Honra-nos a empresa X com consulta acerca do …



SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO: ABUSO DO PODER DE TRIBUTAR EM CIRCUNSTÂNCIAS FATUAIS

Patrícia Andrade Falcão – Mestre em direito Tributário pela PUC-SP, professora de direito tributário da UNIFACS e professora de direito financeiro da UFBA.

Suian Alencar Sobrinho – graduanda de direito da UNIFACS

“ A pessoa jurídica, com personalidade própria, não se confunde com outra, ainda que tenham sócios com participação em ambas.

É descabida a recusa de fornecimento da CND a uma empresa sob o fundamento de que um de seus sócios é integrante de uma outra sociedade devedora do fisco.” ( STJ, Resp 149.690/ES, Rel. Ministro Francisco Peçanha Martins, Segunda Turma, Julgado em 08.02.2000, DJ 20.03.2000 P. 63)

CONSULTA

Honra-nos a empresa X com consulta acerca do procedimento fiscal para cadastro estadual, conforme se descreve a seguir.

A Consulente é pessoa jurídica de direito privado, cuja atividade econômica consiste no comércio varejista de combustíveis e lubrificantes para veículos automotores. Tais operações mercantis, por constituírem fato gerador do ICMS, reclamam, do contribuinte que as realize, inscrição no cadastro estadual competente(CAD-ICMS).

Nesta condição, e a fim de iniciar seu funcionamento, após registrar seus atos constitutivos na junta comercial, dirigiu-se às repartições tributárias para obter o respectivo número de inscrição nos cadastros fiscais.

Em data do presente ano, a Secretaria da Fazenda através de correspondência enviada eletronicamente à contabilidade da Consulente, comunicou o INDEFERIMENTO do pedido de inclusão no cadastro estadual, sob a alegação de que o contribuinte teria débito inscrito na dívida ativa. Convém transcrever:

Prezado Contribuinte, seu requerimento de reativação/reinclusão nº ..., referente à Inscrição Estadual ..., foi indeferido em ... pelo motivo abaixo descrito:

CONTRIBUINTE COM DÉBITO INSCRITO NA DÍVIDA ATIVA.

Maiores informações, compareça à Inspetoria da sua circunscrição fiscal.

Ocorre, entretanto, que a Consulente, nunca poderia possuir qualquer débito para com a Secretaria da Fazenda, uma vez que, sequer, dera início às suas atividades, sendo de plano, totalmente injustificado e contrário à realidade dos fatos o motivo apresentado pela Administração Fazendária para indeferimento da inscrição estadual.

Por esta razão, a Consulente procurou a repartição fazendária e, após solicitar esclarecimentos acerca da negativa da reinclusão no cadastro estadual, foi informada que, consoante a Ordem de Serviço nº..., cuja cópia obteve, seria denegado o pedido quando um dos sócios da empresa requerente fosse sócio de outras empresas que possuíssem débitos fiscais registrados na Secretaria da Fazenda. Era o caso da Consulente, pela participação de um de seus sócios, o Sr. M.

Instado pela Consulente, o Sr. M. relatou que possuía cotas em outras duas empresas, que estas sempre estiveram com a situação cadastral “ativa” na Secretária da Fazenda e, no que tange ao débito apontado, informou que parte dele estava sendo objeto de ações judiciais, nas quais a empresa executada já teria oferecido bens suficientes à garantia do juízo, e a outra parte do quantum debeatur não teria sido ainda objeto de cobrança judicial pelo Fisco.

Em face do exposto, a Consulente formula-nos os seguintes quesitos que passaremos a responder:

Considerando que inexiste identidade entre o quadro societário das “empresas devedoras” e a Consulente, sendo apenas um dos sócios da Consulente também sócio das pessoas jurídicas assim rotuladas, e que não há no contrato social da Consulente qualquer menção que a vincule a estas, o que denota não ser a Consulente empresa filial, controlada ou coligada, ou ainda, pertencente ao mesmo “grupo” empresarial das empresas indicadas como devedoras, a qualquer título, questiona-se:

1. Há fundamento legal para que a Fazenda negue à Consulente inclusão (e reinclusão) no CAD-ICMS baseada em fatos imputados a pessoas jurídicas dela distintas, supostamente devedoras do Fisco?

2. Se afirmativa a resposta ao quesito anterior, o texto legal infraconstitucional não estaria contrariando o livre exercício da atividade econômica assegurado constitucionalmente?

3. Se negativa a resposta ao quesito 1, qual seria o instrumento processual cabível contra o ato denegatório da Fazenda?

Antes de responder às questões suscitadas, pretendemos analisar alguns aspectos relacionados à consulta, em face dos quais apresentaremos, ao final, nosso entendimento no tocante aos quesitos formulados.

I. INTRÓITO.

Parece evidente o manifesto intuito fazendário em compelir empresas distintas da Consulente ao pagamento de débito fiscal objeto de questionamento judicial (execução fiscal), ao praticar o ato denegatório de inscrição da Requerente no cadastro estadual, em procedimento anômalo que se substitui, de modo espúrio, ao devido processo legal no Judiciário.

Trata-se, em verdade, de um comportamento que a Fazenda Pública há muito adota, sempre com vistas a uma arrecadação mais célere. Não é à toa que o Supremo Tribunal, em razão destas práticas inconstitucionais comezinhas do Poder Público, editou três súmulas, abaixo transcritas, in verbis:

“Súmula 70. É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.”

“Súmula 323. É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.”

“Súmula 547. Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.”

Estas condutas, por meio das quais, indiretamente, as Fazendas exigem do contribuinte em débito com o Fisco o pagamento da dívida já despertaram o interesse de estudiosos que convencionaram chamar estas práticas ilegais de sanções políticas, entendidas estas como fruto do “distorcido exercício da autoridade inserida no Poder Executivo, [...] de natureza jurídica adstrita a uma deformação do modus agendi”[1].

Depreende-se, portanto, que o fundamento da ilegalidade do ato perpetrado pela Fazenda Estadual contra a Consulente é de índole constitucional. Na plena vigência do Estado de Direito, este ato inconstitucional assume contornos ainda mais alarmantes, pois a prática destas sanções políticas remonta ao regime militar, época em que, como bem recorda o professor Édison Freitas de Siqueira, tais atos eram simplesmente denominados “atos ditatoriais”[2].

Pretende-se chamar atenção, em síntese, para a relevância das questões que aqui serão debatidas. Malgrado cuidar-se de um ato que aparentemente diz respeito tão-somente à Consulente, tão devastador é o vício nele ínsito que o faz contrário não só à legislação infraconstitucional, não só à Constituição Federal, em sentido formal, mas também e sobretudo, à própria acepção substancial do Estado Democrático de Direito.

Tecidas estas considerações iniciais, passa-se a abordar as questões trazidas pela Consulente, à luz dos princípios constitucionais.

II. DA DISTINÇÃO ENTRE A CONSULENTE E AS PESSOAS JURÍDICAS EM DÉBITO COM O FISCO.

Conforme já mencionado, ao denegar a inscrição no CAD-ICMS, sob o pretexto de que o Sr. M., sócio da Consulente também fazia parte de outras empresas que possuíam dívidas tributárias, o Fisco realizou dois absurdos: primeiro, confundiu a pessoa física do Sr. M. com as pessoas jurídicas das quais é sócio, e segundo, estas últimas com a Consulente.

Lição basilar sobre a distinção das pessoas físicas e jurídicas é cunhada, com precisão, no Código Civil de 1916:

“Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.”

O professor de Direito Comercial e magistrado Edílson das Chagas explica que o princípio da autonomia da pessoa jurídica está diretamente relacionado com a existência e manutenção das empresas e a proteção dos sócios que a formam:

“[...] sem esta proteção, míngua o interesse, e até a coragem, de investir na produção ou circulação de bens e serviços e, com isso, corre-se o risco de se perder a criativa e incansável parcela de iniciativa privada na produção da riqueza, comprometendo-se a arrecadação estatal, o emprego e outros interesses básicos do homem e do Estado.” [3]

O Superior Tribunal de Justiça, por seu turno, com arrimo no entendimento acima, ao apreciar questão semelhante à situação em tela, assim destacou:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO - CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITO - RECUSA DE FORNECIMENTO - SÓCIO INTEGRANTE DE OUTRA FIRMA DEVEDORA DO FISCO - DESCABIMENTO -VIOLAÇÃO À LEI FEDERAL NÃO CONFIGURADA - AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO LEGAL - DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADA - LEI 8.038/90 E RISTJ, ART. 255 E PARÁGRAFOS - PRECEDENTES STJ.

- A pessoa jurídica, com personalidade própria, não se confunde com outra, ainda que tenham sócios com participação em ambas.

- É descabida a recusa de fornecimento da CND a uma empresa sob o fundamento de que um de seus sócios é integrante de uma outra sociedade devedora do fisco.

- Na interposição do recurso especial fundado na letra "a" do autorizativo constitucional, impõe-se a indicação precisa do preceito de lei federal tido por violado e a exposição da tese sustentada pelo recorrente.

- Divergência jurisprudencial que desatende as determinações legais e regimentais, não se configura para o fim proposto.

- Recurso não conhecido.[4]

E ainda:

TRIBUTÁRIO. DÍVIDA ATIVA INSCRITA. CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITO. PESSOA JURÍDICA. SÓCIOS. CTN, ART. 135, III.

1.A pessoa jurídica, com personalidade própria, não se confunde com outra, ainda que tenham sócios com participação em ambas. Constitui, pois, delírio fiscal, a má troca de substituição tributária, atribuir-se a responsabilidade substitutiva (art. 135 – caput – CTN) para pessoa jurídica diversa daquela em cujo nome está inserta a dívida.

2.Recurso improvido.[5]

E mais:

TRIBUTÁRIO. EXPEDIÇÃO DE CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITO TRIBUTÁRIO. NEGATIVA. SÓCIO INTEGRANTE DE OUTRA FIRMA DEVEDORA DO FISCO. DESCABIMENTO.

1.Não tem cabimento a recusa de expedir certidão negativa de débito tributário a uma Sociedade, somente porque um dos seus sócios é integrante de outra firma devedora do Fisco.

2.Recurso desprovido.[6]

III. DA VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS.

O despacho denegatório da Fazenda estadual viola princípios constitucionais, desde os mais elementares, como o do devido processo legal e da liberdade de exercício profissional, até aqueles denominados implícitos, como o princípio da proporcionalidade.

É preciso trazer a lume alguns dispositivos constitucionais:

“Art. 5°...

XII - É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.”

“Art. 170....

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”

As liberdades constitucionais acima fixadas estão intrinsecamente ligadas, de forma que a liberdade ao exercício de trabalho, ofício ou profissão é garantida, ou assegurada à medida que se perfazem as relações no âmbito da ordem econômica, que, por seu turno, consubstancia-se na liberdade de iniciativa.

Ao se negar a inclusão da Consulente no CAD-ICMS, impediu-se o exercício do trabalho empresarial, privaram-se os já contratados empregados do exercício de sua profissão, sem contar que se tolheu a livre iniciativa – e nesta linha, prejudicando a ordem econômica, como se demonstrou – expondo ao relento aqueles que nela investiram e que dela esperam obter o seu sustento, como também, a própria comunidade, que deixa de usufruir os reflexos sociais positivos que a empresa propicia, ao desempenhar sua função social.

Isto porque a empresa, no seio da sociedade, representa, também, o exercício do direito à livre concorrência – segundo Eros Roberto Grau[7], trata-se de uma faceta da livre iniciativa – como instrumento para aprimorar a dinâmica do mercado consumidor, proporcionando crescimento econômico e melhoria da qualidade de vida.

Em caso similar, onde o Fisco apreendeu várias mercadorias de uma empresa, a fim de compeli-la ao pagamento de supostos débitos, assim votou o Desembargador Olindo Menezes:

Mas, ao que diviso no momento, tenho que a empresa e seus empregados têm o direito de sobreviver, não sendo lícito que o fisco, através de uma apreensão gigantesca de mercadorias, insumos, documentos e equipamentos, tudo sob a alegação de infrações fiscais ainda em processo de certificação, imponha-lhe a pena de morte sem o devido processo legal. (O tamanho da apreensão, inclusive sobre insumos e equipamentos, torna impossível o exercício da sua atividade, levando-a à extinção.)[8]

Por este viés, também segue a jurisprudência recente do STF:

EMENTA: SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO. INADMISSIBILIDADE DA UTILIZAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DE MEIOS GRAVOSOS E INDIRETOS DE COERÇÃO ESTATAL DESTINADOS A COMPELIR O CONTRIBUINTE INADIMPLENTE A PAGAR O TRIBUTO (SÚMULAS 70, 323 E 547 DO STF). Restrições estatais, que, fundadas em exigências que transgridem os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade em sentido estrito, culminam por inviabilizar, sem justo fundamento, o exercício, pelo sujeito passivo da obrigação tributária, de atividade econômica ou profissional lícita. Limitações arbitrárias que não podem ser impostas pelo Estado ao contribuinte em débito, sob pena de ofensa ao "substantive due process of law". Impossibilidade constitucional de o estado legislar de modo abusivo ou imoderado (rtj 160/140-141 - rtj 173/807-808 - rtj 178/22-24). O poder de tributar - que encontra limitações essenciais no próprio texto constitucional, instituídas em favor do contribuinte - "não pode chegar à desmedida do poder de destruir" (min. Orosimbo nonato, rda 34/132). A prerrogativa estatal de tributar traduz poder cujo exercício não pode comprometer a liberdade de trabalho, de comércio e de indústria do contribuinte. A significação tutelar, em nosso sistema jurídico, do "estatuto constitucional do contribuinte". Doutrina. Precedentes. Agravo provido. [9]

Quanto ao princípio da proporcionalidade, convém invocar as lições do professor Humberto Ávila a respeito:

O exame de proporcionalidade aplica-se sempre que houver uma medida concreta destinada a realizar uma finalidade. Nesse caso devem ser analisadas as possibilidades de a medida levar à realização da finalidade (exame da adequação), de a medida ser a menos restritiva aos direitos envolvidos dentre aquelas que poderiam ter sido utilizadas para atingir a finalidade (exame da necessidade) e de a finalidade pública ser tão valorosa que justifique tamanha restrição (exame da proporcionalidade em sentido estrito). [10]

Aliás, cumpre salientar que este último princípio, atualmente, vem ganhando extraordinário reconhecimento da doutrina e da jurisprudência nacional, que vem se utilizando dele, como que “na qualidade de um superprincípio”. Eros Roberto Grau, citando Francisco Ferrara, traduz a natureza desses princípios fundamentais:

Todo o edifício jurídico se alicerça em princípios supremos que formam as suas idéias diretivas e o seu espírito, e não estão expressos, mas são pressupostos pela ordem jurídica. Estes princípios obtêm-se por indução, remontando de princípios particulares a conceitos mais gerais, e por generalizações sucessivas aos mais elevados cumes. E é claro que quanto mais alto se leva esta indução, tanto mais amplo é o horizonte que se abrange.[11]

No particular, o Ministro Celso de Mello, em causa análoga à da Consulente, assim deliberou:

O princípio da proporcionalidade – que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law – acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais.[12]

Interessante perceber que, da análise da violação do princípio da proporcionalidade, deflui, naturalmente, o exame do desrespeito ao devido processo legal, que, in casu, configura-se no meio esquivo do qual se vale o Fisco para cobrar seus créditos, driblando o devido processo legal especialmente instituído para ele na Lei 6.830/80.

O exame da proporcionalidade é inexorável no caso aqui trazido pela Consulente, uma vez que o ato de resistência consiste em uma coerção ilegal que impede o legítimo funcionamento de uma empresa com a possível intenção de cobrar tributos pretensamente devidos por outra empresa. Pode-se, então, constatar o desatendimento desta medida aos elementos necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

No tocante à proporcionalidade em sentido estrito, a não concessão da inscrição estadual à Consulente revela-se um instrumento imoderado e inconstitucional, imprestável para justificar o sacrifício de uma série de bens jurídicos que, por sua magnitude, são contemplados por cláusulas pétreas – como a livre iniciativa e a liberdade de exercício profissional, aludidas acima.

É, aliás, importante atentar para a patente violação do elemento necessidade, no momento em que o Fisco Estadual, a fim de proteger bens jurídicos relevantes (créditos fiscais), olvida-se de que para estes, são previstos mecanismos especiais para tutelá-los, desde o processo executivo especial, até garantias e privilégios que cercam os créditos desta natureza.

IV. DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE.

A atitude de recusa à inscrição estadual da Fazenda fere o princípio da legalidade. Se, ad argumentandum tantum, se pudesse admitir a constitucionalidade de uma medida restritiva como esta, haveria, ao menos, de se respeitar o princípio da legalidade, utilizando-se a lei para a previsão deste ato.

Verifica-se que a Lei Complementar 87/96, que trata das normas gerais do ICMS, e a Lei Estadual baiana nº 7014/96, que instituiu o ICMS, não autorizam às autoridades administrativas a impedir ou obstaculizar a inscrição no cadastro estadual de contribuintes sob o fundamento da existência de débitos fiscais da empresa, quanto mais se o contribuinte não possui qualquer débito.

Conseqüentemente, à míngua de dispositivos legais, a Fazenda Estadual lastreou-se em dispositivos contidos em mero regulamento do ICMS, cuja função, vale ressaltar, não contempla a possibilidade de inovar na ordem jurídica, tornando inequívoco que a ilegalidade perpetrada evidencia-se tanto no conteúdo quanto na forma.

Por este caminho envereda a jurisprudência:

REMESSA EX OFFICIO. MANDADO DE SEGURANÇA. TRIBUTÁRIO. INSCRIÇÃO DE EMPRESA EM CADASTRO FISCAL DO DISTRITO FEDERAL. DECRETO 18.995/97. EXIGÊNCIAS. ILEGALIDADE E ABUSIVIDADE.

A exigência da Administração Pública - baixa de inscrição da empresa da qual a impetrante é sócia e quitação dos débitos tributários - para obter a inscrição de sua filial no cadastro fiscal do Distrito Federal, se mostra ilegal e abusiva, configurando-se como forma ilícita de cobrança de dívida e restrição à atividade profissional, porque à Fazenda foram estabelecidos meios legais de cobrança administrativa e judiciária, não se podendo utilizar de medidas arbitrárias. Desta forma, as previsões contidas no Decreto 18.995/97 não chancelam os atos das autoridades fiscais. Somente por lei poderia a autoridade coatora impor tais exigências, não se prestando o citado decreto para tal mister, até mesmo porque entendimento contrário viola o princípio da legalidade, consagrado no art. 5º, inciso II da Carta Magna. O Decreto Regulamentar nada mais é que o ato administrativo expedido pelo Chefe do Poder Executivo que tem por objetivo explicitar a lei e facilitar sua execução, aclarando seus mandamentos e orientando sua aplicação, não lhe sendo possível criar gravame que a lei não impôs. Sentença mantida. Remessa improvida.[13]

Assentadas os entendimentos expendidos, passa-se a responder os quesitos formulados.

V. DAS RESPOSTAS AOS QUESITOS FORMULADOS.

1. A Consulente, pessoa jurídica de direito privado, tem existência distinta das pessoas físicas dos sócios que a constituem, motivo pelo qual é vedado ao Fisco Estadual imputar fato supostamente ilícito a uma pessoa física, e, em razão deste fato, impor uma sanção a uma pessoa jurídica.

Aliás, esta é uma regra basilar da teoria geral do direito, totalmente desprezada pela Administração Pública em situações como a da Consulente, pois, em verdade, sancionou, pela mera participação da pessoa física do Sr. M., uma outra pessoa – a pessoa jurídica da qual ele é sócio.

Conforme asseverado no ponto II, inexiste nexo de causalidade subjetivo, isto é, relação entre a pessoa que supostamente realizou fato ilícito (empresa da qual o Sr. M. é sócio e possui débito garantido com a Fazenda), e a pessoa contra a qual a sanção foi imposta (a Consulente, que nenhum débito possui), confundindo, primeiro, a pessoa física do Sr. M. com as pessoas jurídicas das quais é sócio, e segundo, estas últimas com a Consulente.

Para fundamentar seu ato, a Fazenda Estadual valeu-se do disposto no art. 153 do Regulamento de ICMS-BA, Decreto Estadual 6.284/97, conforme abaixo se transcreve:

Art. 153. Não será deferida inscrição quando houver outro estabelecimento, da mesma empresa com inscrição inapta ou "suspensa - processo de baixa", neste caso, se a situação cadastral imediatamente anterior corresponder à situação de inscrição inapta.

§ 1º A vedação prevista no caput deste Art. se estende aos casos em que sócio ou titular da empresa requerente participe de outra empresa com estabelecimentos com as mesmas irregularidades cadastrais ou com débitos inscritos em dívida ativa sem suspensão de exigibilidade.

Faz-se mister afirmar que este dispositivo é nitidamente inconstitucional, por configurar uma espécie de sanção política, absolutamente proibida no Estado de Direito. Negar-se o cadastro estadual indispensável para que o contribuinte possa exercer suas atividades empresariais, tal como disposto no Regulamento acima, coloca o Poder Executivo Estadual na posição de violador da Lei Maior, consoante o já citado Édison Freitas de Siqueira:

Tão déspotas são algumas autoridades que compõem o Poder Executivo, que, sabedores de que a inscrição estadual e a nota fiscal são documentos essenciais e indispensáveis à atividade econômica, passam a utilizar-se dessas, como ‘refém‘ de suas escusas pretensões e negociações, sempre visando a ludibriar o sistema legal vigente.[14]

Portanto, conclui-se que não obstante o fato de existir previsão normativa no Regulamento do ICMS descrevendo a sanção política em tela, o que poderia, numa interpretação pro Fisco, dar respaldo à atuação da Fazenda Estadual com as vestes da legalidade, tal conduta, ainda assim, seria ilegal, pois contraria a legislação em nível constitucional e infraconstitucional.

O ordenamento jurídico pátrio, que tem a Constituição Federal de 1988 como o diploma normativo supremo, não dá guarida a qualquer sanção política, não consistindo em exceção a situação da Consulente.

Como indicado acima, revelar-se-ia, sim, uma contrariedade ao princípio do livre exercício da atividade econômica assegurado constitucionalmente, se houvesse autorização legal para tal procedimento. O que há, entretanto, é mera regulamentação, que extrapola sua função ao criar sanções não autorizadas pela lei.

Representa a sanção política aqui analisada, conforme demonstrado no item III, uma prática que nega vigência não só ao art. 170, como ao art. 5º, XII, da Constituição, que assegura a liberdade de exercício profissional, em atenção ao valor social do trabalho.

3. O mandado de segurança constitui-se no instrumento processual cabível na situação da Consulente. Este remédio constitucional é destinado a combater o ato ilegal praticado por autoridade pública e sempre é concedido quando o direito alegado configura-se líquido e certo. Ora, ao comentar algumas sanções políticas cotidianas do Fisco, Édison Freitas de Siqueira assinala que “todos estes procedimentos maculam a Constituição Federal, podendo, inclusive, ser considerados, LESÃO A DIREITO LÍQUIDO E CERTO”.[15]

Realmente, a praxe forense tem corroborado a assertiva acima, elegendo o mandado de segurança como o instrumento mais utilizado e mais eficaz nas hipóteses em que a autoridade fiscal nega ao contribuinte qualquer direito seu constitucionalmente albergado.

Portanto, à Consulente caberá demonstrar ao Judiciário que, por encontrar-se em condições de imediato funcionamento por ter sido impedida de fazê-lo, ante o ato denegatório, dia após dia, está tendo que arcar com altos custos, em razão da ociosidade, só lhe restando contabilizar, ao final de cada dia, o quanto teria auferido se operando estivesse, e fazer projeções, não muito animadoras, de quanto tempo levará para compensar o prejuízo, isto é, se ainda for possível.

Restarão aí caracterizados os requisitos à concessão liminar da segurança.

REFERÊNCIAS

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

Brasil. Superior Tribunal de Justiça. REsp 149.690/ES, Rel. Ministro FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 08.02.2000, DJ 20.03.2000 p. 63.

Brasil. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 73.760-ES, Relator Min. Demócrito Reinaldo, publicado no D. J.em 29/06/1998.

Brasil. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 91.858-ES, Relator Min. Milton Luiz Pereira, publicado no D.J. em 24/02/1997.

Brasil. Supremo Tribunal Federal. AI 524779 / RS, Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 08/04/2005, publicado no DJ em 11/05/2005, P- 00027.

Brasil. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Remessa ex-ofício nº 1999011045965-0, relator Des. Jeronymo de Souza, TJ-DF, 3ª Turma Cível, julgado em 06/11/2000.

Brasil. Tribunal Regional Federal Primeira Região. AG nº 2000.01.00011017-6. Rel. Desemb. Fed. Olindo Menezes. Publicado no DJ em 25.08.2003.

CHAGAS, Edílson das. Princípio da Autonomia da pessoa jurídica, a preservação da empresa e a teoria da desconsidedração: riscos da adoção objetiva da exceção, in Revista de Doutrina e Jurisprudência do TJDF n° 72, maio/Ago 2003. Disponível em .br. Acesso em 04/07/2005.

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 9. ed., rev., e atual. São Paulo: Malheiros, 2004.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

Jurisprudência, in Revista Dialética de Direito Tributário n.117. São Paulo: Dialética, 2005.

SIQUEIRA, Édison Freitas de. Débito Fiscal: análise crítica e sanções políticas. Porto Alegre: Sulina, 2002.

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[1] SIQUEIRA, Édison Freitas de. Débito Fiscal: análise crítica e sanções políticas. Porto Alegre: Sulina, 2002. p.44.

[2] Ibid., p.44-5.

[3] Princípio da Autonomia da pessoa jurídica, a preservação da empresa e a teoria da desconsidedração: riscos da adoção objetiva da exceção, in Revista de Doutrina e Jurisprudência do TJDF n° 72, maio/Ago 2003. Disponível em .br. Acesso em 04/07/2005. Sem grifo no original.

[4] REsp 149.690/ES, Rel. Ministro FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 08.02.2000, DJ 20.03.2000 p. 63. (grifo nosso)

[5] REsp. 91.858-ES, Relator Min. Milton Luiz Pereira, publicado no D.J. em 24/02/1997.

[6] REsp. 73.760-ES, Relator Min. Demócrito Reinaldo, publicado no D. J.em 29/06/1998.

[7] A Ordem Econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 9. ed., rev., e atual. São Paulo: Malheiros, 2004.p.

[8] TRF 1.ª Região. AG nº 2000.01.00011017-6. Rel. Desemb. Fed. Olindo Menezes. Publicado no DJ em 25.08.2003.

[9] AI 524779 / RS, Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 08/04/2005, publicado no DJ em 11/05/2005, P- 00027. (grifo nosso).

[10] Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 105-6.

[11] Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 148.

[12] RE 402.769-1, in Revista Dialética de Direito Tributário 117: 211.

[13]Remessa ex-ofício nº 1999011045965-0, relator Des. Jeronymo de Souza, TJ-DF, 3ª Turma Cível, julgado em 06/11/2000. Sem grifo no original.

[14] SIQUEIRA, Édison Freitas de. Débito Fiscal: análise crítica e sanções políticas. Porto Alegre: Sulina, 2002. p.59.

[15] SIQUEIRA, Édison Freitas de. Débito Fiscal: análise crítica e sanções políticas. Porto Alegre: Sulina, 2002. p.63.

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