A HISTÓRIA DE UM TATU-BOLINHA QUE VIROU UM TATU …



A história de um tatu-bolinha que virou um tatu-bolão: O USO DE DIFERENTES narrativaS NO PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Alex Zopeletto da Silva

Graciella Falbo Donini

Issaaf Santos Karhawi

RESUMO: Esse trabalho refere-se à experiência de uma intervenção realizada durante o Estágio Básico em Contextos Sócio-Educativos, disciplina do curso de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso. A partir da observação do contexto escolar de uma Escola Municipal de Ensino Básico da cidade de Cuiabá, constatou-se a questão da socialização como fator marcante no dia-a-dia das crianças em idade pré-escolar. As crianças inseridas na faixa etária dos quatro aos cinco anos apresentavam comportamentos característicos do estágio do egocentrismo nomeado por Jean Piaget que caracteriza a visão de mundo da criança como voltada apenas para si e não para o outro. Apesar de um estágio natural e esperado, no contexto escolar o período egocêntrico no qual as crianças se inscreviam pode proporcionar alguns percalços no processo de socialização necessário para o convívio na escola. Como proposta de intervenção, pensou-se na narrativa “O sofá estampado” da escritora Lygia Bojunga que conta a história de um tatu-bola que vivia sozinho em sua bolinha. No desfecho da trama, o tatu faz vários amigos e sai de sua bola para brincar com eles em um sofá estampado. Outras narrativas foram incorporadas ao projeto de intervenção dando maior amplitude à história do tatu, como a canção “Ciranda” do grupo Palavra Cantada que também narra a história de tatu-bolinha que vira um tatu-bolão ao fazer vários amigos. Durante seis encontros, diferentes atividades relacionadas à história do tatu-bola foram realizadas com as crianças, desde narrativas com bonecos, desenhos livres, danças, até confecção de um sofá. Ao final do processo, esperou-se que as crianças pudessem conceber a noção de socialização/interação social e o reconhecimento do outro enquanto ser dotado de vontades. De forma geral, concluiu-se que a fase do egocentrismo infantil precisa ser vista com cuidado pelos educadores de forma a tornar o convívio dentro da escola mais agradável para o educando em fase pré-escolar.

A história de um tatu-bolinha que virou um tatu-bolão: O USO DE DIFERENTES narrativaS NO PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL[1]

Alex Zopeletto da Silva

Graciella Falbo Donini

Issaaf Santos Karhawi

Universidade Federal de Mato Grosso

azopeletto@.br; c.donini@; issaaf@

É na escola que o processo de socialização e aprendizagem da criança se inicia. De acordo com Bock et al. (2002), ao entrar na escola a criança começa a se humanizar e a se socializar. Com base nos valores transmitidos pela escola é que a criança começa a construir, por conta própria e lentamente, sua autonomia, suas condutas e a ingressar em grupos sociais.

O ambiente escolar possibilita esse processo, pois é responsável por transmitir a cultura, as normas sociais, os valores morais e coletivos. “A escola estabelece, assim, uma mediação entre a criança (...) e a sociedade” (BOCK et al., 2002, p. 263). É por essa razão que a vida escolar deve estar articulada com a vida social. A escola não pode ser vista como uma fortaleza da infância, mas como um local no qual a vida cotidiana está presente em todos os processos de aprendizagem.

A Educação Infantil se inicia por volta dos quatro anos, quando a criança já pode ingressar no jardim de infância. Segundo a teoria de Jean Piaget, a faixa etária dos dois aos sete anos corresponde ao período pré-operacional, no qual a criança é marcada pelo egocentrismo.

De acordo com Rappaport (1981), esse período é sinalizado pela tendência lúdica da criança e uma percepção distorcida do mundo. Isso porque, nessa fase, a criança ainda está construindo seu pensamento lógico e o ato de raciocinar. Assim, a fantasia está sempre presente, misturada com a realidade. “O egocentrismo se caracteriza, basicamente, por uma visão da realidade que parte do próprio eu, isto é, a criança não concebe um mundo, uma situação da qual não faça parte” (RAPPAPORT, 1981, p.68). O egocentrismo se apresenta em todas as competências da criança nessa fase: intelectual, social e da linguagem.

No âmbito social, que é o que mais nos interessa nesse caso, a criança se desprende da família e inicia um processo de socialização. No entanto, ela brinca com outras crianças, faz coisas juntas, mas não existe, aí, um processo de interação real e efetivo. Rappaport comenta que “(...) é freqüente observarmos várias crianças brincando juntas com carrinhos, bonecas, ou areia, mas cada uma delas está brincando sozinha” (1981, p.71). O egocentrismo é isso, uma dificuldade de considerar o outro como uma pessoa dotada de sentimentos e vontades diferentes das suas. Há uma extensão da criança para os outros, como se todos sentissem, pensassem e agissem como ela, de acordo com seus desejos. “É como se a criança concentrada em sua própria atividade não pudesse perceber que outras pessoas estão fazendo, sentindo ou pensando coisas diferentes” (Ibid.).

Andrade (2002) completa ao comentar que a criança está centrada em seu eu e vê o mundo a partir de sua perspectiva, “tudo existe em função dela. (...) Esta centração do pensamento faz com que tenha dificuldades de admitir pontos de vista diferentes dos seus” (2002, p.28).

Rappaport (1981) exemplifica o egocentrismo infantil ao dizer que é por essa razão que explicar a uma criança de quatro anos que ela não pode fazer determinada coisa é tão complicado. Para ela, o que conta são as suas vontades, e considerar o outro ainda não é possível nesse período do desenvolvimento infantil.

Porém, de acordo com a teoria de Piaget, o período pré-operacional é apenas uma das fases do desenvolvimento infantil e, por isso, é uma etapa de transição que deve se encerrar por volta dos sete anos quando a criança já é capaz de socializar com outras pessoas e considerar vários pontos de vista além do seu.

A escola desempenha papel fundamental na diluição do egocentrismo infantil. Apesar de natural e esperado, o egocentrismo deve ser, aos poucos, diminuído a partir do momento em que a criança passa a enxergar o outro e reconhecer nesse outro algo de diferente de si. Daí, a importância do processo de socialização que se inicia no ambiente escolar.

Vygotsky, outro importante teórico do desenvolvimento infantil, aqui representado pela autora Susana Molon (1999) diz que a formação da subjetividade - a formação do eu - só se dá a partir do momento em que reconhecemos os demais. Só quando acontece esse reconhecimento do outro, como um ser diferente de mim, é que é possível me reconhecer enquanto eu. O processo de socialização possibilita isso. Conhecer diversos outros “eus”, todos diferentes de mim. E então, me conhecer, me autoconhecer. Só assim o sujeito se constitui. Nesse ponto em especial, as teorias de Vygotsky e de Piaget se encontram e apresentam o processo de socialização como fundamental não só para fazer parte de um grupo social, mas, especialmente, para desenvolver autoconhecimento.

No contexto observado durante o período de estágio na Escola Municipal de Educação Eugênia Pereira de Mello de Cuiabá (Mato Grosso) pudemos observar elementos da teoria de Jean Piaget. As crianças da turma “passa-anel” da Educação Infantil estavam inscritas na faixa etária de quatro a cinco anos e apresentavam comportamentos descritos como egocêntricos. Por vezes, durante o intervalo ou nos períodos de brincadeira livre, cada uma das crianças apoderava-se de um objeto e brincava sozinha. Em determinados momentos, as mesmas brincadeiras se repetiam, mas sempre isoladamente. Alguns alunos, em especial, não participavam das poucas brincadeiras desenvolvidas em grupo mesmo quando auxiliados pela professora e mantinham-se, continuamente, sozinhos.

Esse contexto realça o período de egocentrismo pelo qual as crianças passam. O auxílio pedagógico e psicológico pode ser importante para possibilitar um ambiente de convívio no qual haja interação entre as crianças.

Em virtude do contexto observado durante o período de um mês, com acompanhamento semanal, pôde-se perceber a necessidade da turma em trabalhar a socialização. O processo de interações sociais possibilita, além de a criança se reconhecer enquanto ser autônomo e reconhecer o outro, construir um ambiente de respeito para com o outro, a partir do momento em que esse reconhecimento é possível. As queixas dos educadores em relação à turma, por vezes, caracterizavam as crianças como desobedientes ou agressivas. Com o desenvolvimento de um ambiente de socialização, as crianças passam a respeitar o outro, pois consideram novos pontos de vista e não só o seu. Obviamente, esse processo é lento, gradativo e deve ser contínuo, mas contribui com a diluição do egocentrismo infantil.

Com base nesse apanhado teórico (especialmente no construtivismo piagetiano) e nas observações feitas, o projeto de intervenção planejado para a turma visa várias áreas do desenvolvimento infantil, todas elas concentradas no processo de socialização.

A partir do contexto observado pensou-se em uma intervenção que tivesse como foco principal a socialização entre as crianças. Para tal, a história da autora Lygia Bojunga, chamada “O Sofá Estampado”, foi usada como base. No livro, a autora conta a história de um tatu-bolinha que tinha poucos amigos, pois vivia dentro de sua bola.

Toda a intervenção passou a ser articulada a partir da história de um tatu-bolinha. Que foi pensando como principal componente do plano de intervenção. A idéia do tatu surge pela possibilidade de ele crescer e se tornar um tatu-bolão, adicionando novidades a sua vida, como novos coleguinhas.

A intervenção começou a se materializar quando criou-se uma representação do personagem principal, ou seja, uma pelúcia do tatu-bolinha. O nome dado ao tatu foi Eugênio fazendo referência ao nome da escola “Eugênia de Mello”, em uma tentativa de aproximar o processo de aprendizagem com o dia-a-dia das crianças.

Segundo Andrade (2002), é importante para as crianças da fase pré-operatória explorarem brinquedos de faz-de-conta que possibilitam aprimorar a função simbólica, que consiste em operações como o raciocínio, linguagem e imaginação. Teoricamente, esse é o objetivo do boneco do tatu-bolinha: oferecer às crianças um brinquedo de faz-de-conta que ative esse desenvolvimento.

Além da narrativa, a canção “Ciranda” do grupo Palavra Cantada foi utilizada como ferramenta base do processo de intervenção. A música, semelhante à narrativa do livro, conta a estória de um tatu que brincava sempre sozinho, o que pode ser comparado com o período egocêntrico pelo qual as crianças passam, marcado por brincadeiras individuais.

O trecho da canção: “Deixa de manha, de noite, de dia. Toda criança diz que tudo é seu. (...) Que nessa ciranda o mundo inteiro é meu, é seu, é meu, é seu” marca bem a percepção de mundo das crianças baseada em uma visão egocêntrica.

Ao final da canção, o tatu-bolinha faz amizade com outras pessoas e vira um tatu-bolão: “Como uma vez tinha um tatu bolinha. Mais outra vez nasceu um monte de irmãos. Mais o amigo, mais a prima, o colega, a vizinha. E nessa ciranda tatu bolinha virou bolão, balão, bolão, balão”.

É a partir dessa música, e especialmente dos trechos apresentados, que a temática da intervenção, socialização, vem à tona. Com o tempo, sozinhas, as crianças entenderão que o tatu-bolinha só virou um tatu-bolão porque fez vários amigos e que isso, também, pode ser divertido.

Segundo Andrade (2002, p.37), algumas atividades em especial contribuem para a aquisição da consciência de si mesmo e de seu corpo e na superação do egocentrismo infantil. A autora pontua que “(...) atividades ao ar livre, com areia, água, movimento, música e ritmo” desempenham bem essa função. A escolha pela canção deve-se a essa pontuação teórica. Tendo em vista que ao cantar a canção do tatu-bolinha, as crianças podem se movimentar livremente, construindo passos de dança ou apenas cantando.

Outras ferramentas auxiliares foram usadas durante a intervenção. Para a narrativa da história “O Sofá Estampado”, bonecos em miniatura dos personagens foram construídos para um teatro de fantoches. Para cantar a música do tatu-bolinha, uma caixa da canção foi construída de onde elementos da narrativa musical eram tirados na medida em que apareciam nos versos da canção. Brincadeiras de roda e momentos de pintura livre também foram ferramentas auxiliares na intervenção. Em todos os momentos o tatu-bolinha estava presente ouvindo o que as crianças tinham para lhe contar.

Durante os dias de intervenção algumas mudanças sutis puderam ser observadas entre os alunos. Uma das alunas, de cinco anos, que costumava brincar isoladamente, mesmo quando em atividades em grupo propostas pelos professores, estava sempre envolvida nas atividades com o tatu-bolinha. Alunos tidos como “hiperativos” sentavam, mesmo que rapidamente, para ouvir sobre a história do tatu, ou conversar com ele. Por vezes, ouvia-se no discurso das crianças falas como “Eu quero ser amigo do tatu-bolinha” ou discursos como “O Eugênio tem um monte de amiguinhos”. Apesar de reflexões simples sob o ponto de vista dos educadores, o discurso das crianças revela uma compreensão de todo o processo em ação na escola.

As narrativas não só auxiliam no desenvolvimento simbólico das crianças, mas também pode servir como ferramenta psicológica importante para vários aspectos. As narrativas devem ser usadas de maneira livre, de acordo com o ritmo da criança e, sobretudo, sem juízo de valor. Mais vale para a criança o momento de brincadeira livre com o tatu-bolinha do que “o que é certo ou errado” segundo o tatu. Esse tipo de intervenção não dita normas e regras de socialização, mas propõe-se além.

Considerações Finais

A intervenção do tatu-bolinha tem como objetivo trabalhar a socialização na escola. O período do desenvolvimento infantil no qual as crianças entre quatro e cinco anos se encontram é marcado pelo egocentrismo e brincadeiras individuais. No entanto, no ambiente escolar é preciso que haja algum tipo de interação entre elas. É por essa razão que pensar o tatu-bolinha enquanto um animal pequeno e sozinho na sua bolinha, que, depois de fazer amigos, vira um tatu-bolão pode ser ilustrativo para a realidade das crianças.

A partir das atividades propostas espera-se que haja algum tipo de sensibilização por parte das crianças. As brincadeiras de roda e as narrativas do tatu possibilitam enxergar o outro e compreender que em coletividade as brincadeiras também podem ser divertidas. Nas canções e na história contada espera-se que a criança potencialize seu poder de abstração e imagine fatos da vida do tatu.

Não se espera que ao final da intervenção as crianças estejam todas brincando harmoniosamente entre si, mas que o início de um processo seja visto. Aos poucos, todas as atividades e narrativas começam a fazer sentido e são internalizadas pelas crianças. O processo pode ser lento e custoso para os interventores que deverão lidar pacientemente com os possíveis problemas que surgirão pelo caminho, mas a sensação de estar “plantando uma semente” pode ser consoladora. No mais, a possibilidade de oferecer às crianças momentos de ludicidade e imaginação é essencial para não só a socialização, mas para o desenvolvimento de seres autônomos, cientes de seus desejos, vontades e ideais.

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Rosamaria Calaes de. Criança, pré-escola e construtivismo. In: GOULART, Íris Barbosa (org.) A educação na perspectiva construtivista: reflexões de uma equipe interdisciplinar. 3 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 28-43.

BOCK, Ana Mercês Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi. Psicologias: Uma introdução ao estudo de psicologia. São Paulo: Saraiva, 2002.

MOLON, Susana Inês. Subjetividade e constituição do sujeito em Vygotsky. São Paulo: EDUC, 1999

RAPAPPORT, Clara Regina. Modelo Piagetiano. In. RAPPAPORT, Clara Regina; FIORI, Wagner da Rocha; DAVIS, Claúdia. Teorias do desenvolvimento: Conceitos Fundamentais. Volume 1. São Paulo: EPU, 1981

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[1] Agradecemos a orientação da professora Dr. Vera Lúcia Blum do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso

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