Ministério Público do Estado de São Paulo



EXCELENT?SSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA ___ VARA C?VEL DO FORO CENTRAL DA COMARCA DA CAPITALO MINIST?RIO P?BLICO DO ESTADO DE S?O PAULO, por seus Promotores de Justi?a de Direitos Humanos, área de Inclus?o Social, infra-assinados, no uso de suas atribui??es legais, com fundamento nos artigos 37, caput e § 4?, 127 e 129, incisos II e III, da Constitui??o Federal; no artigo 25, inciso IV, alíneas “a” e “b”, da Lei Federal n° 8.625/93; no artigo 103, inciso VIII, da Lei Complementar Estadual n° 734/93; e no artigo 1°, inciso IV, da Lei Federal n° 7.347/85, vem, respeitosamente, perante Vossa Excelência, promoverA??O CIVIL PUBLICAem face de J?LIO COCIELO, pessoa física, casado, influenciador digital, portador da cédula de identidade n? 48.844.408-1, inscrito no CPF sob o n? 362.413.628-36, com endere?o na Rua Jo?o Dante, n? 46, bairro Quitaúna, no município de Osasco (SP), CEP n° 06192-090, para que sejam acolhidos os pedidos ao final formulados em raz?o dos fatos e fundamentos jurídicos a seguir aduzidos.SINOPSE. A??o Civil Pública contra Júlio Cocielo. Youtuber. Publica??es racistas no período compreendido entre 2010 e 2018. Prática sistemática de racismo no ambiente virtual. Utiliza??o da rede social Twitter para viola??o de direitos fundamentais. Ofensa a direitos de matiz constitucional. Viola??o aos direitos humanos. Viola??o da Constitui??o Federal e de Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Caracteriza??o de dano social. Responsabilidade civil. Obriga??o de fazer consistente no pagamento de indeniza??o. Fundo previsto na Lei n? 7.347/85. Os fatos.Chegou ao conhecimento desta Promotoria de Justi?a de Direitos Humanos, ?rea da Inclus?o Social, dela??o contra o youtuber Júlio Cocielo, primeiramente formulada ao Ministério Público do Estado da Bahia que, por sua vez, a encaminhou a este Ministério Público paulista.A representa??o diz respeito a diversos comentários racistas que o réu vem publicando em seu perfil da rede social “twitter” desde 2010. O último episódio ocorreu durante a Copa do Mundo de futebol masculino de 2018, ocasi?o em que o réu, referindo-se ao jogador da sele??o francesa Kylian Mbappé Lottin, publicou o seguinte post: Trata-se de um jovem jogador negro, francês de ascendência camaronesa, de complei??o física robusta e que mostrou, nos jogos da sele??o francesa na Copa da Rússia, impressionantes velocidade e explos?o, daí advindo, em notória manifesta??o de racismo, a sua associa??o com os assaltantes (negros, na ótica do autor) que praticam crimes de roubo nas praias brasileiras, sobretudo fluminenses, sempre sob contínua e desabalada corrida.Após grande repercuss?o e desaprova??o social diante dessa última publica??o racista, Cocielo apagou mais de 50.000 (cinquenta mil) tuítes. Antes do comentário sobre o jogador francês, realizado no dia 30 de junho de 2018, o youtuber contava com 81.600 (oitenta e uma mil e seiscentas) publica??es no Twitter. No dia seguinte, 01 de julho, apenas 32.400 (trinta e duas mil e quatrocentas) estavam contabilizadas e apenas um único tuíte aparecia em sua linha do tempo, a saber, um pedido de desculpas a respeito do comentário negativo, abaixo reproduzido. Já no dia 02 de julho, dois dias após o ocorrido, o número de tuítes havia caído novamente, dessa vez para 29.200 (vinte e nove mil e duzentas).O réu se desculpou publicamente com a postagem do seguinte texto:Dentre os tuítes apagados, menciona-se a seguinte “piada” racista, publicada em novembro de 2010, que refor?a o estereótipo repugnante direcionado aos negros, comparando-os com ladr?es:Em novembro de 2013, fez o réu uma postagem alegando ser contra a cor de pele dos negros, em uma declara??o de ódio racial direto e sem disfarce:Na semana de 20 de novembro, também em 2013, o réu fez alus?es negativas ao feriado da Consciência Negra:Essa última postagem refor?a, mais uma vez, o estereótipo que o réu emprega para se dirigir à popula??o negra, distorcido e preconceituoso, taxando-a de criminosa, na mesma linha da seguinte, na qual se referiu aos integrantes da banda musical Racionais, cujos integrantes s?o negros:Em 11 de dezembro de 2013, dia do jogo final da Copa Sul-Americana de futebol masculino entre os clubes campineiro Ponte Preta e o argentino Lanús, o réu comparou uma vizinha negra a uma macaca, em alus?o ao apelido da equipe de Campinas: Uma semana depois, quando o Atlético-MG perdeu para o clube marroquino Raja Casablanca no Mundial Interclubes, escreveu: Entre os anos de 2011 e 2014, Cocielo também fez inúmeros comentários ofensivos contra africanos e desdenhosos em rela??o à miséria que assola o continente: Quando da Copa do Mundo de futebol masculino de 2014, o réu se manifestou no sentido de ser negativa a existência de muitas negras e mulatas no Brasil e de figurarem em propagandas publicitárias:O réu demonstra plena consciência do caráter racista das suas publica??es, agindo com descaso para com as institui??es repressivas e certo de sua impunidade, como demonstram as postagens seguintes: Termina por desdenhar de sua impunidade, confessando publicar piadas racistas em pleno Dia da Consciência Negra, sem que fosse o reproduzido abaixo, acredita que pode fazer comentários racistas por se considerar “meio preto”, mais uma vez externando a consciência de que elabora publica??es racistas e voltadas a humilhar negros e negras. Por fim, declara sua afinidade com o racismo ao comentar de forma rasa a a??o afirmativa conhecida popularmente como “cotas raciais”, sabidamente voltada a promover a inclus?o de negros e negras em universidades e cargos públicos. Da manifesta??o, porque nada diz sobre a opini?o do réu acerca do mérito dessa política inclusiva, colhe-se somente seu teor racista.Essa última postagem é especialmente grave pois, além de o réu ser racista e ter essa consciência, pugna publicamente pelo extermínio da popula??o negra, em mais uma declara??o de ódio racial.Inconcebível que manifesta??es dessa estirpe permane?am impunes em um país que se quer justo e solidário; que pretenda ser democrático; que pretenda ser um Estado de Direito; que respeite todos os povos e todas as diferen?as, sem qualquer discrimina??o; em um país que pretenda concretizar a dignidade humana. Em um país, ademais, que tem maioria de pessoas pretas e pardas na composi??o de sua popula?? cinismo, e de novo acatando o seu próprio racismo, o réu publicou:Essas publica??es foram as poucas que puderam ser resgatas, lembrando que o réu, após o último episódio racista em que ele se referiu ao jogador de futebol francês, apagou mais de 50.000 (cinquenta mil) publica??es que realizou ao longo dos últimos anos, grande parte com caráter racista, machista e homofóbico.No que tange ao ?mbito criminal, a dela??o já foi devidamente encaminhada à Promotoria de Justi?a Criminal para conhecimento e eventuais providências. Cabe, no ?mbito da presente a??o civil pública, o pedido de indeniza??o pelos danos sociais causados pelo réu em raz?o da afronta à dignidade humana e demais valores constitucionais, o que n?o se desfaz com a remo??o das postagens, tampouco com o seu pífio pedido de desculpas, os quais, indubitavelmente, relacionam-se com os prejuízos financeiros sofridos pelo youtuber em suas rela??es comerciais, como a perda de patrocínios e campanhas publicitárias.O réu é um influenciador digital, o que, de acordo com a defini??o dada pela Wikipedia, “é uma pessoa ou personagem popular em uma rede social. Esses influenciadores possuem um público massivo que acompanha suas postagens e eventualmente as compartilha com outras pessoas”. A enciclopédia digital ainda completa:“essas novas personalidades originadas da internet n?o se restringem a apenas uma rede social, a uni?o delas faz com que eles alcancem um público maior e assim consigam firmar o seu espa?o. O surgimento desses novos formadores de opini?es digitais também causa uma mudan?a comportamental e de mentalidade em seus seguidores, que tendem a ser facilmente influenciados”.Incontestável, pois, o alcance das postagens do influenciador digital, profissional cada vez mais procurado, para patrocínios, por empresas e marcas que buscam se divulgar no meio das redes sociais. Júlio Cocielo é considerado um dos youtubers mais influentes do mundo. Em seus vídeos, ele faz paródias de músicas e fala sobre situa??es do cotidiano. De acordo com um ranking elaborado pela Snack Intelligence em 2017, que analisa o mercado audiovisual, Cocielo ocupa a sexta posi??o entre os vloggers mais influentes de todo o planeta.Mesmo após o último episódio racista, no dia da distribui??o desta inicial o influenciador contava com 17.230.771 (dezessete milh?es, duzentos e trinta mil, setecentos e setenta e um) seguidores em seu canal no youtube, 11.432.719 (onze milh?es, quatrocentos e trinta e dois mil, setecentos e dezenove) seguidores na rede social instagram, 7.498.302 (sete milh?es, quatrocentos e noventa e oito mil, trezentos e dois) seguidores na rede social twitter e 2.325.976 (dois milh?es, trezentos e vinte e cinco mil, novecentos e setenta e seis) seguidores na rede social facebook.Inclusive, a própria postagem contra o jogador de futebol francês que deu azo à representa??o que embasa esta demanda, obteve mais de 2.700 (duas mil e setecentas) repostagens pelos seguidores do réu.Desde o ocorrido, usuários das redes sociais, conscientes da repugn?ncia e do caráter criminoso das postagens, cobraram um posicionamento por parte das marcas que patrocinavam o réu, como a Coca-Cola, a Adidas, o Itaú e a Submarino.A Coca-Cola informou que n?o manteria mais nenhuma rela??o com Cocielo e que o último trabalho realizado em parceria com o réu teria sido a Olimpíadas de 2016. Em nota, a empresa divulgou que “O respeito à diversidade é um dos principais valores da nossa companhia, em nossas campanhas celebramos as diferen?as e promovemos a uni?o. Manifesta??es preconceituosas n?o s?o toleradas. Repudiamos qualquer forma de racismo, machismo, misoginia ou homofobia”.O Itaú, que exibia um vídeo com Cocielo durante a programa??o da Copa do Mundo, alegou ter retirado do ar todas as mídias em que ele figurava. Em comunicado, o banco afirma que “repudia toda e qualquer forma de discrimina??o e preconceito. Esperamos que o respeito à diversidade sempre prevale?a”.A Submarino, por sua vez, sustentou que irá monitorar os trabalhos de Cocielo. Em nota, a rede de comércio eletr?nico publicou: “? dever destas agências e agentes fazer este filtro e treinar estes influenciadores para mídias. ? importante que o influenciador seja analisado por todas as partes e treinado da melhor forma para a carreira”.Por fim, a marca de material esportivo Adidas, também reconhecendo o racismo na publica??o do youtuber, declarou em nota: “A Adidas é uma marca que repudia todo e qualquer tipo de discrimina??o. Portanto, decidimos suspender a parceria com o youtuber Cocielo”.Dentre os estudiosos de tal modalidade de mercado, há quem diga, inclusive, que a propaga??o de comentários racistas ou de outra forma ultrajantes é uma estratégia consciente para angariar fama e seguidores. De acordo com Gustavo Monteiro, consultor da PSBI/Levius, empresa de consultoria especializada em informa??o, “primeiro você atrai visibilidade, mesmo que associada a alguma coisa negativa, e depois vai mudando essa imagem. E por fim ainda tem o recurso do pedido de desculpas, que gera ainda mais repercuss?o”.A estratégia maliciosa n?o seria usada apenas por influenciadores: virou recurso para artistas, marcas e políticos desesperados por aten??o.No Twitter, mídia social que deu suporte às publica??es racistas do réu aqui comentadas,“quanto mais se fala em um assunto, mesmo que negativamente, mais ele aparece nos trending topics. Ao perceber que o usuário está criticando um conteúdo, o Facebook destaca este mesmo conteúdo na timeline de outros usuários com posicionamentos antag?nicos. Sem saber, o usuário pode estar ajudando a promover e difundir tudo aquilo de que discorda”.Luciana Bazanella, professora da FGV e palestrante nas áreas de marketing digital e gest?o de mídias sociais leciona que: “alguns profissionais já sacaram como funciona essa din?mica nas redes, e utilizam a falta de compreens?o do grande público para promover suas ideias”.? uma estratégia de inser??o que sempre foi usada e n?o é específica das redes. Lembra Pablo Ortellado, fundador do Monitor do Debate Político, tratar-se de uma ferramenta que acompanha a postagem e o compartilhamento de conteúdos em veículos jornalísticos. Diz ele:“mas se na mídia de massas eu tinha que atrair a cobertura da imprensa, hoje posso criar fatos for?ando as pessoas a falarem de você”.N?o restam dúvidas, pois, do caráter de discrimina??o racial que apresentam as publica??es de Cocielo e da enorme repercuss?o social que elas provocam, bem como do poder que o réu possui de influenciar os seus seguidores, pois é justamente essa a sua atividade profissional.Ao comentar o episódio, a youtuber Maristela Rosa, responsável pelo canal Papo de Preta, resumiu a quest?o:“dizer que o Cocielo foi racista em seu Twitter é óbvio e precisamos ir além disso. As marcas dizerem que s?o `à favor da diversidade? é lindo, mas n?o é o suficiente. Vivemos em uma sociedade onde ser uma pessoa negra é algo ruim, depreciativo, ligado à marginalidade; precisamos discutir sobre esse racismo com urgência”. De fato. ? preciso discutir e eliminar o racismo da sociedade brasileira, já que se constitui em relevante fator de desigualdade e exclus?o. Significativo contingente da popula??o – cerca de 54% -, que é constituída de pretos e pardos, vê-se cotidianamente retratada em estereótipos que refor?am conceitos e imagens negativas ou subalternas. Os negros, no imaginário nacional, s?o criminosos, analfabetos, favelados, profissionais desqualificados.... Enfim, transitam entre a rejei??o (que embasa sistemática negativa de direitos) e a invisibilidade.Um dos modos eficientes de se refor?ar este lamentável estado de coisas é a repeti??o contínua e criativa dos estereótipos. Lembra a antropóloga da UnB Jaqueline de Jesus que“o fen?meno do estereótipo, em particular, como fundamento dos preconceitos e discrimina??es, tem-se apresentado como um importante objeto de estudo da Psicologia Social, no sentido em que se insere no campo das rela??es de domina??o, explora??o, segrega??o e isolamento...”.E tais efeitos s?o eficientes porque levam cruelmente as vítimas a pensarem e agirem conforme s?o retratados nos estereótipos. Ensina a mesma professora e pesquisadora que“os estereótipos participam, de maneira essencial, da forma??o da autoimagem das pessoas, (...); as pessoas geralmente acreditam nos estereótipos acerca delas mesmas e se comportam como se fossem verdadeiros, endossando os estereótipos grupais no sentido de os transformarem em descri??es de suas identidades, auto estereotipando-se”.? evidência, a nefasta estratégia ganha maior dimens?o e reprovabilidade quando a repeti??o e o refor?o dos estereótipos acontecem em veículos de comunica??o ou por meio de canais de comunica??o em massa, como os espa?os virtuais das redes sociais. Ao discorrer sobre o modo sistêmico de se aplicar estratégias contra a discrimina??o racial, o conhecido professor e pesquisador da USP Hélio Santos lembra que:“os meios de comunica??o social (rádio, revista, jornais, literatura e, sobretudo, TV) têm a vis?o da sociedade dominante e servem a ela. Os meios de comunica??o agravam as dificuldades iniciais dos n?o-brancos (econ?micas e educacionais), fomentam a repress?o policial, retroalimentam o comportamento discriminador da sociedade e ainda refor?am a n?o-identidade dos n?o-brancos”.Dessa forma, o réu, ao fazer do refor?o dos estereótipos contra os negros numa mídia de largo alcance sua atividade profissional e sua fonte de renda, contribui de modo eficaz para a continuidade do racismo e de todas as suas consequências psíquicas, sociais, culturais, econ?micas e políticas, as quais condenam o Brasil a um patamar civilizatório reduzido.? preciso enfrentar tal situa??o e a tanto está sendo chamado o Poder Judiciário, no ?mbito de suas responsabilidades. A professora Maria de Lourdes Teodoro, da UnB, leciona que:“o racismo deve ser combatido em nome de princípios democráticos e humanitários, por via da promo??o da igualdade de direitos, do respeito às diferen?as individuais e grupais, pela promo??o de a??es afirmativas e medidas legais e administrativas compensatórias e reparadoras”.O réu Júlio Cocielo, em sua ilícita atividade de dissemina??o e consolida??o do racismo, imp?e à popula??o negra em particular enorme gravame psíquico e à popula??o brasileira em geral relevante prejuízo social. Obriga-se, em consequência, à indeniza??o.O Direito – Da Competência do Foro da CapitalCom o intuito de facilitar a defesa em juízo de interesses que transcendam os individuais, o microssistema processual coletivo previu regras especiais de competência para as a??es coletivas.Nesse sentido, a Lei n? 7.347/05, que disciplina a A??o Civil Pública de responsabilidade por danos a interesses difusos e coletivos, disp?e:Art. 2? As a??es previstas nesta Lei ser?o propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa.A diretriz de propositura da a??o no local onde ocorrido o dano, por ser regra especial, excepciona o quanto disposto nos artigos 46, caput, e 53, inciso IV, do Código de Processo Civil que, como regra geral, determinam como competentes o foro de domicílio do réu ou o local do ato ou fato, respectivamente.Preceitua o disposto mencionado, ademais, que a competência para o processo e julgamento das a??es civis públicas, ainda que atrelada ao elemento territorial do local da ocorrência do dano, diz respeito a uma competência funcional.De acordo com a li??o de C?ndido Rangel Dinamarco,“Diz-se funcional a competência quando a lei a determina automaticamente, decorrente do prévio exercício da jurisdi??o por determinado órg?o”. Tendo em vista que nenhum outro órg?o judiciário atuou anteriormente no caso e como n?o foram sequer instituídos juízos com competência funcional para a defesa de interesses difusos ou coletivos, conclui-se que a inten??o da lei foi a de assegurar que a competência, embora fixada em raz?o do local do dano, é absoluta e, em consequência, inderrogável e improrrogável por vontade das partes.O dano, no caso em pauta, é inegavelmente nacional. Isso porque os comentários racistas foram publicados por meio da rede mundial de computadores, que tem justamente a fun??o de possibilitar o acesso à informa??o a pessoas conectadas em qualquer lugar do mundo. Os seguidores do réu, os quais tiveram contato com as postagens racistas por ele publicadas ao longo de anos, encontram-se, n?o só em todo Brasil, como em diversos outros países.Assim, a fim de disciplinar a competência para a propositura de a??o coletiva para defesa de interesses cujos danos se deram em ?mbito nacional ou regional, disp?s o Código de Defesa do Consumidor:“Art. 93. Ressalvada a competência da Justi?a Federal, é competente para a causa a justi?a local:I – (...)II - no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de ?mbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente”.N?o obstante essa disposi??o perten?a ao capítulo do CDC referente às a??es coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos, n?o há outra norma dentro do microssistema processual coletivo que regule os danos nacional ou regionais, motivo pelo qual, conforme ensina Hugo Nigro Mazilli,“ela se aplica analogicamente para definir a competência em caso de danos a todos os interesses transindividuais, como ao meio ambiente, ao patrim?nio cultural ou quaisquer outros”.Logo, conclui-se que a competência para o processo e julgamento desta a??o civil pública de responsabilidade por danos sociais, de ?mbito nacional e para a tutela de interesse difuso é, dentre os foros do Distrito Federal e de outras capitais de Estados-Membro, daquele em que primeiro houver o ajuizamento da demanda. No caso, portanto, do foro desta Capital do Estado de S?o Paulo.O Direito – Da Responsabilidade Civil.A responsabilidade civil está necessariamente relacionada à existência de uma obriga??o prévia, pois é a partir da viola??o desse dever jurídico originário, que nasce a responsabilidade como dever jurídico sucessivo. E o respaldo da obriga??o originária, no campo jurídico, encontra-se no princípio fundamental da “proibi??o de ofender”, conforme lecionam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, citando Ulpiano.Assim, àquele que viola o limite objetivo da liberdade individual em uma sociedade civilizada, lesando outrem, imp?e-se o dever de assumir as consequências jurídicas de seu ato, as quais devem variar de acordo com os interesses lesados.Isso porque, ao violar o dever jurídico originário de n?o ofender outrem, por meio de uma a??o voluntária, causando-lhe dano, o indivíduo estará agindo com culpa, na sua acep??o civil, e cometendo ato ilícito.? exatamente nesses termos que disp?e o artigo 186 do Código Civil, in verbis:“Art. 186. Aquele que, por a??o ou omiss?o voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.A responsabilidade civil, portanto, decomp?e-se nos seguintes elementos: conduta (positiva ou negativa), dano e nexo de causalidade, sendo certo que, em regra, “a obriga??o de indenizar (reparar o dano) é a consequência juridicamente lógica do ato ilícito”, como se depreende do caput do artigo 927 do Código Civil:“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.No que tange ao elemento subjetivo da culpa lato sensu, conforme verificável do artigo 186 acima transcrito, ela deverá ser provada pelo autor e sobre ela deverá se manifestar o julgador. Isso porque, o sistema civil brasileiro adotou, como regra, a teoria subjetivista da responsabilidade civil.A exce??o corresponde ao previsto no parágrafo único do artigo 927 mencionado, segundo o qual independe da verifica??o de culpa a obriga??o de reparar o dano prevista em lei ou decorrente de atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano que implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem.N?o é esse, porém, o caso em apre?o. A obriga??o de indenizar no caso concreto n?o prescinde da verifica??o da conduta, ilícita e volitiva, do réu, bem como do dano causado e do nexo de causalidade entre eles, os quais ser?o a seguir demonstrados.Em primeiro lugar, a conduta do réu é irrefutavelmente volitiva, pois desmembrada em inúmeras a??es conscientes e propagadas ao longo de diversos anos, todas elas efetivadas de acordo com a sua livre capacidade de autodetermina??o.A divulga??o de conteúdo e opini?es em redes sociais é justamente a atividade profissional exercida pelo réu, o que inegavelmente lhe demanda maior cuidado na sele??o do conteúdo, visto que necessariamente atrelado ao número de seguidores que o influenciador irá angariar e aos patrocínios que irá receber. Ocorre que o cuidado nessa sele??o, visando à influência e ao lucro do profissional, deveria vir atrelado à responsabilidade social de seu agir, a que n?o se verificou, resultando na ilicitude das condutas por ele praticadas. E demonstrou, em mais de uma ocasi?o, que sabia da ilicitude, quando postou que n?o faria uma piada racista porque o Polícia Federal tem twitter (08 de julho de 2011) ou quando constatou que n?o havia sido alvo de nenhum processo por conta das piadas racistas que fizera no dia da consciência negra (21 de novembro de 2013).Nesse ponto, cabe apontar a observa??o de Rui Stoco, embasado em Caio Mário: “Cumpre, todavia, assinalar que n?o se insere, no contexto de `voluntariedade? o propósito ou a consciência do resultado danos, ou seja, a delibera??o ou a consciência de causar o prejuízo. Este é um elemento definidor do dolo. A voluntariedade pressuposta na culpa é a da a??o em si mesma”.Vale dizer, portanto, que independentemente do pedido de desculpas do réu, no qual ele exprime a sua falta de inten??o quanto às consequências de seus inúmeros comentários racistas, e da eventual sinceridade da declara??o, fato é que volitiva e culposa foi a sua conduta e configurada está a sua responsabilidade.Do mesmo modo, a antijuridicidade de sua conduta é transparente, visto que dissemina o conceito de que existem diferentes ra?as humanas e que uma é superior à outra, em a??o evidentemente depreciativa e discriminatória que se desdobra, como nexo de causalidade, nos danos sociais.N?o há como se negar a ilicitude de uma conduta que o ordenamento jurídico, a come?ar pela Constitui??o Federal, bem como a ordem jurídica internacional, por meio de tratados internacionais de direitos humanos, consideraram como crime da mais alta reprovabilidade. Enquanto a fun??o do Direito Penal é aplicar a pena prevista ao autor do crime com vista à preven??o e repress?o que lhe devem o Direito Público, a fun??o do Direito Civil e, mais especificamente, da responsabilidade civil, é compensar a vítima – no caso, a sociedade – em virtude do dano sofrido, além de desestimular novas condutas semelhantes, ambos os resultados alcan?ados pela indeniza??o.Nesse sentido, e de modo muito didático, ensina Clayton Reis que, ao gerar o dano:“O ofensor receberá a san??o correspondente consistente na repreens?o social, tantas vezes quantas forem suas a??es ilícitas, até conscientizar-se da obriga??o em respeitar os direitos das pessoas. Os espíritos responsáveis possuem uma absoluta consciência do dever social, posto que, somente fazem aos outros o que querem que seja feito a eles próprios. Estas pessoas possuem exata no??o de dever social, consistente em uma conduta emoldurada na ética e no respeito aos direitos alheios. Por seu turno, a repreens?o contida na norma legal tem como pressuposto conduzir as pessoas a uma compreens?o dos fundamentos que regem o equilíbrio social. Por isso, a lei possui um sentido tríplice: reparar, punir e educar”.No que tange ao nexo de causalidade, trata-se do liame que une a conduta do agente ao dano, sendo este consequência daquela, e sem a qual o prejuízo n?o existiria. A esse respeito, o caso concreto n?o desemboca em maiores dúvidas, nem deve gerar maiores digress?es. As postagens do réu s?o direta, imediata e unicamente responsáveis pelos danos sociais causados pelo racismo que elas próprias, explicitamente, contêm. Por fim, quanto ao dano, este consiste no prejuízo sofrido pela vítima, podendo ser individual ou coletivo, moral ou material.Os danos que a conduta do réu gerou para a coletividade ser?o detalhadamente expostos no tópico a seguir e residem no desrespeito, no desprestígio e no ataque ao seu princípio mais caro, a dignidade humana, a qual aporta no século XXI como valor supremo, construído pela raz?o jurídica.O Direito – Do Dano Social.Nas últimas décadas, principalmente após a redemocratiza??o do País, o processo civil brasileiro tem passado por reestrutura??o, lenta e gradual, mas fortemente necessária aos novos moldes sociais. Essa mudan?a diz respeito ao acolhimento, em ?mbito processual, dos direitos fundamentais de terceira gera??o, como a solidariedade, o meio-ambiente sadio, a paz e a autodetermina??o dos povos.Essa dimens?o de direitos pensa o ser humano como gênero e n?o adstrito ao indivíduo ou mesmo a uma coletividade determinada. Como ensina Pietro de Jesus Lora Alarcon,“a apari??o dessa terceira dimens?o dos direitos fundamentais evidencia uma tendência destinada a alargar a no??o de sujeito de direitos e do conceito de dignidade humana, o que passa a reafirmar o caráter universal do indivíduo perante regimes políticos e ideologias que possam colocá-lo em risco...”.Assim, o reconhecimento dos direitos de terceira gera??o constitui-se como mais uma conquista da humanidade no sentido de ampliar a prote??o dos cidad?os. Ocorre que n?o basta reconhecê-los no plano material ou normativo e n?o propiciar instrumentos hábeis que os tornem exigíveis e auferíveis, daí advindo o indispensável nascimento dos ditames do processo civil coletivo.O primeiro diploma a disciplinar o tema no Brasil remonta à década de 1960, quando surge a ainda pouco explorada Lei da A??o Popular (Lei n? 4.717/1965). A partir da década de 1980, os doutrinadores pátrios, inspirados nas class actions americanas, passaram a se debru?ar sobre a matéria, momento em que surgem as Leis da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n? 6.938/1981) e da A??o Civil Pública (Lei n? 7.347/1985), esta um verdadeiro marco para o processo civil coletivo a promulga??o da Constitui??o Federal em 1988 e a subsequente edi??o, em 1990, do Código de Defesa do Consumidor, estava formado o microssistema processual coletivo, voltado à prote??o de todos os direitos coletivos lato sensu, englobando os direitos difusos, os coletivos stricto sensu e os individuais homogêneos.N?o obstante a cria??o deste microssistema, apto a resguardar os interesses de toda uma coletividade ou mesmo de toda humanidade, parte dos juristas brasileiros ainda contempla uma vis?o completamente individualista (civilista) do fen?meno. Exemplo disso é a divergência, em ?mbito doutrinário e jurisprudencial, da existência do dano social e de sua indenizabilidade.Os danos sociais, nas palavras de Ant?nio Junqueira de Azevedo, s?o aqueles que causam um rebaixamento no nível de vida da coletividade e que decorrem de condutas socialmente reprováveis, ou seja, condutas corriqueiras que causam mal-estar social. Envolvem interesses difusos e as vítimas s?o indeterminadas ou indetermináveis (correspondem ao art. 81, parágrafo único, inciso I do Código de Defesa do Consumidor).Esses danos constituem-se, pois, na aplica??o da fun??o social da responsabilidade civil, atrelada ao fen?meno da constitucionaliza??o do Direito Civil, o qual, com fulcro na supremacia da Constitui??o, preceitua que os fundamentos de validade jurídica do Direito Civil devem ser extraídos da Constitui??o. Nas palavras da Ministra aposentada do STJ Eliana Calmon,“as rela??es jurídicas caminham para uma massifica??o, e a les?o aos interesses de massa n?o podem ficar sem repara??o sob pena de criar-se litigiosidade contida que levará ao fracasso do direito como forma de prevenir e reparar os conflitos sociais. A repara??o civil segue em seu processo evolutivo, iniciado com a nega??o do direito à repara??o do dano moral puro para a previs?o de repara??o de dano a interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, ao lado do já consagrado direito à repara??o pelo dano moral sofrido pelo indivíduo e pela pessoa jurídica (cf. Súmula 227/STJ)”. Aqui cabe a compreens?o de que as técnicas de tutela do direito s?o op??es políticas e ideológicas ligadas à cultura, à filosofia e ao modo de ser do direito em determinado momento histórico. A partir do constitucionalismo, movimento político cultural surgido no século XVIII na Europa Ocidental, os direitos fundamentais foram gradativamente, por meio de suas denominadas dimens?es, assumindo a centralidade do ordenamento jurídico. Assim, a própria ideia de tutela da personalidade merece um novo enfoque atualmente. Isso porque“os direitos de personalidade manifestam-se como uma categoria histórica, por serem mutáveis no tempo e no espa?o. O direito de personalidade é uma categoria que foi idealizada para satisfazer exigências da tutela da pessoa, que s?o determinadas pelas contínuas muta??es das rela??es sociais, o que implica a sua conceitua??o como categoria apta a receber novas inst?ncias sociais”. Evidentemente, pois, que uma coletividade está sujeita a suportar danos morais. Certas condutas atingem n?o apenas pessoa determinada, mas, também, um grupo indeterminado de pessoas ou toda a sociedade. Esta les?o descumpre com a solidariedade e coloca em risco a seguran?a social. E, por tais características, foi designada como dano social.Atualmente, essa categoria de dano é reconhecida tanto pela doutrina, quanto pela jurisprudência.Nesse sentido é o Enunciado 455, aprovado na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justi?a Federal/Superior Tribunal de Justi?a que, fazendo referência ao artigo do Código Civil que trata da medida da indeniza??o derivada do dano, reconheceu a existência dos danos sociais: “Enunciado 455: A express?o “dano” no art. 944 abrange n?o só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor a??es coletivas”.Examinando essa nova categoria de dano, o dano social, Ant?nio Junqueira aduz que se um ato é doloso, gravemente culposo ou negativamente exemplar, pode n?o ser lesivo somente ao patrim?nio material ou moral da vítima, mas atingir toda a sociedade.O STJ, em recurso repetitivo, seguiu esse entendimento, ao reconhecer que a condena??o por danos sociais requer pedido expresso e deduzido no ?mbito de uma a??o judicial coletiva.Cuida-se, portanto, de um dano que atinge os fundamentos da sociedade organizada, em suas express?es políticas, culturais e institucionais, refletindo sobre os valores que inspiram as rela??es humanas, tais como a solidariedade, a justi?a, a generosidade, a igualdade democrática e de direitos e, sobretudo, o sentimento profundo de justi?a.Assim, é patente que uma coletividade, diante de ofensas praticadas contra seus bens e direitos, pode ser culturalmente ofendida ou sofrer abalo em sua honra, cren?a, dignidade e reputa??o. Como ensina a douta Ministra aposentada Eliana Calmon, referindo-se aos danos morais coletivos lato sensu, incluindo os aqui denominados ‘danos sociais’, ainda no bojo do mesmo acórd?o já citado:“o dano moral deve ser averiguado de acordo com as características próprias aos interesses difusos e coletivos, distanciando-se quanto aos caracteres próprios das pessoas físicas que comp?em determinada coletividade ou grupo determinado ou indeterminado de pessoas, sem olvidar que é a confluência dos valores individuais que d?o singularidade ao valor coletivo”.No entanto, n?o é qualquer atentado aos interesses da coletividade que merece ocasionar o seu ressarcimento por dano moral. De acordo com o Ministro do STJ Massami Uyeda, é indispensável“que o fato transgressor seja de razoável signific?ncia e desborde os limites da tolerabilidade”. Nesse ponto, importante destacar que o racismo sempre existiu e continua existindo, mas n?o deve o direito legitimá-lo. Ao contrário, cabe ao Direito ser uma barreira contra; uma arma para brecá-lo e qui?á eliminá-lo.A indiferen?a que eventualmente o Direito poderia dispensar às express?es de racismo seria, em última análise, uma naturaliza??o do fen?meno, o que está na base de toda forma de preconceito.Esse “processo de naturaliza??o” é essencialmente ideológico, na medida em que se relaciona com o senso comum, ao “é como é”, como se o mundo tivesse uma essência e n?o fosse resultado de constru??es históricas e sociais. No artigo A naturaliza??o do preconceito na forma??o da identidade do afrodescendente, Ricardo Ferreira e Amilton Camargo (2001) discorrem sobre a contradi??o entre o que se acredita positivo (lutar contra a opress?o racial) e o que realmente está sendo realizado (a dissemina??o dessa mesma opress?o), que se enraizou em nosso cotidiano de maneira poderosa a partir da desintegra??o da escravid?o. Essa exposi??o dos negros ao mercado de trabalho e a forma??o de classes após a liberta??o dos escravos é vital para entender, já observava Florestan Fernandes, os aspectos brasileiros do preconceito racial. Diante de um cenário que lhes era integralmente desfavorável, sem acesso a nenhuma compensa??o e perante um sistema econ?mico cada vez mais competitivo, os negros passaram a ocupar meios pouco privilegiados para sobreviver, na periferia do crescimento econ?mico e social.Assim, crescia o número de m?es solteiras, desempregados, debilitados pelo vício no álcool, praticantes da prostitui??o e da criminalidade, essa última um fen?meno que ainda causa tristes distor??es associadas à pele escura, a exemplo da publica??o do réu que relacionou o jogador francês, negro, ao cometimento de um “arrast?o”, tática de roubo coletivo. Nesse ponto, evocam-se as importantes análises de Charles Taylor, ao observar que a identidade do ser humano é parcialmente moldada a partir do reconhecimento e da representa??o exterior que possui, legitimando uma imagem positiva ou negativa. E aqui resta claro o dano causado pelas a??es do réu. Ao representar o negro como ladr?o, macaco e eventual alvo de extermínio, Cocielo, além de incidir em conduta criminosa, refor?a os estereótipos negativos associados à popula??o negra, rebaixando o nível de sua autoestima e elevando o mal-estar e a reprova??o da sociedade no geral. Se por um lado Cocielo refor?ou o preconceito, n?o pode o Estado, aqui representado pelo Poder Judiciário, legitimá-lo, sob pena de incorrer na naturaliza??o de condutas racistas e dirigir a sociedade para o passado, para o subdesenvolvimento, para a barbárie e para a ignor?ncia.No caso em pauta, a intolerabilidade da ilicitude perpetrada n?o poderia ser mais evidente, ensejando induvidosa e eloquente viola??o à ordem constitucional básica da nacionalidade brasileira.A Constitui??o Federal, em seu artigo 5?, inciso XLII, no rol dos direitos e garantias fundamentais, assenta que“a prática do racismo constitui crime inafian?ável e imprescritível, sujeito à pena de reclus?o”.A Carta Magna, pois, conferiu à prática do racismo a maior reprovabilidade penal existente em seu texto; logo, a maior reprovabilidade existente no ordenamento jurídico brasileiro. O racismo, ao lado das a??es de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, s?o os únicos crimes imprescritíveis existentes no país. Paralelamente, a Constitui??o da República elencou dentre os seus objetivos fundamentais “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, ra?a, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discrimina??o” (Art. 3?, IV) e afirmou que “todos s?o iguais perante a lei, sem distin??o de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à seguran?a e à propriedade...”Uma sociedade livre de discrimina??es, como vertente da dignidade da pessoa humana, constitui um dos objetivos mais caros do Estado brasileiro. A prática do racismo, que fere frontalmente o princípio da igualdade, merece, pois, a mais absoluta intoler?ncia por parte do Estado.O repúdio a condutas como a discutida nos autos se manifesta na sociedade brasileira de modo crescente. No que tange ao caso concreto, a perda de seguidores, patrocínios e campanhas publicitárias por parte do Réu demonstra o nível de intolerabilidade que a sociedade atingiu para com a prática do racismo.E o Poder Judiciário vem contribuindo para tal eleva??o do patamar civilizatório brasileiro: tanto o Tribunal de Justi?a do Estado de S?o Paulo, quanto o Superior Tribunal de Justi?a, já pacificaram o entendimento a fim de conceder indeniza??es por dano moral individual em casos de condutas racistas. ? induvidosa, quanto à ocorrência de dano moral individual in re ipsa em casos de práticas racistas, a responsabilidade civil do agente racista, como comprovam as ementas de julgados do Tribunal de Justi?a do Estado de S?o Paulo e do Superior Tribunal de Justi?a a seguir:Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. Danos morais. Racismo. Hipótese em que o réu utilizou express?es com conota??o pejorativa e racista, em público, para ofender o autor. Fato comprovado por testemunha contradita em audiência. Impugna??o indeferida por decis?o irrecorrida. Oportunidade preclusa – Nítida finalidade discriminatória, de inferiorizar. Atitude que n?o pode ser tolerada pelo direito ou pela sociedade – Danos presumidos. Verba indenizatória mantida em face das condi??es econ?micas das partes. Honorários advocatícios sucumbenciais elevados para máximo legal. Verba que melhor remunera o trabalho desenvolvido pelo patrono do autor – Recurso do réu desprovido e provido em parte o do autor. (TJ-SP – APL: 00157905920138260037 SP 0015790-59.2013.8.26.0037, Relator: Rui Cascaldi, Data de Julgamento; 27/01/2015, 1? C?mara de Direito Privado, Data de Publica??o: 28/01/2015)Ementa: CIVIL E PROCESSUAL. AC?RD?O. NULIDADE N?O CONFIGURADA. A??O DE INDENIZA??O. DANO MORAL. OFENSA A POLICIAL CIVIL DURANTE REGISTRO DE OCORR?NCIA DE TR?NSITO EM DELEGACIA. ACUSA??O DE RACISMO. PROVA. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. S?MULA N. 7-STJ. I. N?o padece de nulidade acórd?o que enfrenta, fundamentadamente, as quest?es propostas na lide, apenas com conclus?o adversa à parte ré no tocante à interpreta??o dos fatos colhidos nos autos. II. Reconhecido pelas inst?ncias ordinárias, soberanas na aprecia??o da prova, o dano moral causado a policial civil, por ofensas e agress?es dirigidas a sua pessoa, inclusive com alus?o pejorativa a sua cor, procede o pedido indenizatório postulado. III. "A pretens?o de simples reexame de prova n?o enseja recurso especial" - Súmula n. 7/STJ. IV. Recurso especial n?o conhecido. (STJ – REsp: 472804 SC 2002/0129577-3, Relator: Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Data de Julgamento: 03/04/2003, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publica??o: DJe 08/09/2003).Reconhecido e presumido o dano moral individual em decorrência de racismo e pacificado o entendimento doutrinário e jurisprudencial quanto à existência, no ?mbito do Direito, do dano social, lógica e irrefutável é a constata??o da ocorrência do dano social em virtude de práticas racistas.Por fim, é preciso lembrar que o Brasil é signatário da Conven??o Interamericana Contra o Racismo, a Discrimina??o Racial e Formas Correlatas de Intoler?ncia que, em seu artigo 4?, menciona expressamente:“Art. 4?. Os Estados comprometem-se a prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo com suas normas constitucionais e com as disposi??es desta Conven??o, todos os atos e manifesta??es de racismo, discrimina??o racial e formas correlatas de intoler?ncia, inclusive:(...)II. publica??o, circula??o ou difus?o, por qualquer forma e/ou meio de comunica??o, inclusive a internet, de qualquer material racista ou racialmente discriminatório que:a) defenda, promova ou incite o ódio, a discrimina??o e a intoler?ncia; eb) tolere, justifique ou defenda atos que constituam ou tenham constituído genocídio ou crimes contra a humanidade, conforme definidos pelo Direito Internacional, ou promova ou incite a prática desses atos”. (Grifo nosso)Ademais, o Brasil, por meio da ratifica??o da Conven??o Internacional sobre a Elimina??o de Todas as Formas de Discrimina??o Racial comprometeu-se a adotar, por todos os meios apropriados e sem dila??es, uma política destinada a eliminar a discrimina??o racial em todas as suas formas e a encorajar a promo??o de entendimento entre todas as ra?as.Para esse fim, conforme determinado pelo artigo 2?, §1?, alínea “d”, da mencionada Conven??o, o Estado“deverá tomar todas as medidas apropriadas, inclusive, se as circunst?ncias o exigirem, medidas de natureza legislativa, para proibir e p?r fim à discrimina??o racial praticada por quaisquer pessoas, grupo ou organiza??o”.O Estado e os direitos s?o obras humanas que têm por única finalidade a preserva??o da esfera de dignidade das pessoas e, nas palavras de Rizzatto Nunes,“é reconhecido o papel do Direito como estimulador do desenvolvimento social e freio da bestialidade possível da a??o humana”.Com efeito, o valor da dignidade humana n?o é relativo e mutável a depender do momento histórico ou do território, mas sim absoluto, pleno e dissociado de argumentos que o posicionem em um perigoso relativismo, o qual, em diversos momentos da história da humanidade, serviu de justificativa para o cometimento de atrocidades. N?o pode o Poder Judiciário, portanto, omitir-se na concess?o de indeniza??o à sociedade gravemente lesada pelas condutas prenhes de racismo do ora réu.Da indeniza??o.A indeniza??o derivada do dano social, como exposto acima, n?o é destinada à vítima, mas ao Fundo Estadual de Defesa dos Interesses Difusos - FID, previsto no artigo 13 da Lei n? 7.347/85 e nas Leis Estaduais n? 6.536/89 e n? 13.555/09. Ademais, possui fun??o diversa daquela decorrente do dano individual, patrimonial ou moral, pois aqui a indeniza??o n?o se presta exclusivamente à repara??o da vítima pela les?o sofrida, até porque a vítima é a sociedade difusamente considerada, mas também à coer??o do agente lesivo. Essa repress?o ocorre por meio de conteúdo que assume, assim, um papel punitivo voltado à n?o-repeti??o dos atos ilícitos cometidos pelo agente e que levaram ao rebaixamento do bem-estar e dos valores civilizatórios da sociedade; n?o se confunde, à evidência, com a san??o de natureza penal que eventualmente venha a ser aplicada pelo Juízo de Direito Criminal.Aqui há apenas o sentido repressivo-educativo da indeniza??o de caráter civil, expressa em valores pecuniários. Conforme ensina Ant?nio Junqueira de Azevedo, o desestímulo é tanto para o agente quanto para outros que fiquem tentados a repetir o mesmo ato lesivo, projetando-se, portanto, para o futuro.No arbitramento no quantum indenizatório, alguns critérios devem ser observados, em analogia aos critérios de fixa??o do dano moral. Nesse sentido disp?e Carlos Roberto Gon?alves:“Algumas recomenda??es da lei de imprensa, feitas no art. 53, no entanto, continuam a ser aplicadas na generalidade dos casos, como a situa??o econ?mica do lesado; a intensidade do sofrimento; a gravidade, a natureza e repercuss?o da ofensa; o grau de culpa e a situa??o econ?mica do ofensor, bem como as circunst?ncias que envolveram os fatos”.A vítima, nesse caso, é a sociedade em geral, tanto a brasileira, como a estrangeira, que teve acesso às disseminadíssimas publica??es do réu (notadamente durante a última Copa do Mundo, por conta da ilícita postagem envolvendo atleta de grande destaque da sele??o francesa, campe? do torneio) e, especialmente, a popula??o negra.N?o há que se falar, pois, em situa??o econ?mica do lesado (a sociedade), mas na gravidade e repercuss?o da ofensa, bem como no grau de culpa lato sensu e na situa??o econ?mica do ofensor, o ora réu.A gravidade dos fatos já foi exaustivamente demonstrada nos tópicos anteriores, sendo a máxima possível, por ser o racismo um perigoso atentado contra o basilar princípio da igualdade e contra a dignidade das pessoas, merecedor da maior reprovabilidade social e jurídica.Os comportamentos racistas n?o podem ser aceitos como meros inconvenientes ou falta de educa??o. O racismo é a nega??o da cultura de direitos humanos que o ordenamento jurídico pátrio e os tratados internacionais preconizam, sendo necessária toda a determina??o para combatê-lo. A repercuss?o da ofensa, por sua vez, foi imensa, como explanado alhures. O réu atua profissionalmente como um influenciador digital, tendo utilizado das suas ferramentas, as mídias sociais, para propagar o ódio racial. E, de acordo com o artigo 944 do Código Civil, “a indeniza??o mede-se pela extens?o do dano”.Atualmente, Cocielo possui mais de 11 milh?es de seguidores, entre adultos, crian?as e adolescentes, número que inclusive aumentou após o último episódio racista e que representa 5% (cinco por cento) da popula??o do país. S?o números impressionantes, que d?o a exata dimens?o do alcance de sua prática ilícita.Além disso, as ideias do réu atingem indiretamente um sem-número de seguidores daqueles que replicam as suas postagens, bem como a todos que têm acesso, via reportagens jornalísticas ou demais fontes, dos relatos do comportamento do youtuber. Pode-se, pois, concluir que é inestimável o imenso número de pessoas atingidas, em todo o mundo, pelas postagens racistas e repletas de ódio e desprezo elaboradas e veiculadas por ele.A culpa do réu é incontestável. N?o s?o apenas uma ou duas publica??es racistas, o que já daria ensejo à indeniza??o social, mas de centenas – qui?á milhares – de comentários extremamente ofensivos e criminosos, propagados pelo réu de forma a atingir o maior número de pessoas possível.Conforme exposto acima, Cocielo, em mais de uma oportunidade, assume o caráter racista de suas publica??es e desafia o Poder Judiciário brasileiro a processá-lo, demonstrando convic??o quanto à sua impunidade.Por fim, no que tange à situa??o econ?mica do réu, n?o se pode precisar valores, mas sendo ele a oitava personalidade mais influente do Brasil em 2017, de acordo com uma pesquisa encomendada pelo Google e realizada pelo Instituto Provokers, estima-se que o seu canal no youtube, seus patrocinadores de grande porte, a sua loja online, bem como as apresenta??es e presen?as vip em eventos e acontecimentos que realiza estejam rendendo uma quantia monetária assaz considerável. ? intuitivo que tal conjunto de atividades – de grande prestígio na atualidade – o posicione dentre as grandes remunera??es brasileiras.Assim, para fins de se estipular o quantum indenizatório devido a partir de um critério objetivo, multiplicou-se o número de seguidores do réu na rede social Twitter, ferramenta utilizada para a publica??o dos comentários racistas, por apenas R$ 1,00 (um real), como mera unidade monetária básica, totalizando-se o montante de R$ 7.489.933 (sete milh?es, quatrocentos e oitenta e nove mil, novecentos e trinta e três reais).Relevante destacar que este número desconsiderou todos os que tiveram acesso aos comentários racistas do réu por meio de outras fontes, seja por segui-lo em outras redes sociais ou por ter tido contato com notícias do ocorrido.De qualquer modo, no intuito de subsidiar o Juízo de Direito na fixa??o do valor, a partir da condena??o do réu na obriga??o de indenizar e à vista do montante ora pedido, entende-se útil e necessária a quebra de seu sigilo bancário, medida apta a evidenciar seus rendimentos e, portanto, a sua capacidade econ?mica para cumprir a obriga??o. E trata-se, como é sabido, de providência que só pode ser adotada por ordem judicial.Dos pedidos.Diante do exposto e pelos motivos acima apontados, o Ministério Público do Estado de S?o Paulo, por sua Promotoria de Justi?a de Direitos Humanos da Capital, ?rea da Inclus?o Social, vem à presen?a de Vossa Excelência requerer:seja determinada a cita??o e intima??o pessoal do réu, no endere?o acima fornecido, a fim de que, advertido da sujei??o aos efeitos da revelia, nos termos dos artigos 250, inciso II, e 344 do Código de Processo Civil, apresente, querendo, resposta aos pedidos ora deduzidos, no prazo de 15 (quinze) dias, nos termos do artigo 335 do mesmo Código;seja decretada a quebra do sigilo de dados bancários do réu, a fim de subsidiar a sua condena??o na obriga??o de pagar a quantia imposta, oficiando-se, desde logo, ao Banco Central do Brasil;seja o réu, por fim, condenado no cumprimento da obriga??o de fazer, consistente no pagamento de indeniza??o por dano social da quantia de R$ 7.498.302 (sete milh?es, quatrocentos e noventa e oito mil, trezentos e dois reais), valor a ser corrigido monetariamente quando do efetivo pagamento e revertido em favor do Fundo Estadual de Defesa dos Interesses Difusos - FID, previsto no artigo 13 da Lei n? 7.347/85 e nas Leis Estaduais n? 6.536/89 e n? 13.555/09.dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros encargos, desde logo, em face do artigo 18 da Lei n? 7.347/85; sejam as intima??es do autor feitas pessoalmente, mediante promo??o de vista eletr?nica dos autos à Promotoria de Justi?a de Direitos Humanos da Capital, ?rea de Inclus?o Social, situada na Rua Riachuelo, 115, 1? andar, Sala 151, Centro, nesta Capital, em raz?o do disposto nos artigos 180 e 183, § 1?, do Código de Processo Civil e no art. 224, inc. XI, da Lei Complementar Estadual n? 734, de 26.11.93 (Lei Org?nica do Ministério Público de S?o Paulo).Protesta comprovar o alegado pela produ??o de todo gênero de provas admitidas em Direito.Acompanham esta peti??o inicial os documentos anexos, ora digitalizados, integrantes de procedimento em tr?mite na Promotoria de Justi?a ora autora.Dá-se à causa o valor de R$ 7.498.302 (sete milh?es, quatrocentos e noventa e oito mil, trezentos e dois reais).Termos em que,Pede deferimento.S?o Paulo, 12 de setembro de 2018.EDUARDO FERREIRA VALERIO2? Promotor de Justi?a de Direitos HumanosBRUNO ORSINI SIMONETTI1? Promotor de Justi?a de Direitos Humanos designadoVERONICA HOMSI CONSOLIMAnalista de Promotoria ................
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