REFORMAS DOS JORNAIS CARIOCAS NO SÉCULO XX:
Reformas dos Jornais Cariocas no Século XX:
A Formação do Repórter-Fotográfico e o Papel do Fotojornalismo
Silvana Louzada
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e Professora de Fotografia e Fotojornalismo da Universidade Cândido Mendes.
Resumo: O artigo discute a relação entre os padrões modernos de jornalismo que perseguem a objetividade, adotados por grande parte da imprensa carioca em meados do século passado, com o fotojornalismo. Para isso vai traçar um breve histórico das mudanças experimentadas no fotojornalismo praticado nos jornais diários no período e recuperar os caminhos por onde se dava a formação profissional do fotógrafo de imprensa. Por fim vai defender que os ideais de objetividade que estão na base destas transformações se apoiaram no discurso fotojornalístico para sustentar estas mudanças, em especial na suposta a propriedade da fotografia de ser o espelho do real.
Palavras-chave: fotojornalismo, modernismo, verdade fotográfica.
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As reformas nos jornais brasileiros começam em 1943 no Diário Carioca, pelas mãos de Danton Jobim e Pompeu de Souza, com mudanças que incorporam técnicas norte-americanas de redação e inovações da linguagem literária encetadas pelo movimento modernista. Apesar de publicar fotografias, inclusive na primeira página, este jornal não tinha tradição no uso desta linguagem e em sua luxuosa sede não havia sequer laboratório fotográfico.[1]
Herdeira do legado modernizador do jornalismo e da valorização do profissional do Diário Carioca surge, em 1951, a Última Hora. Fundada por Samuel Wainer, este jornal tem uma contribuição pioneira e fundamental para a renovação do jornalismo no Brasil, inovando na forma e no conteúdo, além de apelar para estratégias empresariais que transformam radicalmente a imprensa brasileira. Em relação à fotografia a UH promove uma verdadeira revolução, praticando pela primeira vez o fotojornalismo nas páginas dos diários brasileiros.
O fotojornalismo, linguagem que Wainer incorpora às páginas de seu jornal, consiste não mais em produzir fotografias para ilustrar uma história, mas em transformar as imagens produzidas pela câmera no próprio fio condutor da narrativa. Esta nova linguagem chega ao Brasil em 1943, pelas lentes do fotógrafo francês Jean Manzón e aos poucos transforma a revista ilustrada O Cruzeiro num fenômeno de vendagem com tiragens de até 700 mil exemplares, proporcionalmente as maiores da história da imprensa no país.
Oito anos após, Wainer implanta o fotojornalismo na Última Hora e o que já fora um complicado processo na poderosa revista semanal, num jornal diário recém lançado será um grande desafio. A renovação visual deste jornal se baseia na valorização da fotografia, publicando muitas fotos em grandes formatos e apostando nas imagens não estáticas, além de inaugurar as famosas seqüências fotográficas. A UH também passa a assinar as fotografias, prática antes restrita às revistas ilustradas.[2] A Última Hora é, portanto, a pioneira na utilização do fotojornalismo nos diários cariocas e o embrião do que viria a ser a grande transformação na utilização da linguagem fotojornalística nos jornais de todo o país.
Em 1956, Reinaldo Jardim cria no Jornal do Brasil o Suplemento Dominical. A seguir Odilo Costa Filho, junto a um grupo de jovens jornalistas que já haviam experimentado as transformações do Diário Carioca e da Tribuna da Imprensa, coordena uma ampla reformulação no jornal. Em 1957 o JB passa a publicar fotografias na primeira página, que até então só trazia anúncios, especialmente de empregos, o que lhe rendera o apelido de "Jornal das Cozinheiras".[3]
É o início do processo que ficaria conhecido como a "reforma do Jornal do Brasil" abrangendo também a reestruturação do parque gráfico, a reorganização administrativa e a implementação de mudanças nas práticas de redação e apuração, com a adoção das técnicas pioneiras do Diário Carioca, além de inovações no marketing.[4] O investimento premia a fotografia com a formação de um novo corpo de fotógrafos e a melhoria da qualidade da impressão.
Outro marco na incorporação da linguagem fotojornalística no JB é a página de esportes onde Carlos Lemos e Jânio de Freitas vão buscar novas formas de publicação da fotografia, junto a mudanças no estilo dos textos e na diagramação.[5]
Odilo deixa o jornal em 1958 e é substituído por Jânio de Freitas que promove uma radical transformação na primeira página, que passa a ser ocupada por notícias, mantendo apenas uma faixa de anúncios em forma de “L”. As modificações gráficas são comandadas pelo escultor construtivista Amílcar de Castro e permitem a definitiva incorporação da linguagem fotojornalística ao jornal.
Jânio leva para o JB o fotógrafo Erno Schneider, que viria a ser um dos mais importantes editores de fotografia brasileiros. Isso se dará um pouco mais tarde, no Correio da Manhã, mas Erno já experimenta as transformações no uso da fotografia no Jornal do Brasil:
Na época o Jornal do Brasil era covardia em matéria de fotografia. Sempre trazia uma foto diferente dos outros. [...] Apostavam na foto diferente. [...] Publicavam a fotografia na primeira página. O JB na época era o máximo do jornalismo fotográfico. [...] Tinha um prêmio toda semana para quem fazia a primeira página. No fim do mês quem tinha feito mais primeiras páginas ganhava o prêmio (em dinheiro). [6] (grifo meu).
A valorização salarial e profissional, iniciada na Última Hora, é seguida pelo JB, que incentiva a produção de boas fotografias, não apenas pelo prêmio em dinheiro, mas especialmente pelo prestígio que o fotógrafo conquista ao publicar na primeira página.
A consolidação das transformações no JB se dá com a entrada de Alberto Dines, em 1962, que sistematiza as mudanças anteriores e introduz inovações importantes para a fotografia:
Criamos editorias também, isso não existia. [...] Mesmo a fotografia não era uma editoria, mas sim um departamento, era o gerente da fotografia quem controlava o uso das câmeras. Nós criamos o conceito de editoria[7], o que não era apenas uma formalidade administrativa, porque gerava um trabalho colegiado muito intenso e participativo. Se o sujeito é um editor, ele tem que participar e dar palpite. O editor de fotografia já selecionava as fotos que ele achava melhores e não deixava para o sujeito que estava paginando a primeira página.[8]
Em 1962 o JB ganha seu primeiro Prêmio Esso, o de Fotografia[9], o segundo atribuído à categoria e o primeiro relativo à fotografia concedido a um jornal diário, com a foto de Erno onde o presidente Jânio Quadros aparece de costas, com as pernas trocadas e o título "Qual o Rumo?". Além de agregar prestígio, o prêmio é mais um incentivo aos fotógrafos e o reconhecimento da importância da fotografia para o jornal.
Comentando as transformações na fotografia do JB, Alberto Jacob, fotógrafo do jornal na época, reputa como diferencial a qualidade do trabalho dos fotógrafos e as inovações no uso da linguagem:
A linguagem da fotografia no Jornal do Brasil foi uma linguagem completamente diferente das outras empresas. Nós não usávamos flash. Eu usava uma Leica quando comecei. E fazíamos tudo com luz ambiente. (grifo meu)
Jacob, como Erno no depoimento anterior, ressalta a diferença e a qualidade da fotografia do JB em relação aos outros jornais, o que reforça uma das bases da construção da identidade deste grupo que vai se impondo no cenário fotojornalístico. Esta posição é reforçada quando assinala a liberdade de ação do repórter-fotográfico:
Eu não cumpria pauta. Eles me davam um carro com dinheiro pra almoçar, eu pegava o carro de manhã e saía por aí. Voltava com três, quatro matérias. [...] Eu saía pela Zona Norte, ia até Santa Cruz, voltava pela Zona Zul, voltava com as matérias.
Mas o fotógrafo aponta como fundamental para o sucesso da editoria de fotografia do JB o bom ambiente de trabalho e a sintonia da imagem com o texto escrito:
Na fotografia a gente discutia a foto, o corte. Muitas vezes um chamava a atenção pra um detalhe que o fotógrafo estava desprezando, melhorando o resultado [...]. Na redação os redatores discutiam o melhor título, tanto da matéria quanto das fotos. Fechavam o jornal onze, meia-noite, uma hora. Aí eles iam jantar e aquele que tinha dado o melhor título não pagava a conta. [...][10]
O depoimento de Jacob chama a atenção para o processo de naturalização da memória que ele, como membro de um grupo que vai se tornando hegemônico, adota para embotar as resistências e combates internos que certamente aconteciam na redação. As transformações que se operam no corpo do jornal e os novos paradigmas fotográficos que vão sendo adotados se inserem no grande campo de disputa em que se transformam a imprensa e a sociedade do Rio de Janeiro.
A música, o cinema, a arquitetura, a literatura, as artes em geral e os diversos movimentos intelectuais procuram se inserir na modernidade e o JB vai encarnar este processo, assumindo o perfil de parte da classe média urbana brasileira, especialmente a carioca. A ideologia do nacional-desenvolvimentismo, que aposta no crescimento econômico para superar o atraso, desponta também para setores do campo cultural como o caminho para a inserção na modernidade e de um novo ordenamento político-social. O JB vai ganhando terreno e se impondo como um dos mais importantes jornais do país, ameaçando diários tradicionais como o Correio da Manhã, como relata Jânio de Freitas, que assume a chefia de redação e o cargo de diretor superintendente do Correio em maio 1963:
A minha vida foi toda em torno desse nome: CM. Eu cresci como filho do Correio da Manhã. Passei a viver como sendo o Correio da Manhã. Toda a vida fui a jantares, a todos os lugares, sempre ouvindo: o Correio da Manhã disse isso, o Correio da Manhã disse aquilo, o Correio da Manhã publicou tal coisa. Passei todos esses anos fora do país e quando chego aqui, vou aos lugares, aos encontros e ouço os comentários, mas o nome não é mais Correio da Manhã, é Jornal do Brasil. O Jornal do Brasil disse isso, publicou aquilo. [11]
Jânio fora contratado pelo dono do jornal, Paulo Bittencourt que, depois de passar dois anos na França, encontra na volta o Jornal do Brasil como a nova referência no jornalismo carioca.
Em 1953 Antônio Callado assume a chefia de redação, procurando transformar o vetusto e influente Correio da Manhã num jornal mais moderno. Em 1955, Bittencourt faz pesados investimentos no parque gráfico, o que provoca diversas mudanças editoriais.[12] Entretanto, com a concorrência nos calcanhares, é preciso inovar mais uma vez. Jânio investe na reestruturação administrativa do jornal e traz com ele Amílcar de Castro e outros profissionais que haviam participado da reforma do Jornal do Brasil. A fotografia é valorizada, ocupando grande espaço na primeira e última páginas do primeiro caderno. O resultado é imediato e em cerca de quarenta dias o Correio volta a ser o primeiro jornal em circulação na Guanabara.[13]
Entretanto a experiência dura pouco: em agosto Bittencourt morre e o jornal passa para as mãos de sua segunda mulher, Niomar Muniz Sodré Bittencourt, desafeta das reformas de Jânio que no final de outubro deixa o jornal junto com sua equipe. Desta forma, no mesmo ano de 1963, o CM inicia uma nova fase em que são descartadas as mudanças editoriais de Jânio, mas mantido o perfil legalista e liberal-conservador de Bittencourt, embora se colocando abertamente contra o governo João Goulart. O jornal radicaliza apenas no final do processo que leva ao golpe militar, quando publica os famosos editoriais na primeira página: "Basta" em 31 de março e "Fora" em 1( de abril de 1964.
Mas já em 3 de abril o Correio começa a demonstrar sua insatisfação com o rumo que toma o movimento militar, com o editorial "Terrorismo, não" na primeira página e "Basta, fora a ditadura" na página 6.
A partir daí o jornal irá se engajar na luta pelo fim do regime de exceção e em 12 de abril, dia seguinte à eleição para presidente do marechal Castelo Branco, o CM publica uma foto de soldados com metralhadoras apontadas para o Congresso Nacional com o título: "Eleição tutelada" e a legenda: "A metralhadora da foto foi inútil; serviu apenas de moldura".
Inicia-se ali uma das mais importantes experiências da utilização do fotojornalismo como instrumento para respaldar o discurso crítico de um jornal.
Até então o fotojornalismo no Correio não se destacava particularmente como linguagem, tendo sido valorizado na curta gestão de Jânio de Freitas. A equipe de oito fotógrafos, chefiada por Bueno Filho, não tinha nenhum nome expressivo, até que em abril de 1964 Erno Schneider é convidado pela própria Niomar para ser Editor de Fotografia, cargo até então inexistente no jornal. Erno vai promover a renovação da equipe, procurando manter os antigos fotógrafos:
O seu Bueno que era o chefe. Eu cheguei lá todo sem jeito, mas ele continuou trabalhando. Fazia o trabalho dele, "O Jerico", uma coluna que O Correio tinha sobre os problemas da cidade, os buracos da rua. Mas ele continuou ganhando a mesma coisa.
Quando eu fui prá lá quis formar a minha equipe. Chamei o Fernando Pimentel, Rodolpho Machado, Luis Pinto, Osmar Gallo. Botei uma equipe quase renovada. O pessoal lá era muito bitolado.[14] (grifo meu)
A ruptura que não havia sido necessária na Última Hora por ser um jornal novo, mas que fica clara no Jornal do Brasil já a partir do depoimento de Dines é agora ainda mais explícita. Aos antigos chefes, "gerentes" encarregados da distribuição de pauta e equipamento ficam reservadas as coberturas menos valorizadas. Os antigos fotógrafos da casa, os "bitolados", mesmo mantendo o emprego, vão exercer as funções do "foca", enquanto a equipe "renovada" vai viver uma das mais ricas experiências do fotojornalismo brasileiro.
Erno chega com carta branca da direção e promove uma transformação radical em todos os aspectos, do salário dos profissionais, que fica em média 30% mais alto que o dos outros jornais[15] aos métodos de trabalho e equipamento. Uma das primeiras medidas é substituir as ultrapassadas câmeras Rolleiflex pelas modernas japonesas Pentax e Nikon e instituir a função de laboratorista, desobrigando o fotógrafo de chegar da rua e ter de revelar seus filmes e copiar as fotos. Mas a principal mudança vai se dar na relação entre o fotógrafo e o corpo do jornal, dos editores, repórteres e redatores aos motoristas e contínuos:
Eu ia ver com o chefe de reportagem quais as matérias que tinham na pauta, estudava aquilo tudo e (os fotógrafos) saíam para a rua. Quando não tinha pauta para fotografia a gente bolava a matéria, fazia e entregava. [...]
Antes havia uma hierarquia, o repórter dizia: "esse aqui é o meu fotógrafo", ou "bate uma chapa aqui". Naquele tempo tinha essa mania, o fotógrafo tinha que fazer o que o repórter mandava. Antigamente o repórter era o dono do fotógrafo. [16] (grifo meu).
A mudança nas relações de poder que já vinham ocorrendo no Jornal do Brasil vão se consolidar no Correio da Manhã. Algumas alterações são simples mas importantíssimas, como a posição dos jornalistas nos carros de reportagem. Até então o repórter ocupava o banco da frente e o fotógrafo ia atrás. Chegando ao local da matéria o fotógrafo era o último a sair, podendo até perder a foto do acontecimento. Erno inverteu as posições, com o argumento que o repórter pode perfeitamente apurar o fato depois de acontecido enquanto o fotógrafo tem que estar em cima do lance. Este procedimento é obedecido até hoje nos jornais.
O novo status do repórter fotográfico, viajando no banco da frente, com equipamento de última geração, com seu trabalho considerado de importância igual ao texto, marca profundamente esta nova geração. Em muitas ocasiões a fotografia chega a ser mais valorizada que o texto e o Correio da Manhã vai apostar nos ensaios fotográficos, já consagrados no Jornal do Brasil:
Começamos com a página gráfica no Correio. O Segundo Caderno geralmente tinha uma página gráfica. E quando não tinha nada eu pegava o fotógrafo e perguntava: "tem alguma idéia? Então vamos fazer o seguinte: você sai aí e no fim do dia vê se traz alguma coisa boa." Geralmente trazia [...] e dava uma boa matéria gráfica. E o jornal publicava mesmo. [17]
Mas as mudanças não se davam apenas na liberdade de criação. O fotógrafo geralmente entrava no laboratório junto com o editor e o laboratorista e ali se discutia a melhor foto, o corte mais adequado, enfim, uma pré-edição que podia envolver vários fotógrafos. No final do dia, Erno, o chefe de reportagem e o editor-chefe decidiam de que forma a imagem seria publicada: tamanho, posição na página. Mas a decisão de que foto iria para a primeira página invariavelmente era de Erno.[18]
As transformações que acontecem no fotojornalismo nos países centrais, entre elas a criação em 1947 da agência Magnum[19], influenciam os fotógrafos no Brasil, apesar da realidade profissional aqui ser outra, já que não há, naquele momento, mercado para autônomos, ou seja, jornais e revistas não compram fotografias, com exceção das de agências estrangeiras. A Magnum também vai exercer forte influência na linguagem, sintetizadas nas imagens e preceitos de Henri Cartier-Bresson, considerado o pai do fotojornalismo moderno. Com formação de desenhista, Cartier-Bresson leva para a fotografia a organização geométrica do espaço e o rigor formal e é também responsável pela elaboração da teoria do "instante decisivo", que vai se transformar em um dogma para diversas gerações de fotógrafos:
Na fotografia existe um novo tipo de plasticidade, produto das linhas instantâneas tecidas pelo movimento do objeto. O fotógrafo trabalha em uníssono com o movimento, como se este fosse o desdobramento natural da forma como a vida se revela. Entretanto, dentro do movimento existe um instante no qual todos os elementos que se movem ficam em equilíbrio. A fotografia deve intervir neste instante, tornando o equilíbrio imóvel. [...] [20]
Como já acontecia no Jornal do Brasil o aproveitamento da luz natural e a busca da espontaneidade são extremamente valorizadas. É a consolidação no jornalismo diário carioca de uma vertente do fotojornalismo que já se praticava em O Cruzeiro, tendo como principal expoente o fotógrafo José Medeiros, além de Flávio Damm, Luciano Carneiro, Eugênio Silva, Henri Ballot, Luis Carlos Barreto entre outros. Esta escola se opões em muitos pontos à práticas fotográficas que Jean Manzon introduzira no país[21] e vai ganhando terreno a ponto de se tornar um paradigma do fotojornalismo moderno.
Mas não é só a escola francesa que inspira os fotógrafos brasileiros. A revista norte-americana Life, criada em 1936, já havia se consolidado como a referência do fotojornalismo moderno praticado dentro de um órgão de imprensa. Se a Magnum vendia suas fotos para os quatro cantos do mundo, inclusive para a Life, esta revista mantinha um dos mais altos padrões de fotojornalismo da história. Se o fotógrafo tinha toda a liberdade e estrutura para produzir na Magnum, é na Life que suas fotos vão alcançar o maior número de leitores do planeta: com tiragem inicial de 466 mil exemplares, em um ano chega a um milhão e em 1972 a mais de oito milhões de exemplares.[22]
E é principalmente entre estes dois modelos que os fotógrafos brasileiros gravitam, buscando se modernizar.
Mas por que canais estas informações chegam a estes profissionais? Por que caminhos a modernidade na fotografia, experimentada intensamente nos países centrais desde o início do século XX, chega aos fotógrafos de imprensa brasileiros?
A regulamentação da profissão de jornalista é de 1938, atendendo a antiga reivindicação dos próprios profissionais que em 1918 decidem em congresso pela necessidade de qualificação da categoria em nível superior. Já nesta regulamentação é prevista a criação de cursos de jornalismo, que começam a surgir na década de 1940. Antes disso, em 1935, Anísio Teixeira cria a Universidade do Distrito Federal que tem entre seus cursos o de "Jornalismo e Publicidade", mas a experiência dura pouco: em 1939 a UDF é desativada pelo governo.[23] Em 1943, Getúlio Vargas cria o curso de Jornalismo da Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, cuja instalação efetiva se dá em 1948. Este novo celeiro de profissionais, agregado às reformas, gera um novo perfil de repórter. O nível intelectual se eleva e os jornais investem na formação profissional com os manuais de redação e no treinamento interno. Mas para a fotografia de imprensa não há nenhum espaço de preparação profissional específico. A disciplina sequer consta dos primeiros currículos dos cursos de jornalismo como também não é contemplada nos manuais de redação. A formação profissional se dá na prática, o que é bastante valorizado pelos fotógrafos desta geração.
Mesmo O Cruzeiro, que só contrata a elite do fotojornalismo brasileiro, nunca investiu no seu aprimoramento, como observa o fotógrafo Flávio Damm:
O Cruzeiro nunca pensou em fazer um curso de inglês ou de francês. Nunca pensou em contratar um professor de espanhol. Nunca se interessou em assinar revistas de arte. O que nós tínhamos de revista de fotografia, nós assinávamos. [...] Tudo que nós aprendemos, toda a bagagem cultural que alguns de nós assimilamos, foi por conta própria. O Cruzeiro era absolutamente indiferente. [...] Então se criou uma casta de quem falava francês, de quem falava inglês, que era o meu caso e do Zé Medeiros. [...] O Cruzeiro nunca se preocupou sequer em pagar um professor de português. [24]
É interessante que Damm enfatiza a carência de investimento no aperfeiçoamento cultural e intelectual do fotógrafo, inclusive da necessidade do ensino de idiomas, mas fala brevemente sobre as revistas de arte e fotografia que eles próprios assinam, talvez o único material de que dispunham para se manterem atualizados.
Em meados do século XX já existem bons cursos de fotografia no Rio de Janeiro[25]. Entretanto, a especificidade do fotojornalismo demanda um treinamento adicional, que possibilite ao repórter levar para o jornal a notícia em forma de imagem. Se o aprendizado só pode se dar na prática, cria-se então uma situação que faz com que o ingresso no jornal dependa não apenas do talento do aspirante, mas também da rede de conhecimentos que o futuro repórter-fotográfico consiga construir.
Uma das opções é o aprendiz conseguir um estágio, geralmente não remunerado, em um estúdio fotográfico, onde vai tomar contato com a profissão, comprar uma câmera, começar a fazer fotos e oferecê-las aos jornais. Mostrando seu trabalho tem mais chances de ser reconhecido e eventualmente contratado. Damm, como tantos outros, seguiu esta trajetória:
Com 14 anos eu consegui comprar uma máquina fotográfica muito barata, uma Mini Brownie, e comecei a fazer fotografia. [...] Aí fui à redação de jornal e procurei fotógrafos pra entender, pra freqüentar laboratório e comecei a conhecer a mecânica, comecei a ler. Logo em seguida comecei a estudar inglês e tive acesso a livros. E acabei indo trabalhar na Revista do Globo[26] [...] onde descobri um alemão chamado Ed Keffel, que foi meu mestre e depois foi meu colega de O Cruzeiro. Então eu pedi um emprego lá no estúdio pra poder estar perto da Enciclopédia (de fotografia), a única publicação que tinha. No laboratório eu comecei lavando cópia, varria o estúdio e estudava. [27]
Vários depoimentos de fotógrafos do período coincidem com o de Damm, e nos permitem concluir que a valorização do repórter-fotográfico se baseia no aumento do profissional, na ampliação do espaço de publicação de suas fotos, na modernização do equipamento e no aumento dos salários. Mesmo o crédito das fotos é uma prática bissexta. A questão da elevação do nível de instrução não é colocada em nenhum momento, o que nos leva a acreditar que fotógrafos, chefias e a categoria como um todo não vêm necessidade de que o profissional encarregado de produzir as imagens tenha educação formal ou específica fora da rotina jornalística.
Mas, se profundas transformações acontecem nos departamentos fotográficos e na relação de poder que se estabelece nas redações, se editores de fotografia têm assento nas reuniões de pauta, voz ativa no fechamento das edições e acesso direto à direção dos jornais, por que o aprimoramento acadêmico dos fotógrafos não é valorizado e o dos demais repórteres incentivado?
Os trabalhos acadêmicos sobre texto, diagramação e caricatura que contemplam este riquíssimo e basilar período do jornalismo brasileiro, em geral não deixam de mencionar a relevância que a fotografia ganhou nos veículos que participaram desta transformação. O fotojornalismo e a fotografia do período também têm sido objeto de pesquisas específicas, fundamentais para seu entendimento, embora em escala muito menor do que as voltadas para o texto e as transformações gráficas. Mas o resultado destas investigações leva a crer que o fotojornalismo foi "beneficiado" pelas reformas, ou seja, num período de mudanças abriu-se espaço para a fotografia, ela se constituiu como linguagem, com especificidades para a imprensa, e com isso conquistou um espaço privilegiado nas páginas dos jornais.
Como se viu, as reformas dos jornais diários cariocas fazem parte do processo por que passa a sociedade brasileira no período, que experimenta uma crescente urbanização e acelerada industrialização, que reconfiguram toda a estrutura social que se moderniza a passos largos. A modernização da imprensa é resultado deste processo, na medida em que só sobrevivem as empresas que se adequaram à nova conjuntura.
Esta adequação consiste em adotar formatos que insiram o jornalismo na modernidade, e se traduz na busca de técnicas que levem o leitor a acreditar que o que está ali publicado é a verdade tal qual aconteceu e não mais uma visão do fato. Em outras palavras, transformar o jornalismo num ator socialmente reconhecido, conquistando assim o direito de exercer uma "fala autorizada".
Esta é também uma característica inerente à fotografia desde a sua invenção. O mito da verdade fotográfica se baseia na capacidade que a imagem técnica teria em espelhar a realidade. Imagens não são questionadas, apenas registram o mundo como ele é. A fotografia de imprensa, mais que qualquer outra imagem, seria ainda mais "real", especialmente a praticada pela escola que preconiza a não intervenção na cena fotografada.
Esta é a linguagem adotada no modelo de fotojornalismo que se tornou hegemônico com as reformas e se transformou em um importantíssimo instrumento de validação da autoridade jornalística. Não é por outro motivo que os jornais mais importantes neste processo de reforma e que se transformaram em paradigmas da renovação do período foram justamente os que apoiaram seu discurso no fotojornalismo.
O jornalismo diário, portanto, procurou responder à necessidade de consumo de imagens em uma sociedade que se apressava, se apropriando do mito da verdade fotográfica para legitimar seu discurso como fala autorizada. Desta forma, a discussão crítica acerca da produção desta imagem não contribuiria de forma positiva para esta legitimação, o que pode ser apontado como um dos motivos que levou os responsáveis pelas reformas da imprensa no período a relevar a educação formal e específica dos fotógrafos. Afinal, quando a discussão crítica a respeito da fotografia desponta nos meios intelectuais, alguns anos mais tarde, vai justamente caminhar no sentido de desmontar a propriedade da fotografia de ser o espelho do real.
Bibliografia:
ANDRADE, Jeferson. Um jornal assassinado: a última batalha do Correio da Manhã. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
BAHIA, Juarez. Jornal, História e Técnica: história da imprensa brasileira. São Paulo: Ática, 1990.
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FERREIRA, Marieta de Moraes. A reforma do Jornal do Brasil. In: ABREU. Alzira Alves (org.). A Imprensa em Transição: o jornalismo brasileiro nos anos 50. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
OLIVEIRA, Gil Vicente Vaz. Imagens Subversivas: regime militar e o fotojornalismo do Correio da Manhã (1964 –1969). Niterói: 1996. 200 p. Dissertação (Mestrado em História) – Curso de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense. Niterói. 1996
RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Imprensa e História no Rio de Janeiro dos Anos 50. Rio de Janeiro: 2000. 335 p. Tese (Doutorado em Comunicação) – Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2000.
SOUSA, Jorge Pedro. Uma História Crítica do Fotojornalismo Ocidental. Chapecó: Grifos, 2000.
WAINER, Samuel. Minha razão de viver; memórias de um repórter. Rio de Janeiro; Record, 1988.
Entrevistas:
DAMM, Flávio. Entrevista a Ana Maria Mauad e Silvana Louzada em 07/10/2003, depositada no Laboratório de História Oral e Imagem do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (LABHOI-UFF).
DINES, Alberto. Memória da Imprensa Carioca.
JACOB, Alberto. Entrevista concedida a Ana Maria Mauad e Silvana Louzada em 18/06/2003. Depositada no Laboratório de História Oral do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.
SCHNEIDER, Erno. Entrevista concedida a Ana Maria Mauad e Silvana Louzada em 08/05/2003. Depositada no Laboratório de História Oral do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.
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[1] WAINER, Samuel. Minha razão de viver; memórias de um repórter. Rio de Janeiro; Record, 1988.
[2] RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Imprensa e História no Rio de Janeiro dos Anos 50. Rio de Janeiro: 2000. 335 p. Tese (Doutorado em Comunicação) – Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2000.
[3] FERREIRA, Marieta de Moraes. A reforma do Jornal do Brasil. In: ABREU. Alzira Alves (org.). A Imprensa em Transição: o jornalismo brasileiro nos anos 50. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
[4] BAHIA, Juarez. Jornal, História e Técnica: história da imprensa brasileira. São Paulo: Ática, 1990.
[5] FERREIRA. op. cit.
[6] SCHNEIDER, Erno. Entrevista concedida a Ana Maria Mauad e Silvana Louzada em 08/05/2003. Depositada no Laboratório de História Oral do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.
[7] Nota da redatora: O gerente (ou chefe) a que Dines se refere era Hélio Pontes. A Editoria de Fotografia foi ocupada primeiramente por Dilson Martins e depois por Alberto Ferreira.
[8] Entrevista com Alberto Dines em 21 de agosto de 2002 para Memória da imprensa carioca/UERJ. Disponível em: . Consultado em 26/08/2004.
[9] Prêmio Esso de Jornalismo é instituído em 1956 e contempla repórter e fotógrafo de O Cruzeiro (Mário de Moraes e Ubiratan de Lemos). Em 1960 é instituído o "Voto de Louvor" para fotografia (Campanela Neto/Revista Mundo Ilustrado) e em 1961 é criado o Prêmio Esso de Fotografia (Sérgio Jorge/Revista Manchete).
[10] JACOB, Alberto. Entrevista concedida a Ana Maria Mauad e Silvana Louzada em 18/06/2003. Depositada no Laboratório de História Oral do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.
[11] ANDRADE, Jeferson. Um jornal assassinado: a última batalha do Correio da Manhã. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
[12] Ribeiro. op. cit.
[13] OLIVEIRA, Gil Vicente Vaz. Imagens Subversivas: regime militar e o fotojornalismo do Correio da Manhã (1964 –1969). Niterói: 1996. 200 p. Dissertação (Mestrado em História) – Curso de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense. Niterói. 1996
[14] SCHENEIDER. 08/05/2003
[15] OLIVEIRA. op. cit.
[16] SCHENEIDER. 08/05/2003
[17] ibid.
[18] ibid.
[19] Fundada em Paris por Robert Capa, David Seymour (Chim), Henri Cartier-Bresson e George Rodger a Magnum é um dos principais marcos da organização do fotojornalismo como atividade independente e comandada pelos próprios fotógrafos que passam a ter propriedade dos negativos e o controle na edição das fotografias,além de exigir a publicação do crédito do fotógrafo bancar projetos pessoais dos seus associados.
[20] CARTIER-BRESSON, Henri. The Decisive Moment, New York: Verve and Simon and Schuster. 1952. (tradução livre)
[21] Manzon era adepto da fotografia encenada, bem iluminada artificialmente, em geral em ambientes fechados. A preocupação estética do fotógrafo (ao menos na fase brasileira) se sobrepunha ao instantâneo, à captura do momento.
[22] SOUSA, Jorge Pedro. Uma História Crítica do Fotojornalismo Ocidental. Chapecó: Grifos, 2000.
[23] Ribeiro. op. cit.
[24] DAMM, Flávio. Entrevista a Ana Maria Mauad e Silvana Louzada em 07/10/2003, depositada no Laboratório de História Oral e Imagem do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (LABHOI-UFF).
[25] A ABAF, Associação Brasileira de Arte Fotográfica, fundada em 1951, foi uma das entidades responsáveis pela difusão da técnica fotográfica. Posteriormente a escola de Artes Visuais do Parque Lage, a Escola Superior de Desenho Industrial (com os professores Humberto Francheschi e Roberto Maia) e o Museu de Arte Moderna – MAM (professores Afonso Beato e Georges Racz) formariam diversos profissionais, alguns deles tendo se encaminhado ao fotojornalismo.
[26] Revista publicada no Rio Grande do Sul entre 1929 a 1967.
[27] DAMM, Flávio. Entrevista a Ana Maria Mauad e Silvana Louzada em 24/04/2003, depositada no Laboratório de História Oral e Imagem do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (LABHOI-UFF).
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