhos (que incluem necessariamente a participação dos cidadãos) para a superação dos problemas ambientais” (BUENO, 2008, p. 165-166). A função política é a terceira selecionada pelo autor e refere-se à mobilização das pessoas para a defesa de locais em decorrência do impacto de empresas e alerta para uma vigilância constante em relação à letargia sobre alguns assuntos que, por conta do comprometimento e/ou omissão dos governantes a interesses pessoais-empresariais, “não elaboram e põem em prática políticas públicas que contribuem, efetivamente, para reduzir a degradação ambiental. (BUENO, 2008, p. 165-166).

Para atuar nas funções elencadas acima, o Jornalismo Ambiental, de acordo com Bueno (2007a) precisaria transpor algumas síndromes. Abordando as fontes, o que se apresenta comum na visão de Bueno é denominado como síndrome da lattelização51 das fontes. Nessa condição, o Jornalismo Ambiental reduz as fontes aos produtores de conhecimento especializado, silenciando o diretamente afetado pela situação. Giddens (2012, p. 80) denomina as fontes especializadas como guardiões da racionalidade. Outra síndrome, caracterizada pelo autor e que opera associada à da lattelização é a síndrome do muro alto. “Ela respalda o discurso das elites e busca excluir os cidadãos comuns e mesmo determinados segmentos da sociedade civil do processo de tomada de decisões, defendendo a competência técnica como critério exclusivo de autoridade” (BUENO, 2007a, p. 37). Há a síndrome do zoom ou do olhar vesgo que “tem a ver com o fechamento do foco da cobertura, a fragmentação que retira das notícias e reportagens

51 O termo lattelização refere-se ao currículo lattes. Plataforma de dados ligada ao CNPq em que pesquisadores cadastram os dados de seus trabalhos acadêmicos e profissionais.

ambientais a sua perspectiva inter e multidisciplinar” (BUENO, 2007a, p. 37), a síndrome das indulgências verdes, que indica o cinismo de empresas que operam o marketing verde buscando a promoção das suas imagens e, por último, a síndrome da baleia encalhada que está relacionada à “espetacularização da tragédia ambiental, com a procura do inusitado e do esotérico e o recurso ao sensacionalismo” (BUENO, 2007a, p. 37).

Bueno (2007a) trata sobre aspectos que o Jornalismo Ambiental precisa se atentar: “deve incorporar uma visão inter e multidisciplinar”, “deve construir um ethos próprio”, “deve propor-se política, social e culturalmente engajado”, “precisa ser trabalhado nas escolas e nas redações junto aos profissionais de imprensa do futuro”, e deve ainda pluralizar e diversificar as fontes que “devem ser todos nós e sua missão será sempre compatibilizar visões, experiências e conhecimentos que possam contribuir para a relação sadia e duradoura entre o homem (e suas realizações) e o meio ambiente” (BUENO, 2007a, p. 36). Como negativas, Bueno enfatiza que o Jornalismo Ambiental não pode ser isento. “Não deve admitir-se utópico porque fundado na realidade concreta, na luta pela qualidade do solo, do ar, da água, da vida enfim” (BUENO, 2007a, p. 36).

REPETIR ESCLARECE?

Sob outro aspecto, Nosty (2008) apresenta um exemplo do que denomina tabloidização nas coberturas televisivas sobre as mudanças climáticas, ligadas ao Jornalismo Ambiental:

As grandes correntes generalistas não abordam o problema da mudança climática ou outras questões relacionadas à ciência, mediante o recurso de fontes relevantes. Costumam buscar titular chamativo (por exemplo: ‘Segundo um estudo de uma universidade australiana, 80% da superfície do planeta se transformará em deserto antes de 2080’) e, depois que adorná-lo de elementos retóricos de alarme, ou submetem o tema ao debate de dois polemistas populares ou o reconduzem a uma pesquisa andarilha de prós e contras, na qual sobressaem as respostas mais polarizadas, sejam elas dramáticas ou divertidas. (NOSTY, 2008, p. 46).

O que Nosty relata é uma repetição de termos, ocorrências e pesquisas que ocorre nos jornais e em muitos casos, abordados de maneira sensacional, dramáticas, contrariando o que outros autores indicam como deve ser o Jornalismo Ambiental. Como exemplo, insere-se aqui um pequeno resumo de um artigo produzido pela autora e a orientadora da presente pesquisa a partir de uma análise de uma reportagem veiculada no dia 26 de outubro de 2015 sob a chamada do editor-chefe e apresentador do Jornal Nacional, Wilian Bonner: Um estudo que envolveu cientistas de duas universidades americanas concluiu que uma região do planeta pode se tornar simplesmente inabitável até o fim deste século52. A reportagem, com duração de 1’57” foi construída com a narrativa alarmante, sensacional e de maneira que confunde os telespectadores. Além das informações apresentadas de formas desconexas, a fonte máxima da pesquisa que embasou a reportagem não foi referenciada ao seu local de pesquisa e com as imagens de pessoas caminhando na rua, não se tornou possível identificar de qual nacionalidade eram. Em uma pesquisa53 realizada pelo jornal El País, divulgada em agosto de 2015, com a pergunta: Do que as pessoas ao redor do mundo têm medo?, 46% dos entrevistados afirmaram que estão muito preocupados com a mudança climática.

Retomando as funções do Jornalismo Ambiental apontadas por Bueno e compreendendo o espaço jornalístico como uma forma de conhecimento54, a função pedagógica da prática converge para um caminho possível para o conhecimento e consequente esclarecimento sobre os temas relacionados ao ambiente. Adorno e Horkheimer contribuem para a reflexão sobre o esclarecimento e o Jornalismo Ambiental. Os autores apresentam o conceito e a função do esclarecimento no pensamento ocidental no processo de transição das narrativas míticas até a consolidação do discurso científico. Adorno indica que “o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores” (ADORNO, 1985, p. 19). Na mesma linha de reflexão, utilizando as palavras de Kant, em Respostas à pergunta: O que é esclarecimento? é possível entender que o esclarecimento é um processo no qual o indivíduo deixa a posição de menor

52 Título de chamada na página do Jornal Nacional no G1. Disponível em: < >. Acesso em: 28 out. 2015.

53 Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2015.

54 MEDISCH, (1977).

(minoridade, as palavras do autor), de ignorante, para conhecedor ou dono do saber sobre algo.

A falta de clareza e os aspectos silenciados nas reportagens jornalísticas dominam o conhecimento dos indivíduos. Adorno indica que:

A universalidade dos pensamentos, como a desenvolve a lógica discursiva, a dominação na esfera do conceito, eleva-se fundamentada na dominação do real. É a substituição da herança mágica, isto é, das antigas representações difusas, pela unidade conceptual que exprime a nova forma de vida, organizada como base no comando e determinada pelos homens livres. (ADORNO, 1985, p. 28).

O processo do esclarecer-se perpassa pela busca das informações concretas e fundamentadas, da responsabilidade dos indivíduos, enquanto leitor/consumidor de noticiário jornalístico, mas também pela responsabilidade do emissor, do produtor e gerador das reportagens. “O saber que é poder não conhece nenhuma barreira, nem na escravização da criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo” (ADORNO, 1985, p. 20). Seria essa, então, uma das posições que o jornalismo poderia ocupar: tornar os indivíduos mais conhecedores, mais esclarecidos e consequentemente mais poderosos em relação ao mundo das informações e das decisões?

CONSIDERAÇÕES

Reforça-se, inicialmente, neste espaço que a reflexão não se esgota no presente artigo. Compreende-se que além da função de informação, o jornalista que atua com a temática ambiental tem como premissa um assunto que deverá ser abordado de maneira transdisciplinar envolvendo o processo e toda a complexidade do tema. Entende-se, também, ser necessária a discussão, o estudo e a prática jornalística para melhoria dos produtos jornalísticos que abordam as questões relacionadas ao meio ambiente.

REFERÊNCIAS

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ESTUDOS INTERDISCIPLINARES (TEORIA DA COMUNICAÇÃO, ECONOMIA POLÍTICA, CULTURA, CIDADANIA)

FEMINISMO NAS REDES SOCIAIS: ANÁLISE DAS HOSTILIDADES SOFRIDAS PELAS FEMINISTAS DOLORES ARONOVICH E MADGE PORTO

Pâmela Ferreira da Silva55

RESUMO

Este artigo desenvolvido durante a disciplina de Análise da Realidade Brasileira, do curso de Comunicação Social/Jornalismo, objetiva analisar a utilização das redes sociais no processo de divulgação e debate do movimento feminista, cujos desdobramentos relacionam-se às situações hostis e vexatórias sofridas por aquelas que se autodenominam militantes da causa. Serão objetos de análise dois casos verificados nas redes sociais: um divulgado nacionalmente, ocorrido com Dolores Aronovich, autora de um blog feminista chamado “Escreva, Lola, Escreva” e o segundo que se sucedeu em âmbito regional com a professora universitária acreana, Madge Porto. Para fundamentar a análise, o estudo ancora-se nos pressupostos dos autores Rubens Figueiredo, Céli Regina Pinto, Fábio Malini; Henrique Antoun e Luís Mauro Sá Martino.

Palavras-chave: Mulheres; Movimento Feminista; Redes Sociais.

Introdução

Anteriormente à era digital, às inovações tecnológicas, à globalização e à interação simultânea e instantânea entre as pessoas através de sites da internet e das redes sociais, havia um período em que a informação e a comunicação aconteciam de modo unilateral, uma espécie de monólogo onde uma pessoa falava e as outras simplesmente ouviam, sobre isto Fábio Malini e Henrique Antoun afirmam:

Desde o seu surgimento, a mídia distribuída tem se contraposto através de seus usuários a estes efeitos acachapantes de achatamento da diversidade cultural promovida pelos processos de indução e falseamento de opinião típicos desta comunicação unilateral onde poucos falam para muitíssimos. (MALINI; ANTOUN, 2013, p. 158).

Processo diferente ocorre hoje, após a incorporação das redes sociais e de informação: canal de mão dupla, onde tanto ouvinte quanto orador podem expressar sua opinião. Nessa linha de raciocínio Rubens Figueiredo diz que:

Com esse novo formato, o ativismo digital substituiu a antiga militância das ruas e criou um novo modelo de relacionamento, quebrando a lógica vertical do broadcasing, na qual poucos falam para muitos. Nas redes sociais, muitos falam para muitos ao mesmo tempo. (FIGUEIREDO, 2014, p.76).

55 Estudante do 6º período de Comunicação Social/Jornalismo na Universidade Federal do Acre (UFAC) e estudante do 7º período no Curso de Direito na União Educacional do Norte (UNINORTE).

Luís Mauro Sá Martino, em seu livro Teoria das Mídias Digitais, ao discorrer sobre a teoria de Pierre Lévy fala que:

As transformações da tecnologia permitem um acesso cada vez maior às redes de computadores. Quanto mais o ciberespaço se expande, maior o número de indivíduos e grupos conectados gerando e trocando informações, saberes e conhecimentos. (MARTINO, 2014, p. 28).

Ainda sobre a ideia do advento das novas formas de interação surgidas com a era digital, Fábio Malini e Henri que Antoun (2013) abordam que:

Embora a mídia irradiada de massa seja uma valiosa máquina de construção e destruição instantânea de reputação social, as mídias distribuídas de grupo tem se revelado uma poderosa máquina de criação e sustentação de reputação duradora, funcionando em longo prazo. Enquanto a mídia massiva extrai seu poder da sensação de “todo mundo está falando isso” subentendido em uníssono, as interfaces de usuários encontram o seu poder na sensação de “meu amigo recomendou” ancorado na suposta confiabilidade da fonte da informação. (MALINI; ANTOUN, 2013, p. 158).

Após essas mudanças as pessoas começaram a entender que compartilhar opiniões, ler e opinar sobre pensamentos alheios constituem oportunidades que emergem no novo cenário informatizado, e que lhes propicia algo constantemente buscado pela humanidade: o direito de ser ouvido, falar e deixar sua impressão. Muitos desses discursos emitidos pelas redes sociais são feitos sem nenhuma limitação moral, ética ou até mesmo jurídica.

A partir disso, abre-se uma brecha para que indivíduos agridam das mais variadas formas possíveis qualquer outra pessoa que tenha um pensamento diverso do seu, ou que não estejam dispostas a entrar em um debate que não enriquecerá de alguma forma o conhecimento já adquirido. Um aspecto importante que potencializa essas agressões é o fato de que as pessoas perdem a timidez quando estão atrás de uma tela de computador ou de um celular e “protegidas” pelo anonimato, sem exposição física, “soltam” as palavras, falam tudo que pensam e o que querem, sem analisar que tudo que foi dito tem uma consequência social.

Portanto, após todos os apontamentos aqui feitos relacionados à inovação do modo de expressar seus ideais e sobre a apropriação desse novo meio pelas comunidades de pessoas que desejam que sua peleja possa ser reconhecida e aceita por outros, é possível afirmar que os movimentos político-sociais, tanto pelo meio ambiente, quanto pelos direitos humanos ou o feminista – que é objeto deste trabalho – estão se reinventado conforme a “digitalização”, levando sua causa para dentro da nova era, na busca de espaço e voz. Corolário a essa visão Fábio Malini e Henrique Antoun (2013) dizem que:

O surgimento desta nova mídia – gerada pelo entrelaçamento das teias da internet com o interativismo do ciberespaço, como resultado do casamento da política de ação direta do novo ativismo com a potência interativa, descentralizadora e anárquica dos sistemas hipermídia – é a explosão do silencioso movimento de sedimentação das comunidades virtuais ao longo destes anos. Seu estrondo pergunta pelo sentido das silenciosas palavras da programação, que construíram a Internet enquanto meio, pois elas trouxeram a tempestade da anarquia para assombrar o horizonte da organização capitalista do mundo globalizado. (MALINI; ANTOUN, 2013, p. 137).

Para que se possa adentrar na contextualização sobre o feminismo, que há muitos anos vêm levantando diversas bandeiras de caráter social, econômico, político e de gênero, é importante ressaltar que na fala de Fábio Malini e Henrique Antoun, um meio de comunicação ou uma nova tecnologia não é um sujeito de transformações, pelo contrário, um meio só ganha expressão através da atividade de quem se apropria dele e se desenvolve integrando-se as novas potencialidades oferecidas por este.

Histórico da luta feminista

A história dos movimentos feministas é divida em três ondas, cada uma com sua especificidade. Com o passar dos séculos sempre houve mulheres inconformadas com sua situação de subjugação, invisibilidade e que se rebelaram para mudar sua condição de vida, muitas pagaram caro por esses feitos, perdendo a família, seus direitos e até a vida.

A primeira onda surgiu a partir das últimas décadas do século XIX, quando na Inglaterra, mulheres se uniram para lutar por seus direitos. O primeiro deles foi o direito ao voto. Ficaram conhecidas como sufragentes, promoveram grandes manifestações, fizeram greve de fome, foram presas e o maior símbolo desta época foi Emily Davison que se atirou em frente ao cavalo do rei, durante uma corrida famosa em Derby, em 1913, que culminou na sua morte. Graças aos movimentos, em 1918, o direito ao voto foi conquistado no Reino Unido. Já no Brasil esse direito só seria reconhecido em 1932.

O movimento feminista por vários motivos foi perdendo força a partir da década de 1930 e só retornaria na década de 1960. No decorrer desses 30 anos, um livro bastante conhecido e que seria fundamental para a segunda onda do feminismo foi publicado por Simone de Beauvoir, intitulado o Segundo Sexo, em 1949. Nele, Beauvoir estabelece uma máxima do feminismo “não se nasce mulher, se torna mulher”.

A década de 1960 foi particularmente importante para o mundo, vários movimentos explodiram nessa época, como o movimento hippie, na Califórnia, que propôs uma nova forma de vida, contrariando os valores morais e de consumo. Outro acontecimento de grande importância foi o surgimento da pílula anticoncepcional, dando à mulher uma liberdade sobre as

regras de seu corpo, a opção de decisão sobre quando ou não ter um filho. Além destas situações, o descontentamento com a política, a Guerra do Vietnã, outras manifestações de variados grupos, tudo isso propiciou para que o feminismo ressurgisse com toda força, questionando as relações de poder entre homens e mulheres.

No Brasil, a década de 1960 teve um contexto diverso do resto do mundo, vivia-se a ditadura militar, um momento de repressão sobre qualquer forma de manifestação do pensamento que de alguma forma fosse contra os ideais do governo, poucas manifestações ocorreram, pouco se debateu sobre o tema, apenas pequenos grupos permaneceram, todos sob o prisma da ilegalidade e clandestinidade.

Com a redemocratização nos anos 1980 no Brasil, o feminismo teve uma fase de grandes movimentos. A terceira onda fica marcada pelos debates feministas sobre inúmeros temas – violência, sexualidade, igualdade nas relações, luta contra o racismo, etc. Todos esses temas eram debatidos por grupos que muitas vezes até se misturavam com o movimento popular de mulheres, por força dessa interação, as reuniões que antes eram compostas só por mulheres da classe média, agora ganha os bairros pobres e as favelas, o que determinou para um novo ângulo de debate que abrangia as mulheres negras, pobres e sem voz.

De modo geral, a terceira onda caracterizou-se pela profissionalização do debate sobre o tema, a conquista de direitos e intervenção do Estado garantindo proteção através de normas jurídicas, como a Lei Maria da Penha, realização de conferências para se discutir o assunto, entre outras ações. Por todas essas realizações, Céli Regina Pinto (2010) diz que:

O feminismo aparece como um movimento libertário, que não quer só espaço para a mulher – no trabalho, na vida pública, na educação –, mas que luta, sim, por uma nova forma de relacionamento entre homens e mulheres, em que esta última tenha liberdade e autonomia para decidir sobre sua vida e seu corpo. Aponta, e isto é o que há de mais original no movimento, que existe uma outra forma de dominação – além da clássica dominação de classe –, a dominação do homem sobre a mulher – e que uma não pode ser representada pela outra, já que cada uma tem suas características próprias. (PINTO, 2010, p. 2).

Feminismo e redes sociais

No decorrer da formação das sociedades, a mulher e o homem foram percebendo a importância de reivindicar por melhores condições de vida, por direitos e por equidade, exemplo disso são os militantes pelos direitos dos animais, pela preservação da natureza, pela legalização do aborto ou da maconha.

De acordo com a evolução da sociedade foi desenvolvendo-se também a maneira de reivindicação, que tomou formas diferentes com o passar dos anos. A evolução das novas tecnologias foi fundamental para as mutações não apenas no cotidiano das pessoas, mas também no ato de militar. Neste sentido Fábio Malini e Henrique Antoun discorrem:

Esta mudança implica uma profunda transformação das revoluções. No passado, a indignação das populações acabava capturada por golpes de estado de grupos ideológicos intolerantes e violentos. Hoje as populações reunidas nos movimentos sociais e ações coletivas não precisam que os intermediários falem por elas através das mídias de massa e instituições politicas. A internet gerou uma mídia livre impulsionada por milhões de blogueiros e fermentada pelas redes sociais. A internet se revelou um megaespaço público onde qualquer um tem voz e pode falar por si mesmo. Isto permitiu que os movimentos sociais falassem diretamente através de seus manifestantes sem precisar que líderes e porta-vozes sequestrem seus interesses em nome de fanatismo ideológicos e voracidade econômica. (MALINI; ANTOUN, 2013, p. 174).

A cada nova tecnologia de informação e comunicação que surge e se incorpora na rotina das comunidades, nasce também um novo método de ampliar o discurso pessoal e coletivo de alguém ou de algum grupo. Diante disso, a migração de atos em defesa de causas ou defesas ideológicas para o ciberespaço foi um processo natural na evolução ou mutação do cotidiano.

As redes sociais na internet constituem um campo rico para militância social. A série de manifestações registradas no Brasil em 2013 é um exemplo disso. Por meio dos sites de redes sociais as pessoas podem estabelecer laços de convivência, trocar informações e gerar engajamento. E isso independente de localização geográfica, pois apenas é necessário o acesso à internet, identificação com a causa e disposição para defendê-la. São em grupos e páginas do Facebook, por exemplo, que a maioria desses movimentos nasceu, cresceu e se popularizou ao ponto de levar milhares de pessoas para as ruas.

Compreender como as redes sociais podem ser usadas pelos movimentos feministas é de suma importância, pois esse espaço pode ser utilizado como um grande aliado tanto na divulgação quanto para denúncias de qualquer tipo de violência sofrida. Afinal de contas, o ciberespaço é uma extensão do social e não uma realidade paralela descolada do que vivemos fora do ambiente digital. Dessa maneira, as redes sociais como Instagran, Facebook, não são “pré-construídas pelas ferramentas, e, sim, apropriadas pelos atores sociais que lhes conferem sentido e que as adaptam para suas práticas sociais” (RECUERO, 2009, apud SANTOS; BARROS, 2015, p. 5).

Os grupos feministas tem se apropriado das redes sociais como espaço de divulgação e discussão de seus ideais, assim a internet tem sido um espaço de incitação aos debates sobre o assunto. Houve um tempo em que para ser um militante de uma causa era preciso ir às ruas, participar de uma manifestação, colar cartazes e sair distribuindo material informativo ou

crítico. Hoje as redes sociais se transformaram nas ruas, e os cartazes e os panfletos hoje, são posts.

Militância

A militância feminista formula-se e toma força através dos espaços na internet que proporcionam um debate amplo e diversificado sobre mulheres, gênero, sexualidade e cultura. Nesse sentido, a internet, especialmente as redes sociais tem sido uma ferramenta importante para a iniciativa de protestos e debates. A internet também pode ser vista como uma forma de aproximação entre um grande número de pessoas, isso porque ela quebra as barreiras de diferenciação de classes sociais, origem étnico-raciais, escolaridade, faixa-etária, etc.

Para teorizar todas essas ideias até agora expostas – reunião de inúmeras pessoas que se conhecem, ou não, e o compartilhamento da mesma causa e interação destas a favor da militância – Luís Mauro Sá Martino aborda a teoria da “Cultura da Convergência” criada por Henry Jenkins.

Essa teoria trata da relação entre pessoas que não se conhecem, mas compartilham das mesmas “referências”, interagindo entre si, recriando as mensagens de mídias e as partilhando de volta nas redes sociais. Para melhor compreensão, o autor cita um exemplo, relatado a seguir. Em 2010, foi lançada uma campanha para os fãs de Star Wars, a ideia era refilmar integralmente o filme só que com cenas produzidas pelos próprios internautas, do que jeito que eles quisessem e achassem melhor. As pessoas de qualquer parte do mundo poderiam gravar até quinze segundos e envia sua versão do filme. O resultado foi o longa Star Wars Uncut, feito a

partir da interação de pessoas anônimas.

Após esse exemplo e buscando fixar o entendimento, Luís Mauro Sá Martino diz que:

A convergência cultural acontece na interação entre indivíduos que, ao compartilharem mensagens, ideais, valores e mensagens, acrescentam suas próprias contribuições a isso, transformando-os e lançando-os de volta nas redes. (MARTINO, 2014, p. 34).

Mais do que lutar por direitos e igualdes para as mulheres, o movimento feminista também questiona as práticas socais e culturais que constrói e reforçam a desigualdade entre os gêneros. A apropriação dos sites de redes sociais para divulgação da mensagem de igualdade permite que mulheres consigam informações e orientações sobre como combater o machismo. Este também é um espaço importante para denúncia de abusos sofridos pelas mulheres, onde as

mesmas podem encontrar apoio de outras pessoas. Para reforçar essa ideia Martino finaliza dizendo:

A convergência é um processo cultural que acontece na mente dos indivíduos na medida em que podem ser estabelecidas conexões entre os elementos da cultura da mídia, isto é, das mensagens que circulam nos meios de comunicação, e a realidade cotidiana. (MARTINO, 2014, p. 35).

As ofensas às feministas

Algumas feministas ao promoverem debates nas redes sociais, ao publicarem sobre acontecimentos, e por simplesmente expressarem sua opinião sofrem graves desrespeitos, injúrias e até mesmo ameaças de morte. É possível constatar esses fatos lamentáveis e reais, a partir de relatos de mulheres militantes do feminismo e que compartilham essas experiências vividas através das redes sociais e em entrevistas sobre o assunto. Sob essa perspectiva serão objetos de análise dois casos abaixo narrados.

O primeiro caso em estudo aconteceu com Dolores Aronovich, professora universitária, autora do blog feminista “Escreva, Lola, escreva”, criado em 2008, que conta com textos autorais e de convidados e obtendo um número de 200 mil acessos mensais. Com o tempo, o blog passou a tratar de outros temas de relevância social, como aceitação do corpo, homofobia e direitos humanos.

Fábio Malini e Henrique Antoun citam esse processo de criação de redes sociais e espaços virtuais apropriados por milhões de blogueiras, como Dolores, usados para militância dos movimentos sociais, como o feminismo e que permitem que os próprios usuários falem por si mesmos.

Assim como já citado, o autor Luís Mauro Sá Martino fala que ao mesmo tempo em que a era digital permite interação instantânea e maior número de indivíduos e grupos conectados, esse convívio online sofre ataques sem limites, não havendo nenhuma fiscalização ou qualquer barreira que impeça os ataques criminosos. Alguns exemplos dos ataques abaixo:

Figura 1- Ameaça de abril de 2012, pelo twitter

Fonte: blog “Escreva, Lola, escreva”

Figura 2 – Ameaça pelo twitter, autor identificado

Fonte: blog “Escreva, Lola, escreva” Figura 3 – Ameaça anônima recebida por Lola

[pic]

Fonte: blog “Escreva, Lola, escreva”

Lola conta que ao ler as ameaças não se intimida, em geral elas são anônimas, porém há também as que vêm assinadas. Muitas vezes já espalharam o endereço e a foto da fachada da casa dela, também divulgaram o número de telefone e coisas do tipo, e dizem ainda que quando ela for palestrar em algum evento se tornará alvo-fácil de um ataque.

O mais polêmico ataque ofensivo à Dolores ocorreu pelo twitter, onde o humorista Danilo Gentilli fez uma piada preconceituosa, que gerou grande repercussão naquela rede social. As pessoas também cansadas de ouvirem esse discurso misógino, não se calaram e defenderam Lola. Essa atitude coletiva de se posicionarem e repercutirem mensagens de apoio e de repúdio aos ataques de Danilo fazem parte dos processos em midiatização onde as mulheres que partilham dos mesmos ideais, não necessariamente feministas, mas ao menos de respeito ao

próximo, acrescentam suas próprias contribuições de desprezo pelo ocorrido e transformam aquele pensamento através de suas concepções, alcançando mais e mais pessoas que estão conectadas a sua rede.

Figura 4 e 5- Piadas preconceituosas por Danilo Gentilli

Fonte: Twitter Danilo Gentilli

O segundo caso em estudo será o que ocorreu no dia 4 de março, no Facebook, em um grupo da Universidade Federal do Acre, a professora universitária e feminista desde os 15 anos, Madge Porto publicou uma imagem que fazia a chamada para um evento que faz parte de um Projeto de Extensão idealizado e realizado por ela.

No convite para uma roda de conversas sobre os “Feminismos”, a professora diz que “estão todas convidadas”, em palavras que se referem apenas a pessoas do gênero feminino, pois a atividade era voltada exclusivamente para este público. Vários homens levantaram um questionamento sobre as razões de o evento ser limitado ao público feminino. O “debate” gerado na própria publicação acabou resultando em desagradáveis situações, comentários irônicos e ofensivos, reforçando as dificuldades enfrentadas pelas feministas ao lutarem por sua causa, principalmente nas redes sociais, explicitando a necessidade de se falar sobre o tema.

Figura 6 – Convite feito pelo Facebook por Madge Porto

Fonte: Grupo da Ufac no Facebook

Para a produção deste trabalho realizou-se uma entrevista com a organizadora do evento, Madge Porto, que pôde explicar melhor suas ideias sobre o feminismo, suas experiências e sua luta pela causa. Ela conta que através das redes sociais o feminismo se apresenta de forma mais efetiva, pois ele era um movimento que já existia, no entanto só agora sua apresentação social se tornou mais contundente, isso graças ao acesso mais rápido à comunicação.

O feminismo, conforme fala da Madge se adequou às redes sociais como forma de expandir seu alcance, através das redes sociais as revoluções mudaram, as pessoas podem falar uma para outras, compartilhar eventos, como este citado acima ou até mesmo questionar a execução destes, todas as posições podem ser válidas desde que enriqueçam o debate.

Madge relata que por muitas vezes ao tentar propor uma reflexão sobre determinado fato e suas consequências, foi confrontada com uma abordagem muito agressiva, especialmente pelos próprios alunos da Universidade. Isto pode ser observado em algumas imagens a seguir retiradas da postagem da figura 6, que exemplificam o que Madge sofre quando tenta realizar seu trabalho.

Figura 7 e 8 – Comentários impertinentes sobre o evento

Figura 9 – Comentário burlesco

Fonte: Grupo da Ufac no Facebook

Considerações Finais

Ao longo deste artigo buscou-se refletir sobre os espaços de representatividade das mulheres e como o feminismo se desenvolve no ambiente de rede social – destacadamente o Facebook. A luta feminista ocorre desde o século XIX, passando por conquistas, lutas e perdas. Atualmente, os espaços de discussão se estendem aos ambientes virtuais – dando margem ao que se denomina de ciberfeminismo. As redes sociais propiciam uma ressonância maior sobre o papel, as disputas e a importância do feminismo na atualidade.

As análises das páginas de Dolores Aronovich e Madge Porto apontam para o potencial das redes sociais como espaço de problematização e discussão do papel da mulher na sociedade. Desse modo, o feminismo tem a finalidade de garantir espaço ao que o movimento busca – que é igualdade de gênero. Ao contrário do que muitos pensam o feminismo não pretende colocar a mulher acima dos homens, mas sim em igualdade de direitos, prova disso é que o movimento também batalha pela aceitação social dos homossexuais, por exemplo.

A nova era informatizada e conectada trouxe consigo mudanças políticas, econômicas e sociais na sociedade, sendo necessárias também transformações no comportamento e formas de comunicação a fim de adequar-se ao novo cenário em rede.

Dentro deste contexto é que as feministas Dolores e Madge têm a percepção de que é por meio das redes sociais que o debate sobre o feminismo pode ser lançado. Percebe-se que o espaço em rede possibilita o intercâmbio de informações e o combate a ofensas e abusos. As conversações promovidas no Facebook, por exemplo, possibilitam o estabelecimento de novas problemáticas e a apreensão de novas aberturas para o movimento feminista no espaço midiatizado da internet e das redes sociais.

Referências

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. Data do acesso: 10 abr. 2017.

3, 2, 1 – GRAVANDO! PRECONCEITO E ESTEREÓTIPOS NA TV:

A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA PRATICADA CONTRA TRAVESTIS E TRANSEXUAIS EM TELEJORNAIS.

THIAGO ROGER DA SILVA

RESUMO

O presente trabalho pretende debater acerca das violências simbólicas praticadas contra a população LGBTT, sobretudo, com as travestis e transexuais que em sua maioria estão e são colocadas cada vez mais a margem da sociedade. Para analisarmos duas reportagens veiculadas em telejornais vamos dialogar com conceitos como preconceito, estereótipo e transfobia. Vamos analisar também como a produção de sentidos na construção da reportagem reproduz e reafirma valores e imagens deturpadas, onde a minoria sempre é considerada culpada e quem está fora desse meio tem o direito de julgar, condenar e ridicularizar essa categoria de pessoa que não tem o mesmo valor que os seres humanos que seguem a lógica binária do macho/fêmea, pênis/vagina.

Estereótipo; preconceito; transfobia; telejornalismo

EXTRA! EXTRA - SANGUE LGBTT MACHA O BRASIL DE NORTE A SUL.

27 de janeiro de 2017. Em Piracicaba, interior de São Paulo uma mulher transexual foi agredida enquanto esperava o ônibus em uma parada. Essa é a história que foi publicada no Portal de Notícias da Globo, O G1 SP.

A vítima afirmou aos policiais que aguardava o ônibus na Rua Quinze de Novembro, região central da cidade, quando um homem em uma kombi a abordou.

Em tom de "deboche", segundo o boletim de ocorrência, o agressor questionou a educadora: "é menino ou menina?" e depois disse "é traveco", conforme relatos da vítima. O suspeito ainda afirmou que ela "ia ver" e começou a agredir com chutes e socos, chegando a jogar a transexual no chão. (Portal de Notícias da Globo, Piracicaba, 2017, p.1)

15 de fevereiro de 2017. O site de notícias Blastingnews publica uma reportagem sobre um assassinato. O título da matéria: “Vídeo mostra travesti sendo agredida até a morte. Assista aqui”, revela como foram os últimos momentos de Dandara de 42 anos. O crime bárbaro aconteceu em Fortaleza, capital do Ceará.

Mais uma vida se foi por causa de uma barbaridade movida pelo preconceito. Segundo a apuração da Polícia Militar, a travesti Dandara dos Santos, de 42 anos, foi agredida até a morte por um grupo de homens no meio da rua no Bairro Bom Jardim, no dia 15 de fevereiro de 2017.No vídeo é possível ver os agressores espancando e humilhando Dandara, a pessoa que filma toda a violência parece se divertir com tamanha covardia. A travesti é atingida várias vezes com socos e pontapés e apanha sem demonstrar nenhuma resistência. No áudio do vídeo é possível ouvir vozes de outras pessoas que caçoam da vítima e a ofendem com palavrões incitando ainda mais a violência. (Blastingnews, Fortaleza, 2017, p.1)

30 de abril de 2017. Desta vez a notícia é estampada no Portal de Notícias da Globo, o G1 do Espírito Santo. Mais um crime, mais uma morte de uma travesti foi registrada. Laysa Mello de 28 anos foi morta com vários tiros.

Layza foi abordada por um homem.Os dois saíram do local a pé e cerca de cinco minutos depois a travesti voltou correndo em direção à esquina, onde começou a ser baleada pelo homem que havia feito a abordagem.As testemunhas ressaltaram que, após efetuar os disparos, o homem guardou a arma no bolso e fugiu andando em direção ao bairro Jardim Marilândia, também em Vila Velha.(MAIA, 2017, p.1)

Infelizmente esses casos não são isolados. O Brasil se tornou um lugar inóspito para a população LGBTT. Quem se arrisca a viver no país bonito por natureza está sujeito a pagar um preço, as vezes alto de mais, a própria vida. Uma reportagem publicada pelo Jornal Estado de Minas em março de 2017 utiliza dados do Grupo Gay da Bahia, que é uma das organizações mais antigas com atuação no Brasil e com foco na proteção dos direitos da população gay e transexual. A pesquisa comprova o cenário de matança da população LGBTT. Há 37 anos uma pesquisa monitora o número de mortes dessas comunidades. Os dados são alarmantes. O Brasil é considerado o país onde há mais morte de travestis e transexuais. Segundo a pesquisa, 2016 foi o ano com mais mortes registradas. Ao todo 347 seres humanos perderam a vida.

PRECONCEITO, ESTEREÓTIPO E FOBIAS

Quais são as causas de tanta barbárie? O que motiva esse aumento no rastro de sangue LGBTT que é espalhado em solo brasileiro. Um dos pontos centrais da nossa discussão, talvez, esteja pautado no preconceito e como ele é capaz de atuar na subjetividade dos indivíduos. Partindo de uma visão sociológica, o autor Roger Raupp Rios em seu livro Rompendo o silêncio (2007), obra que se debruça sobre as particularidades encontradas no enfrentamento travado diariamente pela polução LGBTT, aborda o preconceito em um ponto de vista sociológico como ”uma forma de relação intergrupal onde, no quadro específico das relações de poder entre

grupos, desenvolvem-se e expressam-se atitudes negativas e depreciativas além de comportamentos hostis e discriminatórios em relação aos membros de um grupo” (RIOS, 2007, p.29)

Em sua pesquisa Rios trabalha além do conceito de preconceito com a questão da discriminação, processos que para ele, apesar de serem distintos, estão na mesma órbita. “ o termo discriminação designa a materialização, no plano concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias, comissivas ou omissivas, relacionadas ao preconceito, que produzem violação de direitos dos indivíduos e dos grupos” .(RIOS, 2007, p.28)

Além da visão sociológica, o preconceito também encontra definições atreladas ao pensamento psicológico. Segundo Rios, o preconceito explicado pela raiz psicológica encontra dois eixos:

O primeiro pode ser nomeado como "teorias do bode expiatório". Diante da frustração, os indivíduos procuram identificar culpados e causadores da situação que lhes causa mal estar, donde a eleição de certos indivíduos e grupos para este lugar. O segundo grupo, por sua vez, pode ser indicado como "teoria projecionista". Os indivíduos, em conflito interno, tentam solucioná-lo, mediante sua projeção, parcial ou completa, em determinados indivíduos e grupos, razão pela qual lhes destinam tratamento desfavorável, chegando às raias da violência física, que pode alcançar até a pura e simples eliminação. (RIOS, 2007, p.28)

Nesse jogo de representações também aparece o conceito de estereótipo. E é sob o jugo da estereotipação que gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais vivem. Tal conceito tem abordagens em áreas como psicologia social, sociologia e estudos da linguagem.

o estereótipo não é uma simplificação porque é uma falsa representação de uma dada realidade. É uma simplificação porque é uma forma presa, fixa, de representação, que, ao negar o jogo da diferença (que a negação através do Outro permite), constitui um problema para a representação do sujeito em significações de relações psíquicas e sociais. (BHABHA, 2013, p. 130)

Também é preciso pensar o esterótipo com base nas teorias de representação social. Maria Manuel Rocha Teixeira Baptista (2004) que se dedica aos estudos culturais e as implicações dos estereótipos nas relações sociais entende que o processo de objetivação tem papel decisivo na naturalização das representações que passam a ser interpretadas como reais, verdadeiras. É nesse processo que as representações se naturalizam ultrapassando a fronteira entre conceito e realidade.

Esta característica de rigidez própria do estereótipo, não implica que ele comporte necessariamente uma percepção falsa da realidade. O que se pretende aqui sublinhar é que, quer se trate de categorizações apenas exageradas e simplificadoras da realidade, quer elas sejam erróneas e completamente falsas, os estereótipos adquirem um enorme grau de estabilidade no tempo e um alto nível de convencionalidade social, que os torna dificilmente alteráveis, mesmo quando os actores sociais que os detêm dispõem de ulteriores informações que invalidam o seu conteúdo. Assim, a irracionalidade do estereótipo não advém em primeiro lugar do seu conteúdo (que pode até não remeter para informações falsas, mas apenas deficientemente processadas), mas do seu carácter rígido e inflexível, mesmo face a eventuais evidências racionais que o contradigam. (BAPTISTA, 2004, p.6)

Antes de irmos de encontro ao objeto dessa escrita, que é a análise de reportagens onde travestis e transexuais são as “protagonistas dos vídeos” é necessário ainda acrescentar mais um ingrediente em nossa mistura conceitual. Precisamos falar de homofobia, lesbofobia, transfobia. Vamos começar analisando o léxico da palavra fobia. De acordo com o dicionário online de português, fobia é um “Sentimento exagerado de medo ou aversão”. Pode ser considerada uma “Psicopatologia. Sensação patológica de angústia intensa e persistente, caracterizada pela aversão ou evitamento de certos objetos, circunstâncias, sentimentos “ (FOBIA, 2017). A origem da palavra é grega e vem de Fobos, a personificação do medo e do terror.

Para o autor Daniel Borrillo (2010), a homofobia e todas as outras fobias voltadas para a população LGBTT deve ser encarada como medo da possibilidade de afirmação de outras identidades que não estão na mesma sintonia como o padrão normativo heterossexual.

É um fenômeno complexo e variado que pode ser percebido nas piadas vulgares que ridicularizam o indivíduo efeminado, mas ela pode também assumir formas mais brutais, chegando até a vontade de extermínio, como foi o caso na Alemanha Nazista. À semelhança de qualquer forma de exclusão, a homofobia não se limita a constatar uma diferença: ela a interpreta e tira suas conclusões materiais. Assim, se o homossexual é culpado do pecado, sua condenação moral aparece como necessária; portanto, a consequência lógica vai exigir sua "purificação pelo fogo inquisitorial': Se ele é aparentado ao criminoso, então, seu lugar natural é, na melhor das hipóteses, o ostracismo e, na pior, a pena capital, como ainda ocorre em alguns países. Considerado doente, ele é objeto da atenção dos médicos e deve submeter-se às terapias que lhe são impostas pela ciência, em particular, os eletrochoques utilizados no Ocidente até a década de 1960. Se algumas formas mais sutis de

homofobia exibem certa tolerância em relação a lésbicas e gays, essa atitude ocorre mediante a condição de atribuir-Ihes uma posição marginal e silenciosa, ou seja, a de uma sexualidade considerada como inacabada ou secundária. Aceita na esfera Íntima da vida privada, a homossexualidade torna-se insuportável ao reivindicar, publicamente, sua equivalência à heterossexualidade. (BORRILLO, 2010, p.16)

Borrillo em sua obra questiona a supremacia heterossexual e quer levantar o debate de como “LGBTTfobias” ganham forças ideológicas. O autor considera que o processo começa dentro de casa.

A homofobia é algo familiar e, ainda, consensual, sendo percebida como um fenômeno banal: quantos pais ficam inquietos ao descobrir a homofobia de um(a) filho(a) adolescente, ao passo que, simultaneamente, a homossexualidade de um(a) filho(a) continua sendo fonte de sofrimento para as famílias, levando-as, quase sempre, a consultar um psicanalista?” (BORRILLO, 2010, p.17)

Nesse emaranhado de fobias, a transfobia pode ser considerada ainda mais cruel. Mas, antes, é necessário entendermos quem é o público que é alvo desse tipo de aversão. A pós-doutora e especialista em cultura, identidade e diversidade, Jaqueline Gomes Jesus em seu livro Orientações sobre Identidade de Gênero: Conceitos e Termos (2012) traz definições sobre essa população que é colocada como inferior e muitas vezes caçada por suas diferenças, apenas pelo fato de saírem da concepção de normalidade onde o gênero atribuído ao nascimento deve determinar toda sua existência, “a variedade de experiências humanas sobre como se identificar a partir de seu corpo mostra que essa ideia é falaciosa, especialmente com relação às pessoas trans, que mostram ser possível haver homens com vagina e mulheres com pênis” (JESUS, 2012, p.11).

Para a filósofa Judith Butler (2003), a identidade de gênero é constituída na linguagem pela linguagem. O sujeito não pode ser visto como um ser estático. Ele está em um constante movimento, ora construindo, ora desconstruindo. É por isso, que podemos dizer que gênero não é algo que se é. Mas que se faz. Transexuais e travestis estão dentro de um processo de subversão do modelo dominante de binarismo como macho/fêmea – masculino/feminino – pênis/vagina. Talvez, por isso elas ou eles choquem tanto uma sociedade que está acostumada apenas como uma forma de ser. É aí que o medo do diferente age.

No que se refere ao seu cotidiano, as pessoas transgênero são alvos de preconceito, desatendimento de direitos fundamentais (diferentes organizações não lhes permitem utilizar seus nomes sociais e elas não conseguem adequar seus registros civis na Justiça), exclusão estrutural (acesso dificultado ou impedido à educação, ao mercado de trabalho qualificado e até mesmo ao uso de banheiros) e de violências variadas, de ameaças a agressões e homicídios, o que configura a extensa série de percepções estereotipadas negativas e de atos discriminatórios contra homens e mulheres transexuais e travestis denominada: “transfobia”.(JESUS, 2014, p.105)

“ESTAMOS AQUI COM A RAFAELA. POSSO TE CHAMAR DE MACHO?”

O foco da nossa análise se concentra em duas reportagens exibidas por emissoras de televisão e que retratam travestis e transexuais de forma preconceituosa. A condução das reportagens é invasiva e a mulher transexual é vista (ou não vista) com um olhar deturpado. Nessas reportagens, a Travesti é algo, uma coisa que está ali para ser provocada, estigimatizada. Em nenhum momento, as mulheres que são protagonistas dessas histórias são vistas como um ser humano, mas sim como algo inferior. A construção das narrativas reduzem essas mulheres a condição de chacota, de invisibilidade.

A primeira reportagem que vamos analisar foi exibida pela em 2015, pela programa Radar da Notícia em Maringá, no Paraná, região Sul do Brasil. A notícia conta a história de duas travestis que foram conduzidas para delegacia por supostamente terem roubado um cliente, após um programa sexual. Na condução da reportagem, o repórter ao se referir as travestis, não as reconhece como mulheres e para deixar clara a sua posição utiliza o artigo definido masculino “os” para se referir a elas “os travestis”.

Jesus (2012) fala que ao longo da história, as travestis foram excluídas e acabaram marginalizadas pela família, escola e sociedade. Fato social que as empurra para profissões perigosas e comportamentos de risco. É importante ressaltar que nem toda travesti trabalha no mercado do sexo.

a maioria das travestis, independentemente da forma como se reconhecem, preferem ser tratadas no feminino, considerando insultoso serem adjetivadas no masculino, logo: AS travestis, sim. Os travestis, não. Entende-se, nesta perspectiva, que são travestis as pessoas que vivenciam papéis de gênero feminino, mas não se reconhecem como homens ou como mulheres, mas como membros de um terceiro gênero ou de um não-gênero (JESUS, 2012, p.17)

O outro lado dessa história a “vítima” e tratado como tal é um homem que acusa as travestis de roubo. Em nenhum momento ele é exposto nas imagens. Em todas as suas aparições, ele está com a imagem embaçada, de costas ou com o rosto coberto. Ao contrário das travestis que são a todo momento expostas, ele tem seu anonimato protegido. Para reafirmar esse papel de “vítima”, o policial responsável pela ocorrência em sua fala, mesmo sem ter concluído qualquer tipo de investigação, diz que quem se sujeita a realiza programas com essas pessoas (as travestis) está propenso a ser vítimas de golpe. A fala oficial reafirma a condição de marginalização das travestis.

Outro ponto que chama atenção nesta reportagem é a exibição de uma música ao final do vídeo. A trilha sonora é uma paródia da música “I will survive” regularmente associada a comunidade LGBTT. Nos trechos exibidos, há um tom de chacota e ridicularização de uma relação homossexual:

Eu vi o bofe tomar banho / E o tamanho da sua mala Era demais

Além de lindo era demais Eu virei gay! E assumi! A arte da pederastia

E pude um dia então sorrir. Pedi o Wilson em casamento E o jumento aceitou.

A lua de mel foi no Egito

Eu fui pra cama e dei um grito. E disse hey,

Vai devagar amor.

Não vai com força, ainda sou moça E não quero sentir dor.

Me trate como uma menina Vaselina por favor.

Parecia o Rambo,

Com a sua bazuca na minha nuca. (MC GRIZANTE,1982)

A música no telejornalismo faz parte do processo de elaboração de sentidos. Para Freire (2011) a sonorização em uma reportagem conduz o telespectador pela imaginação produzindo processos cognitivos. O poder de significação da sonorização está no processo de desencadear emoções. Ao atrelar a paródia a uma reportagem que deveria ter uma postura mais sóbria, sem julgamentos de valor os autores da matéria jornalística conduzem os telespectadores a visualizarem uma situação vexatória e preconceituosa. É por isso que Bucci (2001) crítica a utilização desses elementos sonoros como parte dos processos de significação das reportagens. O autor reclama que esses recursos promovem uma aproximação com a ficção e o distanciamento com a realidade.

Na reportagem que tratava do suposto roubo, um assunto que podemos considerar sério, não caberia a utilização do humor (como no caso da paródia) e ainda mais a produção de imagens das travestis sensualizando para as lentes das câmeras. Coube porque estamos falando de mulheres, porque estamos falando de uma categoria ainda mais baixa na cadeia alimentar da heteronormatividade: as travestis e transexuais. É como Larissa Pelúcio (2010), pesquisadora dos estudos queers classifica:

A exotização e erotização do “outro” tem sido formas de expressar simbolicamente, nas relações cotidianas, processos de dominação econômica e cultural. O colonialismo parece ser um desses eventos que saturou de signos eróticos não só as terras “exóticas”, mas também seus habitantes. Na tradição moderna ocidental, o erótico guarda marcas históricas persistentes que dão sentido aos encontros sexuais contemporâneos. (PELÚCIO, 2010, p.206)

O segundo vídeo foi exibido em 2013 pela TV Goiânia, afiliada da Rede Bandeirantes na cidade de Goiânia em Goiás. A história contada pelo repórter envolve quatro pessoas em uma acusação de um roubo de uma bicicleta. Um trio é acusado de praticar o roubo. Ao apresentá-los o repórter fala o nome do Homem. E ao se referir as travestis, o repórter faz questão de dizer o nome social, seguido do nome de batismo. O que segundo Jesus (2012) é uma forma de silenciar a existência delas enquanto travestis. “Escrever ou falar conforme um vocabulário reconhecido pelas pessoas representadas é essencial para valorizar a cidadania. Com relação a travestis e transexuais, é comum o uso de expressões que levam a concepções errôneas sobre a vivência e os desafios dessas pessoas.

Ao longo da reportagem o repórter faz várias intervenções e insinuações. Acusa uma das travestis de roubo, a denomina como “macho”. Faz piada com o fato do homem acusado ser esposo de uma das travestis. Tudo em tom de escárnio. Novamente, o homem, a “vítima”, em nenhum momento é coagido pelo repórter ou com a produção das imagens. A sua identidade a todo momento é protegida.

Como relatam Bento (2008) e Pelúcio (2009a), a partir da ótica da Teoria Queer, de contestação a qualquer normalização, o controle sobre os corpos é reconhecido como um dispositivo de poder e saber (remetendo ao pensamento de Foucault): pessoas trans ainda não são vistas como seres humanos, mas como seres abjetos, porque não são inteligíveis para os padrões hegemônicos de gênero (fundamentados no binarismo) e até mesmo de sexualidade (JESUS, 2012, p.2)

É preciso analisar o que leva temas e abordagens como a dessas reportagens a serem produzidas e veiculadas em emissoras de televisão. Um dos primeiros pontos de observação é o tipo de programa jornalístico em quem elas estão inseridas. Nos dois casos, são jornais que possuem uma linha editorial que explora as misérias humanas, violência e usa vezes do humor, de gosto questionável, para compor suas narrativas. Esse tipo de programa se popularizou no Brasil a partir dos anos 2000.

Ainda que acusados de sensacionalismo, os programas populares alcançaram sucesso e altos índices de audiência desde seu surgimento. Ao mesmo tempo, sofreram muitas críticas de diferentes setores da sociedade que, em defesa de uma TV de qualidade, pressionaram as emissores e, em certa medida, obtiveram sucesso, já que alguns programas foram retirados do ar e a programação teve seu desenho levemente modificado. Contudo, o debate em torno da questão e os próprios programas ainda permanecem em pauta. Tanto os programas, que trazem imagens de um Brasil carente e desigual, quanto a mobilização da sociedade mostram que o fenômeno midiático “programas populares” representa um marco para a televisão brasileira. (LANA, 2009, p.17)

A escolha da pauta, que é o início da produção de uma reportagem e funciona como um roteiro deve ser analisada. Na rotina de uma emissora de televisão existem reuniões que aprovam quais assuntos vão ser exibidos. É a chamada reunião de pauta. Geralmente, é o editor que decide que o se vai cobrir ou não. É assim que vamos de encontro a uma das teorias do jornalismo, a teoria do gatekeeper. Segundo Wolf (1999) a teoria é datada em 1947. Onde para algum fato se tornar notícia é preciso passar por um porteiro, que vai selecionar as informações e decidir o que é digno de ser noticiado ou não. É neste ponto que entra a subjetividade e claro, as ideologias.

Também é de extrema importância compreendermos como a mídia pode favorecer a concepção e a multiplicação de visões deturbadas e imagens estereotipadas. Para a pesquisadora de comunicação Flávia Biroli (2011) a imposição de um pensamento hegemônico tem fator determinante.

[...]o papel dos meios de comunicação de massa como propagadores dos estereótipos, o que ganha saliência é a relação entre a mídia e o exercício da dominação, ou entre a comunicação mediatizada e a reprodução da hegemonia. Os estereótipos aparecem como uma dimensão da imposição pelos grupos e estratos de grupos dominantes de sua visão de mundo. E a mídia aparece como um instrumento central de sua propagação. Nesse caso, a relação entre conhecimento e superação dos preconceitos fica comprometida pelo fato de que o controle das informações e mesmo a produção da verdade (do que é assim apresentado e poderá ser assim percebido) estão no centro da dinâmica de dominação. Um de seus aspectos é a propagação de

representações unilaterais e homogêneas da realidade, apresentadas como sendo a própria realidade ou o que importa dela. (BIROLI, 2011, p.2)

Outro “agravante” para a proliferação do estereótipo midiático é a relação de poder e a luta que se estabelece entre o homem e a mulher. A posição de dominante do homem também vai prevalecer na rota de colisão com travestis e transexuais, principalmente quando elas se identificam com o gênero feminino. É mais um preconceito que é adicionado nessa operação matemática, onde o resultado sempre vai ser negativo para quem está no posto de minoria.

Os estereótipos de gênero presentes na mídia devem ser entendidos como produtos de uma dinâmica social mais ampla, que envolve a determinação de papéis diferenciados, e hierarquicamente distintos, para homens e mulheres. Por outro lado, esses estereótipos são reproduzidos de acordo com o modus operandi específico dos meios de comunicação de massa, que envolve as rotinas de produção do noticiário jornalístico e as perspectivas sociais dos jornalistas. Esses estereótipos consistem, assim, em narrativas cristalizadas que são ativadas na medida em Gênero e política 274 que os holofotes se voltam para as mulheres políticas. Sua ancoragem em compreensões convencionais do feminino e do masculino naturaliza a ausência de mulheres de espaços e posições de maior poder. (BIROLI, 2010, p.273)

CONSIDERAÇÕES

Os dados da matança da população LGBTT só reforçam as feridas coloniais que essas pessoas carregam na pele. Mignolo (2005) diz que essa gente está exposta ao “sentimiento de inferioridad impuesto en los seres humanos que no encajan en el modelo predeterminado por los relatos euroamericanos” (MIGNOLO, 2005, p.17). É por isso que o preconceito vestido de homofobia, lesbofobia e transfobia ataca cada vez mais homens e mulheres (cis gêneros ou trans) silenciando-os e os reduzindo a condição de marginalizados, a de machos que querem ser fêmeas. A de fêmeas que querem ser machos. Por isso, a recompensa para essas aberrações só pode ser além da exclusão, o desprezo, a ironia, a chacota, a morte.

Mesmo com essas feridas bem visíveis muitos olhos se recusam a ver. A exposição pode estar na TV. Na internet. Mas como estamos falando de uma categoria que não está no mesmo patamar dos humanos, eu posso ignorar. Eu posso rir das intervenções do repórter que é inconveniente, preconceituoso. Que acusa sem ter provas. Que brinca com o direito de uma pessoa ser reconhecida pelo que ela é e não por aquilo que a normatização diz que ela deve ser.

É triste ver que a veiculação de reportagens com esse teor, onde travestis, transexuais e pessoas que se relacionam com a comunidade LGBTT vão ser alvo de piadas que escondem no humor verdadeiras navalhas para cortar a parte podre. É preciso intervir, é preciso falar escolhas

éticas e políticas. No caso da televisão, o poder pode estar do outro lado da tela com quem manuseia o controle remoto.

REFERÊNCIAS

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JORNALISMO CULTURAL E MÚSICA BREGA: ELEMENTOS PARA UMA DISCUSSÃO56

Adão da Paiva da SILVA57 Wagner da Costa SILVA58

Resumo

O presente artigo busca discutir elementos que existentes na relação entre Jornalismo Cultura e a cultura brega em nosso país. Por meio de revisão bibliográfica, reflete sobre os conceitos de cultura e brega avançando, ainda, sobre cultura popular e de elite. Dessa forma, traça-se um panorama que permite refletir sobre a forma preconceituosa e pejorativa como a música brega é muitas vezes tratada nos cadernos culturais.

Palavras chaves: jornalismo cultural; brega; cultura.

Cultura e Culturas: discutindo conceitos

Quando são usadas expressões que de alguma forma intitulam uma pessoa, grupo, ou sociedade, em dizer que esta (e) é “sem cultura”, é o mesmo que afirmar que esse sujeito não possui um idioma, não possui um conjunto de elementos identitários que o caracterizem. O modo de se vestir, a culinária, músicas, danças e crenças, torna-se algo que meramente surgiu do acaso, do natural e do inconsciente destes, sem importância ou significados.

Para Piza (2007, p.46), toda essa leitura ocorre porque “a maioria das pessoas associa “cultura” a algo inatingível, exclusivo dos que leem muitos livros e acumulam muitas informações, algo sério, complicado, sem leveza (...)”.

A cultura, de acordo com Souza (2010) vai além de realizações e produtos da mente humana materializados, ela em toda a sua totalidade também é simbólica.

A cultura em si é simbólica, pois são os símbolos que constituem uma nação, um grupo e fazem com que os povos sejam únicos em cada período da sua história. Para Thompson (1995, p.176), cultura é o padrão de significados incorporados nas formas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e objetos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os indivíduos se comunicam entre si e partilham suas experiências, concepções e crenças (SOUZA, 2010).

A Unesco (2002) no relatório Declaração Universal sobre a diversidade, reforça esse pensamento, quando descreve a cultura como sendo a soma de características práticas, afetivas e religiosas de um povo, o que torna esses aspectos uma identidade regional.

56 Texto apresentado à LT6 – Estudo Interdisciplinares

57 Acadêmico do oitavo período do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre - Ufac

58 Professor do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre - Ufac

Reafirmando que a cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças (UNESCO, 2002).

Ao analisar a origem da palavra cultura, Pereira Lopes (2010) utiliza o conceito do sociólogo John B. Thompson (1990) onde diz que o termo originalmente nasceu da prática agrícola, do cultivo no campo e da criação de animais domesticados. No entanto, com o desenvolvimento das sociedades a expressão passou a ter um sentido de intelectualidade, de um individuo ou grupo mais civilizado.

Do início do século dezesseis em diante, este sentido original foi estendido da esfera agrícola para o processo do desenvolvimento humano, do cultivo de grãos para o cultivo da mente. Entretanto, o uso independente do substantivo cultura, referindo-se a um processo geral ou ao produto deste processo, não era comum ate o fim do século XVIII einício do século XIX. O substantivo, como independente, apareceu primeiro na França e na Inglaterra; e no fim do século XVIII a palavra francesa estava incorporada ao alemão, grafada primeiramente como Cultur e, mais tarde, kultur (THOMPSON 1990 apud LOPES 1990, p.167).

Petrônio Domingues no artigo Cultura popular: as construções de um conceito na produção historiográfica narra o início da divisão entre cultura popular e cultura erudita a partir dos conceitos de Burke (1989). O autor afirma que essa separação surgiu na segunda metade do século XVIII do pensamento de intelectuais europeus que viram a necessidade de desassociar o que eles denominaram de conceito folclórico, o conhecimento popular, o sabernatural da criação familiar e do convívio com os indivíduos locais, do conhecimento mais aprimorado, o conhecimento mais desenvolvido e elitizado.

Entre as definições de cultura aqui apresentadas, no artigo Debates sobre cultura, cultura popular, cultura erudita e cultura de massa, afirma que as definições de culturas são diversas, e que a cultura é algo fácil de ser apreendida, passada de um individuo para o outro no espaço em que vive, seja esse espaço considerado de uma “cultura plebeia”, definição usada por Thompson(1998), ou de uma cultura de elite, detentora de um conhecimento mais culto e civilizado, o que não impede em um processo de vivências, ambas adquirirem conhecimentos e compartilhar de costumes, uma espécie de mutação da cultura, um processo de desenvolvimento, geração de novos hábitos, modos de falar, de escrita, na culinária etc. Uma junção do que antes era particular e representativo, passa a ser o novo, a criação de algo diferente.

O diálogo entre as culturas não nos impede, necessariamente, de manter nossas raízes e não implica romper com nossa própria cultura e com a dos nossos antepassados, com suas tradições e seus valores. Deve-se entender que, do mesmo modo que eles se adaptaram às circunstâncias do mundo que os rodeava,nós também devermos abrir- nos às culturas de hoje. Somente através de um intercâmbio fluido teremos a possibilidade de encontrar novas soluções para as nossas diferenças culturais (SOUZA 2010 apud MONTIEL, 2003, p. 41).

Em meio a todos esses conceitos de cultura é primordial salientar o sentimento de pertencimento de cada sociedade ou grupo, os laços afetivos que unem os indivíduos, fortalece as características que os distingue e forma uma identidade própria desses grupos, o que torna esses laços mais importantes que uma carga intelectual, ou a ausência dela. O filósofo Terry Eagleton (2005), afirma este pensamento quando expõe que a cultura.

Não é unicamente aquilo de que vivemos. Ela também é, em grande medida, aquilo para o que vivemos. Afeto, relacionamento, memória, parentesco, lugar, comunidade, satisfação emocional, prazer intelectual, um sentido de significado último: tudo isso está mais próximo, para a maioria de nós, do que cartas de direitos humanos ou tratados de comércio (SOUZA, apud EAGLETON, 2005, p. 184).

Lixo? Cafona? Discutindo o conceito de brega

O termo brega, aqui apresentado, faz alusão a um gênero musical que ganhou notoriedade entre os anos de 1980, quando cantores como Waldik Soriano, Odair José, Nelson Ned, Agnaldo Timóteo, Claudia Barroso, Benito di Paula, Dom e Ravel ficaram famosos. Araújo (2015) narra que na década de 80 a palavra “brega” ainda era desconhecida e a expressão usada era “cafona” e fazia alusão a cantores e compositores que, mesmo em meio as críticas, tiveram um alto índice de vendagem de discos e veiculação de suas músicas nas rádios de todo o país.

Todo o sucesso dava-se pela identificação da população naquilo que era cantado e apresentado nas canções. A maneira como os próprios cantores interpretavam as músicas já era uma forma de representação de uma camada da sociedade que às vezes via suas dores da infância retratada, seus relacionamentos, experiências amorosas e, principalmente, as dificuldades enfrentadas diariamente em meio à pobreza e o descaso dos governantes.

O termo brega é definido por Paulo Cesar de Araújo da seguinte forma:

A palavra “brega”, usada para definir esta vertente da canção popular, só começou a ser utilizada no início dos anos80. Ao longo da década de 70 - período que compreende o universo desta pesquisa- , a expressão utilizada é ainda “cafona”, palavra de origem italiana, cafoné, que significava indivíduo humilde, vilão, tolo. Divulgada no Brasil pelo jornalista e compositor Carlos imperial, a expressão “cafona” subsiste hoje como sinônimo de “brega”, que, segundo a Enciclopédia da Música Brasileira, é um termo utilizado para designar “coisa barata, descuidada e malfeita” e a “música mais banal, óbvia, direta, sentimental e rotineira possível, que não foge ao uso sem criatividade de clichês musicais ou literários”(ARAÚJO, 2015, p. 20).

A música brega ou “cafona” como apresentada por Araújo (2015) tem como gêneros de destaque, em seu inicio, o bolero, o samba e as baladas românticas. Em cada um desses estilos, houve interpretes de maior relevância, não que esses artistas fossem os precursores desses ritmos, já que outros cantores, os chamados “das elites”, já cantavam anos antes suas canções também nesses estilos.

O que diferenciava ambos seriam as influências do espaço natural de cada individuo, onde os elementos adquiridos se faziam presentes na maneira de vestir e apresenta-se nos palcos e é correto afirmar que influenciavam de certa forma nas letras das canções e na interpretação. Nessa busca que parece cada vez mais difícil, dois pontos q nos conduzem a uma compreensão do que levou a esse termo brega.

(..) definir a música brega decorrem de dois pontos: o primeiro diz respeito à pluralidade musical propiciada pela contemporaneidadeque possibilita que um fluxo de tendências se inter cruzem globalmente de forma dinâmica.(...) O segundo ponto diz respeito à própria situação histórica na qual surgiu a denominação música brega. Acreditamos que a outra dificuldade em definirmos com maior clareza a música brega, se deva a infiltração direta das ideologias políticas de setores mais prestigiados socialmente, misturando os valores estéticos dessa música com intenções ideológicas, promovendo como consequência, uma série de sinônimos que dizem respeito à inferioridade em várias situações que envolvem questões de estilo (SOUZA, 2009).

José (2002) faz uma afirmativa bastante pertinente em relação aos artistas e consumidores desse produto brega. Para a autora, as explicações sobre a origem da palavra brega quando questionada aos próprios personagens, são desconhecidas, os elementos distintivos dessa música não são identificados e em busca das respostas cria- se um campo de hipóteses até mesmo fantasiosas sobre tal origem.

(...) Wando, cantor apontado como o melhor exemplo da tendência brega, conta que, numa cidade do Norte ou do Nordeste havia uma boate que se chamava Manoel da Nóbrega e apresentava artistas do gênero Waldick Soriano. Um dia roubaram o Nó e ficou apenas

Manoel brega na tabuleta, as pessoas começaram a dizer “vamos ao brega” e, de repetição, nasceu a palavra. O cantor Moraes Moreira endossa a explicação, contando uma variante: Manoel de Nóbrega seria uma rua “da pesada” na Bahia e a chuva teria desbotado o Nó (JOSÉ, 2002, p.11).

Se de fato essas hipóteses, tem ou não fundamento, nos faltam meios para uma pesquisa mais aprofundada que não venha a ser baseada em narrações populares passadas de um individuo para o outro. Já de certa forma, não podemos negar que o surgimento do brega deu-se pela necessidade de obtenção de um espaço peculiar e representativo, mesmo que esse espaço possua características que venham a ser identificadas como “cópias” do que já foi produzido pela a elite.

Se já possuímos uma cultura superior e dominante, engajada em uma produção que expressa os valores tradicionais de um determinado tempo e espaço, José (2002) diz que, ao surgir outra forma de expressão diferente dessa já vigente, de certa forma trará elementos da cultura popular brega, mas com aspectos da cultura de elite, aspectos estes que podem estar em um dado período de desuso.

(...) Os procedimentos da cultura popular tomados pelo brega são redundantes, na medida em que voltam quase sempre para o mesmo lugar social de onde foram retirados, é como se este segmento social consumisse, tempos depois, o que já tinha sido consumido tempos antes, só que, desta vez, apresentado num arranjo em que os índices selecionados tornam os objetos ou os textos ilusoriamente próximos dos modelos da elite (JOSÉ, 2002, p.21).

Quando utilizamos, como exemplos, esses aspectos aderidos pelo segmento brega, não o relacionamos apenas com elementos presentes na música, mas na totalidade de um produto artístico, principalmente no quesito estético e pessoal em que a imagem do artista é apresentada como forma de gerar uma tendência no meio em que é consumido. Essa busca em apresentar um produto final atrativo, acaba por vezes em atrair um público diferente de consumo desse segmento.

Verificando que a dificuldade em determinar o estilo musical brega ocorra devido à pluralidade e vulnerabilidade cultural da contemporaneidade e devido à imposição do rótulo de forma pejorativa por uma intelectualidade, só podemos admitir que a música brega é como uma nuvem a qual todos veem, mas que cada um enxerga uma imagem diferente formada por essa mesma nuvem. Quer dizer, a partir do instante em que nos referimos a determinados artistas ou bandas como bregas, enxergamos sua existência, mas por outro lado, cada um encara determinados artistas, bandas e características que dizem respeito à música brega de forma diferente, de acordo com cada olhar (SOUZA, 2009).

O autor conclui esse pensamento com a seguinte afirmação. “A música brega existe inexistindo, enfim, ser brega ou não ser, eis a indefinição”(Souza, 2009), o que nos faz lembrar de uma célebre frase do poeta Shakespeare.

3.0 Jornalismo cultural: entre a informação e o preconceito

Daniel Piza (2007) narra que o Jornalismo Cultural não possui uma data exata de seu nascimento, mas que em 1711 algo semelhante começou a ser produzido através de dois ensaístas inglesesRichard Steele e Joseph Addison, que criaram uma revista diária chamada The Spectator. Segundo o autor, o objetivo dos fundadores era “Tirar a filosofia dos gabinetes e bibliotecas, escolas e faculdades, e levar para clubes e assembléias, casas de chá e cafés” (PIZA, 2007, p.11).

Sem dúvida alguma, a revista The Spectator já era um modelo e uma atividade do jornalismo cultural que surgiu com a necessidade de levar ao homem urbano os acontecimentos e novidades da cidade. Usava, para isso, uma linguagem simplificada e atrativa a todo o público. O padrão adotado à época, portanto, não difere da forma de trabalho dos dias atuais, como descrita por Piza (2007).

A revista falava de tudo – livros, óperas, costumes, festivais de música e teatro, política – num tom de conversação espirituosa, culta sem ser formal, reflexiva sem ser inacessível, apostando num fraseado charmoso e irônico que faria o futuro grão – mestre da crítica, Samuel Johnson, sentenciar: “Quem quiser atingir um estilo inglês deve dedicar seus dias e suas noites a ler esses volumes”.(PIZA, 2007, p. 12).

Para Silva e Conceição (2007) esse gênero do jornalismo, assim como os demais, deve despertar um senso crítico em relação ao conteúdo oferecido ao público e o material divulgado apresente elementos que não o torne tão efêmero.

(...) identifica- se a relevância de abordagens culturais em temáticas não artísticas e a escassez do exercício crítico aos movimentos artísticos dentro dos cadernos de cultura. No caso da crítica, o problema é ainda maior já que os espaços reservados à cultura tem se dedicado cada vez mais a uma simples exposição do produto/evento em pauta. Tolhendo, desta maneira, a possibilidade de reflexão do leitor (SILVA; CONCEIÇÃO;2007, p. 2).

No entanto, essa seara do jornalismo tem sofrido mudanças recentemente. Piza (2007) expõe que uma das causas pelas quais o jornalismo cultural vem sofrendo mudanças está relacionada à “crise” nos padrões antes executados, não que esta seja uma visão própria do autor, mas dos nostálgicos como ele mesmo definiu, onde estes não apoiam tão bem a forma atual de trabalho nesse segmento. Piza (2007), em certos

momentos, até concorda com esse pensamento, quando relaciona que “nomes como Robert Hughes hoje são mais escassos, revistas culturais ou intelectuais já não têm a mesma influência que tinham antes, críticos parecem definir cada vez menos o sucesso ou fracasso de uma obra ou evento (...)” (Piza, 2007, p. 31).

É visível a mudança que o jornalismo cultural tem sofrido em suas atividades, principalmente quando essas mudanças estão relacionadas à necessidade de manter-se no mercado. Assuntos que antes não recebiam tanta relevância ou pelo menos não de forma tão presente e cotidiana, tem se tornado o produto ou o conteúdo principal nos meios de comunicação, como enfatizado por Piza (2007).

(...) há na grande imprensa um forte domínio de assuntos como celebridades e um rebaixamento geral dos critérios de avaliação dos produtos. O jornalista cultural anda se sentido pequeno demais diante do gigantismo dos empreendimentos e dos “fenômenos” de audiência. As publicações se concentraram mais e mais em repercutir o provável sucesso de massa de um lançamento e deixaram para o canto as tentativas de resistências – ou então as converteram também em “atrações” com ibope menor, mas seguro (PIZA, 2007, p. 31).

O autor afirma ainda que os profissionais dessa área tem se visto perdidos em meio a suas funções, tanto dentro das empresas onde atuam como em meio ao seu papel na sociedade. Para ele, muitos são os motivos que tem dificultado que os jornalistas apresentem suas funções com “clareza e eficácia”. E um desses principais motivos “tem a ver com esse mesmo debate sobre os critérios para avaliar uma produção cultural que é cada vez mais numerosa e diversificada e economicamente relevante” (Piza, 2007, p.45).

Mas, no lugar de despertar uma espécie de reflexão no público, Rosa (2013) nos diz que os cidadãos “criaram” uma unificação entre o entretenimento e a cultura, pois para a maioria das pessoas, cultura é somente “pensar em ações como ir ao teatro, ao cinema, visitar um museu ou comprar um CD” (Rosa, 2013). É certo que o entretenimento e toda manifestação artística também fazem parte da cultura. Mas para a autora,esta relação que a sociedade de forma inconsciente criou, entre a arte e a cultura, acabou por despertar o interesse comercial “entre as redações e as assessorias dos eventos culturais” (Rosa, 2013). O que transformou o jornalismo cultural em um espaço de divulgação de produtos artísticos, sem cumprir com o seu papel de agente formador de opinião na sociedade.

No entanto, pensamos que ele pode ir além desta tríade, mas para isso deve tecer a vida cotidiana não só mostrando comportamentos,

costumes, crenças e tradições, mas também, e principalmente, observando as nuances da(s) cultura(s) em transformação,seus conflitos, suas relações de troca. Para esta empreitada, o jornalista cultural precisa buscar refletir a realidade vivenciada pela sociedade captando ângulos do seu cotidiano e, fundamentalmente, sabendo diferenciar cultura, arte e consumo (ROSA, 2013).

Em meio a essa “popularização do jornalismo cultural” (Assis, 2008) hoje tratado mais como uma mercadoria, o caderno “acabou por banalizar sua produção, desencadeando sérias discussões sobre sua legitimidade” (Assis, 2008). Para o autor, o que vemos atualmente é apenas uma busca incessante em cobrir eventos artísticos, reportar sobre os mais diversos lançamentos e, na maioria das vezes, formar uma sociedade do espetáculo voltada á vida de celebridades.

Todas essas transformações, pelas quais o jornalismo cultural foi submetido através da industrialização, ocorreram também por diversos outros fatores, como ressalta Assis (2008), sendo que o mais importante está relacionado ao advento das novas tecnologias da informação e o grande fenômeno mundial da internet, que fez com que a necessidade por informações tornasse o caderno cultural uma espécie de máquina de entretenimento, para assim suprir os anseios da sociedade por conteúdos cada vez mais atrativos, mas não tão importantes e essenciais. E é a partir do início do século XXI que:

O tradicional formato do jornalismo impresso, que outrora valorizava textos extensos e detalhados, perdeu seu espaço. A ordem, agora, é compilar em poucas linhas as informações necessárias para a compreensão de determinado fato, e mesmo os conteúdos críticos não dispõem de grandes espaços para serem desdobrados (ASSIS, 2008).

A partir dessa realidade, Assis (2008) passou a denominar o jornalismo cultural de “jornalismo de variedades” e afirma que sua influência em meio à sociedade é inegável e de certo acaba por cumprir sua função de prestador de serviço, quando “ao oferecer aos leitores, por exemplo, roteiros gastronômicos ou dicas de como cuidar do corpo, os jornais também exercem sua função seletiva, mostrando um leque de possibilidades para os momentos de lazer e diversão” (Assis, 2008).

Piza (2007) afirma que o grande problema não está em o jornalismo cultural apresentar um trabalho diversificado, ou de “variedades”. A questão maior é o caderno quase sempre “se limitar a endossar aquilo que imaginam que seu público vá querer ou então ignorar qualquer produto que pareça fora do universo do leitor ou do tema editorial” (Piza, 2007, 49).

Nessa busca em apresentar um conteúdo baseado no apelo popular, sempre nos mesmos moldes de consumo, Piza (2007) destaca que as editoriais acabam por criar uma segmentação do mercado cultural. Esse mercado se vê cada vez mais categorizado em gêneros; ao formar na sociedade uma divisão onde, de um lado está uma classe definida como superior e, do outro, uma classe inferior. Os cadernos culturais, em meio a todo esse jogo de mercado, opera a função de “porta-vozes de grupos que mal se comunicam” (Piza, 2007, p. 56).

Nesta etapa da pesquisa chegamos a um dos pontos mais importantes ao falar sobre a atuação dos jornalistas e isso não envolve somente os veículos brasileiros, mas relacionamos a categoria de uma forma geral. É comum no dia a dia, ouvir relatos de pessoas com algumas opiniões negativas a respeito do papel desenvolvido pelos jornalistas, não generalizando é certo, e para não levantar uma afirmação sem embasamento, Noblat (2003, p.14) nos traz uma pesquisa sobre “um modelo de jornal que desagrada às pessoas”. O autor apresenta alguns dados relevantes sobre o quanto ue a sociedade vem perdendo o interesse em consumir notícias através dos jornais, realidade que afetou os lucros com a publicidade.

Um desses dados da pesquisa envolve o posicionamento dos jornalistas no momento de produção, na escolha das informações a serem oferecidas ao público. Com a pesquisa Noblat (2003, p.15) constatou que “os leitores acham que o cardápio de assuntos dos jornais está mais de acordo com o gosto dos jornalistas do que com o gosto deles. E que a visão que os jornalistas têm da vida é muito distante da visão que eles têm”.

Sem dúvida a insatisfação apresentada nessa pesquisa é uma realidade emergente do mundo capitalista no qual vivemos, onde a preocupação maior em vender informações tem feito com que as empresas jornalísticas não exerçam sua maior e mais importante função, a de servir e possivelmente ser um agente transformador da sociedade.

Ao apresentar esses dados sobre o atual meio jornalístico, construímos um caminho para esmiuçar o posicionamento opinativo e crítico dos jornalistas brasileiros nos cadernos de cultura, sejam em jornais impressos ou online. Não é de hoje que o padrão estético que muitos jornalistas se baseiam para argumentar sobre as mais diversas manifestações artísticas tem chamado à atenção do público. É essencial lembrar que muitos profissionais que entram nesse contexto não se aprofundam em conhecer os aspectos históricos, ou os processos pelos quais levaram uma determinada arte ou artista

a se tornar destaque no meio social e assim trabalham de forma a construir um jornalismo cultural baseado em informações rasas para dividir opiniões e alimentar o mercado.

Para Carmem Lúcia José (2002, p.33) há uma explicação para essa realidade. A autora afirma que “(...) não se deve esquecer que, numa sociedade de classe, a ideologia é sempre a da classe dominante, pois é esta que nomeia e estabelece as significações que devem circular na sociedade, através do exercício de seu poder”.

É importante ressaltar que, independente do meio social em que determinada manifestação artística surge, em cada ambiente ela apresenta valores e significados que de alguma forma representam um grupo, como vimos no capítulo anterior desta pesquisa, no conceito de cultura, quando falamos um pouco sobre o conjunto dos traços distintivos em uma sociedade.

Elencados inicialmente esses três fatos sobre:a insatisfação social com as informações veiculadas, a ganância jornalística pelos lucros e o cunho opinativo e crítico dos profissionais, nos debruçamos sobre este último, pois é necessário questionar e entender quais as razões que levam alguns jornalistas a adotarem um posicionamento e escrita elitista sobre alguns produtos culturais.

De acordo com Daniel Piza (2007) o que falta nos profissionais dessa área é inteligência. Segundo o autor, é necessário saber trabalhar com cada elemento cultural e se desafiar a construir a partir desse produto um conteúdo leve e satisfatório que atenda a necessidade de seu público-alvo. Para o autor:

Jornalismo é dosagem. Temas ditos eruditos podem ser tratados com leveza, sem populismo; e temas ditos de entretenimento podem ser tratados com sutileza, sem elitismo. Suplementos semanais podem ganhar vibração jornalística, mantendo a densidade crítica; cadernos diários, o inverso. Não há propriamente um método. Ou melhor, como dizia o poeta T.S. Eliot, o melhor método é ser inteligente (PIZA, 2007, p. 58).

Saber se posicionar e desenvolver uma crítica construtiva sobre determinado produto, é algo que requer do jornalista primeiramente responsabilidade com o assunto abordado, em segundo ponto é essencial que o jornalista tenha maturidade suficiente para saber “delimitar uma linha tênue entre opiniões fundamentadas e julgamentos pessoais” (Assis, 2008). Podemos assim dizer que entra um terceiro ponto crucial, onde este envolve a necessidade de uma avaliação sábia da arte e do artista em análise. Segundo Silva e Conceição (2007) a partir de Ribeiro (2000) a busca pelos aspectos intrínsecos deve ser o objetivo de quem trabalha com a crítica nos jornais, pois:

[...] criticar não é apenas decifrar uma criação inconsciente, a do artista. Criticar não é aplicar mecanicamente um critério já pronto a uma obra ou ação. É entrar na crise. É propor critérios que antes não existiam. É inventar o novo. E talvez aí esteja o forte e profundo sentido ético da arte: não mais ela exprimir uma moral pronta e prévia, a da religião, a de um mundo que transcenda o nosso, mas de apontar um modo de agir aberto à experiência e à novidade. (RIBEIRO, 2000 apud SILVA; CONCEIÇÃO, p. 32).

Não é um erro afirmar que caso os jornalistas não se especializem ainda mais em sua área de atuação irão continuar a desenvolver um trabalho de “fã-clubismo de textos” (VALE, 2007 apud Assis, 2008). Ou seja, uma produção voltada apenas para o que eles categorizam como uma boa e representativa cultura e isso ao certo, em um determinado momento mostrará que “por não ter bagagem necessária para debater os temas por eles abordados, certamente irá se render à bajulação” (Assis, 2008).

Nesse atual cenário da globalização, onde as variadas ferramentas de informação disponibilizam o acesso a todo tipo de conteúdo, dando liberdade para os indivíduos obterem conhecimento, é importante que os jornalistas da cultura busquem essa especialização a qual citamos e se for necessário, até mesmo buscar construir um conhecimento somatório em outras áreas dentro do campo jornalístico, pois segundo Piza “(...) o bom jornalista deve ter boa formação cultural, conhecendo bem não só o setor que cobre, mas também outros setores – quanto mais, melhor” (2007, p.78).

Se o jornalista está munido de um bom conhecimento e sabe usá-lo de forma a atrair e instigar o debate, ao certo, em pouco tempo, esse profissional irá fidelizar um público leitor e a partir desses leitores fará com que essa editoria ganhe credibilidade no meio e por consequência atrairá mais consumidores de suas publicações.

O fundamental (...) é que saiba ao mesmo tempo convidar e provocar o leitor, notando ainda que essas duas ações não raro se tornam a mesma: o leitor que se sente provocado por uma opinião diferente (no conteúdo ou mesmo na formulação) está também sendo convidado a conhecer um repertório novo, a ganhar informações e reflexões sobre um assunto que tendia a encarar de outra forma (PIZA, 2007, p.68).

Para chegarmos a uma conclusão sobre o preconceito nos cadernos culturais, nos fundamentamos em dizer que tudo depende da qualidade dasinformaçõessobre determinado produto artístico e que mesmo para o profissional que analisa essa arte, ela não lheapresente pontos positivos, Piza (2007, p. 78) afirma que esse crítico“não deve fazer ataques pessoais”,pois é arte em si que ele “deve criticar e não o artista”, correndo o risco de “sucumbir ao vedetismo, buscando efeitos para impressionar o leitor. Infelizmente no Brasil esta tradição é comum. Não é exclusiva da crítica (...)”.

Em meio a todos esses desafios, sabemos que os mais afetados com as duras críticas são os próprios artistas, muitos com um passado marcado pela desigualdade social, pela pobreza epelas privações, e é necessário que o jornalista tenha mais sensibilidade e saber que o “meio artístico também sente a carência do olhar crítico; mesmo que num primeiro momento os ataques magoem, se eles forem consistentes – e não caírem na ofensa pessoal, o que infelizmente ainda costuma ocorrer na crítica brasileira – serão certamente ouvidos. A questão da crítica, como se vê, ainda é marcada por controvérsias dispensáveis (PIZA, 2007, p. 70).

Considerações finais

Assim como o conceito de cultura, espera-se que os cadernos de jornalismo cultural espelhem a diversidade existente na cultura brasileira. A música, a dança, o teatro, entre outras manifestações, que colorem a nossa gama de produções culturais. Todavia, este texto mostra que, ao se apurar o olhar sobre essa especialidade do campo jornalístico, ver-se que ela está dedicada a discutir e divulgar, na maioria das vezes, aquilo que pé considerado de elite. Dessa forma, mostra-se um jornalismo que reflete uma sociedade também elitista, distante do que acontece em seus rincões, sem suas dobras, no terreno do quase invisível.

Referências

ASSIS, Francisco de. Jornalismo Cultural Brasileiro: aspectos e tendências. In Re. Estud. Comum. Curitiba, v. 9, 2008.

ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu Não Sou Cachorro, Não: Música Popular Cafona e Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2002.

PIZA, Daniel. Jornalismo Cultural. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2007.

SOUZA, Arão de Azevedo. Debates sobre cultura, cultura popular, cultura erudita e cultura de massa. XII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste. Campina Grande – 2010.

RELATO DE PESQUISA: SUJEITOS DISSIDENTES DAS HETERONORMAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NOS JORNAIS O RIO BRANCO E A GAZETA DO ACRE/A GAZETA (1980-1989)

Samyr Alexssander Farias Leite59

RESUMO

O presente relato apresenta dados e análises preliminares de pesquisa documental realizada junto aos jornais O Rio Branco e A Gazeta do Acre/ A Gazeta no recorte temporal de 1980 -1989, com objetivo de compreender e analisar representações sociais constituídas pelas narrativas jornalísticas para os sujeitos dissidentes das heteronormas (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros) no âmbito da cidade de Rio Branco (AC). A pesquisa estabelece diálogo para construção de suas análises com as teorias de Roger Chartier (1988), Patrick Charaudeau (2015), Judith Butler (2002; 2015), Michel Foucault (1984; 1988), Zygmunt Bauman (2005) e outros comentadores e críticos das temáticas da representação, discursos de mídias, fazer jornalístico, gênero, sexualidade e identidade. O trabalho terá conclusões apresentadas em dissertação do Programa de Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade da Universidade Federal do Acre.

Palavras-Chaves: Representação; Gênero; Jornais; O Rio Branco; A Gazeta do Acre/A Gazeta.

ABSTRACT

The present report presents preliminary data and analyzes of documentary research carried out in the newspapers O Rio Branco and A Gazeta do Acre / A Gazeta in the time cut of 1980-1989, with the objective of understanding and analyzing social representations constituted by journalistic narratives for dissident subjects Of heteronorms (lesbian, gay, bisexual, transvestite and transgender) within the city of Rio Branco (AC). The research establishes a dialogue to construct its analyzes with the theories of Roger Chartier (1988), Patrick Charaudeau (2015), Judith Butler (2002, 2015), Michel Foucault (1984, 1988), Zygmunt Bauman (2005) and other commentators and Critics of representation themes, media discourses, journalism, gender, sexuality and identity. The paper will have conclusions presented in a dissertation of the Master's Program in Letters: Language and Identity of the Federal University of Acre.

Keywords: Representation; Gender; Newspapers; O Rio Branco; A Gazeta do Acre/A Gazeta.

As mídias exercem influência destacada no espaço público e operam com seus discursos formulações de representações sociais e identidades para os sujeitos (CHARAUDEAU, 2015). As representações, conforme postulações de Roger Chartier (1988), apontam para um conjunto de valores morais e auxiliam na formulação de regulações sociais, sendo “sempre determinadas pelos interesses de grupos que as forjam” (CHARTIER, 1988, p. 17).

59 Graduado em História Licenciatura pela Universidade Federal do Acre; Mestrando em Letras: Linguagens e identidades – UFAC.

Assim, as percepções da realidade empírica constituídas pelas representações não são neutras e estão no centro de competições e concorrências de grupos que desejam impor concepções de mundo, domínios e valores (CHARTIER, 1988). As mídias como agentes ativos na formulação de representações sociais oferecem amplo material para pesquisa e estudo das disputas culturais e políticas que marcam e organizam as sociedades, considerando-se que suas produções simbólicas (textos e imagens) estão atravessadas por diversificadas intencionalidades (das instâncias de enunciação e recepção) e não possuem sentido intrínseco e total (CHARAUDEAU, 2015).

Nesse sentido a pesquisa empreendida junto aos jornais acreanos O Rio Branco60 e A Gazeta do Acre/A Gazeta61 busca compreender como as percepções de gênero e sexualidade dos sujeitos informadores operavam na constituição de representações sociais para os sujeitos dissidentes das heteronormas (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros) no recorte temporal 1980-1989. Nesse relato de pesquisa apresento dados preliminares de um estudo realizado como estudante e pesquisador do Mestrado em Letras da Universidade Federal do Acre (UFAC), ressaltando que o texto de dissertação encontra-se ainda em fase de escrita e as conclusões do estudo em elaboração.

As análises dos dados coletados em pesquisa documental62 dialogaram com concepções teóricas de Patrick Charaudeau (2015), Roger Chartier (1988), Judith Butler (2015; 2002), Michel Foucault (1984; 1988; 2008) e Zygmunt Bauman (2005), considerando que se objetivava abordar questões referentes aos discursos de mídia, representação, fazer jornalístico, gênero, sexualidade e identidade. Além desses teóricos, outros críticos e comentadores das temáticas foram estudados, como Danilo Agrimani Sobrinho (1995), Rosa Nívea Pedroso (2001), Juarez Bahia (2009), Luiz

60 Jornal O Rio Branco foi fundado em 20.04.1969 pelo jornalista e a época superintendente dos Diários Associados na Amazônia Epaminondas Correia Barahuna, conforme matéria veiculada em 20.04.1987 em O Rio Branco, edição nº 3103. Maria Iracilda C. G. Bonifácio em dissertação de mestrado intitulada O Discurso nas redes do poder: As vozes editoriais dos jornais “O Rio Branco” e “Varadouro” (1977- 1981) corrobora esta informação (2006, p. 32).

61 Jornal A Gazeta surge em 1985 da compra pelos jornalistas Silvio Martinello e Elson Martins do matutino A Gazeta do Acre que circulava na cidade de Rio Branco desde 1978. Matéria veiculada no site do jornal A Gazeta em 05.10.2015 intitulada “Trinta anos contando a história do Acre” apresenta maiores informações. Disponível no endereço eletrônico: historia-do-acre/. Acessado em jan. 2017.

62 Os dados foram coletados em acervo do Museu Universitário da UFAC e nos arquivos privados dos jornais A Gazeta do Acre/A Gazeta e O Rio Branco, entre os meses de novembro de 2016 e fevereiro de 2017.

Amaral (1978), Gayle Rubin (1984), Larissa Pelúcio (2009), Don Kulick (2008), entre outros.

O uso da categoria sujeitos dissidentes das heteronormas parte da base teórica para gênero e sexualidade que orienta a construção de análise da pesquisa, sendo essa de perspectiva queer e ancorada nas formulações de Judith Butler e Michel Foucault. Butler (2015) formula percepção do gênero enquanto norma cultural e afasta essa categoria de naturalizações e essencialismos metafísicos que objetivavam torná-lo categoria intratável e mimese do sexo anatômico.

Para essa teórica, o gênero não seria uma causa do sexo, mas o sexo um efeito da constituição dos corpos com gênero, sendo o gênero um constructo discursivo “pelo qual a ‘natureza sexuada’ ou ‘sexo natural’ é produzido e estabelecido como ‘pré- discursivo’, anterior à cultura, uma superfície neutra sobre a qual age a cultura” (BUTLER, 2015, p. 27). A perspectiva teórica queer é incisivamente influenciada pelas considerações pós-estruturalistas francesas, sobretudo, as de Michel Foucault no que diz respeito às questões sobre a sexualidade.

Foucault (1988) formula a concepção de dispositivo de sexualidade para demonstrar como relações de poder e regulações políticas sustentam a noção de naturalidade da categorização em sexualidades das práticas afetivas e sexuais dos sujeitos visando à disciplina dos corpos. Na perspectiva desse teórico, as relações de poder são exercidas a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis (FOUCAULT, 1988). Nesse sentido, interessa o questionamento de Foucault quanto à naturalidade da sexualidade e sua percepção de que essa categoria emerge de uma incisiva vontade de saber para “racionalizar” o sexo, sobretudo a partir do século XVII, e que se traduziu em uma série de classificações, categorizações, táticas de controle e disciplina com diversas finalidades.

Assim, os sujeitos identificados sob as marcas de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros efetuam uma dissidência das normas políticas que estruturam uma matriz cultural para inteligibilidade dos gêneros e da sexualidade (BUTLER, 2015; FOUCAULT, 1988). Eles não alinham suas performances de gênero no sentido sexo – gênero – desejo (heterossexual), mas desregulam essa coerência por expressar uma identificação de gênero diversa ao sexo anatômico e/ou praticar afetividade-sexualidade fora do estabelecido pelo regime da heterossexualidade “naturalmente” presumida.

Pela perspectiva de dissidência das normas não se consideram os regimes de verdade centrados no binarismo hétero – homo, mas no normal – anormal, sendo a luta

política dos sujeitos alinhados a concepção queer pela desarticulação dos regimes de normalização e a proliferação da diferença (MISKOLCI, 2016). Atua-se nessa direção por se considerar que a defesa de categorias identitárias que tomam a sexualidade como natural não opera na desarticulação efetiva das normas e das convenções sociais que patrocinam injustiças e violências contras aqueles considerados desajustados.

Ao longo da pesquisa nos jornais, percebeu-se que as identificações utilizadas pelos sujeitos informadores para os sujeitos dissidentes das heteronormas (gay, lésbicas, bonecas, bichas, travestis, sapatão, rala coco, viado, baitola, entre outros) remetiam de forma incisiva ao estigma e abjeção social. No recorte temporal pesquisado não se percebeu na cidade de Rio Branco (AC) uma organização social e política dos sujeitos dissidentes que fosse capaz de deslocar os referentes usuais nos discursos de mídia dos locais de desprestígio social, sendo a significação desses termos unilaterais e carregados de sentidos articulados pelos jornalistas.

Os jornais O Rio Branco e A Gazeta do Acre/A Gazeta foram escolhidos como fontes documentais da pesquisa por estarem em circulação desde finais dos anos 1970 e terem edições diárias no recorte temporal estabelecido, podendo ofertar maior quantidade de dados para coleta.

O recorte temporal 1980-1989 foi selecionado considerando-se que a década em questão é atravessada por intensas questões sociais na cidade de Rio Branco, ocasionadas principalmente pelo acelerado crescimento demográfico e espacial da capital do Acre produzido por um incisivo êxodo rural63, narrado do ponto de vista de discursos autorizados a regular e ordenar o espaço urbano como desordenado.

Pesquisadores64 destacam as cidades como locais de efervescência social, cultural, política e econômica onde os sujeitos dissidentes das heteronormas podem encontrar possibilidades para constituir relacionamentos e experiências existenciais específicas, por esse viés o crescimento de Rio Branco poderia ter significado a abertura

63 Três pesquisas que estabelecem como objeto de estudo a cidade de Rio Branco (AC) e seu “crescimento” e “desenvolvimento” apresentam interessantes pontos de vista sobre o crescimento desordenado da cidade no período entre 1970-1990 relacionada a questões de migrações ocasionadas pelo declínio acentuado do extrativismo vegetal exercido nos seringais e mudança do “eixo” de desenvolvimento econômico para a agropecuária e atividades madeireiras, com a venda de inúmeros seringais a grupos empresariais do centro-sul e expulsão de seus habitantes, com a maioria buscando local para viver nas cidades acreanas, e as referencio como suporte: “A Reinvenção e Representação do seringueiro na cidade de Rio Branco (1971-1996)” (2006) de Airton Chaves da Rocha; “Rio Branco-AC, uma cidade de fronteira: O processo de urbanização e o mercado de trabalho, a partir dos planos governamentais dos militares aos dias atuais” (2000), de Maria de Jesus Morais; “A evolução Urbana de Rio Branco (AC): De seringal a capital” (2010), de Ary Pinheiro Leite.

64 Kulick (2008); Pelúcio (2009); Duque (2009); Silva (1993).

de visibilidade e dizibilidades para os sujeitos identificados como gays, lésbicas, travestis e outros, despertado o interesse de pesquisa.

Foi coletado um total de 225 narrativas nos jornais65. Desse número,

consideradas as diferenças de estilo e de gênero textual nos periódicos, 170 podem ser classificadas como notícias (75,55%), assim consideradas narrativas que notificam um acontecimento pontual e sem desdobramentos posteriores, conforme delimitado por Juarez Bahia (2009), 13 reportagens (5,77%) sendo textos mais elaborados, apresentando maior número de situações e personagens, com trabalho de pesquisa mais detalhado do jornalista, 13 artigos de opinião (5,77%) e 02 Artigos de especialistas (0,88%), que produziam textos para informar de forma genérica sobre suas pesquisas ou comentar sobre produções de terceiros.

Ademais, foram catalogadas 02 entrevistas (0,88%), 11 textos de colunistas (4,88%), 02 cartas de leitores (0,88%), coletadas na coluna “Balcão de reclamações” do A Gazeta do Acre/A Gazeta, e 12 editorais (5,33%), que são pequenas notas emitidas nos espaços dos jornais destinados a dimensão opinativa mais explícita do veículo (BAHIA, 2009).

Do número total de textos coletados 102 (45,33%) foram localizados nas páginas policiais, narrativas cujo estilo de construção da notícia era destacadamente sensacionalista. O Rio Branco e A Gazeta do Acre/A Gazeta não poderiam ser classificados como jornais inteiramente sensacionalistas no recorte temporal analisado, consideradas as características desse gênero pontuadas por Danilo Agrimani Sobrinho (1995) e Rosa Nívea Pedroso (2001). Para esses autores, de forma geral, o gênero sensacionalista se caracterizará pelo exagero, enfoque excessivo no insólito, subtração de elementos importantes pelo acréscimo ou invenção de palavras ou fatos e uso incisivo de linguagem clichê.

Os jornais fontes podem ser referenciados como uma mescla de veículos informativos “comuns” (com seus métodos de tratamento visando à objetividade, distanciamento e a perspectiva de “neutralidade”) e sensacionalistas, sendo que

65 O material coletado não se refere somente a acontecimentos onde as pessoas dissidentes das normativas heterossexuais para o gênero e sexualidade eram narradas como “protagonistas” das notícias. Pois, ao longo da pesquisa, sentiu-se necessidade de registrar também a existência de narrativas que se referiam a essas pessoas como vinculadas à marginalidade juvenil, prostituição de menores, ocupação do espaço público. A partir de 1985, as narrativas abordavam o aparecimento e o pânico da AIDS no Brasil e no Acre, com enfoque nos “grupos de risco” formados pelos homossexuais masculinos. Do quantitativo coletado, se procederá o recorte qualitativo para priorizar como fontes de análise as que considero mais significativas visando os objetivos da pesquisa.

considerada as observações de Agrimani Sobrinho (1995) sobre o uso recorrente de palavrões se poderia ressaltar que os matutinos estudados não faziam uso.

Em toda a pesquisa, não encontrei o emprego desses termos, mas em contraparte foi percebido pelos jornais um emprego recorrente do coloquial e tom jocoso-anedótico para construir suas narrativas sensacionalistas, sobretudo nas que se referiam aos acontecimentos envolvendo pessoas dissidentes das heteronormas, sendo que o maior número de produções sobre esses sujeitos foi encontrado nas colunas policiais.

O tratamento sensacionalista dos acontecimentos fomentava a produção de narrativas que ressaltavam visões estereotipadas e com tendência a homogeneizar os indivíduos numa representação em grupo ou comunidade referenciada nos jornais sobre a definição de “mundo gay acreano” (ou outros referentes como “rodas gays” e “fauna do mundo gay”), categoria utilizada em 32 produções (14,22%). Apresento algumas narrativas que empregavam essas referências em suas construções:

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IMAGEM 01 (Esquerda): Notícia “Boneca foi recolhida por afanar som”, publicada em O Rio Branco, de 06.05.1981, edição 1209, referência a expressão “conhecido nas rodas gays”; IMAGEM 02 (Direita): Notícia “Mundo gay Acreano unido em torno do Juventus”, publicada em O Rio Branco, de 27.09.1981, edição 1421.

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IMAGEM 03 (Esquerda): Notícia “Picu sentou taco no gay”, publicada em O Rio Branco, de 25.01.1984, edição 2167, referencia a expressão “bastante conhecido no mundo gay acreano”. IMAGEM 04 (Direita): Notícia “Gay tem recaídas e ataca menores com violência”, publicada em O Rio Branco, de 19.09.1986, edição 2932, referencia a expressão “bicha assumida e muito conhecida no mundo gay acreano”.

Essa percepção homogeneizada dos sujeitos não permitia aos jornalistas demarcar diferenças identitárias nesse grupo, considerado o contexto cultural, social e histórico de produção das representações presentes nas narrativas jornalísticas não se demarcavam diferenças entre homens gays e travestis, sendo que numa mesma narrativa se encontraria gay como sinônimo de travesti ou travesti como intensidade da homossexualidade do sujeito. Incisivamente, os gays poderiam ser travestis e as travestis eram sem distinções homens gays e em um mesmo texto se empregavam os termos “homossexual”, “gay”, “travesti”, “boneca”, a depender do tratamento do acontecimento pelo responsável em produzir a notícia.

Rosa Nívea Pedroso (2001) ressalta que as identidades de homem e mulher são as recorrentes na estruturação das narrativas jornalísticas, nas condições de sujeitos dos

discursos e “pólos semânticos dominantes” (PEDROSO, 2001, p. 71). Entretanto, essas identidades desdobram-se em outros termos em função “do caráter material que possuem” e que “os situam em modos diferentes de representação e reconhecimento social” (PEDROSO, 2001, p. 73).

Nos processos de desdobramento das identidades de homem e mulher Pedroso (2001) destaca nos discursos jornalísticos sensacionalistas o uso do que classifica de identidades paradoxais para significar socialmente os indivíduos que não correspondem ao normatizado para as expressões de gênero e sexualidade.

O “mundo gay acreano” era habitado por duas identidades paradoxais base: o homossexual (de forma mais destacada) e a sapatão. A depender das intenções pretendidas pelo sujeito informador esses termos poderiam ser substituídos ou empregados em paralelo com outros como “boneca deslumbrada”, “bicha”, “bichonilda”, “baitola”, “lésbicas”, “bico largo”, “rala coco”, conforme alguns dos exemplos coletados:

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IMAGEM 05 (Direita): Notícia “Sapatão quer matar ex-caso sem ter amor”, publicada em O Rio Branco, de 16.08.1986, edição 2904, uso do termo “sapatão”. IMAGEM 06 (Esquerda): Notícia “Paquera de boneca faz machão perder a cabeça”, publicada em A Gazeta do Acre, de 28.06.1983, edição 1298, uso do termo “boneca” e “gays”.

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IMAGEM 07 (Esquerda): Notícia “Bicha rural cura porre no 3º DP”, publicada em A Gazeta do Acre, de 10.05.1988, edição 727, uso do termo “bicha”. IMAGEM 08 (Direita): Artigo de opinião “Baitola e sapatão unido, jamais será vencido”, de autoria de Estevão Bimbi, publicado em A Gazeta, de 29.04.1989, edição 1018, uso dos termos “baitola” e “sapatão”.

Os sujeitos dissidentes do gênero feminino estavam menos presentes nos jornais, em um universo de 225 narrativas encontradas somente 19 (8,44%) referiam-se as mulheres lésbicas. Pode-se ressaltar a partir desse dado a percepção de Daniel Borillo (2015) sobre a condição social das mulheres lésbicas, sendo atravessadas por um duplo desdém relacionado ao fato de serem do gênero feminino e homossexuais (sexualidade), estando em menor visibilidade e mais silenciadas. Como pontua ainda Borrillo (2015), a lésbica é na esfera pública uma “personagem invisível, discreta, simples vítima de um sentimento necessariamente passageiro e suscetível de reparação pela intervenção salutar de um homem” (2015, p. 29).

Nesse viés, quando se tratava de representar os sujeitos dissidentes das heteronormas nos jornais pesquisados as categorias de homem e mulher eram substituídas e deslocadas e passavam a dar lugar a significantes que remetiam ao suposto desajuste e as características anormais e infratoras dos sujeitos: “Baitola: o

super macho”66; “Morte de homossexual tem características de crime”67; “Gay é estuprado com cabo de vassoura por seu amor”68; “Gay promete defuntar amiguinho engraçado”69; “Meretriz espanca lésbica que lhe passou a cantada”70; “Sapatões lutam no forró por ciúme demais”71; “Lésbica assassinou companheira”72; “Suecas homossexuais exigem inseminação”73; “Sapatão vira fera”74

Os significantes de homem e mulher somente poderiam representar aqueles sujeitos que não apresentassem fraturas na inteligibilidade de seus gêneros e corpos, sendo que os “outros” com características de falhas serão representados pelas identificações paradoxais produzidas pelos discursos científicos e jurídicos (homossexuais, sodomitas, pederastas, lésbicas) ou aquelas empregadas no cotidiano (baitola, boneca, viado, bixa, gay, sapatão, bico largo), remetendo-se aos estigmas do delito, crime, patologia, deboche e zombaria.

Os jornais pesquisados faziam uso recorrente de identidades paradoxais com forte teor estigmatizador para significar os sujeitos dissidentes em acontecimentos diversos, quase sempre numa conotação pejorativa refletida na descrição e representação de seus corpos, contribuindo com seu poder de influência no espaço público para acentuação de uma Homofobia geral. Homofobia geral compreendida como uma ampliação da noção de homofobia cognitiva (uma manifestação individual de hostilidade) tal qual postulado por Borillo:

Essa forma de homofobia é definida como a “descriminação contra as pessoas que mostram, ou as quais são atribuídas, determinadas qualidades (ou defeitos) imputadas ao outro gênero”. Assim, nas sociedades profundamente marcadas pela dominação masculina, a homofobia organiza uma espécie de “vigilância de gênero”, porque a virilidade deve estruturar-se em função de dois aspectos: negação do feminino e rejeição da homossexualidade. (BORILLO, 2015, p. 26).

Ressalta-se que no recorte temporal pesquisado não se empregava o termo homofobia para significar os preconceitos e abjeções dirigidas contras os sujeitos dissidentes das heteronormas nos veículos de mídia estudados75. Nesse sentido, a

66 Jornal A Gazeta, 26.08.1989, Edição nº 1117;

67 Jornal A Gazeta, 04.10.1989, Edição nº 1149;

68 Jornal A Gazeta, 30.04.1989, Edição nº 1019;

69 Jornal O Rio Branco, 13.02.1987, Edição nº 3052;

70 Jornal A Gazeta, 15.06.1989, Edição nº 1036;

71 Jornal A Gazeta, 12.11.1989, Edição nº 1204;

72 Jornal O Rio Branco, 27.09.1981, Edição nº 1421; 73 Jornal O Rio Branco, 13.08.1983, Edição nº 2037; 74 Jornal O Rio Branco, 24.10.1986, Edição nº 2962.

75 O conceito de homofobia foi cunhado em 1971 nos Estados Unidos e desde então passa por vários questionamentos e ressignificações, conforme aponta Borillo (2015). Entretanto, a dispersão desse

percepção de que as representações dos jornais ampliavam socialmente uma homofobia geral, deve-se a perspectiva de Borillo (2015) de que essa manifestação de preconceito remete-se a uma vigilância de gênero que tem como um de seus traços característicos marcantes a rejeição da homossexualidade e outras expressões que fossem contrárias às percepções hegemônicas para os gêneros.

Em suma, esses são alguns dos dados preliminares de pesquisa em desenvolvimento e que serão devidamente ampliadas quando da conclusão das análises e apresentação pública de dissertação no Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade (UFAC).

Referencias Bibliográficas

AMARAL, Luís. Técnica de jornal e periódico. 4 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.

ANGRIMANI SOBRINHO, Danilo. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa. São Paulo: Summus, 1995.

BAHIA, Benedito Juarez. História, jornal e técnica: as técnicas do jornalismo, volume

2. 5. Ed. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2005.

BONIFÁCIO, Maria Iracilda Gomes Cavalcante. O discurso nas redes do poder: As vozes sociais nos editorais dos jornais “O Rio Branco” e “Varadouro” (1977- 1981). 2006. 283 f. Dissertação (Mestrado em Letras: Linguagem e identidades) – Universidade Federal do Acre. Rio Branco, 2006. Disponível em

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