Carneiro, Antônio de Mariz - RACE - Rede Academica de ...
Carneiro, Antônio de Mariz. "A terra das sombras." São Paulo: Folha de São Paulo, 16 de janeiro de 2000.
FSP de 16-01-2000
A terra de sombras
Reprodução
O Mapa de Macau do livro "Descripçam da Fortaleza de
Sofala, e das mais da India com uma Rellaçam das
Religiões todas, q há no mesmo Estado", do cartógrafo
Antonio de Mariz Carneiro, de 1639
Distante 80 km de Hong Kong, do outro lado do estuário
do rio Pearl, fica a antiga cidade de Macau. Ocupada
pelos portugueses na década de 1550, ela foi devolvida
à China em 20 de dezembro de 1999. O território de
Macau consiste hoje de uma minúscula península,
densamente povoada, com pouco mais de 5 km2, bem como
de duas ilhas, Taipa, com 5,5 km2, e Coloano, com 7,7
km2. A população chega a 430 mil pessoas, 97% das
quais são chinesas. Lisboa queria que a transferência
à China acontecesse em 2007, marcando o 450º
aniversário de sua presença na costa sul da China, mas
os chineses prefeririam resolver o caso antes do final
do milênio. Os mandarins britânicos de Whitehall, que
não conseguiram se conformar com a idéia de que a
bandeira portuguesa ficaria desfraldada sobre Macau
depois que a britânica fosse substituída pela chinesa
em Hong Kong e irritados com as acusações de que
teriam se equivocado em sua leitura das intenções
chinesas e "perdido" Hong Kong antes da hora, foram
rápidos em alegar que os portugueses se tinham vendido
aos chineses já há muito. Sir Percy Craddock,
ex-embaixador britânico em Pequim e assessor de
Margaret Thatcher quanto à China na época em que ela
era primeira-ministra, classificou a autoridade
portuguesa sobre Macau de "farsa fantasmagórica". No
entanto, os portugueses de Macau estavam acostumados a
ser esnobados pelos britânicos, que muitas vezes se
esquecem de que chegaram à China como traficantes de
drogas, não como democratas. Os habitantes britânicos
de Hong Kong na década de 1850 chamavam Macau de
"usucapião não autorizado e não reconhecido, mas não
contestado, de uma parcela indefinida do solo chinês".
Ópio e chá
De muitas formas, é claro, estavam certos. Lisboa
esteve sempre muito longe, e os chineses logo ali. No
entanto, Macau foi muito conveniente aos britânicos no
século anterior à sua anexação forçada de Hong Kong.
Antes disso, os chineses negavam aos mercadores
estrangeiros o direito de permanecer durante o ano
inteiro na grande cidade comercial de Guangzhou
(Cantão), e Macau era absolutamente essencial aos
mercadores britânicos, ou a quaisquer outros
comerciantes europeus ou americanos, aliás, que
quisessem manter um entreposto do qual pudessem vender
ópio indiano e adquirir chá chinês. A ambiguidade
legal de Macau satisfazia a todas as partes.
Os portugueses chegaram ao estuário do rio Pearl já em
1513, ainda que Macau não tivesse sido fundada por
eles até 1557. A iniciativa de fundação veio dos
mercadores de Málaca, capturada por Afonso de
Albuquerque, em 1511, o que deu aos portugueses um
ponto forte na passagem essencial entre o mar do sul
da China e a baía de Bengala. Inicialmente, a
prosperidade de Macau dependia de sua localização
estratégica na rota comercial que saía de Goa (Índia)
e chegava ao Japão, passando por Málaca. Igualmente
importante era o acesso a Guangzhou, o grande
entreposto comercial para a seda, porcelana e produtos
de laca do sul da China, localizada a cerca de 130 km
do rio Pearl.
Os chineses viam os portugueses, a um só tempo, como
temíveis e peculiares. "São brancos e pretos",
escreveu um observador chinês. "Os rostos são rosados,
e os cabelos, brancos. Mesmo os mais jovens têm
cabelos que parecem brancos como a neve". Os chineses
ficaram impressionados com os "narizes aduncos e olhos
esverdeados, penetrantes, como os dos gatos", dos
europeus. Os escravos africanos levados pelos
portugueses à China, alegavam os chineses, "eram em
geral semelhantes a seres humanos". Os chineses
acreditavam que os portugueses fossem canibais,
raptassem crianças e se deixassem rapidamente conduzir
à ira e à violência, momentos em que deixavam de ser
humanos e se tornavam animais selvagens. Os chineses
também exibiam saudável respeito pelo poder de fogo e
capacidade de combate dos portugueses e queriam
confiná-los a um lugar remoto onde pudessem ser
observados, vigiados e, se preciso, tomados por
exemplos. As maravilhas e curiosidades tecnológicas
disponíveis em Macau intrigavam especialmente os
chineses. Um observador chinês viu um "aparelho
particularmente obsceno", uma mulher inflável feita de
couro e seda que alguns viajantes portugueses
carregavam com eles para levar para a cama quando
preciso.
Faixa de areia
A hostilidade e suspeita dos chineses em relação aos
ocidentais continuou forte durante o período Ming
(1369-1644) e depois. O jesuíta italiano Matteo Ricci,
que chegou à China em 1582, escreveu ao general da
ordem jesuíta, Claudio Acquaviva, contando que as
pessoas que queriam falar mal de alguém diziam: "Ele
tem o hábito de ir a Macau". Para manter essas
influências sob controle, o magistrado chinês do
distrito ordenou a construção de uma barreira e de uma
guarita na metade da faixa de areia que separa a
península de Macau do continente. Soldados chineses
ficavam de guarda ali para controlar o fluxo de
produtos e pessoas através da fronteira.
Na verdade, Macau vivia sob jurisdição mista,
portuguesa e chinesa, e os portugueses pagavam tributo
ao imperador da China pelo direito de residir na
cidade.
A ligação com Lisboa foi sempre tênue. A distância
entre Portugal e Macau por mar era imensa, uma viagem
de entre 16 mil e 24 mil km, que começava rumo ao sul
e oeste, pelo Atlântico, até o Brasil, e depois rumo
leste até o cabo da Boa Esperança, norte até
Madagascar, atravessando o Oceano Índico até a costa
de Malabar, passando por Goa e Cochin, Calcutá e em
torno da Índia, chegando à costa do Coromandel e
Málaca, e, depois de lá, passando por Java e pela
península malaia até Macau. A cidade vivia do comércio
e era um nódulo crucial da rede comercial ligando o
Japão, o sul da China, o Sudeste Asiático e a Índia.
Da década de 1550 até a de 1640, a cidade prosperou
com as sedas exportadas da China ao Japão e com a
prata trazida do Japão em pagamento. A prata era usada
igualmente para adquirir produtos em Macau,
reexportados para o Sudeste Asiático, Índia e Europa.
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As ameaças a Macau vieram menos dos chineses do que de
outros europeus, especialmente os holandeses
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A prosperidade de Macau dependia, nos primeiros anos
do território, de um comércio interasiático no qual os
portugueses se haviam estabelecido como
intermediários, em parte devido ao seu poder de fogo
superior, mas também devido à decisão política chinesa
de não participar do comércio e exploração marítimos,
a despeito dos sucessos das viagens chinesas ao Oceano
Índico no século precedente. Goa, o coração
administrativo de todas as colônias portuguesas da
África Oriental do Japão, era o extremo ocidental
desse sistema comercial interoceânico. A cada dois ou
três anos, o "navio do Japão" partia de Goa
transportando tecidos de algodão da Índia, vidros,
prata, marfim, veludo e tecido escarlate espanhol,
azeitonas, azeite de oliva e vinho. Em Málaca,
pimenta, cravo e madeiras aromáticas eram embarcados
para venda no Japão e na China. Em Macau, a carraca às
vezes permanecia por até um ano, antes de partir rumo
a Nagasaki com uma carga de seda vermelha e branca,
porcelana, almíscar, açúcar mascavo e branco e outras
mercadorias preciosas. Os japoneses chamavam a esses
navios "kuro-fune", ou "navios negros", um termo
revivido para a frota do comodoro Perry três séculos
depois. A partir de 1571, um comércio próspero, se bem
que clandestino, foi estabelecido entre Manilha e
Macau, financiado pela prata que fluía através do
Pacífico, das minas no Peru e México. A administração
portuguesa de Macau refletia esse comércio sazonal,
oceânico e interasiático. A autoridade executiva cabia
não a um funcionário português residente, mas ao
capitão-mor da carraca destinada ao Japão, e ele só
permanecia em Macau nas escalas a caminho da Índia ou
enquanto estava à espera da monção para prosseguir
viagem rumo ao Japão. O "Grande Navio do Amacon", como
os ingleses o chamavam, era uma enorme embarcação de
mais de 1,6 mil toneladas, a maior do mundo na época.
Apenas o galeão de Manilha, que operava a rota
Filipinas-Acapulco, transpacífico, lhe era comparável.
Retratos de senadores
Para governar a cidade na ausência do capitão-mor, os
cidadãos de Macau formaram um corpo eletivo, o Senado
de Câmara, em 1586. Ele incluía um juiz chefe, um
secretário e um procurador, cujo trabalho era
representar o governo da cidade junto às autoridades
chinesas, que reconheciam seu direito de fazê-lo. O
Senado de Macau assim se tornou a primeira instituição
representativa estabelecida na Ásia, e algumas vezes
removia funcionários portugueses cujo desempenho
desaprovava, além de dirigir as atividades cotidianas
da idade.
O impressionante edifício sede do Leal Senado continua
a dominar a praça central de Macau. As paredes de sua
sala do conselho estão decoradas com os retratos de
senadores que exerceram seus mandatos desde o século
16; recentemente, uniu-se a eles o retrato de Ho Yin,
o rico senador chinês que presidia a Câmara Chinesa de
Comércio em Macau e representava a ligação
extra-oficial entre os chineses da cidade e Pequim nos
anos 60 e 70. Seu filho, Edmund Ho Hau Wah, se tornou
o primeiro executivo chefe de Macau quando da
devolução do território à China.
As ameaças a Macau, ao longo da maior parte da
história da cidade, vieram menos dos chineses, na
verdade, do que de outros europeus, especialmente os
holandeses. Os jesuítas construíram as primeiras
fortificações no Monte, o ponto forte central da
península, e os jesuítas e fortes ajudaram a defender
Macau contra ataques navais dos holandeses em 1622,
quando estes fizeram cerco à cidade com uma frota de
13 navios e 1,3 mil soldados. Um grande canhão montado
na igreja de São Paulo e operado pelo padre Jeronimo
Rho, um jesuíta de origem italiana e matemático,
disparou um tiro que explodiu diretamente no paiol de
munições dos holandeses. Era o dia de São João
Batista, e por isso ele foi escolhido como santo
padroeiro da cidade. Conta-se que os escravos
africanos dos portugueses interpretaram literalmente
demais a referência a São João Batista e celebraram
seu dia decapitando os infelizes prisioneiros
holandeses.
Em 1641, porém, um elo vital na cadeia comercial que
sustentava a prosperidade da cidade foi rompido quando
Málaca foi tomada pelos holandeses. Ainda mais
catastrófica para Macau foi a expulsão dos portugueses
do Japão, em 1639, e o fim do lucrativo comércio
japonês. O senado de Macau enviou uma delegação para
pedir aos japoneses que revertessem sua decisão. Como
declaração final de que estavam falando sério, os
japoneses executaram 61 dos delegados; só os criados
foram poupados para levar a mensagem de volta a Macau.
A reafirmação da soberania portuguesa na revolta
contra o domínio espanhol em 1640 também pôs fim ao
lucrativo comércio entre Macau e Manilha. Na China, os
manchus haviam derrubado a dinastia Ming e estavam
consolidando seu poder. Com a perda das conexões com
as Filipinas e o Japão, os mercadores de Macau já não
dispunham de prata com a qual financiar seu comércio
externo. "Somos prova viva da fábula de Midas, que
morreu de fome em uma mesa coberta de pratos de ouro",
escreveu um mercador de Macau, João Marques Moreira,
em 1644. "Isso nos está acontecendo agora, pois, tendo
visto nossas mesas repletas de ouro, prata, diamantes,
rubis e pérolas, estamos morrendo aos poucos."
Depois de 1640, Macau se voltou à Indochina, Macassar
e Timor, e muitos de seus mercadores se tornaram
representantes de empresários de Cantão que queriam
continuar a negociar com os japoneses usando navios
chineses. De fato, os mercadores de Cantão eram muitas
vezes intermediários ou compradores para comerciantes
chineses ricos, e rapidamente se deram bem nesse
papel, vendendo seus nomes a chineses e europeus para
permitir que negociassem em Macau. A fundação de Hong
Kong, porém, prejudicou Macau tanto quanto a perda de
Málaca e a destruição da presença portuguesa no Japão,
dois séculos antes. Macau deixou de ser necessária
como alojamento dos mercadores que comerciavam com
Cantão. O porto raso e frequentemente obstruído da
cidade não era páreo para os ancoradouros de águas
profundas de Hong Kong, do outro lado do estuário do
rio Pearl. Os mercadores de Macau por isso se voltaram
a empreendimentos menos lícitos, criando um submundo
especializado em drogas, escravidão e prostituição. Da
década de 1850 à de 1870, o notório "tráfico de
coolies" para o Peru e Cuba floresceu em Macau; as
condições sob as quais esses camponeses chineses eram
transportados como trabalhadores servis muitas vezes
se mostravam tão ruins quanto as do tráfico de
escravos africanos, proibido pouco antes.
Consequências políticas não tardaram. O
estabelecimento de Hong Kong inspirou os portugueses a
procurar estatuto semelhante para Macau. Até a década
de 1840, a dupla soberania exercida sobre Macau era
conveniente para chineses e portugueses. Mas o balanço
de poder estava por mudar dramaticamente. Encorajado
pelo exemplo britânico, um agressivo governador
português, João Ferreira do Amaral, decidiu imitá-los.
Impôs tributos aos pescadores chineses, expulsou os
agentes alfandegários da China, suspendeu o pagamento
do tributo anual ao imperador chinês e assumiu o
controle do portão para a cidade, até então sob
domínio chinês. Os chineses reagiram furiosamente. O
governador Amaral, enquanto inspecionava a construção
de um novo portão, foi derrubado de seu cavalo e
assassinado, sua cabeça e mão esquerda decepados e
enviados à China. Quando os chineses enviaram tropas
adicionais para guarnecer seus fortes perto de Macau,
um jovem tenente da cidade, chamado Mesquita, partiu
liderando 36 soldados e os derrotou. Tornou-se
instantaneamente um herói para os cidadãos locais, e
uma estátua em sua homenagem foi colocada na praça em
frente ao Leal Senado, onde foi destruída pelos
estudantes maoístas rebelados em 1966. Mas a avenida
que hoje corta o que no passado era a aldeia chinesa
de Wang Xia continua a portar seu nome, e o governador
Amaral é relembrado (ou pelo menos era até o dia 20 de
dezembro) na avenida que conduz ao velho portão da
cidade. Os chineses devolveram a cabeça e a mão do
governador assassinado aos portugueses em 1850, e seus
restos mortais foram mais tarde despachados para
Lisboa, onde foram enterrados no estranhamente
batizado "Cemitério dos Prazeres". Mas os símbolos
continuam potentes nesse mundo de sombras. A estátua
do governador Amaral na cidade foi removida em 1991 e
enviada a Lisboa por insistência do diretor do
departamento de assuntos de Macau e Hong Kong, em
Pequim. No século 16, os portugueses chamavam Macau de
"Cidade de Deus na China". Mais tarde, acrescentaram a
frase "não há outra mais leal", em reconhecimento,
diz-se, do apoio de Macau à independência portuguesa
da Espanha em 1640, a despeito do fato de que a cidade
estava sob ameaça de tropas espanholas vindas de
Manilha, cidade com a qual desfrutava um lucrativo
comércio. De fato, o título foi dado no começo do
século 19, quando Macau resistiu às tentativas
britânicas de "protegê-la" contra os franceses por
meio do envio de uma força de ocupação no curso das
guerras napoleônicas. Os portugueses tinham por hábito
batizar seus territórios ultramarinos de maneira
grandiloquente, mas esses nomes raramente "pegavam"
com o público. "Macau" é uma versão abastardada de um
nome chinês, que se referia à baía da deusa A-Ma
(A-Ma-Gao). Seu templo, o mais antigo em Macau, está
voltado para o mar no extremo da península. Fica
abrigado contra a encosta rochosa da colina, como é
comum no caso dos templos chineses, para aplacar o
dragão que vive dentro da elevação. A-Ma é um local
sagrado para os pescadores e fica lotado de fiéis a
cada dia, diferentemente das igrejas católicas da
cidade, sempre vazias.
Explosões de fogos
Estive em Macau na época do festival de A-Ma, e
durante todo o dia o templo foi ocupado pelas
explosões ruidosas dos fogos, aos quais os juncos e
sampanas de pesca e transporte respondiam ao rodear a
ponta do promontório, entrando ou saindo do porto
interno de Macau e apontando suas proas em direção ao
templo da deusa para prestar-lhe um ruidoso
cumprimento. Um museu marítimo moderno, construído em
uma área aterrada em frente dos portões do templo para
celebrar as explorações marítimas portuguesas e
chinesas, fechou no dia da festa em honra de uma
presença mais antiga, completamente oculta por trás da
intrincada cerca de bambu e das bandeiras coloridas de
uma ópera chinesa itinerante.
Houve momentos em que Macau com certeza foi "a cidade
de Deus na China", lar de muitos jesuítas zelosos e
futuros santos. Francisco Xavier, nascido na Espanha,
morreu na ilha de Shangchuan, perto de Macau,
esperando um chamado de Pequim que nunca chegou, e a
capela batizada em homenagem a ele, na ilha Coloano,
abriga parte de seu braço, bem como os venerados ossos
de mártires cristãos vietnamitas e japoneses. Por
volta do século 17, dizia-se que Macau tinha mais
conventos e mosteiros do que o Vaticano.
No século 18, essa notável paisagem urbana muitas
vezes lembrava aos marinheiros que a viam de alto-mar
a baía de Nápoles. Parte dessa atmosfera ainda existe,
perto do final da Praia Grande, onde o velho e
grandioso Hotel Boa Vista, cenário de muitas intrigas
ao longo das décadas, continua a ocupar o topo de sua
colina. Para o desagrado de muitos, o hotel tornou-se
o consulado português com a devolução de Macau à
China.
continua
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Analise das transformações sociais e economicas que
vêm ocorrendo na China.
China em obras
Peter Burke
especial para a Folha
Na República Popular da China é tempo de comemorações.
Num dos prédios que margeiam a praça Tiananmen,
números iluminados exibem a contagem regressiva em
dias, horas e segundos, não, como um estrangeiro
talvez esperasse, para o milênio, mas para o momento
em que Macau passará ao domínio chinês. O mês de
outubro de 1999 foi marcado por comemorações do 50º
aniversário da República Popular, uma república
proclamada por Mao Tsé-tung na Tiananmen (Porta da Paz
Celestial) em 1º de outubro de 1949. Em setembro de
1999, um gigantesco retrato de Mao já estava à mostra
na praça, não longe do mausoléu erigido após sua
morte, em 1976, para exibir seu corpo aos peregrinos,
nos moldes do mausoléu de Lênin na Praça Vermelha em
Moscou. Esse outono parece um bom momento para
refletir sobre as mudanças pelas quais passou a China
nos últimos 50 anos. As pessoas mais bem qualificadas
para traçar um tal balanço são obviamente os próprios
chineses, em especial aqueles que presenciaram o
último meio século de história; mas mesmo visitantes
estrangeiros podem ter algo com que contribuir. Por
acaso acabei de regressar de uma visita à China, onde
minha mulher e eu fomos convidados a dar palestras, em
setembro passado, em universidades de três cidades
diversas, Pequim, Nanquim e Xangai. Nunca havíamos
visitado a China e foi fascinante comparar e
contrastar nossas impressões anteriores, baseadas em
livros, filmes e reportagens de jornais,
principalmente reportagens dos acontecimentos da
Revolução Cultural, com uma experiência mais direta da
sociedade chinesa. Complementamos essas impressões com
várias conversas com nossos anfitriões, professores e
estudantes de pós-graduação que nos levaram para
passear e eram mais ou menos fluentes em inglês. Em
Pequim, sobretudo, a escala gigantesca dos monumentos,
da Cidade Proibida à praça Tiananmen, é de
impressionar qualquer um, fazendo os visitantes se
sentirem pequenos e insignificantes (em comparação,
mesmo o monumental centro de Brasília parece ter sido
construído quase numa escala humana). A impressão
causada por esses vastos espaços desaparece ou, quando
menos, dilui-se nas fotografias. É preciso estar de
corpo presente.
Liberdade de expressão
O ano de 1999 parece ter sido uma boa época para
visita. Quase o primeiro comentário que ouvimos, de um
historiador chinês, foi que "podemos dizer tudo agora,
embora não possamos imprimir tudo". Outro historiador
nos contou que estava trabalhando numa história oral
da Revolução Cultural, gravando entrevistas com
participantes, embora estivesse resignado a esperar 20
ou 30 anos antes de publicá-la. Nosso desejo de
aprender mais sobre a Revolução Cultural só rivalizava
com o desejo de alguns dos chineses que encontramos
para nos contar sobre ela. Muita gente sente
necessidade de falar sobre esses acontecimentos,
talvez como um jeito de exorcizá-los ou finalmente
haver-se com eles.
A história da adolescência de Jung Ghang nos anos 60,
que ela publicou na Inglaterra em 1991 sob o título
"Wild Swans" ("Cisnes Selvagens"), é somente uma
história dramática entre muitas. Um professor que
encontramos era pai de um guarda vermelho que, num
belo dia, voltou do colégio e começou a enterrar os
livros estrangeiros do pai no jardim. Um outro havia
sido ele próprio guarda vermelho e descreveu como
certa vez teve de ficar de pé numa mesa enquanto seus
colegas o criticavam por seus deslizes políticos. Um
dos estudantes que nos mostrava Pequim era filho de um
guarda vermelho e nos disse que sua mãe ainda
acreditava em Mao e que, quando visitou seu filho na
universidade, fizera também a peregrinação para ver
Mao em seu mausoléu na praça Tiananmen.
Outras reações eram mais céticas. Falava-se muitas
vezes sobre a terceira mulher de Mao, a atriz Jiang
Ching, e os demais membros da "Turma dos Quatro", como
o grupo foi descrito desde sua prisão em 6 de outubro
de 1976, menos de um mês depois da morte de Mao. Uma
estudante que nos ciceroneava em Nanquim nos disse que
seu nome significava "recordar" e que seus pais
escolheram esse nome porque ela nascera no mesmo dia
que a "Turma dos Quatro" foi presa. Um professor
observou que melhor nome para o grupo teria sido
"Turma dos Cinco", insinuando que o próprio Mao
aprovava o que faziam ou pelo menos permitia que
continuassem a fazê-lo.
Ouvimos muitas críticas à política de Mao a partir de
1950, embora ele ainda seja um herói para os chineses,
por ser o fundador do Estado moderno. A exemplo de
Bolívar, ele é visto como o "libertador". Os sucessos
de 1949 são oficialmente descritos na China como "a
libertação". O período dominado pela "Turma dos
Quatro", por outro lado, é definido como a
"contra-revolução".
Nesse ponto não pude evitar o comentário de que o
termo "contra-revolução" seria mais apropriado para o
período iniciado em 1979, quando Deng Xiaoping abriu a
China ao capitalismo, mas essa foi uma das poucas
ocasiões em que as pessoas preferiram não ouvir meus
comentários a respondê-los. Mesmo agora, parece, os
chineses não podem dizer tudo. Minha impressão da
China pode ser resumida numa série de contrastes, de
paradoxos, de contradições aparentes que mesmo um
visitante estrangeiro pode observar, mas que somente o
estudo de toda uma vida sobre os assuntos chineses
pode tentar explicar com proveito. Meus postos de
observação foram três cidades, especialmente as ruas
pelas quais caminhamos e os campi universitários onde
demos palestras, comemos e dormimos. Uma das primeiras
coisas que notamos sobre as cidades, sobretudo Pequim,
foi o número de carros e bicicletas que trafegam
praticamente por onde bem queiram. Atravessar a rua
era um suplício, sendo necessário a todo instante
saltar do caminho de alguém sobre rodas. A China é
menos disciplinada na prática do que na teoria. De
fato, comecei a ver a tradicional disciplina do
Partido Comunista não tanto como uma expressão de uma
sociedade metódica, mas, antes, como uma tentativa de
impor um mínimo de ordem! Quanto às universidades onde
ficamos, elas haviam sido fundadas no começo do século
por missionários americanos, a fim de ensinar
estudantes cristãos em inglês -universidades que foram
tomadas pelo Estado em 1949. Elas parecem estar a meio
caminho entre campi americanos e jardins chineses, com
pontes e muitas árvores e alguns prédios construídos
no estilo tradicional chinês. Como fosse o início do
ano letivo, bandeiras pendiam entre as árvores.
Pedimos a nossos anfitriões para nos traduzir algumas
das mensagens, e elas se revelaram exortações morais
aos estudantes para que cuidassem de sua saúde, fossem
simpáticos com os colegas e, acima de tudo, queimassem
as pestanas. Se essas mensagens remontavam à tradição
marxista ou confuciana era difícil dizer: elas
pareciam dever algo a ambas. Nos cantos do campus
podiam-se ver inúmeros prédios altos, em geral
malconservados. Esses eram os alojamentos dos
estudantes, cujos quartos eram divididos por seis a
dez pessoas, com seus jeans e camisetas recém-lavados
pendurados das janelas para secar. Como numa utopia
socialista, ou numa faculdade de Cambridge, os
estudantes não cozinhavam para si mesmos, mas
desfrutavam da cozinha universitária (ao contrário de
Cambridge, porém, tinham de levar seus próprios pratos
e tigelas). Tudo parecia muito igualitário até que
perguntamos aos estudantes que conhecíamos sobre suas
famílias. Todos eles provinham da classe média urbana
e nos disseram que isso era normal. Para os estudantes
alcançarem uma boa nota no exame de admissão, é
necessário que paguem uma mensalidade extra -em outras
palavras, uma espécie de cursinho faz parte do
sistema. Os estudantes recebem dinheiro do Estado, mas
os pais complementam-no. Nessa sociedade comunista, os
estudantes e suas famílias, sejam ou não membros do
Partido, são um tipo de elite. As filhas de camponeses
também são vistas na universidade, mas não como
alunas. Elas vêm para trabalhar nas cozinhas, assim
como nas cidades trabalham como garçonetes em
restaurantes ou empregadas em famílias de classe
média. Embora Mao fosse filho de camponeses e
diferisse de Marx ao frisar o papel dos camponeses
-mais que o do proletariado- na revolução comunista e
sua importância na sociedade comunista, parece que a
posição dos camponeses na China não mudou tanto. Uma
viagem de trem de Nanquim a Xangai nos permitiu
entrever os camponeses trabalhando no campo. Para o
olho ocidental, pelo menos, a ausência de maquinário
agrícola era gritante.
Forças modernas
Nas metrópoles, por outro lado, o visitante
impressiona-se vivamente com as forças da modernidade.
Alguns anos atrás, os prédios mais chamativos eram
sedes do partido, mas agora são em geral bancos ou
hotéis (ou mais raramente salas de concerto ou museus,
construídos por vezes com dinheiro estrangeiro).
Caminhar ao longo da amurada do rio, no centro de
Xangai, é como caminhar ao longo do que talvez seja o
Tâmisa londrino em 2010 ou 2020.
De um lado, há os prédios públicos de 1920, vários
deles construídos pelos ingleses. De outro, as torres
e globos e colunatas pós-modernos erigidos nos anos
90, com sua aparência teatral acentuada pelos
holofotes (que se apagam às 10h da noite, para que as
pessoas não se sintam encorajadas a dormir tarde).
Que o elemento capitalista na China não é um fenômeno
puramente superficial ou circunscrito a poucas pessoas
é sugerido pela difusão dos restaurantes McDonald's -o
grande "M" virou um novo ideograma chinês, que
significa a presença de comida ocidental- e sobretudo
pelo rápido crescimento recente das filiais da Bolsa
de Valores, nas quais as pessoas (não particularmente
ricas, a julgar por suas roupas) sentam-se com os
olhos grudados em telas, que exibem os preços das
ações. Ao que parece, é normal para o chinês mediano
das cidades possuir ações e também comprá-las e
vendê-las sem o auxílio de um corretor. O maior
paradoxo de todos na China é aquele de um governo
comunista à frente de uma sociedade cada vez mais
capitalista.
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