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Entrevista com Thiago Vasconcelos, diretor da Companhia Antropofágica de teatro, realizada pela revista Contra a Corrente em conjunto com a Casa de Estudos e Pesquisas Hermínio Sacchetta (CEPHS).Contra a Corrente – A Companhia Antropofágica está há alguns anos trabalhando na trilogia “Alegria em Pindorama”, que trata da história do Brasil dividida em três partes: Col?nia, Império e República. Qual a import?ncia de fazer uma trilogia sobre a história do Brasil?Thiago Vasconcelos – A companhia tem dez anos e sempre esteve neste projeto [de resgatar a história do Brasil]. A primeira pe?a que fizemos chama “Macunaíma no país do Rei da Vela”. Pegamos o “Macunaíma” do Mario de Andrade e o “Rei da Vela” do Oswald de Andrade e fizemos uma pe?a de rua, portanto, já falava do projeto de brasilidade que tínhamos. Fizemos uma série de outras pe?as que também diziam respeito a isso.A import?ncia fundamental é causar uma tens?o com a historiografia oficial brasileira, que tem alguns pontos muito falhos. O primeiro é que sua perspectiva é a da história da manuten??o do poder: as histórias de imperadores, reis, essas s?o as rela??es; e a gente tenta, na trilogia, trazer essa história do ponto de vista da luta de classes. Isso já n?o é pouca coisa; há pouquíssimos espetáculos, pe?as e reflex?es nesse sentido. Segundo, que foi fundamental fazer uma investiga??o da heran?a colonial, que é muito forte e trás as especificidades que o modelo capitalista tem no Brasil. Dialogamos às vezes com gente que n?o é do Brasil, e existem coisas aqui que as pessoas sequer entendem. ? um país muito diferente, se você pensar da perspectiva da Europa, que passou por uma revolu??o burguesa, revolu??o francesa, e nem sequer esse processo existiu aqui, ent?o a gente tem mecanismos diferentes. Durante toda a trilogia trabalhamos com o confronto entre a col?nia, império e a própria república – n?o a república recente – mas sempre confrontando politicamente com o presente. N?o há cenas historiográficas que apenas reproduzem aquela realidade; é sempre numa perspectiva de como isso se traduz e como chegou até o presente. Nossas pe?as partem da história, mas têm como pesquisa e assunto os dias de hoje, porque ficar fazendo uma mera ilustra??o do que existe, para nós é um problema muito grande. Isso é a base que fez nos interessarmos [por fazer a trilogia]. Um dos pressupostos que temos é o teatro épico e o teatro dialético, que têm como ideia partir de fatos históricos; quando se trabalha a partir de fatos históricos e da realidade, há uma materialidade histórica à qual você está se referindo e n?o só conceitos, subjetividades, que poderiam levar a pensar um teatro apenas fundado em um “ponto de vista”. Dentro dessa rela??o [dos fatos históricos e o teatro épico] podemos pensar o que se mantém e o que se modifica, e a partir disso [questionar] algo fundamental, um discurso muito difícil hoje e que “pega” muito no teatro e na estética, que é de que “o mundo mudou”. Realmente, o mundo mudou, está em movimento; mas, a partir daí vem um “portanto” que é falso: “portanto, essas categorias [do teatro épico e dialético], essas coisas que vocês est?o usando n?o servem mais, isso é velho, isso servia para tal lugar.” Essa ideia é falsa, porque o mundo mudou, mas muita coisa permaneceu. Por exemplo, a propriedade privada dos meios de produ??o permanece. Há mudan?as históricas no mundo, mas a manuten??o da propriedade privada dos meios de produ??o continua valendo, e as análises a respeito disso têm que ser pensadas. ? claro que a forma como se dá a propriedade privada dos meios de produ??o hoje tem varia??es em rela??o a como era há trinta ou cem anos atrás, mas ela n?o acabou. Portanto, esse discurso do fim da história, as desconstru??es derridarrianas [referentes a Jacques Derrida], essas bobagens todas partem do pressuposto de que o mundo mudou, e é como se um teatro que tivesse como base de estudo a teoria do Marx fosse uma bobagem. Mas esse pressuposto de que o mundo muda e que as teorias precisam dar conta do movimento real, do objeto real em movimento, já está em Marx; n?o existe análise parada num processo de pe?a épica, dialética. E é impossível falar de pe?a épica, dialética e Brecht sem falar em Marx, porque é dali que isso saiu. Isso é fundamental. Dentro do nosso processo de constru??o das pe?as, esse estudo teórico é muito importante: o estudo da história do Brasil, a análise de conjuntura, de como isso hoje aparece na sociedade, e que tipo de poética, que tipo de estética, que tipo de treinamentos, que tipo de técnicas s?o necessários para contar essa história dessa maneira.CaC – Quanto à República, em rela??o à ditadura militar, o que vocês est?o considerando como mais relevante ser resgatado a partir dessa perspectiva, de trazer isso pro presente, como fio de continuidade; o que que sobra pros dias de hoje?Thiago - Quando você vai discutir ditadura militar, existe uma op??o de simplesmente pegar a historiografia que existe de maneira idealizada e fazer “Anos Rebeldes”, que é o que a Rede Globo fez; mostra toda uma “como??o nacional”, a “batalha das pessoas pela liberdade” e tudo mais. ? um recorte, que vem dos fatos também, que tem uma posi??o politica muito clara e ideológica por trás.Outra maneira de fazer isso é se debru?ar sobre a historiografia e ver como foi denominado esse período, e aí você vai cair em duas coisas logo de cara: “ditatura militar” ou “a revolu??o redentora”. A primeira coisa que fizemos foi um estudo: o que é ditadura? Fomos ao bom e velho Marx, e, claro, isso parte de uma escolha sobre a partir de qual categoria teórica você irá contextualizar. Marx define ditadura como a hegemonia de uma classe no controle do Estado e do poder. Logo, chegamos à conclus?o de que tem, como princípio, uma ditadura hoje; mas é muito importante definir a diferen?a da ditadura de hoje pra ditadura militar, e também que diminuí-la chamando-a só de militar é um problema muito grande. Foi uma ditadura civil e militar, trabalhada nesses dois ?mbitos. Ent?o, se a ditadura é a hegemonia de uma classe no poder e sobre a outra, temos que olhar esses dois períodos – já que a gente trabalha nessa perspectiva com o presente – e entender que há uma continuidade. Existe um período de 64 a 84, onde essa ditadura era militarizada e as formas necessárias de manuten??o dessa ditadura foram diferentes das que se apresentam hoje. Ent?o combater a ditadura de hoje é diferente do combate à ditadura militar. Isso é outra coisa que pra gente é importante, porque há também todo um discurso que afirma “n?o, a ditadura n?o acabou, as coisas continuam acontecendo do mesmo jeito”. E, é claro, a violência, se a gente fizer uma pesquisa em número, pode ser que ela seja maior; o número de mortos provavelmente é mais truculento; a tortura continua; mas é diferente enquanto proposta de Estado.Quanto à ditadura militar, vamos trabalhar muito buscando elementos da própria indústria cultural – desde o esporte, movimentos culturais como o movimento hippie, o movimento do esquerdismo que se deu no Brasil. ? preciso lembrar que a ditadura militar, no Brasil, é um golpe sobre o populismo. Isso é fundamental entender. ?s vezes, a própria vis?o idealizada diz que a ditadura militar é um golpe sobre uma “tentativa comunista”. E n?o era isso que estava dado. O que estava dado, antes da ditadura militar, era uma tentativa de golpe ao JK, uma tentativa de golpe ao Jango. Temos os três J: o Jango, o J?nio e o JK, e é em cima dessas figuras que é dado esse golpe. E aí percebemos que nem a proposta populista do Jango “passava”. ? criado um mito que deixa a coisa mais nublada quando parece que tinha alguma coisa muito além dessa proposta moderada; e aí isso leva a equívocos, em que s?o criados um monte de “heróis” do período da ditadura. Em uma cena que estamos fazendo há uma música, n?o lembro se é do Cazuza, Legi?o Urbana, se é do Belchior, acho que é do Cazuza; mas isso é meio espírito do tempo da ditadura, que é aquela coisa: “Meus inimigos est?o no poder”. [“é o Cazuza, Ideologia”] Isso! Mas essa ideia se repete em algumas músicas na indústria cultural contra a ditadura, isso se repete em muitos momentos: “Meus inimigos est?o no poder.” Aí de repente eu olhei, e falei “puta, é foda, os inimigos est?o no poder”; e aí os “ídolos” que a ditadura criou, “aqueles” que a derrubaram é que est?o no poder hoje. Aí eu falei “Fodeu, tá uma bosta agora porque os meus amigos é que t?o no poder.” ?, porque se você pensar quem eram os inimigos – n?o que os inimigos tenham deixado de estar no poder, mas eles est?o agora no poder junto com os “amigos”. Ent?o, a gente tem uma das figuras de final de ditadura, que aparece quase como o “Sassá Mutema de S?o Bernardo”, que é o Lula, “o herói”, ele tá ali, e ele era um dos do coro do “meus inimigos est?o no poder”. Se a gente pensar hoje numa imagem que ficou forte, a gente tem o que era um “amigo”, que é o Lula, junto com o Maluf; ent?o a coisa ficou mais cruel, porque agora s?o “os meus inimigos” e “os meus amigos” que est?o no poder. E, portanto, eles sabem da onde vem, pra onde vai, e o sistema ficou mais “afinadinho”, sabe? Toda essa movimenta??o de esquerda da época da ditadura, essa “inteligência” que pensou isso, toda ela foi pro poder. Tem o Fernando Henrique no poder, a Dilma no poder, e isso faz com que essa música precise ser recantada, só que nessa chave. ? a partir disso que estamos trabalhando a ditadura: olhar dessa perspectiva o que aconteceu nesse momento histórico – é claro, sem tirar em nenhum momento a perspectiva humana, do grau de crueldade dessa ditadura, que foi de tortura aberta, o AI-5, e isso n?o pode ser esquecido. Diria que é fundamental isso estar em cena, mostrar como foi um período difícil – e n?o é que eu esteja contemporizando ou diminuindo o valor dessas pessoas que lutaram durante o período da ditadura com muito empenho; foi toda essa luta que derrubou a ditadura. Mas a gente precisa entender como se dá esse movimento – que é mais ou menos o que o Chico de Oliveira disse: s?o os operários aparecendo de maneira forte de novo, as comunidades de base organizadas pela igreja e os que sobraram vivos da luta da milit?ncia de esquerda no Brasil. Ele diz que essa é a base, o extrato básico do PT, e mais alguns que lutaram no campo da academia, intelectuais, essa coisa toda. A quest?o é como que esses que sabiam que os inimigos estavam no poder de repente hoje est?o no poder, repetindo coisas estruturais desse mesmo poder. Claro, n?o estou de maneira nenhuma dizendo que é a mesma coisa: o exército n?o age da mesma forma, as formas de domina??o se transformaram bastante, e n?o acho que seja melhor ter vivido aquelas formas de domina??o porque talvez a gente nem pudesse estar falando isso aqui. Mas, coisas estruturais que eram criticadas naquele tempo foram abandonadas, um monte de bandeiras foram abandonadas ou transformadas em bandeiras, digamos assim, cínicas. A reforma agrária é uma delas: hoje se faz um pouquinho ali, um pouquinho aqui; é o reformismo do reformismo, é reformar o reformismo: o que já era uma bandeira da Revolu??o Francesa, da revolu??o burguesa, vira o “etapismo do reformismo do reformismo”. Sei lá, n?o sei nem explicar, dar nome pra isso.Investigar esse período é muito interessante, porque a imagem – e eu estou falando de imagem no sentido de espetáculo – que temos ao assistir uma minissérie da Globo, é que existiu uma unidade pra derrubar uma das formas da ditadura do capital, que é essa forma militarizada de 1964 a 1984. Quando essa forma cai, parece que caiu a ditadura do capital. E isso é importante ser dito na transi??o desse período: caiu a ditadura civil-militar, ou seja, caiu uma das formas da ditadura do capital, mas n?o caiu a ditadura do capital, isso é bem diferente. S?o pouquíssimos filmes, pe?as, textos que d?o conta de pensar assim. Porque aí entram conceitos que s?o muito interessantes quando surgem, mas se você vai investigar de onde vem o conceito de totalitarismo, vê que é quase um conceito pra colocar Hitler e Stálin no mesmo lugar. N?o que Stálin tenha algum valor revolucionário, mas dizer que Hitler e Stálin s?o a mesma coisa é um problema, porque falseia a história. Ent?o, uma pe?a que trate da história da república, da col?nia, do império, é sempre uma pe?a que exige uma complexidade de milhares de camadas, porque é disso que estamos tratando.De outro lado a gente pode cair também, de duas formas: pode-se fazer uma pe?a que simplesmente levante fatos, e ela vira quase um “Globo Repórter” sobre a ditadura: apresenta fatos, fatos, fatos e, no final, com uma música que toque – que fa?a o papel de um editorial e de uma leitura política que fique ali e você nem perceba. Outra maneira é fazer uma história da ditadura usando ferramentas stalinistas do realismo socialista. Criam-se os tais “heróis necessários” da ditadura, e é como se de um lado houvesse as pessoas todas que lutavam contra a ditadura; isso tira a complexidade. Porque um primeiro nível da complexidade é esse: o que caiu foi uma das formas da ditadura do capital, n?o foi a ditadura do capital. Mas fazer uma pe?a e falar exatamente isso, eu n?o acho que seja o mais interessante; isso tem que estar pressuposto na hora de cria??o da cena. Em um grupo que debateu e chegou a essa conclus?o vai criar coisas que dialoguem e que trabalhem a partir dessa ideia. Estamos trabalhando a ditadura a partir disso. Trabalhamos muito com a poética do surrealismo, do dadaísmo, das vanguardas do início do século, que s?o coisas que o realismo socialista condenou e afirmou serem mistifica??es. Depois, o pós-modernismo se apropriou de todas essas vanguardas, esvaziando-as politicamente. O Lukács tem uma concep??o interessante de que a obra de arte parte do factum brutum. Ent?o, partindo desse fato bruto, que pode ser cotidiano, mas que n?o serve como categoria de análise, é possível derivar coisas que ajudem para a análise de um tempo e para a análise do presente. Por exemplo, a música do Geraldo Vandré [Pra n?o dizer que n?o falei das flores] – e ela é importante porque foi um marco, é simbólica. Se analisarmos sua letra: “Vem vamos embora, esperar n?o é saber, quem sabe faz a hora...” podemos pensar que quem fez isto foi a direita. Fazemos este processo de inverter algumas coisas, tirá-las de lugar: fizemos uma cena com essa música em que ela é falada na organiza??o do exército que vai reprimir uma manifesta??o, com o capit?o dizendo “Sentido, vem vamos embora!” E os soldados respondem “Vem, vamos embora!”, etc. Pronto, você faz a cena e vê que é uma ideia”. Aí vai na internet, dá uma “sapeada” e acha um vídeo de um cara da PM hoje em dia cantando essa música junto com o Geraldo Vandré. Existe esse vídeo! Ent?o vemos como as coisas s?o apropriadas.E, claro, corre um risco ao fazer a crítica assim. Só que estamos fazendo essa crítica num momento da comiss?o da verdade, com uma série de intelectuais debatendo as quest?es de 64-84. Colocamos mais um elemento dentro disso, ent?o a gente n?o vamos pro lugar que é esperado quando se fala da ditadura. N?o é uma quest?o de diminuir a import?ncia da música do Vandré naquele momento, mas é usar justamente isso pra entender porque que isto faz parte de um projeto que, ao chegar em 1984, falamos: “Puta, tiramos o canh?o de trás da nossa orelha e a baioneta do peito, e alguma coisa continua de muito ruim”. Aqui no Brasil, especificamente, e no mundo todo também. Tem que dar conta de falar isso quando falamos do período da ditadura, e de todos os outros; mas a ditadura está próxima no imaginário, e a disputa simbólica do que foi a ditadura está muito próxima. Ent?o, queremos trabalhar bastante com isso. A disputa desse imaginário da ditadura tá aí na nossa porta.CaC: Você acha que para isso é necessário fazer um balan?o da esquerda?Sim, com certeza. Um balan?o da “sopa de letrinha” da esquerda. Estamos come?ando a estudar, mas tem pouca coisa sobre isso. Para entender o que aconteceu é necessário pegar o material de análise das várias correntes de esquerda e fazer um balan?o. Porque há um monte de gente indo pra luta armada; no mesmo período um monte de gente indo fazer trabalho de base na fábrica, outro monte indo fazer trabalho de base junto com a Igreja Católica; é preciso entender como isso se deu e como se desdobrou. Porque algumas dessas figuras, que eram de grande express?o na luta contra a ditadura, ainda est?o por aí, e a maioria delas está no poder hoje. O Serra, por exemplo, que era presidente da UNE (ele que salvou o arquivo do CPC). Ent?o, há uma série dessas pessoas que estavam ali, e que naquele momento estavam combatendo essa forma da ditadura do capital. Acho que o ponto chave é: entender quem estava combatendo essa forma da ditadura do capital – e isso, é claro, que todo mundo deveria estar fazendo, a n?o ser os fascistas mesmo, que achavam que aquilo tinha algum valor – e quem estava combatendo essa forma e também pensando no combate a todas as formas da ditadura do capital. Fazendo uma análise nada complexa, no mínimo essas duas possibilidades estavam presentes. Isso está em qualquer livro. Mas seria legal fazer um estudo mais aprofundado disso, porque você tinha também aquelas pessoas que estavam combatendo só em nome dos direitos humanos e de uma série de coisas, e que nem sequer estavam pensando que aquela ditadura tivesse alguma coisa a ver com a estrutura capitalista. O interessante é mapear tudo isso, que de alguma forma vai virar um grande “carnaval”. S?o essas figuras que tem que estar presentes.CaC: Você comenta sobre estas for?as que estavam presentes nesse período, e, no ?mbito da indústria cultural, por exemplo, o Gilberto Gil, que foi pro Ministério da Cultura; e hoje o Caetano Veloso, que aparece na propaganda do [candidato a prefeito pelo PSOL no Rio] Marcelo Freixo, s?o figuras que também eram ícones da época. Você faz algum balan?o, tanto da indústria cultural mais característica, tipo Jovem Guarda, etc., mas também da série de conflitos artísticos e políticos que estavam em jogo naquele período? Tem algum balan?o nesse sentido, como vocês pensam a tropicália a partir desse contexto? Que reflexo e que influência que têm pra vocês hoje?Thiago: Uma das bases da Tropicália é a antropofagia. E eu falo de antropofagia para além do entendimento do Oswald de Andrade. A gente poderia colocar até o modernismo como parte de uma coisa maior, e nesse projeto moderno, modernista, de pensamento – a gente passa pelo Maiakóvski, Meyerhold, Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Brecht, etc. E dentro disso que a tropicália pegou, de alguma forma ela dilui politicamente, e faz parte desse coro que combatia essa forma da ditadura do capital. Naquele momento histórico, esse limite que eles apresentavam de combate àquela forma e também a algumas moralidades burguesas e recalques sexuais – isso tem muito a ver com a tropicália e com o movimento deles – isso tudo tinha um sentido. Era também uma coisa contra a qual se lutar. O problema da tropicália é esse limite, porque ela viu a coisa até um certo peda?o. E logo ela que tinha um discurso de complexidade, de absor??o de todas as teorias, de todos os ismos, de todas as formas e de todos os conteúdos. A Tropicália é muito careta e muito limitada, porque ela n?o dá conta de olhar para além desse período que ela estava vivendo. Esse peda?o que combateu, acertou ao fazer isso. Mas é diferente de algumas pessoas do mesmo tempo que deram um passo a mais. Uma dessas pessoas é o Glauber Rocha, que conseguiu ir um pouco além de alguns desses limites. ? claro que o combate à moralidade burguesa é fundamental no cotidiano, porque o processo de hegemonia e ideologia atravessa todas as rela??es. Desde as rela??es mais simples, de como lavar uma lou?a, até a administra??o do Estado e as suas politicas exteriores. E tem uma outra coisa: o combate da tropicália à moralidade se dá no momento mais propício a isso – é muito diferente do momento em que o Oswald de Andrade prop?e a Antropofagia, em 1928, e o movimento modernista prop?e a semana de arte moderna em 1922. O horizonte de expectativa do que era agressivo à moralidade burguesa era distinto. Realmente, falar, no Rei da Vela, das rela??es das famílias burguesas, das rela??es dos bar?es do café, das rela??es coloniais, isso estava muito além dos anos 30. Era um choque t?o grande que n?o foi montado: nem o Rei da Vela, nem o Homem Cavalo. Quando o Rei da Vela é montado em 1968, o mundo já esperava o Rei da Vela. Aparece como sucesso garantido, tanto é que sai no jornal Estado de S?o Paulo como anúncio. Ele já era “o que ia acontecer”, era “surfar na crista da onda”. Deveria ter sido feito, eu defendo essa pe?a e esta montagem, só que n?o é aquilo queela consagrou como história do que teria sido. Em 1933 seria uma coisa, em 1968 cumpriu outro papel, bem diferente. A tropicália se apropria dessas experiências – e o Rei da Vela é só uma delas – coloca noutro lugar e faz como se fossem as bandeiras máximas daquele tempo. Segundo o próprio discurso dos tropicalistas e dos pós-modernos, o mundo mudou, ent?o precisava de coisas a mais.A tropicália soube jogar, e sabe jogar até hoje – porque ela n?o acabou, na verdade é quase a vencedora desse “round histórico”. Ela chega depois ao poder, literalmente, com o Gilberto Gil como ministro da Cultura. Toda essa passagem do populismo, ditadura, abertura, democracia, conjuga duas coisas que n?o podemos perder de vista: junta as práticas e o pragmatismo de gest?o empresarial mais reacionário possível a um discurso ultra-libertário. Ent?o é “muito bonito”. Se você n?o observar a prática da coisa, que é o que determina, é levado por esse discurso inebriante e libertário. E há nessas figuras históricas uma impossibilidade de debate, porque elas s?o heróis construídos. Esse é o problema de se construir heróis, e já dizia o Brecht: “pobre do povo que precise de heróis”. Porque aí você vai discutir com uma pessoa dessa e ela vai falar: “Ah, mas eu vivi tal coisa, hoje em dia é fácil você falar isso”. E aí a gente entra exatamente em todo o discurso deles de fim da história, de movimento, de que as coisas mudam, e ele fica o mais reacionário possível, fica o discurso do cara de 30: “Olha, meu filho, você agora é jovem, depois vai...”; eles assumiram esse discurso. Só que eles se assumem como heróis. E aí eu vou falar de uma coisa que eu acho que foge do assunto, mas é a concretiza??o do assunto: há todo um discurso aparente de combate durante um período, que é a crítica do consumismo, da mercadoria, as críticas que permeiam a borda desse “vampiro gigante” que é o capital. E aí, na gest?o Gil, por exemplo, n?o posso esquecer isso, que aconteceu durante toda a gest?o Lula e está acontecendo sob a gest?o Dilma, que é a manuten??o de uma lei de renúncia fiscal. E o que é uma lei de renúncia fiscal? ? dinheiro público administrado pelo capital privado. Isso é inaceitável dentro até de uma proposta socialdemocrata. Portanto, nem sequer uma proposta socialdemocrata a gente tem; isso é uma proposta liberal, modelo Thatcher, dama de ferro. Os caras tinham um discurso anti-Thatcher como modelo. Aí você fala: “Qual era o problema? Ah, já entendi, a crítica deles era do cabelo dela com laquê.” E era isso. E se investigar nas músicas vai ver mesmo que é do laquê que estavam falando, n?o era metáfora. Porque quando o cara chega ao poder, refor?a e mantém a mesma política liberal da Margareth Thatcher, que é a renúncia fiscal. Estou falando tudo isso justamente pra correr o risco de ser criticado por “dinossaurices” e falta de complexidade, e já sei que uma das coisas que podem dizer é o seguinte: “Ah n?o, mas você tem que entender que isso é o que era possível”. E aí há pressupostos em quest?o: se você faz política com o possível, imediato, do seu tempo, ent?o a gente pensa politicamente de formas bem diferentes. N?o estamos pensando no que você acha que é possível lá no seu cargo. Dentro dessa estrutura de estado, desse sistema, realmente algumas mudan?as s?o impossíveis sem um processo revolucionário. Sobre isso n?o há discuss?o. Mas a impossibilidade de um processo revolucionário é impossível de ser defendida, porque a história diz o contrário. Por mais que a historiografia queira escamotear e esconder os processos revolucionários que acontecem desde que o homem cercou lá o primeiro pedacinho de terra, ela n?o consegue. ? impossível que ela esconda isso. E que culpa a gente tem se a história é marxista?E aí quando você faz uma pe?a de teatro, tem que pensar: se eu falar que nada mudou é uma imbecilidade completa. Quando eu vou numa pe?a que defende que nada mudou, eu saio de lá puto, porque é uma pe?a que tende a cair em dogmatismos, que existem na esquerda. Muita gente na esquerda faz uma crítica de que nada mudou. Como nada mudou? N?o existe nada que n?o mude. Isso é fora do campo da esquerda, isso é da direita. E outra coisa que deve ser colocada como perspectiva da esquerda é que quem defende que o mundo seja uma eterna luta de classes é a direita. Nós defendemos o fim de uma sociedade que tenha luta classes. Portanto, nós temos que participar dessa luta de classes para acabar com ela. Quem defende que o humano nasceu pra ficar eternamente em luta uns contra os outros, e disputando, e se matando, e se explorando, isso é quem falou que a história acabou. Ent?o, se você defende isso, estamos de lados opostos. Porque você é violento, quer ver o mundo se estourar em morte, em genocídio, em permanência disso que está aí. Eu n?o entendo como pode ser que as estéticas e as ideologias estéticas que ignoram a possibilidade revolucionária tenham ganhado no discurso. N?o entendo como esses caras conseguem falar que s?o os contempor?neos e os modernos. Porque quando eles tiram essa perspectiva revolucionária est?o afirmando que nós vamos viver a vida inteira, a humanidade vai viver até o fim da sua história (que já acabou) sob a chibata, humilha??o, tortura; enquanto os revolucionários s?o os caras do mal, violentos, inimigos da sociedade.CaC: Como você avalia o governo do PT hoje e como acha que devemos nos preparar para o que virá?Eu e o grupo temos bastante clareza de quais s?o os limites dentro das possibilidades ilimitadas que tem a arte. A pergunta que interessa sempre é: o que fazer? Se você n?o souber o que fazer é um problema muito grande. O próprio jeito de falar deve estar composto por isso, de voltar para algum lugar e fazer as dialéticas necessárias. Por isso é necessário estudar a história, para tentar entender o que foi feito e tentar fazer uma arqueologia do futuro. Quando falamos de PT temos de fazer a critica do que é igual e que estava proposto a ser diferente. PT, PSDB, PSD, Maluf, etc. s?o muito diferentes; beleza, as diferen?as a gente já sabe. Mas o que tem de igual? Tem muita coisa igual. No ponto de vista da cultura, é isso: a manuten??o da privatiza??o da cultura; a manuten??o da privatiza??o da educa??o. Tem uma coisa, que é a cara do lulismo, que é exatamente essa imagem “tropicalista” de discurso libertário e práticas reacionárias. E eu acho que tivesse aqui o Lula, ele ia assinar embaixo, falar: “? verdade, é isso que a gente tá fazendo. Faz a política do possível, sem tentar mexer na estrutura e, portanto, tem muito mais dinheiro para banqueiro do que para cultura”. Tem muito mais dinheiro para banqueiro do que para tudo. E isso é uma pratica política extremamente condenável do meu ponto de vista. Só que é toda feita junto com pequenas reformas de avan?o e de possibilidade para a classe trabalhadora, e isso confunde muito. Vivemos uma época de muita confus?o.A eficácia desse tempo é mistificar nossa compreens?o da situa??o em vez de nos permitir pensá-la. Em outros tempos a gente conseguia pensar: “nossa, esse cara tá jogando nos times dos banqueiros”. Hoje, o cara joga no time dos banqueiros e diz que n?o joga. Esse é um dos fatores mais difíceis de lidar com essa política que está aí hoje. Entra naquela quest?o da ditadura, das figuras, de ter uma guerrilheira na presidência. Isso prova muito a import?ncia do trabalho dos grupos e de quem trabalha com arte, que é a disputa do campo simbólico.A gente fala coisas da estrutura e da superestrutura também, e é na análise da estrutura que você percebe que n?o é uma análise da qual possa se dizer: “n?o, mas você tá viajando...”. Está no jornal, estou falando do que sai na Folha e no Estado de S?o Paulo: bilh?es para os bancos, cortes e redu??o de verba pública em diversos setores. Acho que o maior crime e o pior rumo político que pode ser tomado é deixar de ver a totalidade – e isso é uma coisa importante de ser observada porque todos que optam por esse tipo de caminho encerram a sua possibilidade política. Agora em outubro a gente vai ter campanha eleitoral; quando a campanha eleitoral deixa de ter uma proposta política de totalidade, ela passa a ter propostas políticas que eu chamo de “caixinhas”. O PT comprou essa prática e esse discurso. N?o tem mais uma política para a cultura; tem o “leve ingresso”, o “vale cultura”. N?o tem mais uma política para a educa??o; tem o “leve livro”, o “leve leite”, o “leve merenda”, etc. Ent?o, n?o existe uma proposta política, é um partido político que tem propostas só administrativas. E é claro, eu n?o estou nem falando de uma proposta revolucionária, estou falando de qualquer proposta política de transforma??o. Fazer o leve isso, leve aquilo é uma proposta política clara de manuten??o das coisas como elas est?o. ? óbvio que você n?o pode falar que é contra; pro cara que n?o tem o que comer tem o leve almo?o, o leve café da manh? e o leve janta. E você n?o vai falar “n?o, isso ai n?o pode ter”. Tem que entender onde faz a crítica: que isso é uma proposta de governo e quando der qualquer problema isso n?o é lei, isso n?o é nada, n?o é estrutural, nem é estruturante. Quando disserem “esse ano n?o dá para ter o leve café da manha, vocês v?o ficar com o leve almo?o e o leve janta”. V?o dizer “Oh, esse governo é ruim!” Eu volto, e no meu governo ele vai ter o leve café da manh?, o leve almo?o e o leve janta. Ganhou. E a gente está disputando quem leva mais. Ent?o esse tipo de política é muito ruim. E a complexidade dela é que tem que fazer uma critica estrutural, de totalidade. E agora vai come?ar o programa eleitoral e vai aparecer os dois tipos de programa: um que fica mostrando a biografia do administrador, e o outro mostra as propostas de “caixinhas”. Tudo virou uma publicidade e uma pesquisa de mercado. “Do que o pessoal está mais reclamando?” “ah, tá reclamando da violência? Ent?o vai ter o ‘leve guarda’”. O guarda vai levar o seu filho, entendeu? O que o PT abandonou foi uma política de totalidades por uma “política de caixinhas”. ? o vale cultura, é o fome zero. Eles sabem, porque vemos isso na história nos textos antigos, que se você separar as coisas por caixinhas n?o dá conta, porque a totalidade n?o é igual à soma das partes, nem à justaposi??o das partes; e eles trabalham por partes. Ent?o, eles assumiram um método reacionário, e isso no entendimento político chama-se capitula??o. ? simples, é triste até, mas é isso que aconteceu. N?o tem discuss?o disso. E as coisas n?o est?o descoladas: vamos pensar o que é um teatro pós-moderno. Uma das palavras do pós-moderno é a justaposi??o. Muitas cenas do pós-moderno n?o se completam porque elas s?o justaposi??o das partes, porque justamente o que o pós-moderno abandona é a ideia de totalidade, eles ficaram com as partes. E a parte é uma totalidade também, cada coisa tem sua totalidade: uma pessoa tem sua totalidade, mas é dentro da totalidade social. E por isso é um governo tropicalista. Ent?o você come?a a montar, e fica bonito na poesia. Porque você fala: “o caqui da Amaz?nia n?o sei o que”. Aí você pula para a cidade e fala, “dentro do bueiro vivia um homem do lado de um rato que comeu a castanha desse caqui”, e você come?a a fazer essas liga??es das partes e sai muita poesia bonita. Tudo isso você cola num discurso libertário, ou seja, n?o se tem mais política e se tem administra??o. Administrar é cair na ideia da política do possível. A gente tem nas nossas pe?as a noiva da revolu??o, que é uma figura complexa, mas ela tem, dentro da sua ideia, uma hipótese revolucionária. ? esse ser que anda e prop?e a revolu??o, uma mudan?a radical, quebra com o que está aí. O vestido dela é vermelho, ent?o isso indica um tipo de quebra simbólica no imaginário, que é uma quebra de esquerda. Essa quebra é aberta por que a possibilidade revolucionária é aberta, n?o é fechada. E junto com ela tem uma figura que é a viúva da esquerda. ? uma pessoa que se sente aliviada, porque ela pode fazer as políticas administrativas. Se você n?o tem hipótese de revolu??o, só nos resta administrar humanitariamente o capitalismo, que é a proposta do PT. Por isso que talvez o Lula seja um sucesso mundial, porque ele conseguiu alguns êxitos nessa parte. Foi conseguindo esses êxitos que ele se construiu. Mas tem que dividir, perguntar para a pessoa se o que quer realmente é uma administra??o humanitária do capital. Uma administra??o humanitária significa que ora pode se administrar humanitariamente a educa??o, e aí a saúde vai pra bancarrota; ora se pensa na saúde, e a educa??o vai pra lá, e nunca isso vai poder ser para todo mundo. Isso tá dado, isso é impossível. Se você cria uma política onde sua maior bandeira é o combate à corrup??o, ou o combate às liga??es endêmicas e umbilicais entre Estado, Igreja, crime organizado – e a gente vê essas criticas sendo feitas – cai no mesmo lugar. ? necessário fazer crítica à corrup??o? Claro! ? necessário fazer critica a essas liga??es de crime organizado com o Estado? ? necessário. Mas quem tem isso como bandeira, tem a mesma perspectiva de derrota de umas das formas da ditadura do capital. ? claro que isso pode ser a bandeira mais imediata, talvez seja a bandeira mais correta para um espa?o de tempo, mas precisa investigar se essa bandeira n?o é a única que está sendo proposta. E se ela for a única, de novo você pode dar uma “limpada”, a gente vê isso, isso é a história do Batman por exemplo. O Batman vai lá e tira a corrup??o de Gotham City durante um tempo. No próprio filme do Batman eles n?o podem ser t?o falsos: a corrup??o volta. Ent?o é preciso estar atento a tudo isso. Mas, para definir o que eu acho da política agora, um dos problemas maiores é esse: é o esvaziamento da política e a gente ficar nessa esparrela administrativa. Quem administra melhor a desgra?a. E é visível que além de administrar a desgra?a, em alguns momentos é preciso criar desgra?as maiores para se fazer girar a produ??o, porque toda essa desgra?a tem um fundamento irracional. Você abre o site da ONU, UNESCO, FAO e lê: “a cada 4, 5 ou 6 segundos morre uma crian?a de fome no mundo”. Aí você faz o calculo ali, juntando os adultos, tem 30, 40 mil pessoas morrendo diariamente por problema de nutri??o. N?o é um problema de administra??o: no mesmo site se lê que a produ??o de calorias e alimentos para suprir toda a humanidade e resolver o problema já foi atingida. Se fosse um problema somente administrativo, qualquer cara mais estúpido da administra??o saberia fazer assim: quantas calorias necessitam um ser humano? X calorias. Quantas calorias nós temos? Y calorias. Tem X calorias para todos os que precisam? Tem! Ent?o vamos distribuir: você entrega aqui, você entrega aqui, você entrega aqui. Isso n?o é uma administra??o muito difícil. Quem opta pela política da administra??o dentro do capital, opta por saber que isso podia ser resolvido e n?o vai ser resolvido, porque é política a quest?o. Porque para resolver isso teria que mexer na propriedade da terra, na propriedade privada dos meios de produ??o, no direito à heran?a, em uma série de coisas, que nessas ninguém quem mexer. Ent?o, isso é criminoso. Quem opta por saber que tem alimento pra todo mundo e que tem quarenta, cinquenta, sei lá, trinta mil pessoas morrendo de fome todo dia e falar: “isso vai ficar assim”, essa pessoa é uma criminosa, porque por mais que os processos que tenham que se passar pra se modificar isso sejam difíceis e v?o custar vidas – processos de guerra civil – nada se compara a um ano a mais nesse sistema. A cada ano desses, s?o trinta, quarenta mil pessoas que morrem de fome a cada dia, vezes 365, n?o sei fazer a conta. Ent?o n?o dá, isso é simplesmente inaceitável, do ponto de vista humanitário. ? por isso que as pessoas v?o estudar e procurar coisas que modifiquem, e é por isso que elas chegam em lugares e situa??es revolucionárias, porque n?o existe uma outra situa??o pra resolver isso. Já temos tecnologia pra fazer isso. A crise é de superprodu??o, a gente sabe disso desde que queimaram sacas de café, e isso tá já nas pe?as, explicado. Ent?o n?o existe falta de coisas no mundo; existem pessoas com todas as coisas. E s?o poucas: se a gente for nos grandes monopólios no mundo inteiro dá números de cerca de mil empresas no máximo, que tem um dono, uma família. Ent?o s?o mil famílias num universo de bilh?es que v?o ditar como é que o mundo funciona. E a lei Rouanet significa o que? Significa colocar em nome de uma dessas famílias falar quem deve fazer arte, quem n?o deve? Dá licen?a! N?o pode.CaC: Entrando nessa quest?o do acesso à cultura e produ??o de arte. Como é que o grupo, como é que você em particular entende isso? Vocês pensam em como tornar a arte de vocês mais acessível? Como seria isso? Mudando a forma, ou mudando os espa?os de apresenta??o? Em termos acesso à cultura, como é que tem que se dar esse debate? Thiago: Só pra voltar na outra quest?o, que era como se preparar. Para problemas complexos a gente precisa de solu??es complexas, ent?o n?o adianta se trancar dentro de uma sala de ensaio e achar que alguma resolu??o vai ser dada. O que eu quero dizer com isso? Se os grupos de teatro n?o estiverem junto dos movimentos sociais, movimentos populares, partidos, organiza??es da classe trabalhadora, sindicatos, tudo o que está acontecendo n?o vai “virar”. ? preciso entender que a luta contra o capitalismo tem que ser travada em todos os lugares: desde a rela??o dentro de casa lavando a lou?a, até dentro do teatro. O grupo de teatro vai travar essa luta na disputa da hegemonia do pensamento simbólico, primeiramente. E saber fazer análise de conjuntura pra saber quando que essa luta tem que extrapolar e ir pra outros lugares. Quando você sabe o que precisa fazer é que define que tipo de forma e de poética precisa. Isso define o trabalho da gente. Essa lógica impede que a comida que existe chegue no cara que está morrendo de fome a cada cinco segundos passa por colocar a comida como mercadoria; come quem pode comprar. A primeira coisa, por analogia mais estúpida que se pode fazer, é fazer um teatro que n?o seja na lógica da mercadoria, porque sen?o a gente vai reproduzir essa mesma ideia. Se ele é simplesmente mercadoria, algumas pessoas v?o poder ir ao teatro e outras n?o v?o poder. Ent?o a primeira coisa que a gente faz é um teatro que n?o passe por essa lógica de mercadoria. E n?o é simplesmente fazer um teatro com uma forma diferente da “mercadoria televis?o”: se ele custar 50 reais, já está escolhendo seu público da mesma forma. E aí fazemos várias a??es para que esse teatro chegue, porque de alguma forma você tem que compensar a falência do Estado na cultura. ? falência que está decretado, nas três esferas. Fazemos oficinas, onde as pessoas podem ter contato com a linguagem. Muita gente que faz oficina n?o vai ser de teatro, mas é importantíssimo porque passa a entender como funciona a linguagem, e aí pode assistir e entender como funciona a coisa toda. ? preciso ter gente que n?o conhece a linguagem, mas é preciso ter gente que conhe?a, porque esse cara volta pra casa e comenta com o tio, a tia, ele leva ao teatro e você vai formando um público com essas oficinas. Tem atividades que fazemos dentro do teatro, “na caixa”, que hoje em dia s?o todas gratuitas. Tem atividades de rua, que é com a carro?a. Ent?o, dentro de um grupo, em S?o Paulo, que dialoga com os outros grupos, estamos fazendo muita coisa, dentro do limite que existe. Vamos para a rua fazer teatro, fazemos meses de apresenta??es de gra?a e lota de pessoas assistindo. Também é um mito falar que n?o tem gente para ver teatro: estamos em cartaz com o “Terror e miséria no novo mundo” há três anos, e há três anos tem gente assistindo a pe?a. E cada vez vem mais gente, porque vai chamando. Tem gente que volta, porque é de gra?a, o cara vê um dia e diz, “nossa, aquele negocio ali me intrigou, eu n?o entendi direito, aquela figura, porque aquele fulano estava com o martelo na m?o, porque aquela mulher estava vestida de viúva”. Aí volta, e nessa volta discute. A forma também é muito diferente quando a gente faz a pe?a: no intervalo est?o os atores, dire??o, iluminador, cenógrafo, está todo mundo junto com o publico, dialogando, por isso n?o tem a “esfera áurea”, tem um dialogo ali. E é bom que ele aconte?a porque tem como debater a partir daquilo. Organizamos debates sobre os temas que fazemos. Ent?o, tudo isso que está sendo feito, e isso sim s?o atividades humanitárias, e para a humanidade num sentido mais belo que existe. E tem pessoas que vem e falam: “ah esse teatro aí esquerdizante, terrorista”. Terrorista? Você ir para a rua e atravessar a cidade com uma carro?a falando sobre poesia e sobre o mundo, isso é “terrorismo”. Como eles conseguem inverter as coisas e está na hora de a gente ter espa?o e come?ar a falar em todos os lugares: “n?o cara, realmente você agora está diante de pessoas que gostam de outras pessoas e que n?o querem que o mundo fique assim”. Faz oficina, projeto de forma??o para formar atores. “Porque você faz um projeto para formar atores?” Porque um dia estávamos dando uma oficina, algumas pessoas se juntaram e falaram que gostaram de fazer teatro: “só que eu ganho um salário mínimo; eu sou caixa de supermercado; eu moro muito longe e n?o tenho condi??o de fazer isso; eu estudei até o colegial em escola publica e portanto n?o vou passar em vestibular nenhum; eu n?o tenho nenhum outro jeito de fazer as coisas”, e ai você ocupa o lugar do Estado. N?o que isso seja bom, mas é uma medida que você faz que vai formar alguém para pensar, para transformar alguma coisa. Aí você monta um projeto de forma??o e se vira em 300 para fazer isso, trabalha 24 horas por dia para que isso aconte?a. Mas isso tem muita gente fazendo, e tem dois tipos de pessoas fazendo esse trabalho. Um que é simplesmente o “espontaneísta e voluntarista”; esse é um perigo, porque esse vai escamoteando as deficiências do Estado. Aqui n?o, porque aqui é dito isso: é errado o que estamos fazendo, n?o deveríamos estar fazendo isso. N?o é um grupo de teatro que devia estar ensinando você a ler; essa é a diferen?a. Deixar uma pessoa sem saber ler é criminoso também, mas você sabe que n?o era o seu papel. Isso define dois tipos de pensamento que lá na frente v?o se confrontar, que s?o: o teatro alternativo ou a arte alternativa, que fala: “vou criar meu campo alternativo”. ? quase como criar zonas aut?nomas temporárias, onde aquelas 30 pessoas que vivem ali tem seu modo de subsistência; você cria falanstérios e fala: “Resolvi. Nós aqui somos felizes”. Isso é hippie. Quando o movimento hippie surgiu isso tinha um sentido; é que nem o tropicalismo: isso já era conservador, mas era um negócio autêntico e tinha um papel ali. O que eu acho é que o Estado olhou para esse negócio e falou: “nossa, n?o é que essa ideia é boa? Vamos transformar ela em bem genérico, já que a gente leu e aprendeu o que significa ‘genérico’ para o Marx, ele ensinou e vamos utilizar”. E transformaram isso em política oficial: eles mesmos criam os espa?os “alternativos contra hegem?nicos” e falam: “A gente vai gerir esse espa?o”. O PT devia criar o “ministério da rebeldia”, que s?o os grupos que o Estado financia para serem rebeldes contra ele próprio, administrados pelo Estado. Na pe?a a gente vai criar o ministério. Isso pode cair em dois lugares. O que é “alternativo” é isso: aceitar que o todo permane?a; uma vez por mês você “chora os mortos”, e ali faz projetos de subsistência, de solidariedade e tudo mais. Outro tipo de projeto é, ao invés de ser alternativo, ser de oposi??o; e a oposi??o faz tudo que o alternativo faz, só que pensa numa perspectiva de classe e de transforma??o. Por isso ela tem que dialogar com todos os alternativos. Aí é uma das dificuldades. Você, como de oposi??o, n?o tem como n?o dialogar com os alternativos, porque a gente sabe que a modifica??o n?o depende dos indivíduos, de um agrupamento de indivíduos. Mas depende de uma perspectiva de classe, de uma perspectiva histórica, de conjuntura, etc. Ent?o tem que dialogar com todo mundo alternativo também, e saber em que momento vai caminhar junto e em que momento n?o vai caminhar junto. Tem muita gente boa nos alternativos e que depois de um tempo entende, na prática, que estava perdendo tempo. Esse militante tem dois caminhos: ou ele vai procurar se estruturar em organiza??es de classe e entende que esse é o caminho; ou ele vai cair em depress?o profunda e acaba desistindo de todas essas coisas. Ele veste uma “roupa”, vai para o psicólogo e fica em um dilema eterno. Ou ainda uma terceira op??o, que é bem comum: ele vira um reacionário, come?a a trabalhar e se entrega nessa coisa reacionária. Ou ainda ele vira alguém do governo e vai aplicar estruturalmente seus “falanstérios”. Essas s?o possibilidades. Dentro dessas possibilidades está o que eu tenho chamado de UPP: “unidade do palha?o pacificador”. Sem desmerecer o palha?o, porque eu acho que o palha?o tem que ser justamente o contrário, ele n?o é um ser pacificador. E aí pacificador é entendendo dentro do processo de luta de classes, que acha que tem como pacificar dentro de um conflito: “Ah, eles v?o continuar atirando de lá e daqui, mas nós vamos fazer um campo de for?a, que é a nossa UPP”. E aí a arte vira um espa?o de conten??o. E isso está dado para todo mundo, inclusive os de oposi??o, porque a capacidade metabólica do capital de perceber essas estruturas e transformar os grupos de teatro, de dan?a, de rap, de cultura popular em unidades pacificadoras é muito grande. ? diante disso que a gente está agora, e esse é o caro?o do angu que está sendo cozido. O que está dado hoje é que ninguém vai massacrar essa oposi??o artística: o que eles v?o fazer é ver como transformar todos em UPPs, e fica todo mundo feliz. E dentro dessas UPPs vai poder se falar de revolu??o; ou melhor: vai ganhar mais dinheiro quem for mais revolucionário “no verbo”. Podemos falar das perspectivas que eu acho que tem que ter o movimento de teatros de grupo em S?o Paulo: sair da simples briga de categoria por políticas públicas, verbas, sair desse único patamar, porque o trabalhador da cultura é um trabalhador como outro qualquer, um trabalhador da cultura. O pessoal fala “a classe artística”;?come?a daí: n?o tem “classe artística”, é categoria. N?o, n?o é só uma palavra, é importante pra se pensar. Mas o que eu ia falar da categoria é: os trabalhadores da cultura têm que estar juntos como categoria e reivindicar melhor condi??o de trabalho, melhor cachê, salário, décimo terceiro; isso tudo faz parte. Ter os meios de produ??o pra produzir suas coisas artísticas, seus objetos, seus experimentos, os laboratórios de cria??o, tudo isso é briga de categoria. Mas têm que entender que essas brigas de categoria avan?am quando avan?am as brigas de classe e, portanto, o que está dado é: é preciso ter um programa da categoria, uma organiza??o da categoria. A categoria tem medo de fazer um programa político. Quando a gente briga por um edital, estamos brigando pela “caixinha”, e voltamos a falar de administra??o e n?o de política. A gente precisa ter um programa de cultura que defenda, e esse programa n?o pode ser só de teatro. Porque existe um grande programa de cultura no Brasil: é o programa da renúncia fiscal, é o maior programa, ele tá aí, funcionando.Essa categoria precisa fazer um programa e precisa estar conectada às lutas das outras categorias e, portanto, fazer uma luta de classe. ? que quando você diz com essas palavras as pessoas v?o falar assim: “Lá vem o dinossauro, o parque dos dinossauros”. Como se as palavras de quem diz isso fossem muito novas. Eu gosto de avacalhar também porque a teoria dos pós-modernos e dos Lyotard da vida n?o se sustentam nem perto do Macunaíma?do Mário de Andrade. A complexidade formal do?Macunaíma, de inven??o, de jun??o de formas e possibilidades, e do que eles [os pós-modernos] chamam de pós-moderno, n?o chega perto da complexidade do?Macunaíma, um projeto moderno que trabalha em cima da rapsódia. Todas essas ideias:?plat?s, rizomas, desconstru??es, fazem você pensar que é muito [complexo], Mas é só um pedacinho do projeto modernista brasileiro. Um monte de gente é enganada na universidade de que a teoria do?plat??e do rizoma é a maior complexidade. Ent?o você lê e descobre que n?o é.Isso é um ponto de vista de organiza??o, enquanto trabalhador, que n?o pode se perder. Se organizar como categoria, fazer as lutas da categoria e participar das lutas de outras categorias, sempre. E aí é movimento social, partido, sindicato, é isso.A outra coisa é a luta que fazemos no plano da comunica??o e disputa simbólica. Envolvem conteúdos, temas, assuntos e forma. Envolve técnica e uma série de coisas que é a cria??o, no caso do teatro.Nesse ?mbito, no momento exato que a Cia. Antropofágica está, ela n?o é agradável para os pós-modernos porque tem pressupostos como “fazer análises”. Fazer uma análise é olhar o objeto real, em movimento e tirar suas categorias. Pegamos o objeto, olhamos, saturamos as possibilidades ao olhar esse objeto. Isso é estudar. Olhamos isso tudo e dizemos: “nossa, ent?o isso é a totalidade de um carrinho?” Isso, é a totalidade de um carrinho: ele come?a na extra??o do ferro; é um baita estudo legal de fazer, você descobre o que é um carrinho. E o carrinho tá ligado à história do Brasil, aí tem Dom Pedro, e aí come?a. Vai saturando os objetos reais, no sentido de n?o ficar preso à aparência desse real, mas sim revelar as contradi??es que tem.??N?o se pode perder a categoria de totalidade e nem de media??o, porque é na media??o entre essas totalidades que se d?o rela??es políticas, psicológicas, afetivas. Fazemos todo esse estudo pra tentar fazer um teatro dialético. As pessoas falam “nossa, mas o Brecht vem com aquela fórmula...”. Primeiro que n?o tem fórmula. Quem disse que é linear? Você n?o agrada nem aos pós-modernos, por manter algumas categorias de análise política e de vis?o de mundo; mas também n?o agrada aos realistas socialistas, que se apropriaram do Brecht como uma fórmula metodológica fechada, partindo da fábula; é uma leitura equivocada do Brecht.Dentro de um teatro dialético, épico, você pode fazer de tudo. A gente n?o usa a forma dramática no sentido de fazer uma pe?a dramática, mas existe dentro de uma pe?a da Antropofágica uma cena estritamente dramática, dentro de uma moldura épica, por exemplo, ou de uma estrutura de [teatro de] revista, ou de uma estrutura de rapsódia. E tem gente que assiste a pe?a e fala: “p?, mas aquela cena é dramática”. Ent?o eu falo: “você já leu o Terror e miséria no Terceiro Reich?[de Brecht]?” Na cena do espi?o, do pai, da m?e e do filho. O pai e a m?e discutindo e todas as emo??es que est?o ali, todo o drama daquela cena. Mas aquela cena está dentro de uma pe?a inteira, e ela n?o é a única cena. Eu usei recurso dramático porque era o melhor recurso,??foi o recurso que a gente escolheu pra dar conta daquele assunto. Daí se fala: “p?, aquela cena n?o serve porque você usou um recurso dadaísta que a partir dos dadaístas vai dar no pós-moderno, no pós-dramático...”. N?o! ? outra coisa. Eu posso usar todos os recursos. Toda liberdade em arte. Posso entrar pintado de verde, pelado, pra dizer uma outra coisa, que dê conta daquilo. E posso ter uma cena que seja um ruído de pensamento, dentre uma cena de uma batalha da luta de classes e??uma cena que seja um ruído de pensamentos só pro cara respirar. Pode fazer isso, no teatro épico, dialético? Pode. Inclusive é da característica antropofágica pegar uma forma, duas formas, três formas e esses conteúdos e de alguma forma misturar elas, juntar pra fazer uma outra coisa. Daí falam:??“isso aí parece pós-moderno”. N?o! O pós-moderno é que diz que é só isso. Eles é que fazem só uma parte do que é moderno. O pós-moderno é “meio moderno”, entendeu? ? uma parte de moderno. Tudo que tem no pós-moderno, tem no moderno. O que eles tiraram, na verdade, é a perspectiva de mudar o mundo. Simplesmente eles capitularam e aceitaram o mundo como está, n?o sei quantas pessoas morrendo de fome por segundo, n?o tem discuss?o, é isso que você aceitou. Assume. A??produ??o da esquerda por um tempo foi muito ruim mesmo. Ela comprou a ideia stalinista de que o teatro de esquerda tinha um jeito de der feito. Quando na verdade a gente pode fazer com todas essas coisas, que est?o em todos esses autores e em todo mundo que já produziu arte. Aí falam: “como que nessa pe?a dialética aí tem síntese...?”. Que síntese? Síntese é diferente de posi??o. Na nossa pe?a tem posi??o, como em todas as obras de arte. N?o estou falando que tem síntese, porque aí vem com essa ideia de que a nossa dialética é a dialética escolar de “tese, antítese e síntese”. Onde você está vendo isso? Aonde você viu falar que essa pe?a é a síntese do Brasil? Mas ela tem uma posi??o sobre o Brasil. Se você é o cara que esconde a sua posi??o pra n?o saber quem você é, você um mau caráter, esconde a sua posi??o. A gente n?o esconde a nossa posi??o quando faz uma pe?a. Mas n?o venha chamar posi??o de síntese. Ent?o tem uma série de mentiras dentro das produ??es dos grupos, que as pessoas apontam. Outra mentira clássica é falar assim, “essa pe?a é marxista”. Que pe?a marxista? A coisa primeira que você aprende com Marx é ser iconoclasta nesse sentido. “Ah, mas tem marxismo aí que vocês...”. Claro! Porque das teorias que leram essa realidade que eu vivo, que é a capitalista, é uma das quais pra gente tem mais fundamentos, mais apontamentos sobre isso. Ou dizem “Outro problema que eu vejo na pe?a é que vocês falam de tudo, de todos os temas”. Isso. Se você for pegar o estilo de tese do Umberto Eco, por exemplo, você vai pegando teoria em tudo quanto é lugar, n?o tem problema a gente fazer isso. Mas elas n?o se diluem como a teoria pós-moderna, que você justap?e. Eu n?o estou justapondo. Estou digerindo teorias. Me interessa saber que uma tese pode ser monográfica ou panor?mica. Entendeu? Nossas teses s?o panor?micas, n?o s?o monográficas. Mas eu n?o estou falando que o cara n?o pode fazer pe?a monográfica, escondendo a sua posi??o, fa?a o que quiser, amigo. Até porque, esse negócio de dar a fórmula, a forma que é o teatro avan?ado, é um problema do realismo socialista, jdanovista, isso eu estou fora. Quer fazer uma pe?a bem reacionária? Fa?a.Mas é preciso ter um processo educativo, porque é preciso criar condi??es materiais para que se extingam as pe?as reacionárias. Ent?o, essa é a quest?o. A gente precisa criar condi??es materiais pra que todo mundo sente diante de uma “geleca” reacionária estúpida e fale, “ah, isso aqui é uma ‘geleca’ reacionária estúpida”, n?o é tirar do cara. Porque o que aconteceu com isso? Isso gerou uma luta dentro do teatro, que é muito ruim, que é assim: está se disputando quais os grupos que tem legitimidade formal de fazer teatro, aí é burro, é reacionário. Mais uma vez é reacionário. “Ah, eu vou defender os grupos que tem uma estética revolucionária”, n?o amigo, a gente tem que defender a possibilidade de se fazer teatro pra todo mundo. Essa é a bandeira. E os grupos n?o tem essa bandeira. Vocês tem andado por aí e vocês veem, eles querem defender a bandeira de que um certo número de grupos, que tem um certo tipo de estética devem existir. Essa é a “bandeira da caixinha” de novo, tá errado. Eu defendo o direito de existir o cara que quer montar um teatro tropicalista de novo, monte seu teatro tropicalista. “Ah, mas ele n?o está na organiza??o da categoria”, pronto, esse é o problema, n?o é a pe?a dele. O problema dele é que ele n?o tá na organiza??o de luta. E aí a gente fica brigando por estética? Faz todo o discurso político e na hora de fazer a briga n?o tem categoria, porque você dividiu por estética a luta? O que é isso? Vamos fazer um edital pra grupos de S?o Paulo que fazem teatro épico? Estou fora! Porque isso n?o é avan?ado, isso é atrasado, isso é cair no mesmo lugar. Pe?a é uma coisa, a briga pelo direito de produzir um objeto estético, é outra. Elas est?o intrinsicamente relacionadas, e é obvio que quem puxa essa briga é quem tem condi??es políticas de fazer essas análises, mas ela n?o pode ser o lugar que nos separa. Eu n?o posso me separar do cara que falou, “ah, você n?o usou os recursos do teatro épico, ent?o você n?o tem direito de fazer arte”. N?o, isso tá errado. E aí a gente cai de novo nas caixinhas, e a gente volta pra administrar. O cara que quer só montar a pe?a, ele n?o quer ter um grupo de pesquisa. Ele quer ter o direito de só montar uma pe?a e ter pessoas pra ir ali assistir a pe?a que ele montou. Você acha que a sua forma de produ??o é a única que deve existir? Isso também tá equivocado. Você tem que criar condi??es materiais de mostrar pro cara, que a forma grupo é mais avan?ada que a forma produ??o. Mas n?o é proibindo a forma produ??o de existir, ceifando ela, que você extingue. E aí você fica na briga entre a categoria, que é o que eles queriam, e você n?o discute a base da forma de produ??o que é a Lei Rouanet, e aí na hora da Lei Rouanet pode. “Ah, n?o, mas a Lei Rouanet vai para os grupos”, n?o, você n?o consegue perceber que é esse tipo de política que faz com que existem formas de produ??o empresariais, patronais dentro do teatro? N?o é, é um dos fatores que permite isso. Ent?o em rela??o ao teatro de grupo eu acho que é isso que está dado. ? preciso sentar de novo todo mundo junto e fazer um grande debate sobre isso. Nestes termos. Daí precisa de tempo, precisa de organiza??o, precisa ter assembleia, precisa ter seminário, é preciso fazer coisas para além da briga imediata do que tá aí. Qual a import?ncia e os limites do teatro e da arte na luta na luta de classes? Primeiro, vou falar das coisas gerais. Como potência o processo de transformar tudo em mercadoria, o processo de aliena??o, o processo da ideologia ele é como se fosse uma cunha da alma, sabe? Do cora??o assim, que vai tirando as suas possibilidades de subjetividade. E aí subjetividade no sentido de humanidade plena. Quando você se depara com a cria??o e você cria também, porque o espectador também cria, ele faz conex?es, e principalmente aquele que tem acesso à arte, ele eleva a sua subjetividade. E isso n?o é pouca coisa. Esse detalhe da arte, já a diferencia e a coloca num lugar perigoso por si só. Por isso que ela precisa ser t?o organizada, t?o domesticada. Por isso ela pode servir a interesses t?o vis. Ent?o essa é a possibilidade da arte. Por que dentro das nossas cadeias de fazer escolha, que é uma coisa que o ser humano tem que fazer o tempo inteiro, o processo de fazer escolhas, depende das suas necessidades e das suas necessidades. A arte cria um laboratório de fazer escolhas. Ent?o ela acaba ensinando o ser humano que ele pode fazer muitas escolhas. Isso é pra mim um dos fatores da arte que mais me encantam. Tanto pro bem, como pro mal. Ent?o, essa eleva??o de subjetividade quando você está diante de uma obra de arte, ou quando você está produzindo uma obra de arte, você entra num processo que eu vou chamar de “mágico”, mas eu n?o quero mistificá-lo, mas eu também n?o quero tirar dele esse caráter único que ele tem. Que é você pegar uma coisa, sei lá pegar um peda?o de madeira e transformar ele em um outro objeto de arte cortando ele, aqueles pedacinhos. Isso é muito bonito, mas n?o é só isso. Isso é uma das coisas que é importante pra luta de classes, isso é importante. Porque com a subjetividade elevada no entendimento do “eu” como homem e respeitando a subjetividade de todos, eu tenho a possibilidade de falar, “nossa, o mundo n?o parou”. A possibilidade de cria??o. E aí pra quem trabalha com História, porque fazer uma pe?a histórica, essa possibilidade de estudar a história do Brasil, pra inventar o Brasil que a gente quer. Isso dá pra fazer dentro do teatro. Ent?o a gente pode, como na frase do Darcy Ribeiro, “pra inventar o Brasil que nós queremos”, ent?o o que resta é inventar o Brasil que a gente quer, o Brasil e o mundo. Ent?o dentro dessa perspectiva de arte e luta de classes, você tem como experimentar coisas que na realidade as vezes você n?o consegue chegar até o fim. E faz parte o exercício de imagina??o. Se você n?o tem a imagina??o de como as coisas poderiam ser, você n?o faz nada, você n?o dá se quer nem o primeiro passo. Primeiro passo é imaginar que as coisas possam ser diferentes. Isso é o primeiro passo. Você pode dizer, “isso é muito óbvio”, n?o é muito óbvio. Tanto é que está lá nas teses sobre Feuerbach [de Marx], “n?o importa só pensar o mundo, mas sim transformá-lo”. Quando o cara vai pra fazer uma oficina de teatro e ele vê uma roupa, ele veste, ele encena, o homem criando o fogo, ele acabou de experimentar praticamente que a possibilidade de mudar coisas da natureza e mudar coisas da sociedade é possível. E isso devolve pro cara o primeiro passo, pra ele poder mudar o mundo, que é falar, “o mundo pode mudar”. E a arte trabalha o tempo inteiro com esse conceito, seja ela do pós-dramático, seja qualquer um que se debru?a sobre a arte e que a assiste a arte está vendo isso. Está vendo mudan?a, está vendo movimento. Ent?o isso é uma característica da arte que está dada.Outra coisa é pegar o mundo como ele é, porque a gente parte dele, por mais que você parta de um pensamento do sonho, que pra gente aqui da Antropofágica é muito importante, essa coisa dos surrealistas e das experiências que eles fizeram com o inconsciente, nada disso é místico, por que a gente sonha e alguma coisa processa, e as imagens aparecem, aquelas imagens. Ao contrário do que as pessoas falam, n?o s?o uma mistifica??o da realidade, s?o digest?es da realidade acontecendo em milh?es de conex?es por segundo, que te formam imagens maravilhosas quando você sonha. E o que eu acho que tem de potencial muito grande no surrealismo, se você consegue olhar o objeto surrealista e fazer leituras, você consegue sair na rua e olhar coisas que você fala, “nossa, isso aqui é surreal”. Aquelas leituras surrealistas est?o calcadas na realidade. E elas se apresentam daquela forma porque elas for?am você a entender a complexidade daquela realidade. Isso é outro fator primordial. Ent?o, uma coisa é elevar essa subjetividade do fazer e do espectador e o outra é pensar o mundo como ele é e como ele poderia ser. Que é um dilema humano, n?o existe nenhuma figura humana, tirando o cara que seja bode, um bode mesmo, que n?o imagina que o mundo é de um jeito e ele vai ser de outro jeito. Isso a arte também radicaliza nisso. Porque quando você faz o mundo como ele é, você n?o faz como ele é, porque é impossível representar a realidade tal qual é, ent?o, o cara que está fazendo e o cara que está assistindo, eles já est?o diante de uma coisa que é e como ela poderia ser. E por mais que joguem na cabe?a dele teorias mistificadoras de que isso n?o é possível, a experiência dele mostra o contrário. Outra coisa da arte que eu acho importantíssima, dentro da perspectiva de luta de classes, é revelar as contradi??es do real. E aí você tem inúmeras possibilidades disso. E daí que fazer uma pe?a que você fale, e que você fa?a uma crítica ao presidente da república, o cara fala “n?o, isso é panfletário”. Depende. Muitas vezes isso é muito bom se você consegue revelar as contradi??es do real. E o real é premido de contradi??es o tempo inteiro. E v?o dizer: “ah, isso é pós-dramático”. N?o isso n?o é pós-dramático, isso é dialético. A arte tem como colocar o presidente Lula junto com Dom Jo?o VI e isso é muito importante. Você a partir do Dom Jo?o VI mostra contradi??es do Lula e a partir do Lula você mostra contradi??es do Dom Jo?o VI e se tiver um operário do lado trabalhando, você vai mostrar as contradi??es daquele operário, da esquerda e assim vai. Ent?o isso é fundamental na arte.E eu diria que tem mais uma coisa dentro dessa luta, que é a forma como os grupos se organizam. E aí é específico, estou falando de grupo de teatro porque é o que eu conhe?o. Mas o que eu poderia falar sobre isso, é que eu acho que a arte nesse sentido tem a contribuir. A forma de organiza??o de um grupo, do mesmo jeito que a forma estética, que você sempre está procurando quebrar e procurando novas possibilidades estéticas, novas formas pra dar conta de novos movimentos do objeto real e num sentido geral o nosso conteúdo seja expressar (o que é conteúdo? ? o conjunto das experiências do homem junto com a natureza, isso é o conteúdo de todos, n?o tem outro conteúdo, s?o as experiências humanas junto com a natureza). Se a gente pensar dentro dessa perspectiva de conteúdo, a forma como esses caras se organizam, os artistas, e a rela??o deles com o público, é muito importante, porque ela revela também que outras formas de organiza??o possam também existir. Ent?o quando você faz teatro num lugar onde você n?o tem patr?o, você n?o tem gente terceirizada e funciona, você tá falando pro cara: “olha, fazer uma coisa sem patr?o e sem terceirizado, é possível”.A forma de organiza??o de um grupo é muito importante. E do mesmo jeito que se tira do dadaísmo uma coisa legal, do surrealismo, você tem as no??es, os pressupostos de que o mundo se transforma, de que a sociedade n?o pode permanecer como está, isso tudo é que mantem alguma unidade programática. A forma como se organizam esses grupos também vai beber das organiza??es da classe trabalhadora. Os grupos de teatro que acham que est?o inventando a roda, está na hora de ler e ver que essa perspectiva de se organizar em assembleia n?o foi inven??o dos grupos de teatro. Tem grupo de teatro achando que foi inven??o deles se organizar sem patr?o, se organizar de maneira colaborativa, cotizar pra manter o grupo... No mínimo, se a gente quiser pegar de duas fontes diferentes, a gente vai pegar de vários modelos de partido que existem e de vários modelos de igreja também.Só que tem outra confus?o, espontaneísta, que quer planificar a forma de organiza??o de um grupo, quer colocar o sujeito do seu grupo como “O” sujeito histórico. Em determinado momento, o que o teatro notou é que o sujeito histórico do teatro, em determinado momento, como forma de organiza??o, o mais avan?ado era o grupo; apostou nisso, e apostou certo. Mas isso é uma das apostas, e existem inúmeras varia??o de como se organiza um grupo e tomara que existam outras milh?es de varia??es. E elas vêm de experiências, a maioria das formas como se organiza um grupo de teatro vêm de experiências de organiza??o dos trabalhadores. Só que o que parece é que os grupos de teatro hoje est?o mais organizados que as organiza??es dos trabalhadores, alguma coisa se perdeu. Mas, se isso aconteceu com as organiza??es dos trabalhadores será que esse processo também n?o está come?ando a se dar no teatro? Tem os termos clássicos pra falar disso: burocratiza??o, dependência do Estado; estamos come?ando a ficar dependentes do Estado... E como é que um grupo de teatro sai disso? N?o sai, a gente tá num beco... com saída; mas precisa achar a saída, porque eu n?o acredito em beco sem saída. E se n?o tem a gente marreta e faz. Ent?o, já teve organiza??o muito mais avan?ada do que essa que a gente tem hoje de dependência do Estado, que é, por exemplo, estar organizado em assembleias: chama todas as pessoas interessadas nessa pe?a, as pessoas cotizam e mantém a subsistência dos trabalhadores de um determinado grupo de teatro pra eles fazerem aquela pe?a. Discute em assembleia, com quem só assiste, com que faz, mistura tudo isso e coloca ali. A Iná [Camargo Costa] conta isso no livro [Nem uma lágrima]. Seria ótimo se os trabalhadores, de maneira independente, tivessem condi??es materiais de proporcionar que esses grupos existissem para além do Estado. E aí, n?o posso deixar de elogiar essa experiência histórica: em determinado momento, no Brasil se apostou que a forma grupo era mais avan?ada. E come?ou a se pensar coisas para a forma grupo e criou-se a Lei de Fomento, que é muito interessante. ? muito boa, porque é uma lei de Estado e n?o de governo; isso é o primeiro ponto dela que é muito importante. Ent?o, um governo se reivindicar como “dono” dela é bobagem, porque n?o é de um governo, é uma lei. Neste sentido, ela é mais estrutural e estruturante que as outras leis. Porque se um governo cria um edital que é melhor que o de fomento, e isso às vezes acontece, na troca de um governo para outro você fica sujeito ao governo de plant?o, se ele quer ou n?o quer fazer aquele movimento. A Lei de Fomento n?o, ela é pra ser de Estado. Mas aí vem um detalhe: como que surge a lei de fomento? Organiza??o e luta da categoria, que imp?s a um dos governos colocar isso como Lei de Estado. Essa é a história do fomento, n?o tem outra. E se a gente quiser qualquer tipo de avan?o, o que vai ter que fazer? Vai ter que se organizar de novo como categoria, organizar a luta, buscar todos os meios – e n?o v?o ser os mesmos da Lei de Fomento – e tentar enfiar de novo em algum governo alguma coisa que seja de Estado. Isso aconteceu há dez anos atrás e de lá pra cá n?o aconteceu mais. Outro detalhe que é muito importante: todos os governos desde a cria??o da Lei de Fomento tentaram derrubar ela. E n?o caiu porque todas as vezes que ela ia ser derrubada a categoria se organizou e foi fazer as suas formas possíveis de organiza??o de luta. A categoria fez ato estético. ? válido? ?. A categoria levou isso pra dentro da sua pe?a de teatro. ? válido? ?. Mas ela também fez passeata, ocupa??o, escracho. O problema é que em determinados momentos o fetiche da forma de luta ganha da análise de conjuntura, de que tipo de forma de luta é preciso. Eu n?o tenho fetiche por nenhuma; precisa pensar qual é a que a gente precisa. “Bom, tivemos um problema, um ataque ao fomento, é melhor ocupar, escrachar, dan?ar, pintar...?”, tudo isso é válido, mas é preciso juntar em uma assembleia e discutir qual é o que precisa, e n?o olhar para o que tá mais famoso no mundo: “agora é occupy, ent?o para lutar pelo fomento vamos ocupar”. N?o, amigo, você está confundindo! ? preciso ter clareza e falar qual é a forma de luta necessária agora pra conseguir o que precisa. E essas lutas s?o as pontuais.Essas import?ncias que eu dei aqui s?o algumas e a gente poderia ficar aqui a noite inteira falando de zilh?es de import?ncias da arte, porque ela tem milhares de import?ncias. Outra import?ncia é desestabilizar a crítica historiográfica brasileira oficial e mundial. O cara vem aqui numa pe?a e fala: “n?o sabia que o Tiradentes era assim, eu n?o sabia que o Euclides da Cunha... achei que ele fosse só legal, nunca tinha visto esse lado do Euclides da Cunha”. E assim você vai desestabilizando.Outra coisa importante da arte é causar tens?o entre imagens da indústria cultural e imagens que se contrap?em a isso; entre imagem de uma coisa do passado e uma do presente, isso a arte tem como fazer. E ela já faz. Pegar uma imagem e dar outra leitura pra ela. Outra quest?o da forma é que ela tem como ser um bal?o de ensaio de outras maneiras de organiza??o da sociedade. Que é outro problema que a gente herdou do stalinismo maldito, que é achar que a forma de organiza??o comunista é uma forma que se organiza assim e pronto. N?o, os caras estavam quebrando a cabe?a pras milhares de formas necessárias de organiza??o do mundo. O conselho é uma, a assembleia é outra, e usar todas. ? que nem hoje em dia na educa??o, tem um problema na educa??o, que é tipo, “ah, a melhor forma de ensinar é em roda”. Ensinar o que? Tudo está se esvaziando o conteúdo, tudo se esvazia pela administra??o. Mas é claro, o cara entra na escola às sete da manh? e sai uma da tarde, ele pode come?ar com uma aula expositiva, depois ele vai na quadra, depois ele tem um processo formativo quando ele vai lavar o banheiro, depois ele tem um processo quando ele discute com um funcionário... Eu falo da educa??o porque eu fico chocado com a quantidade de escolas que chamam os caras da [Escola da] ponte pra vir falar, e aí eu falo: “ó, tem uma coisa no estatuto da ponte: primeiro, a escola da ponte n?o tem diferen?a de salário”. E tem uma escola gigante, burguesa, no meio da cidade: “ah n?o, essa parte aí a gente n?o usa”. Ah, ent?o você faz a escola da ponte nos cinquenta minutos dentro de uma aula? E aí tudo o que o cara aprendeu sobre a liberdade dele, ele desfaz quando ele joga o papel no ch?o e fala: “escrava, limpa o meu papel”. Ent?o n?o faz sentido. Essas jun??es s?o pós-modernas, que s?o essas de coisas irracionais de se juntar. Ent?o, essa coisa da educa??o: “ah, é em roda agora. Agora a aula é em roda”. Mas você está passando as coisas de maneira vertical, ent?o assume! E esse é o problema. O maior problema de lidar com o governo que está aí é esse: é que turvou, tem uma nuvem de fuma?a, ele é um governo que “governa em roda", mas que mantém a aula expositiva com o poder só do professor. Aí você fala assim: “ah, mas qual é a proposta revolucionária que você tá falando aí?” ? em roda, é expositiva, é em tri?ngulo: cada lugar, cada necessidade vai gerar uma possibilidade; cada possibilidade vai gerar uma nova necessidade. Portanto, eu vou brincar com todas elas. Se eu preparei um seminário, eu vou fazer seminário, terminar, e depois a gente vai debater. Se tem muita gente é legal ter um mediador; se n?o tem muita gente, n?o precisa de um mediador. Se é uma assembleia com cinco pessoas, n?o precisa ter inscri??o; se tem cinquenta, tem que ter inscri??o. Se tem alguém que está manobrando, precisa ter uma mesa que entenda disso e n?o deixe alguém manobrar. ? muito simples. Isso sim é ser moderno: é olhar cada vez o real e ver o que precisa pra resolver um problema real. Vai estar sempre em movimento: quem é moderno está sempre em movimento. Agora, n?o é pegar o fetiche da forma e falar: “agora é em roda”. Esse é um problema grave da educa??o, da cultura, das organiza??es dos trabalhadores. Burocratizar, em certo sentido é isso: é assumir uma forma como fetiche e colocar ela em um plano reto para todas as coisas. E a gente sabe que quem fez isso foi o stalinismo. Enquanto o Lenin estava vivo, o Teatro de Arte de Moscou do Stanislavski estava funcionando. Ninguém falou: pára isso aí! A liberdade religiosa na Rússia no come?o da revolu??o era gigante, porque eles tinham como pressuposto que precisava criar a materialidade onde a religi?o n?o fosse necessária; isso era a ideia dos caras. N?o era sair cortando cabe?a de pessoas que s?o religiosas, isso foi a ideia da Igreja no período da Inquisi??o: “você n?o é da minha religi?o, corta a cabe?a”. Outra coisa que na luta e a arte também têm que é interessante é: quando você faz teoria, você precisa investigar; o método investigativo é feito com perguntas. Quando você escreve a teoria, o método expositivo é feito com perguntas e respostas. E, portanto, essas respostas v?o sair de linha mais cedo ou mais tarde, elas v?o dar conta daquela realidade. O Marx escreveu uma coisa e ele cansa de dizer que aquilo serve pra entender o capitalismo; se você quiser entender a Idade Média, algumas ferramentas v?o servir, mas lá é outra coisa. Ele n?o escreveu a história nem o funcionamento da Idade Média. Ele entendeu um processo, mas ele se debru?ou sobre o objeto real dele, que era o sistema capitalista. ? sempre preciso fazer a análise desse objeto em movimento. Isso n?o significa cair no reformismo. ? diferente o reformismo, é outra proposta. A arte também trabalha com esse tipo de material, e essa coisa da arte ser um processo é uma das descobertas mais importantes. Porque você sabe que o Terro e miséria I, é diferente do II, e que ele está em processo, que vai mudar a conjuntura, vou me deparar com outros objetos, outro ator vai ler um outro livro, e a gente vai modificar aquela obra. E a outra que foi feita dois anos atrás, aquela cena caiu. Mas, no momento em que faz, você precisa fazer ela com respostas, com posi??o e com convic??o. Ent?o é isso: investiga??o se faz com pergunta, se faz com dúvidas; a??o política e apresenta??o de pe?a se faz com convic??o. Isso eu também acho fundamental que as pessoas entendam. Eu fiquei dez anos na USP, de 1998 até 2008, e eu lembro de um Zeitgeist, espírito do tempo dos alunos, que era assim: “ah, mas eu n?o sei, eu até concordo com aquele partido, mas eu ainda n?o estudei tudo pra saber se eu devo estar ali ou n?o”. Mas você nunca vai estudar tudo. Vai lá, entra no partido, erra e depois sai. Se n?o errar, fica. Agora, você quer ficar “punhetando” sobre a política universitária ou você quer interferir na política universitária? Se você quer interferir, se junta... ao partido, à federa??o anarquista, se junta com pessoas que também querem interferir, sen?o você n?o vai fazer nada, vai ser inútil dentro disso. Você n?o vai parar o seu processo de crítica ao partido, à federa??o, ao agrupamento qualquer que seja. Se você fizer uma a??o sem análise teórica correta, a a??o também n?o vai ser correta. Tudo bem, a gente está sujeito a isso o tempo inteiro: os partidos, as organiza??es operárias, dos trabalhadores fazem análises equivocadas e tem a??es equivocadas. Talvez, do ponto de vista da história da humanidade como um gibi, isso seja o mais interessante. Que é você ver: “puta, naquele momento a corrente errou e fez tal coisa”, e aí se a corrente permanece no erro, você se retira. Se ela faz uma autocrítica e entende, n?o é o fim do mundo. ? isso que é fazer política: é fazer essas escolhas. ? analisar as possiblidades e necessidades dentro de um complexo, ora você vai acertar e ora você vai errar. Isso tá dado pra gente. Mas, p?e uma coisa na cabe?a, que é o que eu falava pros cara lá dentro [da USP]: “cara, n?o adianta você querer aprender tudo da universidade, porque você n?o vai aprender”. Concorda? Ent?o, amanh? os caras vêm desocupar a reitoria: você foi impulsionado a ter uma atua??o política, e fa?a ela com convic??o: ou esteja do lado da polícia, ou esteja do lado dos caras que est?o aqui; ou esteja em outro lugar. Mas a a??o política você faz com convic??o, é uma atitude convicta, depois você tem que avaliar. E fazer uma pe?a de teatro é isso: você ensaia nove meses, inventa novecentas cenas e chega uma hora que você fala, “essa cena fica”. Por mais em processo que esteja, naquele dia aquela cena fica, pode ser que na semana que vem ela n?o esteja, mas quando o ator sobe lá pra fazer aquela cena, faz com convic??o. ? aquele momento, o cara sentou na sua frente, faz aquela cena, depois eu corrijo. ? que nem agora, é uma entrevista, é uma produ??o teórica; eu considero entrevista uma produ??o teórica. Você faz com convic??o, depois lê e com certeza vai falar: “caralho, quanta bosta eu disse”. Mas aí eu vou falar: “n?o, eu n?o vou falar com ninguém até que eu saiba tudo o que eu preciso falar”? N?o. Isso a arte faz, a teoria faz e a luta dos trabalhadores exige isso. E aí, você sabe que o maior vício nesse tipo de luta é com o professor universitário e com o aluno. A classe trabalhadora nem cai tanto nessa esparrela, ela cai em outro tipo de demanda, mas a luta estudantil, que também faz parte da luta de classes, vive nessa esparrela; é o estudante que nunca tem convic??o. Dá vontade de falar: “você é um idiota”. E aí nesse sentido, se tem alguma coisa de todas, que aproxima como símbolo, e aí a gente tá falando de arte de novo, que é uma figura que eu acho legal o teatro falar, porque ela é muito forte simbolicamente, é o Che Guevara. O que fascina as pessoas no Che era a convic??o com que ele tomava as atitudes políticas dele; só que muitas delas foram completamente equivocadas. Mas uma coisa ele tinha, que fascina muitos militantes que era a convic??o: “vou fazer a revolu??o na ?frica com quatro pessoas”.Eu acho que o teatro também pode estudar a teoria contrarrevolucionária, porque sem teoria contrarrevolucionária n?o tem prática contrarrevolucionária. O teatro pode estudar, brincar com isso e colocar em cena. Eu acho legal os grupos de teatro se dedicarem um pouco mais à teoria contrarrevolucionária, como a gente tem feito. “Ah, eu quero saber o Heidegger, saber de todos os seus filhotes contrarrevolucionários”. ? isso. Daí você vai lá e brinca com essas teorias contrarrevolucionárias. Inclusive as estéticas, que cabem dentro de uma moldura épica e tudo mais. Ent?o, isso é outra coisa importantíssima, porque a contrarrevolu??o também tem teoria contrarrevolucionária, n?o é um espírito do mal que sempre dominou e que rondou a humanidade. Pra eles talvez seja inerente do ser humano essa briga infinita. O que a gente tem detectado de muito interessante é: tratar do conteúdo da história, porque essas imagens do passado, reverberando no presente, ajudam a mostrar várias contradi??es e a gente tem feito isso. Dá trabalho e às vezes a pe?a fica difícil de ler, eu tenho plena certeza disso, mas n?o porque ela quer ser hermética: é porque ela tá dando conta de uma coisa complexa e a pessoa vai ter que ter um pouco de paciência. Marx nunca pensou que a pe?a tinha que ser assim, “você é o proletário, eu sou o patr?o”, “você é do bem, eu sou do mal e acabou a pe?a”. Isso n?o é uma pe?a de teatro. Tem pe?a que é assim, n?o tem complexidade. E quando você p?e um pouco de complexidade, exige um pouco de complexidade de quem está assistindo e você deixa espa?os abertos de pensamento. Claro que a gente deixa também, mesmo que n?o queira, n?o tem como fechar, porque o cara vem com outro referencial, n?o precisa se preocupar em fazer isso, isso já tá dado. A Antropofagia, no seu celeiro antropofágico, tem muita coisa a nos ensinar; a outra coisa é a estrutura épica-dialética que o Brecht prop?s, que eu acho fundamental; a outra é o teatro de revista: o teatro de revista tem muito a nos ensinar, porque é uma técnica de passar em revista a história de um ano atrás. Eles criaram compadre, comadre, falsa história, história verdadeira, número de cortina, número de passarela, eles criaram uma série de coisas que têm que ser usadas. Número de cortina o que é? stand up comedy foi lá e fez um número de cortina. Olha como os contempor?neos pós-modernos s?o sempre um recorte minúsculo de coisas populares ou modernas. Eu acredito que a vis?o panor?mica é necessária no processo de classe, é superimportante. ? claro, o cara que desenvolve o número de cortina como o stand up comedy é bom, porque eu vou lá, assisto e falo: “nossa, olha lá, ele desenvolveu uma técnica só pra fazer isso”. Você vai lá e p?e junto dessa outra. Ent?o, na antropofagia a gente tem todas essas possibilidades de devora??o, sempre entendendo, como o Oswald de Andrade, que é “contra a consciência enlatada”. Devorar é uma coisa, você me impor uma consciência enlatada é outra. Isso é rico. E tem uma coisa na antropofagia que é muito legal, que é a contribui??o milionária de todos os erros, que eu também acho que é bom todo mundo aprender. E a história mais contada é a da química: foi por causa da alquimia, os caras quererem transformar mijo em ouro, bosta em diamante, e transformaram isso em química; e é bom ter química, poder saber fazer remédio e fazer coisas que podem ser capital genérico pra humanidade. Ent?o, isso é antropofágico. O teatro épico nos dá essa no??o histórica, essa possibilidade de poder trabalhar um quadro, que conte um fragmento, mas que esteja ligado a todos os outros e que esteja falando de vários assuntos. Ele liga a possibilidade da experiência dos trabalhadores, tem a experiência histórica ali dentro, você tem os gestus, tem milhares de procedimentos que o Brecht desenvolveu de dramaturgia, de trabalho de ator, que s?o muito importantes. O Stanislavski eu acho fundamental o trabalho do Stanislavski de análise ativa, super-objetivo da pe?a, o ator conhecer isso. N?o aparece nas nossas pe?as, mas o ator tem que entender como é esse salto qualitativo do drama, como é que pode se saltar do drama pra essas outras experiências, é importante entender esse lugar. E o Stanislavski trás pela primeira vez essa possibilidade contempor?nea do ator experimentar, improvisando, e entender realmente o que está fazendo. Ele deixa de ser o ator que ficar cumprindo ordens de um diretor ou de um produtor e vai experimentar o que vai fazer em cena. N?o é o Stanislavski no sentido de manuten??o do drama ou de identifica??o; n?o é desse Stanislavski que eu estou falando, é o Stanislavski que cria um estudo de experimenta??o teatral. Isso é fundamental nele, possibilita depois um avan?o. E a outra coisa em cena que é fundamental pra gente é o processo rapsódico do Macunaíma: essa ideia de coisas que se acumulam e se perdem, essa coisa do improviso que tem na música. Ent?o, essas experiências todas, quando o cara está diante disso em uma pe?a, n?o tem a plaquinha dizendo cada peda?o que faz parte dessa experiência, porque elas s?o usadas conjuntamente pra produzir alguma coisa. Mas, de alguma forma, num teatro em que você mostra o processo, e isso também é épico, você está revelando coisas e processos que o cara pode usar pra analisar na hora de lavar a lou?a e na hora de escolher ou n?o estar numa greve. Ent?o, isso tudo tá dado assim. E aí eu acho que essas coisas, a forma de produ??o, os grupos, quando a gente ocupou a Funarte e ficou uma semana lá dentro, foi uma experiência muito boa, inclusive pros militantes de esquerda que estiveram lá e viram que os grupos se organizam. Porque tinha organiza??o dos grupos, que est?o acostumados a dormir juntos, comer juntos, manter organizado, arrumado. Mas faltou, no meu ponto de vista, uma dire??o política. E também coragem pra se assumir uma dire??o política. Mas n?o pode existir uma dire??o política se n?o tiver antes um programa. N?o uma carta; um programa. E quem tinha que puxar essa coisa do programa era de certa forma a dire??o, porque a dire??o n?o é uma coisa estanque: “somos a dire??o política, agora vocês est?o dirigidos”. N?o! A dire??o é uma necessidade que aparece, e quem é a dire??o hoje pode ser que n?o seja depois. Mas é muito mais fácil entender as manobras se você entende quem está dirigindo. Porque existiu “dirigismo” dentro da Funarte, mas como n?o existia uma dire??o, uma clareza política da sua organiza??o, e n?o existia um programa e nem um estatuto, tudo era válido lá dentro. E aí, saindo de lá a gente perdeu, porque o que mais se aprendeu dentro da Funarte foi sobre a forma de luta, e a gente ficou em determinado momento maravilhado com a forma de luta e esqueceu – quando eu falo a gente é pra me incluir, mas alguns sim e outros n?o – porque estavam ali. Tanto é que alguns chegaram ali e falaram: “que legal, agora eu vou morar aqui”. “N?o, n?o vai morar aqui, n?o quero morar aqui, entendeu? Aqui n?o é bom pra morar, é outra coisa o que a gente veio fazer aqui!”. Mas isso era a minoria, tem que se falar, foi um momento de avan?o. Agora é a hora de pegar toda essa experiência histórica – se a gente tem alguma coisa pra fazer nesse exato momento é olhar pro que está aí, nas três esferas de governo – fazer uma análise de conjuntura, de onde est?o vindo os ataques (porque eles est?o vindo) junto com os trabalhadores da cultura, fazer uma boa assembleia, pra fazer uma análise de conjuntura desses ataques e, a partir daí, come?ar esse processo de discutir categoria, discutir classe e, a partir de lutas concretas, materiais; s?o essas luta concretas que v?o nos unir de novo. E elas já est?o dadas aí de novo: a gente tem elei??o agora, a gente n?o sabe o que os governos v?o fazer com as leis, qual o plano deles pra cultura. Ent?o era o momento da gente já estar se organizando e pensando: “ó, das possibilidades que v?o ter pra governo, que est?o dadas, vamos estudar o programa dos caras e já come?ar a pensar como a gente vai se mexer, assim que eles come?arem”. Mas isso é uma coisa que a gente vai precisar conversar entre os grupos, ver como isso pode ir pra mais pessoas. E a própria estrutura de grupo é muito boa por um lado, mas é muito ruim por outro. Porque o trabalhador da cultura é o cara também que trabalha na rede globo; é o cara que faz o cenário do teatro comercial; é o bilheteiro que faz a bilheteria do cine Bradesco. Se n?o dialogarmos com esse povo n?o tem condi??o, porque eu estou falando de trabalhador da cultura. N?o faz sentido um grupo de teatro fazer greve sozinho. Mas p?e o bilheteiro do cinema em greve, o cameraman em filme de greve, o diretor da novela em greve – claro, ele n?o vai, porque ele é outro escal?o – mas o cara que trabalha lá na novela, p?e esses caras em greve pra você ver se n?o existe essa greve. Claro que existe uma greve de trabalhadores da cultura! Se a perspectiva é o seu umbigo, o seu grupo n?o tem mesmo como fazer essa greve. ? meio estúpido os grupos de teatro de S?o Paulo fazerem greve, n?o faz sentido, mas aí precisa ver. Ou o cara que está na bilheteria do cine Bradesco tá ganhando muito dinheiro? Eu n?o acho que seja isso. E aí você fala: “Ah, na m?o de quem está o sindicato?” Esse sindicato dos artistas é zuadíssimo, ent?o precisa pensar em disputar o sindicato pra poder dar um avan?o, n?o vai avan?ar só os grupos de teatro. E você n?o vai convencer o cara que está vendendo o ingresso que ele ganha a grana dele fazendo telemarketing cinema a vir pro seu grupo de teatro; nem o seu grupo de teatro cabe todas essas pessoas, e nem porque ele tá ali fazendo o negócio você vai avacalhar com ele. N?o é um trabalhador da cultura do mesmo jeito? Ent?o precisa expandir essas coisas e tudo isso é consciência de classe... Só que aí, já entramos em outro capítulo... ................
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