RUMORES E TEMORES EM PUBLICAÇÕES EDUCATIVAS DO JORNAL ... - ANPUH
RUMORES E TEMORES EM PUBLICA??ES EDUCATIVAS DO JORNAL "CORREIO MERCANTIL" (SALVADOR, 1838-1840)
Fabio Valente de Moraes1
INTRODU??O Como desdobramento da terceira se??o da nossa disserta??o de mestrado (2017), este
artigo tem como objetivo analisar o emprego de rumores e temores na produ??o, reprodu??o e dissemina??o de percep??es de cunho moral e pol?tico em Salvador, entre 1838 e 1840, pelo jornal baiano "Correio Mercantil", que, como suporte de linguagem, socializou entre diversos grupos sociais que habitavam a capital provincial a emerg?ncia da inibi??o do alvoro?o popular e a manuten??o da ordem do Estado mon?rquico brasileiro, exercendo, assim, a??es educativas, mesmo se tratando de um peri?dico n?o pedag?gico.
Se considerarmos Salvador entre 1838 e 1840, nada melhor que uma sociedade mergulhada em apreens?es e consumida por uma atmosfera sediciosa, munida de lembran?as frescas de um passado conflituoso ali pairado, inflam?vel, pronto para ser transformado em chamas devastadoras, para que tens?es e ang?stias atuassem agregadas ao medo, sob a guarida da imagina??o, habilidade mental exclusivamente humana, mas, suscet?vel ao descontrole, ind?mita em potencial e cujo enfrentamento tornava-se tarefa ?rdua, intensa e viscosa.
Desse modo, partimos de 2 de abril de 1838, quando o "Correio Mercantil" voltou ?s suas atividades, ap?s passar cinco meses fechada em decorr?ncia da Sabinada2, e estendemos nosso contexto temporal at? 2 de janeiro de 1840, no momento em que ? anunciada a sa?da do bacharel Jo?o Antonio de Sampaio Vianna3 do jornal. ? vista disso, o "Correio Mercantil" ? fonte e sujeito deste estudo, pois, como detentor de sinais e ind?cios, n?o atuou simplesmente como m?dia, ou simples "reflexo" de processos e epis?dios (MOREL; BARROS, 2003, p. 9), ele superou a condi??o de "mero deposit?rio de acontecimentos" (CRUZ; PEIXOTO, 2007, p. 257), revelando-se v?vido e completamente comprometido com o contexto.
Em Salvador, o "Correio Mercantil" foi um desses paladinos ordeiros, mas, tamb?m um dos mais importantes peri?dicos da prov?ncia, pois, al?m de circular diariamente (exceto aos domingos), atuou por vinte e tr?s anos ? feito incomum para uma imprensa ainda
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incipiente (SODR?, 1999, p. 155). Fundado por Jo?o Antonio de Sampaio Vianna em 1833, essa gazeta encerrou suas atividades em 1856, passando pelas m?os de mais tr?s propriet?rios, contudo, sob a gest?o do seu edificador, do irm?o dele, Luiz Antonio de Sampaio Vianna, e do tip?grafo Manoel Lopes Velloso, no limite temporal deste estudo (1838-1840), manteve-se atuante contra quem quer que pudesse p?r em perigo seus interesses e dos grupos sociais que afirmavam representar (comerciantes, negociantes, propriet?rios, empregados p?blicos e titulares).
Com isso, por interm?dio de uma pesquisa qualitativa e examinando vasta quantidade de edi??es do "Correio Mercantil" dispon?veis no acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (2016), intercruzamos na nossa investiga??o e an?lise Hist?ria da Educa??o e Hist?ria Cultural, concebendo nossa base te?rico-metodol?gica a partir de estudos relativos ao campo Educa??o e Imprensa, sobretudo no que tange o envolvimento de peri?dicos n?o pedag?gicos, com a socializa??o de concep??es e forma??o de sujeitos e grupos sociais, na composi??o daquilo que Robert Darnton chama de redes de comunica??o (2014) e na circula??o de informa??es, em m?o dupla, entre o mundo escrito e o da oralidade em Salvador. Dessa forma, trabalhos em Hist?ria da Educa??o, como "Imp?rio em debate: imprensa e educa??o no Brasil oitocentista" (MIZUTA; FARIA FILHO; PERIOTTO, 2010), por exemplo, tem nos auxiliado na compreens?o do "Correio Mercantil", como formulador, replicador e propagador de preceitos como a??es educativas, mesmo n?o sendo um jornal especializado em educa??o escolar. J? na Hist?ria Cultural, destacamos al?m de Darnton ? e suas contribui??es tamb?m acerca da rela??o como as fontes ?, os estudos de Roger Chartier (1991), amparo te?rico para entrever a partir de representa??es, cuja elucida??o extrapola uma ?nica possibilidade de significado, o sentido educativo presente na produ??o, reprodu??o e dissemina??o de pressupostos pol?ticos e morais pela gazeta de Jos? Antonio de Sampaio Vianna.
BOATOS E MEDOS Apesar de um prel?dio sem embates, a Sabinada se desenrolou impetuosamente ao
longo de quatro meses e ap?s seu desfecho, revelou-se o princ?pio de novas inquieta??es e a continuidade de velhas tens?es em Salvador. Entretanto, n?o estamos falando de subleva??es pomposas, como a que foi articulada por Francisco Sabino e seus sect?rios ou como o Levante
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Mal?, de 25 de janeiro de 1835, protagonizada por escravizados africanos islamizados, interessados em tomar o poder, expandir o Isl?, proteg?-lo de infi?is e ainda bem n?tida nas lembran?as dos habitantes locais ? subleva??es inclusive, tratadas pela historiografia baiana, respectivamente nos estudos de Souza (2009) e Reis (2003). O que n?o quer dizer, que a calmaria imperou, afinal, outras personifica??es de rebeldia ou de condutas interpretadas como tal ainda constitu?am o cen?rio e atormentavam os defensores da ordem, entre eles determinados representantes da imprensa peri?dica.
Em 4 de abril de 1838, no final da se??o "Not?cias Diversas", na quarta e ?ltima p?gina do "Correio Mercantil", foi publicado o seguinte:
Recomendamos muito seriamente ?s vistas da Pol?cia, certos pretos que andam com chap?us de palha de um novo modelo, e que, nos dizem, ser uma seita particular. A Pol?cia que n?o durma. (CORREIO MERCANTIL, Salvador, n. 436, p. 4, 04 abr. 1838)4.
Mesmo se tratando de uma nota sucinta e com poucos detalhes, consideramos muita coisa nessa queixa, apesar de sustentada pelo boato ? sugerido pela express?o "nos dizem" ?, o tom de alerta nitidamente visava induzir os leitores a confiar na vers?o ali veiculada. Como uma not?cia de natureza acusat?ria, entre mais de seis notas que preenchiam parte de duas colunas da lauda derradeira do peri?dico, a recomenda??o do texto n?o demarcava somente uma demanda trivial de seguran?a p?blica, suscitando aten??o que se alastrava para outros pontos tensos da cidade.
Assim "analisando o documento em que ele ? mais opaco, talvez se consiga descobrir um sistema de significados estranhos" (DARNTON, 2017, p. 15), onde textos discretos, camuflados em poucas linhas, n?o devem ser menosprezados, afinal, o que poderia ser apenas o vulto de uma rumorosa insubordina??o rotineira, trazia nas sombras valores que confrontavam as concep??es abrigadas pelo jornal. Contudo, os propriet?rios-redatores do "Correio Mercantil" n?o aspiravam apenas que a pol?cia fosse mais en?rgica com "pretos" que estariam praticando uma "seita particular". Lendo a den?ncia historicamente contextualizada, as nuances indicam que, para al?m do que estava escrito e impresso, outras quest?es os inquietavam ? para combat?-las e propalar concep??es morais e pol?ticas, o "Correio Mercantil" efetuou obstinadamente, singularmente, a??es educativas.
As dela??es tamb?m eram habituais, ainda que, os confrontos tenham cessado, peri?dicos como o "Correio Mercantil" mantinham os bombardeios ativos, n?o obstante, utilizavam as palavras para atingir o maior n?mero de pessoas. Principalmente nos primeiros
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meses que sucederam a Sabinada, muni??o pesada foi empregada, muitas vezes ofertando ao
p?blico leitor opini?es pessoais dos redatores e tonificando a urg?ncia de alerta entre as
autoridades, como, por exemplo, ocorreu em de 6 de abril de 1838:
Pessoa fidedigna nos comunica, que, em certa casa, sita para o lado da Lapa, e na qual habita a mulher de um dos grandes campe?es da rep?blica, assassino-gatuno, o qual, por felicidade, jaz na prezinganga, se tem ultimamente dado grandes jantares, onde se fazem estrondosas sa?des, acompanhadas dos competentes [ileg?vel], em favor do regresso do governo Sabino Larapio. Se assim ?, n?o se d? maior animosidade! A pol?cia que trate de verificar a veracidade de um facto t?o criminoso, o que ser? f?cil de conseguir, mediante indaga??es feitas aos vizinhos da dita casa. (CORREIO MERCANTIL, Salvador, n. 438, p. 3, 06 abr. 1838)
A representa??o como "instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um
objeto ausente" (CHARTIER, 1991, p. 184) nutre esta den?ncia, que real?ada como oriunda
de "pessoa fidedigna", fortalecia, em certa medida, a leitura de um fato hipot?tico como
ver?dico ? de prov?veis reuni?es acompanhadas de "grandes jantares". A esposa de um
rebelado encarcerado fazia do seu domic?lio um local de encontro de apologistas "do regresso
do governo Sabino Larapio". A d?vida, o rumor e o medo preenchem o texto, o endere?o da
casa ? incerto ? ficaria "para o lado da Lapa" ?, tudo era improv?vel, mesmo que as
homenagens ? Sabinada fossem estrondosas, aud?veis. O marido ausente era um "assassino-
gatuno" e a pol?cia era convocada a verificar "a veracidade de um fato t?o criminoso" em
defesa da Rep?blica. Um mar de ambiguidades propositalmente disseminadas entre os
leitores, que, estimulados ao temor pela boataria e incertezas do fato, deveria estar sempre
alerta ? fuma?a, pois, ali, em meio ? precariedade de informa??es, poderia haver chama e,
mesmo que n?o houvesse o potencial para tal n?o deveria ser nunca ignorado, subestimado ou
esquecido.
?s vezes o receio poderia ser temperado com lembran?as de temores mais antigos,
mas, n?o t?o pret?ritos, afinal, necessitavam habitar com translucidez as lembran?as da
cidade. Desse modo, mal?s reapareciam ocasionalmente, mesmo quando a Sabinada ainda
inflamava os sentimentos locais:
Antes de ontem, talvez para solenizar a partida do batalh?o 7 de Pernambuco, houve folgan?a africana, pelos s?tios costumados do Engenho da Concei??o; e desta vez, se estendeu al?m, ? Massaranduba, ou estrada nova de Itapagipe, havendo ainda pequenos batuques, por diversos lugares. Nessa noite, como para mostrar o peso de que ficar?o aliviados os mal?s, todos cantar?o, ou antes uivavam em ranchos. Oh da Policia, olho vivo, e bem alerta; sentido, e cautela; boas rondas, e sobre tudo, alguns destacamentos para certos s?tios, s?o muito urgentes. (CORREIO MERCANTIL, Salvador, n. 523, p. 1, 02 ago. 1838)
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A acusa??o publicada na se??o "Not?cias Diversas" n?o expressava a certeza dos fatos, pois, estrategicamente o jornal optou por instigar a desconfian?a e, atrav?s da express?o "talvez", seus redatores conceberam um texto sutilmente especulativo, mas, preciso nas suas inten??es: havia outros algozes na cidade que tinham que ser vigiados. Falava-se da partida do 7? Batalh?o de Pernambuco ? fundamental para derrotar os sabinos meses atr?s ? que, dois dias antes dessa den?ncia, no dia 30 de setembro 1838, saiu em expedi??o rumo ? prov?ncia do Rio Grande do Sul, ao n?cleo da Revolu??o Farroupilha. Apesar da sua min?cia, o relato deveria causar perturba??o. A folgan?a de africanos, seus barulhos, os batuques, ecoavam vindos de longe e, pela den?ncia, corrompiam o sil?ncio noturno, subvertiam a ordem e desafiavam o que era imposto de cima pra baixo como norma.
Para desqualificar mais ainda os hipot?ticos perturbadores rumorizados pelo "Correio Mercantil", desumanizava-se, afinal, al?m de transgredirem percussivamente, pela imposi??o de uma cultura de resist?ncia sonora ? primitiva e perigosa para o referencial dos redatores ?, eram tamb?m expostos como "bichos" da noite. Os antagonistas da den?ncia uivavam, e seus brados n?o eram qualquer bravejo, era uma met?fora de uma matilha articulada coletivamente, indom?vel e sempre preparada para o sorrateiro ataque noturno ? uma pluralidade de apropria??es (CHARTIER, 1991, p. 186). Desse modo, a solu??o pragm?tica para tal "selvageria" ? evitando-se sempre o tumulto, o p?nico, o descontrole, a rememora??o exagerada ? seria incisiva repress?o policial.
O uso indiscriminado do boato foi comum na emergente imprensa peri?dica da Bahia na primeira metade do s?culo XIX. Tratado por um dicion?rio contempor?neo como "[...] not?cia an?nima que corre publicamente sem confirma??o [...]" (FERREIRA, 2010, p. 108) e chamado, em um l?xico de 1890, tamb?m de "rumor", "estrondo", "brado" e "clamor de novidade" (SILVA, 1890, p. 342), o boato estampou v?rios n?meros do "Correio Mercantil" ao longo dos meses que demarcam este estudo. O murm?rio foi abertamente utilizado para informar acerca dos mais variados fatos, inclusive, denunciando-se categoricamente eventos imprecisos como alertas de interesses comuns. O medo tamb?m precisava ser incitado coletivamente, mas, para atemorizar e colher frutos do estado afetivo alcan?ado, a aplica??o do boato era imprescind?vel ? temores e rumores necessitavam caminhar juntos, avultando os preceitos e edificando as percep??es necess?rias. Um boato n?o surge do nada, ele "[...] nasce, portanto, sobre um fundo pr?vio de inquieta??es acumuladas e resulta de uma prepara??o
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