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Ignacy Sachs                                                                                                            

 

Os dois pilares do desenvolvimento: segurança alimentar e energética

Por razões óbvias, todas as estratégias de desenvolvimento deveriam começar por se preocupar com a segurança alimentar: o acesso diário de toda a população aos gêneros alimentícios capazes de fornecer as calorias, as proteínas (animais e vegetais) e os demais componentes do regime alimentar necessários para que a população desfrute de boa saúde e condições para o exercício regular de suas atividades.

Sabemos, no entanto, que este não é o caso e que a humanidade enfrenta dois males: por um lado as enfermidades que resultam de consumo excessivo e mal equilibrado, por outro, a fome que atinge ainda cerca de um bilhão de pessoas, em que pesem os progressos científicos e técnicos da nossa era. Os passageiros da nave espacial Terra estão divididos em grupos distintos: uma minoria de privilegiados vive nos camarotes de luxo com vista para o mar, enquanto que outros, bem mais numerosos, se esforçam por sobreviver nos porões. Os primeiros se locupletando com iguarias trazidas dos quatro cantos do mundo, os segundos, deitando para dormir de barriga vazia.

Este escândalo deve acabar. Yes we can, como diz o Presidente Barack Obama, dos Estados Unidos. Sim, podemos assegurar um padrão de alimentação sadio, variado e saboroso a todos os habitantes do nosso planeta, hoje mais de seis bilhões, nove bilhões nos meados deste século. As Cassandras que indulgem num malthusianismo de mau agouro estão equivocadas, o que não significa tampouco que devamos pecar por excesso de otimismo epistemológico e considerar por ganha de antemão a batalha da erradicação da fome no mundo.

Temos condições para ganhar esta batalha, mas ao preço de um imenso esforço voltado para dois temas.

•              Por um lado, o aggiornamento das reformas agrárias, visando proporcionar o acesso à terra aos que a cultivam – agenda essa que está ainda longe de ser esgotada, porém não está sendo discutida e posta em prática com a força que merece; a contra-reforma neoliberal passou por aí e a FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations) não conseguiu por enquanto revitalizar o debate sobre este tema, reatando assim com o destacado papel por ela desempenhado no passado.

•              Por outro lado, um ambicioso programa de pesquisas suscetíveis de levar a novos patamares a produtividade agrícola. Lembrando que coexistem hoje no mundo lavouras que mal rendem uma tonelada de grãos por hectare, outras que produzem de quatro a cinco t/ha por terem se beneficiado da revolução verde e outras ainda, na ponta do progresso técnico, alcançando dez e mais t/ha. Esta é uma observação que milita a favor de um otimismo prudente, na medida em que dispomos ainda de um considerável espaço para progredir mediante a disseminação pelo mundo afora de tecnologias já conhecidas e comprovadas. A nossa situação seria bem mais difícil se todos os agricultores do mundo já tivessem alcançado o nível de produtividade dos mais adiantados.

As revoluções verde e azul

A primeira fase da revolução verde beneficiou uma minoria dos agricultores no mundo que tinham acesso ao capital para adquirir o maquinário, as sementes e os adubos necessários para um salto de produtividade e acessoriamente, dispunham de água para irrigar os seus campos. Ela deixou fora milhões de pequenos cultivadores.

Por isso, o conhecido agrônomo indiano, M.S. Swaminathan, prefere falar da “revolução sempre verde”, voltada às possibilidades e aos interesses dos pequenos cultivadores. Neste momento, estamos no limiar de uma terceira onda da revolução verde, propondo, a exemplo do que faziam certas populações indígenas na Amazônia, o uso do carvão vegetal (biochar) como catalizador dos processos bióticos no solo de hortas familiares de pouca extensão (algumas dezenas de metros quadrados), porém altamente produtivas. Estas super hortas podem ser criadas nos interstícios dos espaços urbanos, incentivando a produção de hortaliças para autoconsumo por parte dos moradores de favelas e bairros populares.

Um tema candente é o dos limites da pecuária extensiva que, em regiões como a Amazônia, contribuiu ao desmatamento excessivo, espalhando dezenas de milhões de rezes em pastos extensivos (e rapidamente degradados) à razão de uma cabeça de gado ou menos por hectare. Devemos com a maior urgência aumentar a lotação por hectare, liberando milhões de hectares para uma agro-silvicultura adaptada aos biomas amazônicos.

Convém lembrar por fim que a revolução verde e a revolução azul devem andar de mãos dadas. A importância da revolução azul vem do fato de que ela amplia consideravelmente os espaços disponíveis para a produção de bens necessários para garantir a segurança alimentar a uma população crescente.

Até um passado recente, a produção de peixes repousava num processo similar ao da caça de animais terrestres. Felizmente, a piscicultura nos litorais marítimos e nas águas territoriais (rios, lagos naturais e de represa) está progredindo rapidamente. Caminhamos assim da caça e coleta para a criação de espécies animais em meio aquático.

Os progressos recentes da piscicultura, sobretudo na China, abrem o campo para a substituição gradual do consumo de carnes produzidas pela pecuária, com resultados positivos no que diz respeito ao meio ambiente, tanto pela diminuição das exalações de metano por parte do gado, como pela redução da pressão da pecuária sobre as florestas. Isto sem perder de vista a importância de racionalizar a pecuária, aumentando a lotação de animais por hectare de pasto, liberando assim terras para o reflorestamento ou a ampliação das lavouras.

A segurança energética

Parafraseando um conhecido poeta romântico polonês, direi que os homens não se limitam a serem comedores de pão.

A segurança alimentar constitui o alicerce sobre o qual se constroem civilizações complexas, valendo-se do progresso técnico para aumentar a produtividade de trabalho voltada para a produção de um leque cada vez maior de bens e serviços.

Para tanto, as sociedades humanas devem dispor de uma quantidade cada vez maior de energia. A segurança energética é, portanto, o segundo pilar do desenvolvimento. No entanto, não podemos continuar na rota atual, caracterizada por emissões crescentes de gazes de efeito estufa que provocam o aquecimento da atmosfera e trazem no seu bojo a ameaça de mudanças climáticas deletérias. Se estas não forem arrestadas em tempo, corremos inclusive o risco de pôr em perigo a existência da nossa espécie.

Mais uma vez, não se trata de se deixar ir ao catastrofismo. O caminho para continuar o ascenso da humanidade é estreito, porém existe.

Ele passa por uma transformação radical dos nossos paradigmas energéticos.

Para tanto, convém adotar uma postura caracterizada pela sobriedade no uso da energia, fazer o necessário para ir aumentando a eficiência no uso final das energias – esta é uma vertente importante do progresso técnico – e proceder à substituição das energias fósseis, responsáveis pela emissão dos gases de efeito estufa, pelo leque de energias renováveis: a solar, a eólica, a maremotriz, a geotérmica e as bioenergias.

A produção destas últimas não deve avançar ao custo da segurança alimentar. Há, no entanto, fortes razões para acreditar que as duas seguranças – a alimentar e a energética – podem – e portanto devem – andar de mãos dadas. Para tanto, devemos incentivar a produção do etanol celulósico feita a partir dos resíduos da produção alimentar, o biodiesel extraído de plantas oleaginosas que crescem em terras de pouca aptidão para o cultivo de alimentos, o biogás obtido a partir do esterco. Sem esquecer o enorme potencial energético de microalgas e de algas que não requerem um palmo de solos agricultáveis e, por fim, a possibilidade de aproveitar os pastos degradados para plantar para fins energéticos espécies arbóreas de crescimento rápido.

O Brasil afigura-se como um candidato sério para liderar estes processos em escala mundial.

Das cigarras e das formigas

Todas as crianças francesas aprendem esta fábula de La Fontaine, escrita nas vésperas da revolução industrial. Ela exalta a operosidade das formigas e condena a frivolidade das cigarras. É o momento de nos perguntarmos se as cigarras não merecem um tratamento melhor. Em outras palavras, convêm repensar a repartição do tempo da sociedade entre as atividades do homo faber (a formiga) e o homo ludens (a cigarra). As civilizações modernas têm condição para produzir todo o necessário e uma boa dose do supérfluo, mobilizando para esta tarefa algumas horas de trabalho diário dos adultos e liberando uma parcela cada vez maior do tempo da sociedade para a educação, as atividades culturais no sentido lato da palavra, o esporte e o lazer. Uma pitada de dolce farniente faz bem à saúde.

À condição que a repartição do tempo do trabalho e do não trabalho e a repartição dos frutos do trabalho sejam feitas de forma equitativa, reduzindo as abissais diferenças de nível de vida entre as minorias privilegiadas e o bilhão de homens, mulheres e crianças que ainda passam fome.

Em outras palavras, chegou o tempo de erguer sobre os dois pilares do desenvolvimento – a segurança alimentar e a segurança energética – um futuro baseado na partilha equitativa do ter e voltado cada vez mais à construção de uma civilização do ser, como propunha Joseph Louis Lebret. Dito de outra maneira, passando menos tempo vivendo como formigas, abrindo assim o espaço para o tempo das cigarras. Yes, we can.

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