ESTUDOS CULTURAIS E CULTURA MIDIÁTICA: IMPLICAÇÕES …



ESTUDOS CULTURAIS E CULTURA MIDIÁTICA: IMPLICAÇÕES NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Milene dos Santos Figueiredo

Elisete Medianeira Tomazetti

Universidade Federal de Santa Maria

1. Considerações Iniciais

As idéias que serão apresentadas no decorrer desse artigo são resultantes de uma pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGE da Universidade Federal de Santa Maria, ainda em andamento. Esse trabalho tem por objetivo investigar a influência da televisão no trabalho de professores de Educação Infantil de escolas de caráter público e privado da cidade de Santa Maria, assim como de acadêmicas do curso de Pedagogia- Habilitação Educação Pré-escolar da UFSM.

Estudar a influência da televisão em crianças de classes pré-escolares surgiu devido a uma experiência vivenciada em uma turma de pré-escola, enquanto eu atuava como estagiária do curso de Pedagogia – Habilitação Pré-escola, pela Universidade Federal de Santa Maria. Esse estágio, com duração de seis meses levou-me à atuação como docente em uma escola da periferia da cidade de Santa Maria, em uma classe composta de 24 alunos com idade entre cinco e seis anos. Ao longo desse período de vivência docente, constatei que as crianças permaneciam um tempo excessivamente longo diante à televisão (segundo o relato de alguns alunos esse tempo era de, aproximadamente, oito horas diárias). Além desta constatação ressaltaram-se também as situações onde percebia a influência que esse meio de comunicação estava exercendo sobre as crianças, que começaram a apresentar um comportamento que apontava uma certa erotização extremamente precoce para a faixa etária, assim como situações de comportamento excessivamente agressivo e violento entre seus iguais. Mas talvez tenha sido a referência que elas constantemente apresentavam ao definirem alguns conceitos sobre violência, por exemplo, que mais se destacavam no quadro que estava configurando-se, ou seja, a constatação de como as crianças estavam construindo suas noções da realidade, fazendo sempre referência ao programas veiculados nos canais abertos da televisão, programas esses tanto destinados a faixa etária infantil quanto aos adultos.

Em consonância a essas constatações, minhas primeiras inquietações teóricas surgiram no sentido de compreender de que forma esse veículo de comunicação tão fortemente presente no cotidiano de meus alunos influenciava na formação de seus conceitos e atitudes como violência, erotização precoce, respeito e nas suas relações sociais entre iguais e entre os adultos.

Transformando-se então esse trabalho em uma pesquisa em nível de mestrado iniciou-se um aprofundamento nas discussões referentes ao estudo da cultura infantil, da cultura contemporânea e também da cultura midiática e, consequentemente, das relações de poder exercidas por essa última no universo da infância.

2. A Centralidade da Cultura e a perspectiva dos Estudos Culturais

Compreender a centralidade das questões culturais na sociedade contemporânea tornou-se essencial no sentido de buscarmos justificativas para as transformações ocorridas nos mais diversos âmbitos da vida social, econômica e política da sociedade atual. Segundo Hall (1997, p. 17), trata-se de uma verdadeira “revolução cultural”, onde

a cultura tem assumindo uma função de importância sem igual no que diz respeito à estrutura e à organização da sociedade moderna tardia, aos processos de desenvolvimento do meio ambiente global e à disposição de seus recursos econômicos e materiais. (HALL, 1997, p. 17).

Um exemplo dessa revolução nos espaços destinados à cultura tem sido o grande crescimento e monopólio mundial das empresas ligadas a comunicação e entretenimento, como, por exemplo, empresas ligadas à publicidade, cinema, música, televisão, informática, esportes, telecomunicações, etc. Essas empresas acabam por ocupar o papel de grandes responsáveis pela produção do capital mundial e acabam formando o que MOREIRA (2003, p. 1205) denomina de “oligopólios midiáticos”. Ainda segundo MOREIRA (2003), a grande influência e o domínio desses oligopólios midiáticos constituem o que o autor denomina de um “sistema midiático-cultural” (p.1207), sistema esse que evoca transformações profundas às configurações culturais, ou seja, a formação da chamada “cultura midiática”

Cultura midiática tem a ver com determinada visão de mundo, com valores e comportamentos, com a absorção de padrões de gosto e de consumo, com a internalização de “imagens de felicidade” e promessas de realização para o ser humano, produzindo e disseminando no capitalismo avançado por intermédio dos conglomerados empresariais da comunicação e do entretenimento, e principalmente por meio da publicidade. (Moreira, 2003, p. 1208).

As conseqüências dessa midiatização da cultura se refletem nas formas como construímos nossas noções de sentido e realidade. “O sistema midiático tornou-se, nas sociedades modernas, talvez o principal fator gerador e difusor de símbolos e sentidos” (Moreira, 2003, p. 1211). Anterior a esse período cabia às instituições como a escola, a família, a religião e ao Estado a responsabilidade pela produção de sentido. Hoje, as novas gerações e também as mais antigas vivem sob a influência da mídia que assume consciente ou inconscientemente o papel de estipular os padrões de comportamento, as informações que devemos ou não receber, as visões e explicações para os acontecimentos, os produtos, as marcas, as roupas que devemos consumir e que nos tornarão parte dessa sociedade.

Aliada a essa constatação contamos ainda com dados que comprovam a grande abrangência de aparelhos de televisão nas residências brasileiras. Segundo estatísticas da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios – PNDA/IBGE, do ano de 2004[1], constatou-se que 90,3% das residências brasileiras possuem pelo menos um aparelho de televisão em suas residências. Esse dado não seria tão surpreendente se junto a ele não coincidisse a estatística de que apenas 87, 4% das mesmas residências possuem uma geladeira.

Como podemos perceber, a chamada cultura midiática ganha uma dimensão de predomínio e exerce, de determinada forma, o poder através de suas determinações e a sua grande representação nas mais diversas culturas. O processo de globalização mundial contribui ainda mais no sentido de redução das fronteiras culturais e na difusão dos valores e normas da cultura midiática sobre as demais culturas.

A dimensão alcançada por essa cultura midiática vem gerando diversos estudos acerca de sua influência na cultura contemporânea. Para Fischer (2001), por exemplo, a televisão participa constantemente da formação dos sujeitos:

Defendo a tese de que a TV, na condição de meio de comunicação social, ou de uma linguagem audiovisual específica ou ainda na condição de simples eletrodoméstico que manuseamos e cujas imagens cotidianamente consumimos, tem uma participação decisiva na formação das pessoas – mais enfaticamente, na própria constituição do sujeito contemporâneo. Pode-se dizer que a TV, ou seja, todo esse complexo aparato cultural e econômico – de produção, veiculação e consumo de imagens e sons, informação, publicidade e divertimento, com uma linguagem própria – é parte integrante e fundamental de processos de produção e circulação de significados e sentidos, os quais por sua vez estão relacionados a modos de ser, a modos de pensar, a modos de conhecer o mundo, de se relacionar com a vida. (FISCHER, 2001, p. 15).

Entendermos as relações de poder exercidas por essa cultura no cotidiano das relações vivenciadas na sociedade atual torna-se um processo extremamente relevante no que diz respeito ao processo de formação dos sujeitos. No nosso caso, interessa-nos compreender de que forma essa cultura, através do veículo televisão, acaba influenciando e reestruturando a própria cultura infantil, devido à existência de uma ampla programação televisiva destinada a essa faixa etária, assim como um grande número de propagandas comerciais que, ou utilizam crianças como vendedoras de produtos ou destinam-se as mesmas para agirem como consumidores em grande potencial no mercado. Feilitzen (2002) destaca a questão da pouca visibilidade das crianças nos espaços midiáticos, como forma de opressão cultural. Entretanto, enfatiza a grande utilização de crianças em comerciais como meio de instigarem o consumo

Contudo, há uma exceção, em que as crianças são representadas com maior freqüência no contexto da mídia – nos comerciais. O fato de as crianças serem mais comuns nos comerciais do que no conteúdo da mídia em geral é um sinal de seu alto valor de consumo econômico na sociedade – como consumidores atuais e futuros e como conceitos de venda e estratégias de propaganda para produtos, valores e estilos de vida. (FEILITZEN, 2002, p. 23)

Dessa forma, acreditamos que o campo de investigação constituído pelos Estudos Culturais, a partir de sua premissa básica - a intenção de analisar as relações entre o conjunto da produção cultural contemporânea e a sociedade - ou seja, as formas como as práticas sociais dos indivíduos influenciam nos comportamentos e nas relações entre os mesmos contribuem de forma vigorosa na produção desse trabalho.

A história do nascimento e constituição dos Estudos Culturais potencializa suas contribuições para o desenvolvimento de pesquisas sobre a grande influência da cultura midiática na sociedade contemporânea, principalmente no poder que os meios de comunicação de massa exercem na construção da identidade individual e social dos sujeitos. Os Estudos Culturais buscam ainda compreender, partindo das grandes modificações ocorridas nos veículos de comunicação e recepção da informação e do conhecimento, de que forma “definimos e apreendemos a grande quantidade de textos eletrônicos, auditivos e visuais que se tornaram uma característica determinante da cultura da mídia e da vida cotidiana no mundo atual” (Giroux, 1995, p. 90).

Giroux (1995, p. 86) ressalta a importância da adoção dos Estudos Culturais nos espaços educativos, pois, segundo o autor, o foco de suas investigações está baseado nas relações entre cultura, conhecimento e poder. O estudo dessas relações é que possibilitaria a compreensão à educação em uma nova perspectiva cultural, onde a ênfase em uma abordagem eurocêntrica, ou das classes médias cederia espaço para as discussões e experiências de outras culturas denominadas “das minorias”, ou seja, as culturas que ao longo dos anos foram sofrendo um processo paulatino de silenciamento e opressão de suas representações. Nesse sentido, trataremos, no próximo tópico de investigarmos a história do descobrimento de uma cultura da infância.

3. Infância e Mídia

O resgate da história do descobrimento da idade infantil nos auxilia no entendimento das principais modificações ocorridas ao longo dos séculos nessa cultura, principalmente diante da grande influência da cultura midiática na sociedade contemporânea.

Segundo Postman (1999), apenas no século XV, com a invenção da prensa tipográfica é que consegue ser “descoberta” e, principalmente, distinta em um mundo próprio denominado infância Anterior a esse período, a infância passou por um processo de total desconhecimento, principalmente no período da chamada Idade Média, onde a criança vivia basicamente como os próprios adultos, participando ativamente das mesmas situações sociais, festas, relações sexuais, enfim. A criança não era, em nenhum momento preservada do mundo adulto, ou melhor, não havia nesse período um mundo específico de crianças e adultos. Dessa forma, Postman (1999) esclarece que um dos principais indícios da inexistência de um período denominado infância na Idade Média é o fato de que não havia nenhuma noção de vergonha nessa sociedade

Poderíamos dizer que uma das principais diferenças entre um adulto e uma criança é que o adulto conhece certas facetas da vida – seus mistérios, suas contradições, sua violência, suas tragédias – cujo conhecimento não é considerado apropriado para as crianças e cuja revelação indiscriminada é considerada vergonhosa. No mundo moderno, enquanto as crianças se encaminham para a idade adulta, revelamos-lhes esses segredos de maneira que acreditamos ser psicologicamente assimilável. Mas tal idéia é possível somente numa cultura em que há uma diferença marcante entre o mundo adulto e o mundo infantil, e onde há instituições que expressam esta diferença. O mundo medieval não faz tal distinção e não tinha tais instituições. (POSTMAN, 1999, p. 29.)

Postman (1999), ao afirmar a inexistência de instituições que poderiam contribuir para o nascimento de um mundo infantil o faz no sentido de que, nessa sociedade não havia um processo de escolarização constituído. Não existia a necessidade de aprendizagem da leitura e da escrita, pois um povo alfabetizado iria em desencontro aos interesses religiosos da Igreja Católica, que desejava manter seu poder sobre os seus fiéis, proliferando suas idéias sem contestação. Nesse sentido, a Idade Média vivia basicamente sob uma tradição oral de comunicação, e as crianças nessa sociedade deixavam de ser crianças basicamente aos sete anos, pois era nessa idade que conseguiam dominar as palavras. A partir dessa idade passavam a viver como os adultos, compartilhando “os mesmos jogos com os adultos, os mesmos brinquedos, as mesmas histórias de fadas. Viviam juntos, nunca separados” (Postman, 1999, p.30).

Para Postman (1999), a infância só foi descoberta no momento em que, no século XV, Gutenberg inventa a prensa tipográfica. Essa relação, a princípio sem conexão alguma, identifica na história o exato momento em que milhares de manuscritos passaram a ser impressos em forma de livros, e com isso houve uma grande distinção na sociedade: os que sabiam ler e aqueles que não dominavam o código alfabético. “Ser um adulto em pleno funcionamento exigia que o indivíduo fosse além do costume e da memória e penetrasse em mundos não conhecidos nem contemplados antes” (Postman, 1999, p. 43).

Basicamente, o que Gutenberg havia acabado de criar era uma das linhas divisórias entre o mundo adulto e o mundo infantil, pois só poderia se chegar ao mundo adulto através da conquista da leitura e da escrita. Com isso as escolas foram reinventadas na sociedade européia. Nos séculos XVI e XVII a criança conquistou o seu reconhecimento enquanto sujeito com diferentes características e necessidades dos adultos. E junto a essa nova configuração do mundo de adultos e do mundo das crianças, a família moderna também se reestruturou, proporcionando às crianças maiores possibilidades educativas, tanto nas instituições escolares quanto nas próprias residências. Todo esse processo de descobrimento da infância deve ainda ser atribuído a um outro fator, ou seja, o surgimento de uma nova classe social na Inglaterra, uma classe média, com dinheiro disponível para investir nas crianças. “A infância começou indiscutivelmente como uma idéia de classe média, em parte porque a classe média podia sustentá-la. Outro século se passaria antes que a idéia se infiltrasse nas classes mais baixas”. (Postman, 1999, p. 59).

A noção de vergonha então, inexistente na sociedade medieval passa a ser lentamente retomada (processo esse que teve seu início com as sociedades gregas e romanas, mas que desaparece na sociedade medieval) com a ocultação de certos segredos restritos ao mundo adulto. Assuntos como sexo, violência, morte, doenças passaram a ser distanciados das crianças.

Ao longo dos séculos, a idéia de infância foi vencendo alguns percalços, como por exemplo, a grande exploração vivenciada durante o processo de Revolução Industrial, no século XVIII, onde serviam como mão-de-obra escrava nas grandes indústrias. No entanto, a infância sobrevive a esse período devido a classe média, que continuou difundindo a sua idéia. A infância ainda contou com a colaboração do Estado, que começou a proteger legalmente as crianças.

Essa retrospectiva sobre a história do descobrimento de uma cultura infantil na verdade embasa a teoria de Neil Postman (1999) sobre o atual processo de desaparecimento da infância. E se podemos dizer que o grande “pai” da infância foi Gutenberg por haver descoberto a prensa tipográfica e automaticamente ter traçado uma linha divisória entre a idade adulta e a infantil, o grande “vilão” do seu processo de desaparecimento foi Samuel Finley Breese Morse, por haver inventado a primeira forma elétrica de envio de uma mensagem. Morse, na verdade inicia um processo que hoje podemos identificar como o uso indiscriminado da notícia, ou a indústria surgida em torno da divulgação de informações, agora não mais utilizada como fonte de informações, mas sim como um grande comércio rentável e lucrativo, que se utiliza dos espaços anteriormente privados para a grande divulgação em público.

Postman (1999) esclarece-nos de que forma a invenção do telégrafo acaba influenciando o novo processo vivenciado pela infância, ou seja, o seu desaparecimento

A infância, como tentei mostrar, foi o fruto de um ambiente em que uma forma especial de informação, exclusivamente controlada por adultos, tornou-se pouco a pouco disponível para as crianças por meios considerados psicologicamente assimiláveis. A subsistência da infância dependia dos princípios da informação controlada e da aprendizagem seqüencial. Mas o telégrafo iniciou o processo de extorquir do lar e da escola o controle da informação. Alterou o tipo de informação a que as crianças podiam ter acesso, sua qualidade e quantidade, sua seqüência, e as circunstâncias em que seria vivenciada”. (POSTMAN, 1999, p. 86)

Entretanto, não podemos atribuir somente ao telégrafo essa acusação. É que, a partir de sua invenção, uma série de novas formas de comunicação foram descobertas, como por exemplo, a máquina fotográfica, o telefone, o rádio, o cinema e a televisão.

É sobre a televisão que Postman (1999) debruça suas acusações. A televisão, a partir da década de 50, iniciou uma revolução na forma como a informação passou a ser divulgada mundialmente. A imagem sobrepõe-se então ao discurso e invade os espaços habitados tanto por crianças quanto jovens, adultos e idosos. Torna-se o meio de comunicação com maior difusão mundial e, de certa forma, monopoliza o acesso à informação, não por ser o único veículo difusor de notícias, mas por ser o de maior acesso. Segundo o autor, a televisão cria esse monopólio por não requisitar dos seus telespectadores nenhuma habilidade cognitiva mais avançada: “as pessoas vêem televisão. Não a lêem. Não a escutam muito. Vêem. Isso acontece com adultos e crianças, intelectuais e trabalhadores, tolos e sábios”. (Postman, 1999, p. 92).

O grande questionamento para Postamn (1999) pode ser estabelecido na relação entre a criança e a televisão, pois essa se constitui enquanto um veículo de comunicação e entretenimento que não distingue entre adultos e crianças. Não há formas de ocorrer essa separação. Não existem restrições para se assistir televisão, todos conseguem entender as suas imagens, pois ela não exige nenhuma forma de racionalidade elaborada para ser compreendida. Apenas exige as nossas emoções, para que possamos seguir sua lógica e nos mantermos de acordo com suas premissas, que na maioria das situações são ditadas pela lógica do consumo.

No entanto, o ponto nevrálgico, para Postman (1999), da grande difusão da televisão na sociedade contemporânea é a sua capacidade de destituir a linha divisória entre idade adulta e a infância. A televisão, por não possuir restrições - e quando as simboliza faz no sentido de provocar maiores olhares - acaba escancarando todos os segredos do mundo adulto, que desde o século XVI lutaram para serem preservados das crianças. Cenas de violência, de sexo, mentira, traição, corrupção, pedofilia, homossexualismo, enfim, questões do mundo adulto e privado estão, a partir da televisão, presentes no cotidiano de crianças e adolescentes do mundo inteiro. Não existem mais segredos a serem revelados: as crianças já os conhecem e passam a discuti-los entre si e com adultos. A noção de vergonha, antes um marco para a distinção entre adultos e crianças agora se destitui, e passamos a viver com crianças extremamente informadas e conhecedoras de todas as situações existentes na sociedade.

Podemos questionar em certos momentos essa preservação da criança em relação ao mundo adulto. Devemos mesmo afastastá-las dos acontecimentos que as rodeiam? Para Postman (1999), o problema está na forma como essas informações chegam até a cultura infantil. A televisão proporciona que, tanto adultos como crianças recebam as mesmas mensagens, informem-se da mesma maneira. Interessante é a passagem em que Postman (1999) compara o acesso da criança às questões sobre violência, por exemplo, através dos contos de fadas, onde, pela doce voz de sua mãe a criança vai assimilando a existência do mal. “Mas a violência que é mostrada atualmente na televisão não é mediada pela voz de uma mãe, não é nem um pouco modificada para se adaptar à criança, não é orientada por nenhuma teoria do desenvolvimento infantil”. (p. 108)

As contribuições de Bourdieu (1997) nesse sentido revelam as razões para a nossa preocupação em relação ao domínio da televisão na produção e disseminação de informações

Se insisto nesse ponto, é que se sabe, por outro lado, que há uma proporção muito importante de pessoas que não lêem nenhum jornal; que estão devotadas de corpo e alma à televisão como fonte única de informações. A televisão tem uma espécie de monopólio de fato sobre a formação das cabeças de uma parcela muito importante da população. (BOURDIEU, 1997, p. 23).

Se, para Bourdieu (1997), a televisão exerce uma espécie de “violência simbólica” (p. 22) por utilizar o sensacionalismo, a futilidade, o espetáculo, a vida pública como via de maiores audiências, essa violência simbólica constitui-se como forma mais eficiente para a infância, que, ao ligar a televisão está sujeita a se deparar com uma visão do mundo editada e selecionada pelas emissoras de televisão, que, na maioria dos casos acaba optando pelas cenas de exploração da miséria, da fome, da violência e da doença como fonte de espetacularização da condição humana.

Nesse sentido é que Postman (1999) acredita ser a televisão a grande responsável pelo desaparecimento da infância. Através da televisão, a criança percebe e aprende os acontecimentos do mundo, sem muitas vezes a mediação de um adulto responsável ou por uma leitura crítica dessas mídias pelo professor.

A televisão não só atua no sentido de apresentar o mundo para a criança, como também atua como espaço de socialização da criança, que para Belloni (2001) “é o espaço privilegiado de transmissão social dos sistemas de valores, dos modos de vida das crenças e das representações, dos papéis sociais e dos modelos de comportamento” (p. 33).

Podemos entender melhor a relevância dessa “função” que a televisão assume para o universo da criança observando o que nos diz de Belloni (2001)

A televisão tem um papel muito importante também na dimensão semântica do processo de socialização na medida em que ela fornece as significações (mitos, símbolos, representações), preenchendo o universo simbólico das crianças com imagens irreais (representando significações inexistentes no mundo vivido). Além disso, ela transmite também o saber acumulado e informações sobre a atualidade, fornecendo aos jovens uma certa representação do mundo. Ela apresenta, ainda, as normas da integração social, o que é evidente nas telenovelas e desenhos animados infantis, por exemplo, onde a “moral da história” é muitas vexes explícita e recorrente. As significações transmitidas pela televisão são apropriadas e reelaboradas pelas crianças a partir de suas experiências e integram-se ao mundo vivido no decorrer de novas experiências. (BELLONI, 2001, p. 34)

Devemos ressaltar as observações de Belloni (2001) em relação ao exagero que podemos atribuir negativamente à presença da televisão na vida e no cotidiano das crianças. No entanto, entendemos a urgência de refletirmos a forma como ela predomina, na realidade de muitas crianças, na constituição dos seus processos de socialização, já que, em muitas situações ao assistir televisão a criança não conta com nenhuma mediação e muito menos com a possibilidade de refletir e redefinir alguns conceitos que adquire enquanto telespectadora. E como já salientamos anteriormente, a televisão acabou gerando na verdade uma grande crise entre as instituições produtoras de sentido, como salienta também MOREIRA (2003). No entanto, o autor destaca a importância da família e da escola como as fontes primárias produtoras de sentido para as crianças, embora a televisão acabe distorcendo esse processo

Parece-me inequívoco que os diversos meios de comunicação exercem hoje uma função pedagógica básica, a de socializar os indivíduos e de transmitir-lhes os códigos de funcionamento do mundo. Sem dúvida instituições como a família, a escola e a religião continuam sendo, em graus variados, as fontes primárias da educação e da formação moral das crianças. Mas a influência da mídia está presente também por meio delas. A televisão, por exemplo, ocupa uma fatia considerável do tempo das crianças, sobretudo em meios sociais carentes de fontes alternativas de ocupação e lazer. (MOREIRA, 2003, p. 1216)

Nossas preocupações referem-se às formas como esse contato com as mídias eletrônicas será incorporado na história da cultura da infância e nas conseqüências que essa interação produzirá nessa geração inserida em uma sociedade midiatizada e que, cada vez mais utiliza-se dessas mídias para o seu entretenimento, sua comunicação com outras pessoas, para constituir suas brincadeiras, para se informar, para consumir, para se constituir enquanto sujeito incluído nesta sociedade.

Dessa forma constituímos como objetivo de nosso trabalho analisarmos de que forma docentes em formação e em atuação com crianças em idade pré-escolar incorporam em suas práticas pedagógicas e sem suas concepções educativas o trabalho em relação a uma educação para as mídias. Com isso ressaltamos nossa crença, assim como MOREIRA (2001) na importância da escola e dos docentes como instituições e sujeitos primários no trabalho de socialização da criança com o mundo e, principalmente, proporcionando uma releitura das mensagens simbólicas veiculadas pelos sistemas midiáticos, principalmente pela televisão, que atuam diretamente na constituição da identidade e subjetividade da cultura infantil. Autores como Neil Postman caminham na direção afirmativa de que a televisão contribui não só na constituição das identidades e subjetividades da infância, como também para o seu fim enquanto idade distinta tanto cronologicamente quanto em necessidades dos adultos. No entanto, a utilização de suas percepções nesse trabalho contribuem no sentido de entendermos o atual quadro da cultura infantil nessa sociedade, uma infância que vive inteiramente a influência dessa cultura da mídia. Em relação ao seu desaparecimento, essa é uma questão que não nos compete analisar, embora as evidências levantadas pelo autor sejam extremamente pertinentes.

4. Cultura Midiática, Cultura Escolar e Mídia-Educação

Nesse momento de nossas reflexões, em que começamos a pensar na atuação da escola em relação a essas novas representações culturais, tanto da infância quanto da sociedade contemporânea, deparamo-nos com outra questão tão complexa quanto as anteriores: como as escolas percebem a inserção da cultura midiática em seu espaço institucional, que adentra o ambiente escolar na pele dos alunos e dos próprios docentes? De que forma escola e docentes percebem a importância do trabalho de alfabetização para as novas tecnologias, sendo que essas fazem parte da cultura de seus alunos?

Segundo Gómez (2001), a cultura escolar, que abrange uma série de relações nas instituições tem se apresentado restrita apenas as necessidades da sociedade neoliberal de apresentarem resultados eficazes:

Como a intensa competitividade internacional está exigindo das empresas extremar a eficiência de seus procedimentos, de suas tarefas, estruturas organizacionais e interações pessoas, para alcançar e oferecer no mercado o produto mais competitivo, ou seja, o máximo de aceitação ao mínimo custo, também das escolas deve-se exigir similar esforço e competência na elaboração eficaz de seus procedimentos, de suas estruturas organizativas e interações pessoas para produzir rendimentos acadêmicos ao menor custo (Gómez, 2001, p. 151)

Dentro dessa perspectiva, acaba-se valorizando na escola somente a cultura tradicional de repasse de conhecimentos científicos, descontextualizados ao nosso tempo. A escola parece não avançar, junto às inovações culturais, sociais e tecnológicas, no sentido de incorporá-las as suas funções pedagógicas, ficando restrita somente a uma cultura conservadora de memorização e acúmulo de conhecimentos. Dentro dessa perspectiva, a escola acaba silenciando outras culturas existentes dentro de seus muros e espaços, como por exemplo, a “cultura experiencial” que Gómez (2001) define como sendo

A peculiar configuração de significados e comportamentos que os alunos e as alunas elaboram de forma particular, induzidos por seu contexto, em sua vida prévia e paralela à escola, mediante os intercâmbios “espontâneos” com o meio familiar e social que rodeiam sua existência. A cultura do estudante é o reflexo da cultura social de sua comunidade, mediatizada por sua experiência biográfica, estreitamente vinculada ao contexto. (GÒMEZ, 2001, p. 205).

Outra cultura existente nas instituições escolares e que, segundo a definição de Gómez (2001) constitui um dos elementos principais na formação cultura escolar é a chamada “cultura docente”, definida como

O conjunto de crenças, valores, hábitos e normas dominantes que determinam o que este grupo social considera valioso em seu contexto profissional, assim como os modos politicamente corretos de pensar, sentir, atuar e se relacionar entre si. (GÓMEZ, 2001, p. 164)

O que consideram relevante os docentes no seu contexto profissional? Será que as discussões referentes à influência da cultura midiática na sociedade contemporânea, principalmente sobre a cultura infantil são “valiosas” para essa categoria? Para Gómez (2001, p. 164) os docentes “se encontram cada dia mais inseguros e indefesos, se sentem ameaçados por uma evolução acelerada que não podem ou não sabem responder”. Com isso, são urgentes as reflexões a respeito de como as escolas criam seus mecanismos de resistência às exigências da sociedade neoliberal e abrangem em sua cultura institucional outras formas de manifestações culturais. A partir desses princípios é que a escola deve partir no seu fundamento de socialização e educação, contribuindo dessa forma para um repensar sobre as necessidades da sociedade contemporânea: uma sociedade que exige cada vez mais indivíduos competentes e portadores de múltiplos conhecimentos e habilidades, mas que carece muito de sujeitos que não tenham perdido a capacidade de sensibilidade, amor e liberdade interiores individual e coletivamente. A escola cabe auxiliar na leitura e representação de um novo tempo, que seus agentes sintam-se parte responsável pela construção de uma sociedade que resgate valores pelos bens comuns e pelas relações mais solidárias com a natureza e com as pessoas.

5. Considerações finais

Salientamos, na conclusão desse artigo nossas constantes inquietações diante das questões levantadas nesse espaço de reflexão. Estudos teóricos acompanham nossa caminhada de produção e elaboração da pesquisa, assim como observações nas escolas públicas e particulares em classes de Educação Infantil. Ainda acompanhamos uma representação de alunas estagiárias do curso de Pedagogia Habilitação Pré-escola da UFSM, que estão atualmente finalizando suas práticas em instituições de Educação Infantil na cidade de Santa Maria, exercendo um trabalho em turmas de pré-escola durante um período de seis meses.

No entanto, devido ao andamento dessa pesquisa, ainda não contamos com resultados diagnosticados pelo trabalho de campo. Dessa forma, tentamos, para a elaboração desse artigo compartilhar algumas das discussões teóricas realizadas desde o período em que a pesquisa teve seu início, no início do ano de 2005. Mas, como nos permite a perspectiva dos Estudos Culturais, continuamos caminhando e tramitando entre várias teorias, na busca de respostas a inúmeras indagações.

Referências:

BELLONI, M. L. O que é mídia-educação. Campinas, SP: Autores Associados, 2001.

BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1997.

CARLSSON, U.; FEILITZEN, C. von (orgs.). A criança e a mídia: imagem, educação, participação. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2002.

FISCHER, R. M. B. Televisão & Educação: fruir e pensar a TV. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

GIROUX, H. A. Praticando Estudos Culturais nas Faculdades de Educação. In.: SILVA, T.T. da S. (org.). Alienígenas na sala de aula. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

GÓMEZ, A.I. A cultura escolar na sociedade neoliberal. Porto Alegre: ARTMED Editora, 2001.

HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação e Realidade, n° 22 (2): 15-46 jul./dez, 1997.

MOREIRA, A. da S. Cultura Midiática e Educação Infantil. Revista Educação e Sociedade, vol. 24, n° 85, p. 1203 – 1235, dez 2003.

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – IBGE/2004. Disponível em: . Acesso em: 15 abril. 2006

POSTMAN, N. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.

-----------------------

[1] Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNDA/IBGE. Disponível em

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download

To fulfill the demand for quickly locating and searching documents.

It is intelligent file search solution for home and business.

Literature Lottery

Related searches