O Cenário Invisível do Caso Battisti



Resumo de

Os Cenários Invisíveis do Caso Battisti

Por que a Extradição de Battisti Seria um Crime de Lesa Humanidade

Carlos Alberto Lungarzo

Professor titular aposentado da UNICAMP, SP, Brasil

Membro de Anistia Internacional dos Estados Unidos

Matrícula de AIUSA 2152711

Este texto está formado por um conjunto de resumos de capítulos de meu livro O Cenário Invisível do Caso Battisti, que será publicado proximamente. Este adiantamento pretende informar aos que se interessam pelos Direitos Humanos. Na versão final do livro serão dados todos os detalhes sobre os assuntos que aqui se mencionam.

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Sobre mim:

Nasci na Argentina, onde estudei Ciências Exatas e Ciências Humanas, e vim ao Brasil depois de completar meu pós-doutorado no Canadá. Trabalhei como professor na Universidade Estadual de Campinas desde 1976 até a minha aposentadoria. Em minha área, fiz pesquisa sobre lógica, estatística, computação quântica e inteligência artificial. Escrevi alguns artigos sobre esses temas e 7 livros.

Em relação com os Direitos Humanos, fui membro de Anistia Internacional do México (1980-83) da Argentina (1984), do Brasil (até 2000) e atualmente dos Estados Unidos. Colaboro com os grupos , Move On! e fui membro do Afro-Asian Latino American Solidarity Committee, e colaborei como voluntário no Alto Comissionado das Nações Unidas para os Refugiados.

Sou casado com a socióloga Silvana Barolo, tenho dois filhos, Fabrizio e Guilherme, e uma família “estendida” da que fazem parte Patrícia, Júlia, Danilo, Thaíssa e Sueli.

Sumário

Sumário 3

Apresentação 6

1 8

A Itália de Battisti 8

A. Europa Depois da Segunda Guerra 9

Vencedores com Medo 10

Esquerda e Direita na Itália 11

O Partido Comunista na Itália 12

O Cavalo de Tróia na Otan 13

A Revolução do Maio de Paris 14

B. Estratégia de Tensão 15

C. Operativo Gladio 17

D. Resistência e Repressão 22

Resistência Armada 22

Repressão Religiosa 23

Tratos Desumanos 24

O Poder Judiciário 27

2 28

Battisti e seu Grupo 28

A. Crise da Esquerda Clássica 28

Esquerda Armada 29

Autonomia e PAC 30

Proletários Armados para o Comunismo 30

B. Proletários Armados 32

As Idéias do PAC 32

As Ações do PAC 32

C. As Quatro Mortes 33

Antonio Santoro 33

Pier luigi Torregiani 34

Lino Sabbadin 35

Andrea Campagna 35

3 37

Julgado na Itália 37

A. Battisti é Preso 37

Primeiro Julgamento 37

Os Exílios de Battisti 39

B. O Processo Condenatório 43

Detalhes das Fontes 43

Caso Santoro 44

Casos Sabbadin e Torregiani 49

Caso Campagna 52

C. Os Fatos Irregulares 54

Torturas Prévias 54

Julgamento em Ausência 56

Dissociados e Delatores 58

Importantíssimo! 60

Falsas Procurações 60

D. Falsas Provas 62

Falsas Declarações 63

Cadê Pietro Mutti? 65

E. Situações de Exceção 68

Novas Penalidades 68

F. Impunidade dos Stragisti 70

4 74

Battisti no Brasil 74

A. Crimes Comuns e não Comuns 74

Crime Comum 74

Crime Político 75

Crime contra a Humanidade 78

Terrorismo 80

B. O CONARE e o Ministro de Justiça 82

C. Refúgio e Asilo 83

Refúgio em Sentido Clássico 84

Asilo Territorial e Diplomático 85

D. Causas de Refúgio e/ou Asilo 88

Perigo de Morte 88

Perigo de Prisão 90

Perigo de Tortura 91

Julgamento Justo 92

E. Direitos dos Refugiados 93

Refugiados Irregulares 93

Direito à Liberdade 94

5 95

Refúgio e Extradição 95

C. Poder de Conceder Refúgio 95

B. Faculdade Discricionária 96

C. Quem Autoriza a Extradição? 101

D. Quem Ordena a Extradição? 103

6 105

Jurisprudência 105

A. Extradições não Concedidas 105

B. O Caso Firmenich 106

C. O Caso Falco 108

D. O Caso Medina 110

7 114

Julgado no Brasil 114

A. Violações à Carta Americana 114

B. Julgamento Prévio 116

C. Parecer do Procurador 119

D. Argumentos da Defesa 119

E. É Possível Julgar Sentença Estrangeira? 120

F. O Relatório 122

Rejeição do Refúgio 123

Situação Italiana 123

“Fundados Temores” 124

Crime Político 125

Pseudo-Provas 127

Prescrição 127

Sofismas de Autoridade 128

Justiça Proxy 128

Definição non sense 129

Lei de Anistia 129

Porco Vermelho 130

O Caso de Olga Benário 134

Apresentação

Este texto está composto por trechos tomados de meu livro O Cenário Invisível do Caso Battisti, que estará sendo acabado nas próximas semanas. Este resumo é publicado agora com muita pressa, e o leitor deve desculpar os possíveis erros, omissões e algumas lacunas. Desejamos que todas as pessoas interessadas nos Direitos Humanos, na democracia, e no valor da vida humana, entendam por que este julgamento está colocando ao Brasil no risco de cometer, deliberadamente, um crime de Lesa Humanidade, que seria o primeiro desde o caso de Olga Benário, há 73 anos.

A documentação e os detalhes que justificam minhas observações não estão completos, porque a idéia de agrupar estes trechos surgiu bruscamente, diante da iminência da retomada do julgamento de Cesare Battisti. Mas, estou disposto a responder qualquer pergunta através de meu e-mail carlos.lungarzo@

Deixo claro que minha pesquisa não foi submetida à minha organização (Anistia Internacional dos Estados Unidos, doravante AIUSA), nem a Central de Anistia Internacional no Reino Unido, porque nossa organização não dispunha de uma equipe para fazer uma investigação profunda rapidamente.

A Anistia Internacional costuma fazer pesquisas muito detalhadas e documentadas, salvo quando o caso é de extrema urgência, envolvendo iminente risco de vida e integridade física. Portanto, assumo todas as opiniões deste texto de maneira pessoal, embora mantenha, acredito, o espírito de nossa organização.

A decisão de publicar este resumo se deve à necessidade de colocar em poder do leitor os principais argumentos que mostram a fraude em torno do julgamento de Battisti na Itália, bem como os erros e as afirmações tendenciosas do processo aberto no Supremo Tribunal Federal do Brasil. É o necessário para que o leitor entenda a necessidade de se posicionar contra esta grave encenação pseudo-jurídica. Os detalhes que mostram isto, as reproduções das fontes e o histórico geral do processo ocupam um espaço muito grande e não puderam ser editados rapidamente. Mas eles recebem suficiente atenção no livro que será lançado proximamente. As afirmações que se fazem neste resumo, entretanto, podem ser confirmas pelo leitor nos numerosos materiais tanto de pesquisa como de divulgação que aparecem na Internet.

Desejo agradecer a minha esposa, Silvana Barolo, pelo estímulo para que eu redigisse este trabalho, pelo esforço feito para acompanhar todas as etapas, e pelas valiosíssimas correções e sugestões em todos os aspectos.

Os textos aqui colocados são de livre distribuição, mencionando a origem.

Carlos Alberto Lungarzo

São Paulo, outubro de 2009

Este é o site que tenho editado para este caso, no qual se encontram alguns documentos não publicados no site de Anistia Internacional, e vários comentários meus e de outras pessoas:



1

A Itália de Battisti

A. Europa Depois da Segunda Guerra

Cesare Battisti nasceu em 1954, perto de Roma, e passou sua adolescência durante os dinâmicos anos 60, que foram anos de grandes conflitos no Oriente, na América Latina, na África, e também na Europa. Depois da Segunda Guerra Mundial (1945), o Continente Europeu emergiu como o grande centro do humanismo mundial e também da paz e a prosperidade. Por isso, é difícil para as gerações mais jovens entender que, mesmo depois da guerra, essa região esteve assolada pela violência.

A verdade é que os setores conservadores de todo o mundo se assustaram pela libertação dos povos africanos, pelo surgimento de novas nacionalidades, pelo avanço dos países chamados socialistas e, sobretudo, pela Revolução Cubana (1959). Este medo produziu reações violentas, como a de criar operativos para combater, em qualquer lugar do mundo, toda tendência suspeita de ser de esquerda. Esses operativos foram tão violentos que produziram uma reação da esquerda também violenta. Num desses grupos esteve Cesare Battisti, a figura principal deste texto.

Este ativista político italiano (e atual escritor) era apenas mais um entre milhares de outros jovens que lutavam por um mundo menos autoritário, quando foi detido no Norte da Itália em 1979. Com ele, porém, aconteceu algo especial, incomum nos outros garotos perseguidos: o governo italiano o acossou durante 30 anos, na Itália, na França e agora no Brasil, transformando sua vida numa interminável corrida que ele relata com um talento literário ainda não devidamente reconhecido (por que será?) em seu romance autobiográfico Minha Fuga Sem Fim (São Paulo, Martins Fontes, 2007).

Meu objetivo é tentar entender os motivos desse ódio desmesurado dos políticos, diplomatas e outros membros do establishment italiano, e também a inconcebível e indigna subserviência com que muitas celebridades brasileiras se colocam de joelhos perante aqueles famélicos cães de caça. Desejo, aliás, analisar todos os erros, distorções e fraudes que encontrei nos processos em que Battisti foi julgado, tanto na Itália quanto no Brasil. Ou seja, desejo ajudar a esclarecer-se aos que se interessam pela verdade sobre este intrigante ponto: por que uma pessoa contra a qual não existe nenhuma prova (nenhuma, no sentido jurídico, social e cientifico da palavra) já recebeu quatro votos em contra de um tribunal que deveria zelar pela verdade, a justiça, a objetividade, o progresso e a paz. Sim, a paz. Porque formas cada vez mais cruéis e arbitrárias de revanchismo e “vendettas” tornarão a paz social impossível, seja nas Américas, seja na Europa.

Começarei descrevendo como foi o ambiente onde Battisti (e muitos outros milhões de jovens) cresceram, tanto na Europa como na América, intoxicado pelo chumbo dos militares e policiais, pelas ladainhas dos místicos da violência, e pela corrupção das máfias e dos políticos.

Vencedores com Medo

Depois da derrota da Alemanha na Guerra, a maioria da direita européia desejava participar de eleições e manter-se dentro da legalidade democrática. Mas essa vocação democrática era limitada. Tanto os americanos como muitos de seus aliados europeus temiam que a esquerda pudesse avançar. Esse avanço era indesejado, mesmo que acontecesse por métodos democráticos.

Este ponto deve estar absolutamente claro. É uma verdade histórica irrefutável sobre a qual foi desclassificada, nos últimos cinco anos, farta documentação. EEUU e seus aliados não temiam apenas uma revolução: eles combatiam qualquer forma de sistema político independente, e o destruiriam pela força onde pudesse aparecer.

No Reino Unido, na Holanda e nos países Escandinavos, onde a desigualdade social era baixa, já existiam democracias sólidas, com as que a esquerda podia conviver sem conflito. Espanha seguia dominada pelo fascismo, colocado agora ao serviço dos americanos, e Alemanha estava sob controle dos vencedores, que proibiram os partidos de esquerda em 1949. Então, os lugares mais críticos eram a Itália e a França.

Esquerda e Direita na Itália

Em julho de 1944, quando a resistência italiana já tinha liberado o território italiano do fascismo, as forças democráticas vencedoras editaram o Decreto Legislativo 159 de Sanções contra o Fascismo, mas sua implementação prática foi demorada, pois a região sofria as catástrofes do pós-guerra (miséria, caos, doenças), e o governo tinha como prioridade evitar uma crise humanitária completa. A tarefa de punir os fascistas ia ser complicada e colocaria um desafio adicional, já que conservadores, monarquistas, católicos e outros direitistas, se opuseram ao decreto.

No entanto, primeiro ministro seguinte, Ferruccio Parri, membro da Resistência, apoiado por todas as forças não conservadoras, organizou uma purga com base no decreto 159 em junho de 1945. Essa purga foi muito difícil, pois o fascismo tinha apoio na classe média que se beneficiara com a corrupção, nas famílias tradicionais, e em todos os que o combateram por obrigação. Mesmo assim, o governo demitiu a maioria dos funcionários fascistas, e colocou em prisão os que tiveram maior cumplicidade. A indignação provocada pelos atos criminosos, cruéis e doentios dos fascistas promoveu uma irreflexiva campanha de condenações à morte, que colocaram na beira da execução 50 mil pessoas.

Um ano depois, o célebre líder comunista, então ministro da justiça, Palmiro Togliatti (1893-1964), concedeu uma ampla anistia, transformando as condenações em penas de prisão, o que satisfez a tradição humanista do marxismo contrária à pena de morte. Entretanto, o governo foi incapaz de fazer cumprir as sentenças de prisão, e os fascistas foram liberados e voltaram a seus postos de funcionários públicos.

Depois da Guerra, a força política mais importante da Itália foi a Democracia Cristã (DC), o partido oficial da Igreja Católica, apoiado pelos serviços secretos americanos. Recrutou muitos filiados de origem fascista, mas depois começou a desenvolver uma política mais ampla, se aproximando ao Partido Socialista (PSI), e até, parcialmente, ao Partido Comunista (PCI). A DC teve o controle da política italiana até os anos 80, e depois manteve muita influência até os 90, quando os grandes casos de corrupção a levaram sua dissolução.

Desde o fim da Guerra, a maioria dos fascistas não se conformava com o novo sistema democrático e, aos poucos, foi organizando novos partidos. Os principais foram o Movimento Social Italiano (MSI), fundado por fascistas históricos em 1946, e autodissolvido em 1995; Avanguardia Nazionale (Vanguarda Nacional, VN) fundada em 1960 pelo famoso terrorista Stefano Delle Chiaie e dissolvida pela justiça em 1976; e Ordine Nuovo (Nova Ordem, ON) fundado em 1969 por dissidentes do MSI que reclamavam a volta ao fascismo tradicional e ao nazismo. Um grupo menor, mas com enorme capacidade terrorista estava formado pelos Nuclei Armati Rivoluzionari (Núcleos Armados Revolucionários, NAR), fundado em 1977 e dissolvido em 1981. Foi uma constelação de pequenas células que cometeram dúzias de assassinatos.

O Partido Comunista na Itália

O Partido Comunista Italiano (PCI) saiu da guerra com grande prestígio, devido a seu papel vital na luta contra o fascismo. Sua popularidade impedia que a direita pudesse excluí-lo abertamente, porque, além disso, mantinha milhares de pessoas armadas. Portanto, o governo, a CIA e a OTAN agiram devagar. Em 1947, o governo de direita expulsou todos os ministros do PCI e do PSI.

Enquanto isso, ambos, unidos, ganharam várias eleições municipais, o que os iludiu sobre um possível triunfo nas eleições nacionais de 1948. Entretanto, os Serviços Secretos dos EEUU e o clero católico enviaram mais de 10 milhões de cartas proibindo votar pela esquerda. Por isso, a DC ganhou 48% dos votos e a Frente da Esquerda só 31%. Depois disto, o PSI encolheu e o PCI ficou como principal oposição, com grande presença no parlamento, alguma presença na magistratura e nenhuma no governo.

Em 1976, o PCI obteve 34,4% nas eleições, e procurou aliança com a DC. Seu presidente, Aldo Moro, que era mais lúcido e negociador que outros líderes aceitou o Compromisso Histórico, que significava permitir ao PCI ter ministros no governo da DC. Até 1970, não era conhecida na Itália o que depois se chamou “ultra-esquerda”.

Até finais da década de 60, antes dos grandes atentados terroristas da direita, o PSI e o PCI eram as únicas forças de esquerda da Itália.

O Cavalo de Tróia na Otan

A força do PCI preocupava aos aliados desde os anos 40, mas em 1965, EEUU e a NATO estavam na beira do pânico, pois se calculava que 4,3% da população adulta italiana estava filiada ao PCI, o que o fazia o maior partido comunista ocidental. Os americanos e britânicos idealizaram planos para destruí-lo. Além disso, o ódio pelo PCI foi atiçado pela Igreja, que se incomodava com a pregação social e naturalista do marxismo, além dos aspectos estratégicos. Mesmo com toda a direita contra, o PCI teve sucesso durante vários anos, e inclusive prestou apoio a coalizões de centro-esquerda, mas nunca voltou a ser admitido no governo. Seus triunfos mais importantes foram nas regiões cultas e industrializadas do centro e do norte do país.

No começo do pós-guerra, a direita e os social-democratas acreditavam no perigo vermelho, inclusive numa invasão soviética ao Oeste, e propuseram uma aliança contra a URSS, e contra a esquerda dentro dos países da Europa, especialmente na França, na Itália e na Alemanha. Com esses objetivos foi fundada em 1949 a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN ou NATO, em inglês), que incluía EEUU, Canadá e os países não neutrais da Europa Ocidental, e cujo objetivo oficial era o combate aos soviéticos e seus aliados. Seu objetivo verdadeiro era a destruição de toda a ideologia comunista, mesmo em Ocidente e ainda que fosse pacífica.

Outro instrumento de guerra do bloco foi a Central Americana de Inteligência (CIA), que já tinha sido criada em 1947 com funções oficiais de espionagem, mas, em realidade, incumbida de ações paramilitares, sabotagem, insurgência, rebeliões e tudo aquilo que pudesse prejudicar países, grupos ou pessoas de ideologia comunista. Em cada país, a CIA manteve uma forte aliança com redes terrorista de direita, que tinham sido criadas pelos britânicos e os americanos durante a Guerra (como um instrumento contra os nazifascistas), mas que agora eram independentes.

Desde o final dos anos 40, a CIA junto com a NATO organizam exércitos clandestinos em todos os países de Europa, incluindo os neutros, em alguns casos com base na ajuda sigilosa de militares locais sem conhecimento dos governos. Em outros, como Itália, teve apóio de altas figuras do governo, da polícia, da política, da Igreja, dos serviços secretos, da máfia, dos neofascistas e das empresas. O objetivo geral desta rede de paramilitares era coordenar a ação violenta, na forma de atentados a bomba, repressão de operários e estudantes, incêndios, assassinatos e outros atos violentos transformando-se num verdadeiro terrorismo de estado. Estes eram dirigidos, às vezes, contra a esquerda, mas, em outros casos, afetavam a população em geral, para que esta pensasse que os autores eram comunistas. Esta rede de ação violenta coordenada pela CIA e a OTAN tomava diversos nomes em cada país, mas foi conhecida internacionalmente como a Super-OTAN.

Contudo, o apelido mais célebre foi o da sucursal italiana. Gládio foi o mais poderoso, organizado e letal dos operativos do terrorismo de estado na Europa.

A Revolução do Maio de Paris

A grande revolta de estudantes, profissionais, intelectuais e operários de Paris em maio de 1968 é muito importante para entender a mudança da esquerda em toda Europa. Na época, jovens como Battisti (que tinha 24 anos) foram influídos pelo clima de desafio, criatividade e luta dessa geração francesa.

O processo começou com um conflito entre as autoridades e os alunos de uma sede da Universidade de Paris, que foi fechada em 03/05/1968. Em resposta, estudantes dessa e outras sedes, bem como alunos da escola média e professores e intelectuais de todos os níveis, se uniram aos protestos, chegando a reunir mais de 20 mil pessoas, que resistiram durante dias os ataques da policia. A detenção de centenas de estudantes e a extensão da repressão incubaram uma das mais fortes relações de solidariedade entre os intelectuais e o movimento operário. No dia 10 de maio, quando a polícia feriu e arrestou numerosos manifestantes, novos grupos se incorporaram ao movimento, incluindo artistas e celebridades em geral.

Naquele momento, se percebia já a táctica de provocação que depois viraria sistemática: mercenários ao serviço da polícia incendiavam veículos para botar a culpa nos manifestantes. O Partido Comunista, junto com a Central de Trabalhadores, se colocou junto aos setores de centro, procurando diminuir o impacto do protesto e tentando uma negociação. Entretanto, o movimento de esquerda era espontâneo, e atraiu milhões de pessoas, incluindo massas de operários, que declararam a maior greve já vista em Ocidente.

Sempre ficou o sentimento de que o movimento esteve perto da tomada do poder, e de que não teve sucesso pela falta de um partido representativo realmente marxista. Mas aquela revolta influiu de maneira decisiva na cultura européia. A nova esquerda não reclamava apenas melhores condições materiais, mas novas ideologias e novas sensibilidades, desafiando os tabus de nacionalismo, hierarquia, dominação de classe, restrições sexuais e tudo o que impedisse a felicidade.

Este feito, lembrado como um dos maiores movimentos de massa da história, mostrou aos milhões de jovens a necessidade de uma esquerda real e humana. Daí sairá a motivação libertária para outros movimentos, especialmente na Itália.

B. Estratégia de Tensão

Muitas pessoas sabem provocar tensão. Mas, o que é uma estratégia de tensão, ou seja, um método para gerar tensão intensa e duradoura? Num testemunho proferido sob juramento num inquérito sobre terrorismo na Itália, o agente do Gladio Vincenzo Vinciguerra (n. 1949), fanático fascista e eficiente autor de atentados, explicou o que era a Estratégia de Tensão:

Você deve atacar civis, gente comum, mulheres, crianças, gente inocente, desconhecidos alheios a qualquer atividade política. A razão é simples: dessa maneira, você força os cidadãos a exigirem do estado maior segurança. (Março, 2001)

Este fragmento descreve a Estratégia de Tensão com objetividade, em forma fria e sem enfeites. O que a OTAN mais desejava era evitar que a esquerda (inicialmente, PCI) pudesse entrar no governo ou influir desde o Parlamento. O objetivo clandestino principal era substituir os governos “democráticos” por ditaduras, e o método principal era a Estratégia de Tensão (ET)

A expressão Strategia della Tensione foi mais conhecida na forma italiana. A ET visava promover atos terroristas massivos, com a mais destrutiva tecnologia: explosões em edifícios, praças e trens, chacinas em locais públicos, e catástrofes similares. Entretanto, a ET tinha também uma sólida teoria, um planejamento detalhado, uma estrutura tão estável e secreta que ainda hoje não sabemos se segue sendo usada.

A alma da tensão se compunha de várias estratégias parciais, todas com um mesmo objetivo: controlar a opinião pública ao extremo de provocar nela aquele pensamento: “Estamos em perigo. Precisamos de um governo forte”. Mas, como se conseguiu essa manipulação?

A ET na Europa agiu de maneira muito inteligente. O envenenamento da opinião pública foi realizado com parcimônia, de maneira cientificamente calculada, usando a grande mídia. Mas, essa campanha de propaganda foi apenas uma parte da guerra psicológica apoiada na estratégia de tensão. A parte de maior efeito foi o terror, exercido em vários níveis: um grau leve, através de provocações (como a infiltração de policiais numa passeata), em graus maiores, por meio de assassinatos, incêndios e violência limitada e, no cume, violência total: bombardeios com explosivos militares, em locais densamente freqüentados por civis inocentes, como Vinciguerra explicava aos investigadores.

Os ataques terroristas da ET foram realizados sempre sob falsa bandeira. Os executores convenciam aos cidadãos de que os autores pertenciam à esquerda. Às vezes, ligavam a jornais e canais de TV se identificando como membros de um grupo marxista. Outras vezes deixavam falsos rastos (crachás, documentos, panfletos) que pareciam do partido comunista ou de um grupo anarquista.

Gerar atentados que matavam pessoas inocentes só era tolerado em sociedades com governos sem escrúpulos. O histórico fascista, a tradição supersticiosa e o clima de vingança faziam com que isso fosse possível na Itália.

Note que esses auto-atentados foram detonados em outros países da Europa de maneira episódica, e com volume baixo de destruição, geralmente sem vítimas.

Durante dois séculos, os Estados Unidos alentaram os golpes militares em toda América Latina, e mantiveram estrito controle sobre as ditaduras instaladas por eles. A ET pretendia instalar também ditaduras na Europa. Mas a população européia tinha avançado bastante na defesa de seus direitos e não ia aceitar facilmente. Contudo, a Casa Branca conseguiu dar um golpe na Grécia, em 1967, apesar de que o povo opôs uma enorme resistência e os setores esclarecidos do planeta ajudaram os gregos a combater o fascismo.

Todavia, um golpe na Europa moderna era mais difícil, mas a Super-OTAN decidiu tentar. Num país com passado fascista, como a Itália, parecia ser mais fácil que em nações muito civilizadas como Holanda ou Noruega. Se fosse criada a necessidade psicológica do golpe, sua aceitação seria facilitada. A ET aplicada através do Operativo Gladio ia provocar numerosos atentados terroristas que levariam à população ao desespero.

Desde 1948, na Itália, toda a direita, fascista ou não, queria evitar o crescimento da esquerda, mas temiam que o PCI mobilizasse sua força defensiva. Até a década de 70, os comunistas não deram sinais de desgaste e sua relação com a URSS continuava preocupando. Apesar disso, só os setores mais ofuscados dentro da Itália consideravam seriamente um golpe. De fato, alguns projetos de golpes foram abandonados, e até setores da própria CIA se manifestaram contra. Aparentemente, a insegurança da população não tinha atingido o ponto limite previsto na ET.

C. Operativo Gladio

O Operativo Gladio (OG) foi conhecido por este nome a partir dos anos 50, e a responsabilidade pela instalação de uma rede internacional clandestina de terrorismo de alto impacto foi compartilhada com vários governos. Alguns pareciam ignorar que seus militares e policiais tinham implantado um estado paralelo, outros suspeitavam e fizeram denúncias, outros colaboraram, como aconteceu com a Itália. O termo “Gladio” ficou finalmente só para referir-se ao operativo terrorista nesse país.

O número total de recrutados é desconhecido. Os órgãos de captação eram agências da CIA ou instituições militares dos países hospedeiros, onde cooperavam os oficiais de alta patente. Na Itália, altos militares se envolveram com o OG e, quando se despertava alguma suspeita, eram licenciados, transferidos a outros países ou mortos.

Os nazistas e fascistas usados para ação direta eram antigos combatentes, paraquedistas, operadores de veículos pesados, etc. Os jovens suboficiais da SS e do Fascio do final da guerra, tinham entre 50 e 60 anos na década de 70, e estavam em posição de comando. Mas, os menos experientes (entre 25 e 45 anos) eram treinados com métodos combinados da CIA, das SS e dos fascistas.

No caso da Itália, foi muito claro que parte dos poderes públicos era consciente do objetivo real: desprestigiar, enfraquecer e destruir a esquerda. Entre os mandos militares a expectativa do golpe foi bem vinda. O Gladio teve entre seus fundadores o diretor da CIA, Allen Dulles, algumas fontes acreditam que o verdadeiro fundador, que deu seu nome e propôs o esquema inicial, foi o democrata cristão Aldo Moro, cujo assassinato pelas Brigadas Vermelhas em 1978 deixará para sempre a dúvida. O passado fascista de Moro faz a conjetura mais ou menos provável.

Os principais atos de terrorismo do OG estão mencionados mais na frente, de maneira breve. Entretanto, cabe adiantar que, depois que esses atos começaram a ser investigados, mesmo que fosse com pouco entusiasmo, a existência do OG ficou mais exposta. Entretanto, só recentemente (1991) se teve uma dimensão aproximada do compromisso de políticos, militares, policiais, agentes do serviço secreto, magistrados, empresários e outros “chefões” italianos com as ações de terrorismo de estado. O assunto veio a tona quando o tríplice (por três períodos) ex-primeiro ministro Giulio Andreotti, uma das figuras mais influentes da DC confessou a existência daquele aparato.

Estes atos foram atribuídos sistematicamente à esquerda, favorecendo a tendência popular ao linchamento, e intimidando aos comunistas para que se deslocassem ainda mais à direita, o que aconteceu em poucos anos.

Desde há pelos menos cinco anos, a existência do OG e sua responsabilidade pelos grandes atos de terrorismo na Itália não é nenhum mistério. Existem não apenas fontes de pesquisadores sérios, mas numerosas matérias de divulgação publicadas na Internet, algumas delas em português e espanhol. Seus aspectos básicos são absolutamente evidentes: (1) O OG foi responsável por quase todos os assassinatos massivos, salvo alguns reivindicados por grupos fascistas independentes. (2) Nenhum desses atos foi praticado por grupos de esquerda, mesmo os mais exaltados como as Brigadas Vermelhas, que cometeram assassinatos individuais ou provocaram explosões onde o número de vítimas foi pequeno. (3) Apesar da cooperação da CIA em todos os aspectos, o planejamento e execução foram compartilhados com agentes italianos, altos oficiais das forças armadas e de segurança e altos funcionários.

Não é tão esquisito, porém, que a opinião pública italiana pense, em grande parte, que os autores dos crimes pertenciam à esquerda. Na Itália, a história de vendetas e a força de persuasão da Igreja contribuem ao êxito desse mito.

É importante destacar que a atribuição dos atos do OG à esquerda não teve tanta penetração em setores mais informados. Portanto, não pode supor-se que os envolvidos no julgamento de Cesare Battisti, no Brasil, ignorem algo tão básico. O que acontece, como veremos depois, é que existem interesses na condena de Battisti.

O Parlamento Europeu, apesar do empenho de outros países por esclarecer os atos de terrorismo não pôde avançar muito. Em 22/11/1990, o Parlamento condenou Gladio e pediu investigações exaustivas e isentas; 19 anos depois, ainda está aguardando resposta.

Na década de 70, começou a usar-se a palavra strage, que significa “grande estrago” e, muitas vezes, massacre. Foi chamado Stragismo o método de cometer enormes ataques com explosivos. O stragismo era empregado para os grandes atentados, mas o OG também utilizou ataques específicos contra grupos humanos como passeatas e atos públicos.

Uma forma de terrorismo mais frequente e menos letal que os stragi era a repressão direta, onde policiais, agentes dos Serviços Secretos (SSc) e os neofascistas agiam sem muito mistério, simulando que tinham sido provocados por manifestantes e queriam restabelecer a ordem. A seguinte tabela mostra os principais ataques repressivos do ano 1968:

|Data |Evento |Resultado |

|1968 |

|16/03 |Extensas colisões entre estudantes e polícia em Roma. A polícia bloqueou 5 mil |Cerca de 100 estudantes feridos e|

| |estudantes que protestavam contra a Guerra de Vietnam, e deixou agir a 400 |34 hospitalizados. |

| |neofascistas fortemente armados que conseguiram dispersar os estudantes. | |

|17/03 |400 estudantes se reuniram em Piazza di Spagna e marcharam em direção da Faculdade|Numerosos feridos não |

| |de Arquitetura. A polícia esperou a máxima concentração e então atacou com tal |contabilizados. |

| |brutalidade que surpreendeu ao público independente. O objetivo não era dispersar | |

| |a manifestação, mas produzir o maior número de baixas. | |

|18/03 |Intensas rebeliões na Faculdade de Direito em Roma. |Numerosos machucados. Sem dados |

| | |numéricos. |

|17/03 |Greves de estudantes que se espalharam pelo território nacional. Extensos choques | |

|25/03 |com a polícia em Milão, onde a Universidade Estadual foi violentamente desalojada.| |

O terror massivo típico do stragismo teve sua primeira cena no caso de Piazza Fontana. Na tabela seguinte, damos uma lista dos principais “estragos” durante esses doze anos de terror. Há muitos outros atentados menos conhecidos. Uma visão ampla da ação do OG na Europa pode ver-se no texto de Daniele Ganser, pesquisador suíço tido como o melhor especialista na estratégia de tensão e seus derivados[1].

|Atentados Massivos Executados por Gladio |

|Data |Evento |M |F |Autores |

|08-09/ |Bombas-Teste em Trens. |0 |0 |Foi acusada a esquerda em geral, |

|08/69 |10 bombas de baixo poder foram colocadas em 10 | | |principalmente os anarquistas, mas a |

| |diferentes trens. Dessas, 8 explodiram. Estes | | |autoria foi de Ordine Nuovo. |

| |testes se repetiram durante o resto do ano. | | | |

|12/12/69 |Massacre de Piazza Fontana em Milão. |17 |88 |O governo culpou aos anarquistas. Em 1999, |

| |Explosivos poderosos foram colocados na Banca | | |o General Giandelio Maletti, ex-chefe de um|

| |Nazionale dell' Agricoltura. | | |SSc confessou que Ordine Novo, filiado ao |

| | | | |OG, cometeu o atentado para culpar à |

| | | | |esquerda. |

|12/12/69 | |0 |13? |Mesma situação que no caso de Piazza |

| |Bombardeios simultâneos em Roma. | | |Fontana. |

| |Três bombas foram ativadas ao mesmo tempo num | | | |

| |banco e um monumento em Roma. | | | |

|22/07/70 |Bombardeio a um trem na Calábria. |6 |136 |Grupo fascista MSI? |

| |Uma bomba explodiu no expresso Freccia del Sud, | | | |

| |na Calábria. | | | |

|1972 |Bombardeio de três policiais. |3 |0 |Polícia e MP culparam à esquerda em geral. |

| |Perto de Veneza, três carabinieri são atingidos | | |Algo depois, Vincenzo Vinciguerra, membro |

| |por explosivos deixados num carro ao atender uma| | |do OG, reconheceu a autoria do atentado. |

| |falsa denúncia. | | | |

|17/05/73 |Ataque a Quartéis da Polícia. |4 |45 |Gianfranco Bertolli, que se fez passar por |

| |Quartéis da polícia de Milão foram atacados. | | |anarquista. Descobriu-se que era agente do |

| | | | |SID e membro do OG. |

|11/73 |Explosão de Aeronave. |4 |0 |O General Geraldo Serraville, chefe do OG |

| |Um avião da Força Aérea Italiana usado pelo | | |entre 1971 e 1974, acredita que foi uma |

| |serviço secreto explodiu no ar. | | |ação dos próprios agentes de Gladio. |

|28/05/74 |Massacre in Piazza della Loggia. |8 |103 |Fascistas e Policiais. Os instigadores e |

| |Uma bomba foi lançada em Piazza della Loggia | | |organizadores eram membros de alto nível da|

| |(Brescia), durante uma manifestação sindical. | | |OG. O caso foi abafado depois de muita |

| | | | |investigação. |

| | | | |Foi detido Delfo Zorzi, membro do grupo |

| | | | |fascista Ordine Nuovo em colaboração com |

| | | | |outros dois grupos neofascistas menores. |

|08/74 |Bomba em Trem Italicus. |12 |105? |Um grupo fascista pouco conhecido, Ordine |

| |Uma bomba foi colocada no trem Italicus, cujo | | |Nero, assumiu neste caso o atentando. |

| |percurso era Roma-Munich. | | | |

|20/08/80 |Estação Central de Bolonha. |85 |Mais de |Justiça e polícia acusaram à esquerda, |

| |Uma bomba explodiu na sala de espera de 2a | |200 |porém os neofascistas dos Núcleos Armados |

| |classe a Estação Central Ferroviária de Bolonha.| | |Revolucionários (NAR) assumiram ter |

| |Esta cidade era um grande bastião eleitoral dos | | |colocado explosivos de uso militar. |

| |comunistas e já tinha sido atacada antes. | | | |

|23/12/84 |Trem Bombardeado em Movimento. |16 |Mais de |Atribuído a neofascistas, auxiliados pela |

| |Num trem que fazia o percurso entre Florença e | |200 |Máfia e a Camorra. |

| |Roma, explode uma bomba de alto poder. | | | |

D. Resistência e Repressão

Antes que essa repressão chegasse a seu máximo, o stragismo já tinha produzido resistência, e uma parte importante da esquerda se deslocava do diálogo democrático para a ação armada.

Resistência Armada

A resistência armada existia antes do stragismo, mas era muito moderada e respondia, salvo em poucos casos, ao aparato de defensa da esquerda parlamentar, como o PCI. Mas a violência entrou plenamente na esquerda, quando os marxistas mais ativos, bem como ativistas independentes, descobriram a existência de terrorismo de direita em grande escala. O caso de Piazza Fontana foi o detonante.

Antes daquele strage, já existiam dois fortes grupos de extrema esquerda, Lotta Continua, fundado recentemente, e Potere Operaio, criado em 1968. Nenhum deles, porém, praticava ações armadas. Seus atos violentos foram exclusivamente de autodefesa, durante passeatas ou ocupações de fábricas.

Brigate Rosse (Brigadas Vermelhas = BV) foi o primeiro grupo político com fundamentação inspirada no marxismo, que propôs levar adiante a luta armada, e atingiu as dimensões de um exército de guerrilha urbana.

Repressão Religiosa

Durante o período da ET, as maiores vítimas religiosas da repressão foram as Testemunhas de Jeová. Estas formam uma seita afastada da política, mas defendem um princípio básico de ética individual: repudio do militarismo e de qualquer forma de violência. As TJ apenas recomendavam o pacifismo a seus próprios membros. Não faziam passeatas nem levantavam barricadas.

Como Itália teve sempre uma forte tradição militarista e policialesca, os governos mantiveram o velho serviço militar compulsório e rigoroso, com fortes penas para refratários, e estimularam a aversão contra qualquer forma de pacifismo ou tolerância. Mas, por outro lado, os poderes públicos deviam respeitar a objeção de consciência, pois isso se estava tornando norma internacional. As Testemunhas de Jeová e outros objetores de consciência eram punidos com serviços civis alternativos de duração desproporcional e, também com encarceramento e trato desumano por lapsos de mais de um ano.

Na época, o governo italiano dava prioridade às Testemunhas de Jeová como hóspedes da prisão de Gaeta, um castelo medieval isolado ao Sul de Roma, que serviu como presídio militar, cujas acomodações não tinham sido modernizadas desde o século 14 ou 15. As TJ e outros internos que tinham enviado queixas ao mundo exterior sobre as condições subumanas de Gaeta acabaram sendo processados com base em cargos como “divulgar segredos militares” e “difamação”. Segundo o Relatório de Anistia Internacional de 1977, nessa data a prisão alojaria mais de 200 Testemunhas de Jeová.

No relatório de 1979, Anistia Internacional denúncia que os tribunais militares perseguem aos que recusam fazer um serviço alternativo (não militar) com duração maior que a legal, e aplicado com intuito punitivo. Cita o caso de Sandro Gozzo, que serviu 12 meses numa comunidade agrária para pessoas com dificuldades mentais. Cumprido este prazo, que é o legal, voltou a sua casa. Em janeiro de 1979, foi sentenciado por um tribunal militar em Palermo, Sicília, a 7 meses de prisão, por ter-se recusado a continuar o serviço depois do período legal.

O direito à objeção de consciência se tinha transformado numa farsa, como se deduz do relatório de 1980 (p. 281) de Anistia Internacional. Os militares deviam decidir se um potencial recruta podia ser passado ao serviço civil. Eles tinham direito a afirmar que a convicção filosófica ou religiosa do candidato não era sincera. Inclusive, era comum exigir provas (sic) de que a pessoa tinha realmente problemas de consciência para servir militarmente. Como provar?

Tratos Desumanos

Vamos analisar agora os relatórios que Anistia Internacional produziu sobre Itália entre 1977 e 1981. Os casos de discriminação religiosa (já mencionados acima) são minoria em comparação com os de perseguição ideológica e política, baseada em indícios subjetivos “tênues”. No relatório de 1978, se descreve o aumento de grampos telefônicos sem autorização judicial e a prisão arbitrária de pessoas qualificadas (ao gosto dos policiais e juízes) de esquerdistas, terroristas, simpatizantes do terrorismo, vinculados com terroristas e assim em diante. Uma acusação muito usada era a de “ter conhecimento que Fulano ou Sicrano tinha inclinações terroristas”. Embora os alvos da perseguição fossem quase todos da esquerda, alguns militantes da direita − que seus mandantes já não protegiam − também sofreram abusos.

Giovanni Ventura, um militante neofascista abandonado pelo comando do Gladio, indiciado pelo atentado em Piazza Fontana, permaneceu preso durante 4 anos sem ser julgado. Em casos de delitos políticos ou de consciência, os magistrados aumentavam a pena dos réus por métodos bizarros. Por exemplo:

Franco Pasello recusou fazer o serviço militar. Como estava decidido, tampouco tirou documento militar. Foi condenado a 14 meses de prisão por recusar-se ao serviço militar, mas, por outro lado, também foi julgado por não ter tirado documento militar. Neste outro julgamento foi condenado a 12 meses!

Foram frequentes as negativas a dar assistência aos internos doentes, ou a oferecer proteção contra doenças físicas ou mentais. Em Novembro de 1979, Anistia reclamou atenção para Alberto Bounconto, mantido em condições péssimas: grave diminuição dos sentidos, alteração mental, e paralisia que lhe impedia andar ou comer sem ajuda. Também indagou por outros dois prisioneiros nos quais os tratos desumanos tinham deflagrado quadros psicóticos, e por outro que estava gravemente doente, mas não recebeu resposta dos juízes.

AI denuncia (Relatório 1979) a tendência dos juízes, já visível desde o ano anterior, a punir opiniões sobre política, como se fossem propaganda do terrorismo. Esta confusão se usava especialmente para punir intelectuais, que não podiam ser acusados de nenhum envolvimento prático em atos subversivos, mas cujas opiniões eram de esquerda.

No relatório de 1980, AI assinala que os novos artigos do código penal incorporados por decreto diminuem os direitos dos cidadãos. Por exemplo, o conceito de associação subversiva é pouco claro, e deixa a idéia de que também podem ser processados “subversivos potenciais”, ou seja, pessoas que tenham “tendência” a cometer atos terroristas.

Em síntese, as leis de 1980 aumentam a já extrema arbitrariedade da magistratura. Estas leis atuam como normas de estado de sítio, mesmo que se mantenha um ritual jurídico normal.

No relatório de 1980, AI também denunciou que, desde a aprovação da lei que garantia poderes desproporcionais à polícia, o estado criou 8 novas prisões onde os detentos viviam em condições extremas de isolamento e tortura psicológica. Também, essas novas leis restringiam o direito de reclamar à Convenção Européia sobre os Direitos Humanos (CEDH). Isto só seria possível depois de “esgotar” todas as possibilidades dentro da Itália, mas, o poder para definir quando essas possibilidades estavam esgotadas era exclusivo da autoridade italiana.

Especialmente grave foi a blitz massiva dita de 7 de Abril (de 1979), quando as forças de segurança detiveram dúzias de pessoas suspeitas de esquerdismo, como parte das investigações sobre a morte de Aldo Moro.

Informalmente, as delações, premiadas ou não, foram usadas muitas vezes como únicas provas contra os réus. Frequentemente, quando o delator voltava atrás, o juiz instrutor se recusava a registrar a mudança e o réu continuava acusado.

No relatório de 1981, Anistia Internacional denuncia a contínua detenção, sem julgamento, de grupos de pessoas relacionadas com a Autonomia Operária. Na época deste relatório, houve 69 pessoas indiciadas pelos delitos da Autonomia que foram encaminhados para julgamento, mas, depois de passados 25 meses em prisão, a data desse julgamento ainda não tinha sido anunciada.

Anistia Internacional relata que, na grande maioria dos casos de pessoas detidos por supostas conexões com ações violentas, os vínculos aduzidos pela justiça eram muito tênues ou inexistentes. As novas leis produzidas entre 1980 e 1981, autorizam a deter pessoas por suspeitas de terrorismo, ou por entender que seu estilo pessoal as tornava “favoráveis” ao terrorismo. Um artigo estende o período em que uma pessoa pode estar detida “preventivamente” por suspeitas ou inclinação ao terrorismo, até 10 anos e 8 meses. Não houve uma lei tão truculenta durante as ditaduras da América Latina.

Relata-se também o caso de quatro réus liberados em 1979 por falta de provas, que foram novamente detidos em 1981, apesar de que o juiz aceitava que eram inocentes. Existe um padrão fixo: os juízes não encontram evidência que incrimine os indiciados, mas quando decide liberá-los, o Ministério Público entra com nova denúncia. As apelações dos réus junto aos tribunais superiores são quase sempre rejeitadas.

Anistia Internacional tem manifestado preocupação por julgamentos típicos de estados militarizados, onde inclusive civis são julgados por cortes militares.

Art & Richardson mostram que a aplicação de tormentos contra os membros das BV era uma rotina, perfeitamente conhecida pelos magistrados que instruíam os processos. O SSc da Polícia aplicou diversas formas de tortura aos militantes, mesmo depois que tinham obtido toda a informação que exigiam.

Parece que não houve mutilações irreversíveis nem “técnicas” que produzissem dor máximo, e que as torturas mais usadas eram:

❖ Privação do sono, luminosidade excessiva, barulho insuportável.

❖ Ameaça de mortes contra familiares, especialmente crianças, porém não cumpridas.

❖ Chutes na genitália, nas costas, no ventre, no estômago.

❖ Arrancar pêlos de regiões sensíveis (não se mencionam os cílios).

❖ Queimaduras com cigarros em partes ocultas pela roupa.

❖ Choques elétricos de potencial leve a moderado.

❖ Afogamento por ingestão forçada de água salgada.

❖ Batidas nas orelhas e nas têmporas.

❖ Manutenção em posições dolorosas.

Existe esmagadora evidência fornecida pelos mais de 600 refugiados italianos na América do Sul que deveram fugir do terror oficial na época da ET, sobre a aplicação sistemática de tortura policial desde a década de 70 até épocas recentes.

O Poder Judiciário

Durante a ET, a repressão não era apenas administrada pela polícia nas delegacias e pelos carcereiros nas prisões, mas também pelos magistrados que retardavam, ignoravam ou distorciam os processos dos indiciados. Um fato comum era decretar nova prisão depois que um réu tinha sido liberado por algum motivo razoável (falta de provas, absolvição, etc.), inventando uma nova acusação.

Relata Anistia Internacional que quatro réus liberados em 1979 por falta de provas foram novamente detidos em 1981, apesar de ter sido absolvidos. Alguém detido sobre acusação de “propaganda terrorista”, liberado por falta de provas, podia ser detido em seguida por “mau comportamento durante a prisão anterior” e, cumprida esta pena, poderia ainda ser incriminado “por ter realizado espionagem dentro do cárcere” durante a última prisão, e assim por diante.

2

Battisti e seu Grupo

A. Crise da Esquerda Clássica

Na Itália, a velha esquerda dos guerrilheiros que combateram o fascismo foi cedendo espaço ao “profissionalismo” político. A principal preocupação das novas gerações de esquerda vinha da grave situação social e do terrorismo neofascista.

A esquerda tradicional européia conseguiu sobreviver se degradando cada vez mais ao nível da socialdemocracia e tentando acalmar (sem sucesso) a ira do neofascismo e a CIA. Nem figuras esclarecidas da direita, como Aldo Moro, foram poupadas quando surgia a possibilidade de que a esquerda, mesmo muito transformada, pudesse avançar.

Esquerda Armada

A nova esquerda não armada incubou sua ideologia durante a década de 60, influenciada pelo Maio de Paris. Incrementou as tradicionais reivindicações operárias com reclamações em prol de outros atores sociais, como trabalhadores da baixa classe média e camponeses, e de temáticas sociais não puramente econômicas, como o direito a diversidade sexual, a luta contra o racismo, a ecologia, etc.

Entretanto, os partidos comunistas se esforçavam por conseguir um espaço no sistema. Para ser admitido como a parte esquerda do establishment italiano, o PCI precisava acatar todas as normas da legalidade democrática. Essa acomodação ao capitalismo implicava fazer renuncia do marxismo, que os socialdemocratas já tinham feito muito antes.

Por outro lado, a nova esquerda européia era marxista. Na maioria dos casos, seu marxismo não era filosófico, mas sociológico e, especialmente, ético: tratava-se de devolver ao ser humano seu lugar na natureza, destruindo as hierarquias e a alienação. Não se deve confundir as especulações teóricas do marxismo acadêmico, com atividades culturais concretas desenvolvidas pela esquerda extraparlamentar. Sua meta fundamental era o resgate da solidariedade, que esteve presente na velha esquerda desde 1800 a 1950.

Mesmo os grupos da esquerda italiana definidos pela luta armada, não foram, em seu começo, terroristas. Aliás, a viragem para o terrorismo pode ter sido resultado de sua infiltração pela direita. Vários grupos armados desempenharam algum tipo de atividade social, cultural ou humanitária. Os Nuclei Armati Proletari ajudavam a desempregados e prisioneiros, os Reparti Comunisti d'Attacco criticavam o sistema penitenciário, e as próprias Brigadas Vermelhas trabalhavam com os operários.

Apesar de tudo, embora seja por outras razões que as levantadas pelo PCI, a luta armada era uma opção errada. O uso da força degradava à esquerda ao nível moral dos profissionais da violência: policiais, militares e neofascistas.

A luta armada na Itália foi um exemplo de fragmentação. Na década de 70 conviviam mais de 40 movimentos armados de esquerda e possivelmente muitos mais dos quais não se mantém registro.

Autonomia e PAC

Autonomia Operaia foi um processo da esquerda alternativa, cujo pico esteve entre 1976 e 1978. Inicialmente, sua organização e propósitos eram totalmente diferentes dos grupos armados. A democracia interna da Autonomia foi tal que eles não se consideravam propriamente um partido ou um movimento, mas uma espécie de nome comum para todas as pessoas que concordassem com um projeto de esquerda não parlamentar, contrário ao reformismo e à burocracia.

Proletários Armados para o Comunismo

O que nos interessa é o grupo chamado Proletari Armati per il Comunismo (PAC), ao qual pertenceu Cesare Battisti.

Os PAC estiveram focados nas condições carcerárias e nos desempregados. Foi fundado na Lombardia em 1976, e estava dirigido na época por Sebastiano Marsala, Arrigo Cavallina e Giuseppe Memeo[2].

No outono de 1977, data reconhecida com o ponto máximo nas rebeliões populares na Itália, os PAC já estavam organizados. Tinha influído em sua criação a fundação de novos cárceres especiais, onde, além da tortura convencional, os detentos sofriam pelo isolamento e limitação de movimentos. Assim, eles entravam numa deterioração física e psicológica, chegando à catatonia total, depois de passar por meio de dolorosos tormentos mentais.

Contra este sistema prisional, um dos membros dos PAC, Roberto Silvi propôs a publicação de um jornal, chamado Senza Galere (“Sem Prisões”), em torno ao qual se nuclearam os fundadores do grupo já em novembro de 1977[3]. A primeira vez que o nome da organização tomou estado público foi em maio de 1978, num manifesto onde ameaçava aos “médicos tiras do Estado”. O aviso se referia a médicos que tomavam conta de presos doentes nos locais de detenção e que atuavam como policiais, tirando informação dos internos ou lhes submetendo a tratamento degradante.

Os membros da organização eram em sua maioria de origem operária, mas também havia professores de ensino básico, desempregados e alguns estudantes. Todos eles eram jovens. O mais velho era Arrigo Cavallina, um professor nascido em 1945, que elaborava a ideologia a ser seguida pelo grupo.

Não se conhece o número exato de militantes, pois o grupo atuava também em Veneza e talvez tivesse algumas células espalhadas por outras cidades do Norte. Na reportagem de Istoé feita no Brasil em 2009, Battisti confessava não saber a quantidade de militantes em todo o país, mas achava que tinha pelo menos 200.

O local de atuação esteve concentrado em Milão e Veneza, onde se acumularam os militantes mais conhecidos. Os PAC tinham extrações bem diversas. Tanto os fundadores como os primeiros militantes eram bastante heterogêneos. Cesare Battisti tinha cometido roubos, Adriano Carnelutti foi um simpatizante e semicolaborador das BV e Maurizio Folini tinha contatos com os palestinos. Pietro Mutti tinha estado em Prima Linea (PL), que era a segunda maior organização depois das BV, e fundou-se com pessoas que se afastaram de Lotta Contínua e Potere Operaio.

Em oposição ao estilo das Brigadas Vermelhas, que possuíam uma estrutura semi-hierárquica e uma disciplina, os PAC se organizaram numa forma descentralizada, com profunda democracia interna, influídos pelo anarquismo. Aliás, vários grupos, incluído o PAC, estavam influenciados pela intelectualidade radical francesa.

B. Proletários Armados

As Idéias do PAC

Quando se formou o grupo, a violência da ET estava em seu ápice; o ano 1977 foi conhecido como “terrível”, pois os conflitos sociais, como greves, protestos, passeatas, se adicionavam aos stragi da direita e respostas armadas da esquerda.

Foi nesse período, que as prisões italianas começaram a aumentar seu regime de brutalidade. Recebendo sempre novos prisioneiros, tanto as condições de sobrevivência como os tratos cruéis se tornaram mais críticos.

Os PAC eram pouco conhecidos. Eles não se propunham a tomar o poder, mas resolver assuntos do dia-a-dia, como confrontar a violência gerada por patrões, policiais, carcereiros e outros elementos ao serviço da repressão.

Creio que os PAC estiveram influenciados pela parte prática dos escritos de Michel Foucault: o entendimento da barbárie oficial, justamente aquela que a academia despreza. Cavallina teve oportunidade de experimentar em sua própria pele aquela barbárie quando esteve preso em Udine, em 1977, por causa de um roubo que tinha perpetrado para munir de dinheiro o movimento. É nesse momento que começa a denunciar as condições infra-humanas de vida e o sadismo dos guardas.

As Ações do PAC

Os PAC tinham este perfil: (1) Organização aberta, sem hierarquias, e restrita a ações locais. (2) Operativos rápidos com objetivos de curto alcance. (3) Medidas punitivas contra patrões exploradores, policiais e carcereiros torturadores, empresários que fizessem parte de grupos de extermínio. Parece que os PAC conseguiram não ser infiltrados, mas não puderam evitar que alguns de seus membros se transformassem em delatores.

No começo, o grupo se propôs apenas financiar-se e munir-se de armas. Para formar seu arsenal, o grupo fez assaltos a lojas de armas, e depois passaram a apoiar operários em conflito, fazendo sabotagens em empresas, que não produziram mortos nem feridos. Naquele período, também “intimidaram” a membros do sistema carcerário. Em maio de 1978, feriram levemente a três membros desse sistema, um guarda e dois médicos. Neste caso, concretizaram sua ameaça de “penalizar” os “médicos tiras” que policiavam ou torturavam seus doentes.

No dia 06/06/1978, começou uma sequencia de homicídios que acabou em fevereiro de 1979, e deixou quatro vítimas: um carcereiro chamado Antonio Santoro, o açogueiro Lino Sabbadin, o ourives Pierluigi Torregiani, e o motorista do serviço secreto da polícia Andrea Campagna.

Os crimes foram reivindicados pelos próprios PAC, em comunicados que enviaram às autoridades, mas inicialmente existiam dúvidas sobre quais pessoas deveriam ser culpadas por isso. Entretanto, anos depois (inclusive depois que Battisti fosse julgado por outros motivos), Pietro Mutti, reforçado por alguns outros membros do bando, acusou a Battisti como culpado principal dos quatro assassinatos. Por causa disso, Mutti foi recompensado como “colaborador da justiça” recebeu uma grande redução em sua pena: de prisão perpétua para 8 anos.

C. As Quatro Mortes

Antonio Santoro

Antonio Santoro (1926-1978) era um carcereiro-chefe da prisão de Udine. O atentado teria sido executado entre duas ruas de Udine (Isto se encontra na Sentença de 1988; p. 224 e no Histórico, p. 11), durante a manhã do dia 6 de junho de 1978. O ataque, supostamente reconstruído pelo Tribunal de Milão graças a delatores, foi com arma de fogo. A vítima levou dois tiros pelas costas dum jovem que teria fingido estar namorando uma garota ruiva durante a passagem de Santoro por aquele lugar.

Fala-se de duas testemunhas, mas não aparecem seus nomes ou descrições. Eventualmente, estes poderiam estar no inquérito policial, mas nem a própria defesa de Battisti no Brasil teve acesso a tal inquérito, supondo que ele exista. Os criminosos foram identificados (p. 226), como sendo Pietro Mutti e Enrica Migliorati.

É importante fixar este dado: durante o primeiro estágio de investigação, o nome de Battisti não é relacionado à morte de Santoro.

Essas duas testemunhas deveriam tê-lo reconhecido durante uma sessão de inspeção de fotos, pois Battisti tinha estado preso em Udine e tinha ficha. Mas não aconteceu assim. Tudo isto ficou no ar até fevereiro de 1982 quando se produziu uma svolta radicale provocada por Pietro Mutti, agora na condição de arrependido.

Neste, como nos outros crimes, as testemunhas a que se refere a polícia, são mencionadas vagamente, às vezes sem dizer o nome.

Pier luigi Torregiani

O ourives Torregiani (1936-1979) fazia “justiça”, por si mesmo contra pessoas mais fracas. O influente jornal Corriere della Sera, do dia 5 de março de 2004 faz uma descrição de um antigo fato.

Na meia-noite de 22/01/1979, Torregiani janta num restaurante com sua filha Marisa, quando aparece um assaltante siciliano que pretende praticar um roubo. Torregiani e um amigo tiram do bolso armas de grande calibre e matam o ladrão e também um cliente inocente, e deixam outro aleijado. Torregiani nunca foi julgado por excesso de defesa, nem por ter atingido, por imprudência, duas pessoas inocentes.

Pelo contrário, no dia seguinte, o ourives coloca uma foto na vitrine de sua loja como troféu da execução do siciliano. O fato foi muito criticado pelos jornais não fascistas, o considerando uma exibição de crueldade e sadismo. Mas ele foi alvo de um revide 24 dias após.

Às 15 horas do dia 16 de fevereiro de 1979, Torregiani estava chegando a sua loja de Milão, com dois de seus filhos (Sentença, p. 435). Em certo momento, dois jovens que andam a pé, um pouco à frente, voltam-se em direção a ele e abrem fogo. O joalheiro tira sua arma e cruza tiros com os executores, mas acaba morto. Um fato importante: uma bala deixa a seu filho Alberto aleijado. Inicialmente, tentou-se culpar os assaltantes, mas finalmente soube-se que a bala era da arma de Torregiani, o pai.

Lino Sabbadin

Sabbadin (1933-1979), um açougueiro, membro ativo do partido fascista mais tradicional, o MSI, foi atingido o mesmo dia 16 de fevereiro de 1979 perto de Veneza, por volta das 16:50 horas, no local de seu açougue. Sua história é parecida com a de Torregiani: Na noite de 16 de dezembro de 1978, sua loja foi assaltada por um cara que falava em dialeto (possivelmente do Sul, ou seja, de províncias pobres). Segundo as matérias jornalísticas da época, ele recebeu uma coronhada, mas revidou matando o agressor.

No dia do crime, dois homens entram no açougue e, segundo diz a sentença (p. 435), ambos estavam disfarçados com barbas postiças. Um deles dispara um total de quatro tiros. Os envolvidos na execução de Torregiani foram reconhecidos como Memeo, Grimaldi, Sebastiano Marsala e Fatone (Sentença, p. 437).

Percebe-se que aqui também não aparece o nome de Battisti.

Andrea Campagna

A morte de Andrea Campagna (1954 –1979), motorista da polícia de Milão tem a ver com as represálias do grupo PAC contra agentes da repressão. Ele foi morto em Milão, no dia 19/04/1979, no momento em que caminhava pela rua com seu sogro. Segundo a descrição contida na Sentença (p. 507), um jovem desconhecido se aproximou e lhe disparou cinco tiros.

O sogro diz que tentou proteger a seu genro, mas em nenhum momento a polícia fala que ele tenha podido reconhecer o agressor.

Os quatro crimes foram reivindicados em mensagens telefônicos e por cartas a jornais pelos PAC.

Em suas declarações diziam que Santoro e Campagna eram policiais que maltratavam os prisioneiros, e Torregiani e Sabbadin eram comerciantes fascistas, que matavam iniquamente, sem necessidade e com abuso de força, às pessoas pobres que tentavam roubar-lhes sem colocar sua vida em risco.

3

Julgado na Itália

A. Battisti é Preso

Primeiro Julgamento

Battisti era filho e neto de comunistas e, quando adolescente, cometeu alguns roubos, razão pela qual foi preso. Na prisão de Udine conheceu a Cavallina, que estava lá por um delito relacionado com seu grupo político, PAC. Ele convenceu a Battisti de que devia entrar nos PAC.

A primeira vez que Battisti foi julgado como preso político, em 1979, os crimes dos quais foi acusado eram: possuir armas não registradas e associação para cometer atos subversivos.

Depois da morte de Torregiani a polícia fez uma blitz completa em toda a cidade. Um dos lugares mais vasculhados foi o prédio popular onde morava Battisti. Ele foi detido no começo de junho de 1979, por ter sido encontrado numa das guaridas do PAC na Barona (bairro de Milão), mas até essa data ninguém tinha manifestado receio de que ele estivesse envolvido nas 4 mortes recentes.

Sua condenação foi exclusivamente por ter armas e formação de quadrilha com finalidade subversiva. A pena (12 anos e 10 meses de prisão) foi exagerada porque as leis da época puniam o máximo possível os delitos políticos. Um criminoso comum não teria levado mais de 3 anos pelos mesmos delitos.

No apartamento em que Battisti morava foram encontradas algumas armas. A polícia fez perícia de todas elas, e comprovou que nenhuma tinha sido usada[4].

Um fato muito importante é que, quando Battisti foi detido e julgado em seguida da blitz em junho de 79, em nenhum momento se cogitou que ele tivesse alguma participação na morte de Torregiani. Observe com detalhe o seguinte: nessa data, já tinham sido cometidos todos os assassinatos do PAC, e o assunto estava à flor de pele, não só na sociedade milanesa, mas em toda Itália.

A blitz em que Battisti e outros foram presos foi realizada para indagar sobre os 4 assassinatos. Portanto, era de esperar que todos os detentos fossem interrogados sobre isso. Mas Battisti nunca foi interrogado, o que mostra que a polícia não suspeitava dele.

Houve durante esse julgamento, que se estendeu durante vários meses, 13 denúncias de casos de torturas.

Vale enfatizar que, mesmo sob tormentos, nenhum dos torturados mencionou a Battisti como possível suspeito. Alguns dos torturados acusaram outros companheiros, mas o nome de Battisti nunca foi mencionado. Aliás, tanto os outros guerrilheiros como a polícia sabiam que Battisti era um membro recente no grupo, e que não possuía nenhuma posição hierárquica importante dentro dele.

Se ele realmente tivesse cometido aqueles crimes deveria haver pelo menos duas ou três pessoas que o soubessem, já que nenhum deles foi praticado por uma pessoa sozinha.

Durante o tempo que durou aquele processo, que foi coletivo, Battisti foi enviado com os outros a uma prisão da província de Cuneo (Piemonte), custodiada pelo exército. Apesar disso, tudo indica que a escolha não foi seletiva contra Battisti, porque era usual internar nesse lugar membros de grupos armados.

Em maio de 1980, uma juíza se empenhou em tirar a Battisti dessa prisão, porque sabia que ele não tinha cometido nenhuma morte. Ela tinha acesso a toda sua informação e saberia se Battisti era acusado de assassinato.

Nesse mesmo mês, a magistrada conseguiu que Cesare fosse transferido à prisão de Frosinone, uma velha fortaleza com segurança não muito boa. Na Itália, ninguém colocaria um suspeito de assassinar dois agentes do estado e dois abastados fascistas num cárcere de média ou baixa segurança.

Parece claro, então, que a idéia de acusar a Battisti daqueles 4 crimes surgiu depois. Quando foi capturado em 1979, a justiça ainda não pensava que ele seria um bom bode expiatório para aqueles quatro crimes.

Os Exílios de Battisti

Dentro da prisão, Battisti teve oportunidade de confraternizar com muitos detentos, tanto do PAC como de outros grupos, arrependidos ou desapontados. Ninguém queria continuar a luta armada. Quando Cesare pediu ajuda para fugir, os colegas lhe encomendaram que (depois de sair) tentasse convencer aos chefes de grupos armados para acabar com as guerrilhas. Os amigos de Cesare recorreram a Pietro Mutti, que estava livre e tinha fundado um novo grupo. No dia 4 de outubro, Mutti, com alguns amigos e a jovem Maria Cecília Barbetta, ajudou a Battisti a sair da prisão, sem executar nenhum ato de violência.

Mas Battisti falhou em sua missão pacificadora, porque o grupo de Mutti que o resgatou queria continuar a luta e o acusou de “traidor”. Durante a semana seguinte, Cesare ficou escondido em Roma e manteve contatos diários com Mutti e seus amigos. Nesses contatos Battisti ficou convencido de que Mutti não estava ressentido com ele, mas que se sentia esmagado pela sensação de fracasso e que gostaria de voltar à vida normal. Logo depois Battisti saiu de Roma e atravessou os Alpes andando à pé até chegar à França.

Battisti se afastou definitivamente da luta armada e reconheceu que esse método de luta era injusto e devia ser descartado.

Battisti viveu durante um ano em Paris, em forma semiclandestina, e conheceu Laurence, uma namorada com a qual chegou a México em 1982. Disposto a formar uma família, teve sua primeira filha, Valentine, nascida dois anos após. A família foi morar na cidade de Porto Escondido, no estado de Oaxaca.

A militância anterior foi substituída por uma militância intelectual, durante a qual escreveu 17 romances policiais que pintavam a vida na época da Estratégia de Tensão vivida na Itália. No ano 1986, fundou a Revista Cultural Via Livre, cujo site ainda permanece ativo[5]. Sua atividade cultural e intelectual foi muita intensa, o que talvez explique uma dupla reação: a simpatia que despertou entre artistas, intelectuais e líderes esclarecidos (milhares dos quais assinaram petições em seu favor na França) e a desconfiança do sistema repressivo. Participou de vários festivais do livro e organizou a primeira Bienal de Artes Gráficas do México.

Em 1985, o presidente francês François Mitterrand lançou a chamada Doutrina Mitterrand, para oferecer proteção aos militantes da esquerda armada italiana, que tivessem renunciado à violência. O compromisso foi apenas numa promessa verbal feita pelo presidente no dia 21/04/1985, no 65º Congresso da Liga dos Direitos do Homem, e visava amenizar o clima de perseguição e ódio que agitava Itália. Esse compromisso foi respeitado pelo governo enquanto Mitterrand esteve no poder, mas foi ignorado pelo governo de direita de Chirac, e atualmente também por Sarkozy.

A oferta de uma proteção informal em vez de uma forma legal de asilo parece parte de um “arranjo” internacional entre Mitterrand e o líder socialista Bettino Craxi. O governo francês queria mostrar uma face humanitária sem interpor-se totalmente no caminho do revanchismo italiano. O Conselho de Estado da França (um órgão consultivo e judicial, que atua como supremo tribunal no caso de justiça administrativa) derrogou em 2005 a Doutrina Mitterrand, declarando a falta de valor jurídico da “promessa”. O presidente conservador Chirac não tinha incomodado aos refugiados italianos, mas, a partir dessa data, começou a curvar-se às pressões do Quirinal[6].

Esta mudança de rumo é atualmente muito criticada por uma parte da sociedade francesa, que se espanta pela falta de senso de honra de seus governantes.

Em 1990 Battisti voltou à França por encontrar-se exatamente nas condições da Doutrina Mitterrand. Ele tinha quebrado seus laços com os PAC (seu último lugar de militância) em 1978, e ninguém acreditava que fosse autor de 4 homicídios.

Ao voltar na França, Battisti começou a participar em causas humanitárias e culturais, que o tornaram muito popular. Colaborou com jornais alternativos, associações de refugiados, realizou tarefas educativas, e participou de eventos políticos.

A esquerda independente francesa teve também momentos brilhantes, o último dos quais foi o maio de 1968. Os herdeiros desses anos dourados se encantaram com o trabalho de Cesare e se tornaram críticos radicais da política italiana e, depois, dos inimigos de Battisti no Brasil. Com efeito, milhares de intelectuais, artistas, celebridades e políticos que apoiam Battisti têm insistido por todos os meios sobre a infâmia dos governos italianos e o espírito vingativo dessa nação saudosa do fascismo.

Além de irritar aos italianos, esses franceses solidários se têm tornado também o pesadelo do Supremo Tribunal Brasileiro, cujos erros revelam de maneira contínua, quase sem descanso.

Em maio de 1991, o governo italiano pediu a França a extradição de Battisti, mas foi rejeitado pela justiça em duas instâncias. Entre os aspectos considerados para essa decisão, a corte mencionou que a legislação antiterrorista italiana era contrária aos princípios franceses de direito. Também, foi dito que a Corte Européia de Direitos Humanos considera inválido o julgamento em ausência.

Em 2003, Battisti obteve uma decisão favorável para se naturalizar francês, mas no ano seguinte, o governo, já cúmplice da Itália, revogou a decisão. Em conseqüência, em fevereiro de 2004 foi detido pelo governo francês por ingerência da justiça italiana, apesar do repúdio que isso produziu em milhares de franceses. Colocado em liberdade vigiada no mês seguinte, o pedido de sua extradição foi confirmado pelo Corte de Apelações de Paris. Segundo as estimativas mais modestas, 20 mil intelectuais, políticos e outras celebridades marcharam por Paris pedindo a liberdade de Cesare.

A extradição de Battisti foi confirmada pelo Conselho de Estado quando ele já se encontrava no Brasil, em 2005. Meses depois, a Corte Européia de Direitos Humanos não aceitou o recurso dos advogados franceses de Battisti. A Corte não que queria se comprometer num problema que incluía França e Itália, e não mostrava a menor sensibilidade pelos “Direitos Humanos” que apareciam, ironicamente, em seu nome.

Segundo algumas fontes[7], os governos de ambos os países teriam feito um acordo para acabar com a Doutrina Mitterrand, fazendo então viável a extradição de italianos em troca de um acordo econômico. Além da infame troca de vidas humanas por melhoras econômicas, este acordo parece descabido: por que Itália teria tanto interesse num grupo de refugiados que se esforçava por voltar à normalidade que lhes tinha sido tirada durante ET? Será que a vingança tem valor econômico?

No começo da Doutrina Mitterrand, o processo de proteção na França era conjunto para todos os italianos. Durante esse período, Cesare nunca falou sobre sua inocência. Em 1991, foi aberto um processo pessoal e aí então ele pôde se declarar inocente. Desde essa data, sempre negou com toda força aquelas acusações.

Nem como voluntário de Anistia Internacional, nem como colaborador do ACNUR, nem em nenhuma outra condição, nunca conheci alguém que fosse culpado e pudesse fingir inocência durante 18 anos sem cometer contradição.

B. O Processo Condenatório

Detalhes das Fontes

Dos documentos originais da justiça de Milão contra os PAC, as autoridades publicaram apenas três sentenças e um histórico na Internet:

A sentença 76/88 de 13/12/1988 com registro geral 49/84, de La Corte d’Assise di Milano, que contém os relatórios preliminares e as sentenças de 23 pessoas (entre as quais Cesare Battisti) por diversos delitos dos PAC.

Esse é o julgamento em 1ª instância de todos os 23, que são sentenciados a diversas penas, sendo que Battisti foi condenado a prisão perpétua com privação de luz solar. O documento consta, no total, de 748 fólios e pode ser acessado no site:

vittimeterrorismo.it/archivio/atti/sentenzaPAC1988.pdf

Doravante, para me referir a este, escreverei S88 (Sentença [do PAC] de 1988).

Os outros documentos são usados em meu livro, mas são desnecessários neste resumo. Entretanto, se o leitor deseja esgotar o assunto, indico os links de todos eles.

vittimeterrorismo.it/archivio/atti/sentenzaPAC1990.pdf

vittimeterrorismo.it/archivio/atti/sentenzaPAC1993.pdf

vittimeterrorismo.it/archivio/atti/PAC_iter_storico.pdf

As autoridades italianas não tornam públicos outros documentos: inquéritos policiais detalhados, depoimentos escritos, resultados de perícias, os nomes, fotos e qualificações completas das pessoas envolvidas, vídeos (já possíveis na época), nem, em fim, qualquer coisa que possa ter valor objetivo. Estes quatro documentos são apenas relatos, com “confissões” de delatores e de supostas testemunhas. Tem o mesmo valor probatório que um romance.

Sendo que diversos comunicadores, advogados, “comentaristas” e outros “especialistas” têm tecido uma série de fábulas sobre o processo de Battisti (por exemplo, que havia mais de 10 testemunhas oculares, além do delator), sugiro a leitura desses documentos, especialmente de S88.

Caso Santoro

Depois do primeiro julgamento, começado após de junho 1979, quando Battisti e outros foram detidos, houve uma segunda repressão contra os PAC ainda foragidos, e a maior parte foi capturada. O segundo processo coletivo contra os PAC, seguindo-se à detenção dos últimos membros do grupo, incluindo Pietro Mutti, teve início em 1982, quando Battisti estava no México. Em sua autobiografia, Cesare não pode precisar os detalhes da captura do resto do PAC e apenas fica sabendo que eles foram torturados, eventualmente com tortura química (drogas que produzem alucinações).

Segundo a primeira versão da S88, na página 224, o carcereiro Santoro foi morto por dois tiros de pistola nas ruas de Udine, no dia 06/06/1978, disparados por um jovem que fingia namorar uma garota ruiva. O relato de p. 226, afirma que as declarações de Pietro Mutti a partir do 05/02/1982 modificam a investigação. [Doravante, os números entre parênteses indicam fólios da S88]

Na época, uma fonte confidencial (225), sobre a qual não se sabe nada, teria, segundo o juiz, colaborado na reconstrução da atividade do PAC, feita pela polícia. Naquela reconstrução, montada com novos detentos arrestados no dia 04/10/1979, ficaria provado que os matadores de Santoro eram Pietro Mutti e Enrica Migliorati. Poucos dias depois, os Carabinieri de Udine chegaram à mesma conclusão.

Então, a polícia já tem seu possível culpável e agora a tarefa é encontrá-lo para fechar o processo. Uma pessoa supostamente chamada “Rosanna Trentin” é a primeira que diz ter reconhecido Mutti como motorista no dia do crime. Quando a polícia lhe pede que identifique fotos, porém, diz que não se lembra bem dos detalhes, e a polícia a isenta desta missão. Portanto, a acusação de Mutti pelo MP como motorista do grupo fica anulada.

Os juízes dão à delação de Mutti contra Battisti o maior valor possível. Para tanto, lhe atribuem várias virtudes, como a sinceridade. Mutti teria sido sincero e generoso ao denunciar Battisti e se incluir na morte de Santoro, porque ele já não estava sob suspeita, pois a testemunha Rosanna não o havia identificado pelas fotos. O juiz interpretou essa autoacusação como mostra de seu grande arrependimento.

Segundo o processo, Mutti foi encontrado e preso, talvez entre 12/1981 e 01/1982. No final de 01/1982 já estava prestando declaração no Ministério Público (MP). No dia 28 de janeiro, Mutti fez a delação principal (227):

Quando estive na estrutura dos PAC participei indiretamente do homicídio do [...] Santoro. Fiz o reconhecimento das ruas cerca de uma semana antes do homicídio: por sua vez, participaram na ação o Battisti, Enrica Miglioratti, e outras duas pessoas que não me arrisco a identificar ou lembrar. Quem disparou foi o Battisti. [Grifo meu]

No interrogatório de 08/02/1982, em Milão, Mutti descreve “minuciosamente” a figura de Santoro, e confessa ter dirigido o carro que transportou os matadores. Ainda fornece outros detalhes:

Diz que a pistola era uma Glisenti 10,20, empunhada por Battisti, que a teria procurado na casa de um colega também membro dos PAC; e que Battisti propôs aquele crime durante as reuniões na casa dele (Mutti) e de outro membro dos PAC. Para completar, o delator explica todos os detalhes do estudo do cenário do crime, do deslocamento (229), e da própria execução (230). Mutti descreve o homicídio com três tiros (230, §11), enquanto na versão anterior (224, alíneas 12-13) fala-se de dois tiros.

Finalmente, relata que Battisti e Enrica Migliorati aturam fantasiados, ele com bigodes e barba castanhos e ela com uma peruca ruiva. Ou seja, no caso Santoro, as denúncias de Mutti são as seguintes: (1) Ele como motorista; (2) Lavazza como carona; (3) Battisti como matador; (4) Migliorati contracenando como par romântico.

Segundo S88, p. 231, todos os relatos foram rigorosamente reiterados em todos os interrogatórios posteriores, coincidindo em todas as versões. Apenas houve lieve variazione em três pontos: detalhes das reuniões preparatórias, da partida de Milão de Mutti, Lavazza e a garota, e da troca de disfarces depois do crime.

A diferença de detalhes triviais não altera o valor da declaração, mas o relator reconhece essas variações para fazer a narração mais confiável. Teria sido suspeito que Mutti repetisse tudo várias vezes sem errar em nenhum detalhe.

De acordo com o relatado pelo próprio Mutti, tanto ele como outros membros se sentiam constrangidos pela possibilidade de ter de cometer um homicídio quando foi proposto, por Battisti, o assassinato de Santoro. Eles tinham cometido numerosos roubos, pequenas sabotagens sem vítimas, e ferido três pessoas, mas nunca tinham matado ninguém. Uma morte seria um salto qualitativo (expressão muito usada na S88).

Numa estratégia inteligente para incriminar Battisti (possivelmente já delineada pelo MP e os juízes) Mutti confessa (231, §2) o constrangimento do grupo, que temia entrar numa aventura homicida nunca experimentada.

É incrível o carinho que o juiz dispensa a Mutti, apesar de ser um “terrorista”. O magistrado o protege da observação de um dos defensores que lhe recrimina ter mudado um detalhe em dois relatos do mesmo fato. O juiz justifica o erro, explica que carece de importância, e exorta ao advogado a apreciar o esforço que o delator faz para lembrar os detalhes.

No interrogatório de 15/06/1982, Mutti se lembra de ter comentado o assassinato de Santoro (depois de sua ocorrência) com Cavallina, mas não se lembra em que termos (233). Se o leitor analisa as fontes (especialmente S88) poderá perceber que esta tarefa de complicar novas pessoas no relato não é gratuita.

Mutti e seus “consultores” sempre descrevem os fatos, mostrando que os crimes foram feitos cuidando muito os detalhes. Por que? Dessa maneira, a polícia podia dizer: “Eles não deixaram rastros”. A verdade deve ser que os rastros foram destruídos. Lembre que na época Battisti não estava na Itália e era difícil conseguir objetos dele para colocá-los como falsas pistas.

O relator termina esta parte elogiando a espontaneidade e constância de “arrependido”, bem como sua forma particularizada de narrar os fatos. Destaca a nobreza de Mutti a oferecer esta informação, sendo que nenhuma prova o condenava. Então, ele se tinha tornado delator por pura generosidade e por amor à justiça.

O relator enfatiza que as narrações de Mutti coincidem com os dados objetivos sobre o carro, e também com as declarações de outros “arrependidos”. Destas narrações, só uma é reproduzida na S88. Também diz que tudo coincide com a perícia balística.

Sobre a perícia não se fornece qualquer detalhe, nem se informa onde foram arquivados os objetos originais ou fotografias, nem o nome do perito, nem qualquer outro indício real (237). Menciona-se uma declaração de uma testemunha dita “Ronco” (?) que tinha visto um casal namorando perto do local do crime, porém em atitude suspeita (238).

Afirma-se que os retratos falados (guardados em cartório) dos outros 4 acusados, obtidos das “numerosas e concordantes descrições das testemunhas oculares (?)” coincidem notavelmente com os originais.

Não se fala do motivo de Battisti para matar Santoro. Entretanto, nos escritos de Cavallina percebesse que era ele quem odiava o carcereiro por ter sofrido maus tratos dele. Contudo, Cavallina não é tratado como suspeito, embora seja mencionado como informante.

Massimo Tirelli, de cuja biografia se sabe pouco, declarou durante os interrogatórios judiciais, que um dia foi convidado a uma reunião em casa de Cavallina, com outros membros dos PAC. Quando lá estavam, Tirelli, que permanecia

marginalizado das conversas, percebeu que Mutti, Cavallina e Battisti falavam de Udine, “e lembra que o tom da conversa era muito sério (sic)”. Uns dias depois, quando leu as notícias sobre a morte de Santoro reivindicada pelos PAC, “teve a forte dúvida de que as pessoas que tinha encontrado naquela ocasião pudessem ser os responsáveis do homicídio”.

Em 243, §2, o relatório afirma algo que deveria ser relevante para o tribunal:

As declarações de Mutti relativas à participação de Battisti no homicídio do Maresciallo Santoro, são confirmadas pelos resultados do “procedimento penal” aberto em Udine, e nas declarações de outros numerosos imputados [O Grifo é meu].

O tom entusiasta do anúncio faria supor que a justiça já possuía provas sólidas. Na verdade, essas provas são cinco nomes atribuídos pelos juízes a testemunhas “oculares” do crime de Santoro. São (1) Menegon, (2) Pagano (3) Suriano, (4) Zampieri e (5) Linassi.

Quantos homens e quantas mulheres? Quais idades? Onde moram? Quais são suas profissões? Foram testemunhas em que lugares? O que viram? O que faziam lá? Que dados registraram? Como podemos encontrá-los, se estiverem vivos? Ninguém diz.

Mas, sabe-se que esses cinco viram um casal no dia e local do crime, e que o rapaz parecia mais alto que a menina. Um deles disse que menina era baixa, e outros 4 que era alta. Alguns dizem que era ruiva. Outros dizem que não lembram a cor do cabelo.

O juiz chama essas descrições de eloqüentes (244). Parece comovido pela coincidência entre o relato de Mutti, as descrições oculares, e os dados antropométricos da polícia. Mas, ainda tem uma prova mais contundente da cumplicidade de ambos: Um tal de Berzacola diz que viu uma vez, em uma festa, Battisti e Enrica se beijando. Claro que o casal assassino, então, era esse!

Um testemunho repetido em todos os documentos, oficiais ou não, é da misteriosa Maria Cecília Barbetta. Num depoimento ao Juiz Instrutor de Verona, no dia 12/05/1982, ela afirmaria:

Posso dizer apenas que, na primavera de 1979, falando com Cesare Battisti, ele me disse o efeito que produzia matar uma pessoa, referindo-se ao homicídio de Santoro, do qual se considerava um dos autores.

Mas, ninguém sabe se ela falava a verdade, nem se Battisti falava sério ou com ironia. Pessoas envolvidas em violência têm certa tendência a contar feitos exagerados para aumentar sua imagem.

A partir da pág. 251, o tribunal considera ter dado todas as provas “irrefutáveis” da culpabilidade de Battisti, e se concentra no caso, mais complexo, de Enrica Migliorati, cuja responsabilidade naquela execução parece ter sido real.

Casos Sabbadin e Torregiani

Os fatos relacionados com as mortes de Sabbadin e Torregiani foram investigados por intelectuais franceses amigos de Battisti, que se mobilizaram até a Itália e tentaram reconstruir os fatos. Mesmo assim, a obstrução imposta pelas autoridades italianas permitiu apurar poucas coisas. Mas, algumas se sabem com certeza:

Inicialmente, Mutti, deslumbrado por seus privilégios junto ao MP, tentou acusar Battisti de executor de ambos os assassinatos, mas alguém o alertou de que os fatos foram quase simultâneos. Então, convencionou-se que Cesare seria acusado de planejar, promover e preparar todos os detalhes para ambos os crimes. Não seria suficiente atribuí-lhe “cumplicidade”, porque se pretendia que ele fosse tão culpado como o que apertou o gatilho.

O MP pretendeu vender a história de que Battisti tinha fuzilado Sabbadin, mas essa armação ficou confusa, porque, numa das declarações, o indicaram como executor e, em outra, como parceiro do executor, que foi Diego Giacomini.

O relator da S88 não se furta de manifestar sua admiração pelo informante, agora de maneira eufórica.

As declarações de Mutti, em particular, são iluminadoras, não apenas pela reconstrução dos episódios criminosos, mas também e, sobretudo, porque reformulam a fase do processo que conduziu à realização desses gravíssimos fatos e o enquadram na história da organização. (438, §1)

Aliás, segundo os magistrados, a morte de Santoro reforçava a imagem monstruosa de alguém que matou um carcereiro indefeso. Ora, por que era necessário carregar mais um crime em Battisti? Não poderia distribuir-se a responsabilidade de maneira equânime? Em 1983, quando já tinham muitos “arrependidos”, as autoridades não podiam carregar crimes graves sobre seus delatores, pois, se pegavam penas muito altas, eles não seriam mais úteis à polícia nem ao MP.

Segundo Mutti (442) a idéia de matar Sabbadin e Torregiani foi amadurecida em várias reuniões na sua própria casa onde estava Cavallina e alguns outros, o próprio Battisti e, algumas vezes, Sante Fatone.

Nesta altura, o processo é rico em detalhes que o leitor pode ler entre as páginas 445 e 451 de S88, mas há apenas alguns pontos que são essenciais para o caso Battisti. O mais importante, é a permanente insistência de Mutti no sentido de que Battisti não dava muitas informações sobre o duplo crime que se estava preparando, mas apenas dizia que ele ia acontecer. Também, Mutti e Fatone enfatizam que Cesare não queria ouvir nenhuma oposição ao futuro atentado.

Segundo eles, Cavallina e outros queriam convencê-lo de que o ataque seria impopular, que não produziria nenhum ganho político e que era perigoso, mas Battisti teria insistido assim mesmo. Essa insistência em mostrar Battisti como um fanático do atentado tornaria a ele tão culpado como os que usaram as armas.

Já no caso de Sabbadin podia se fazer mais simples. Se Battisti não era acusado de estar no cenário de morte de Torregiani, então já não haveria contradição ao dizer que ele tinha disparado contra o açougueiro. Foi isso exatamente o que os delatores disseram. Os informantes acusam a Battisti de ser “companheiro” de Giacomini, a quem atribuem ter feito os disparos.

Novamente, o relator se deleita com descrições de “testemunhas oculares” que nem menciona o nome. Todas elas teriam visto um cara de estatura media ou baixa, de cabelos loiros, que acompanhava o executor. Seu retrato falado teria mostrado “parecido significativo” com o cara que matou a Santoro, e também com as fotos originais de Battisti. Entretanto, não se disse se alguém reconheceu as fotos diretamente. Aliás, o relator reconhece depois que Battisti não tem cabelos loiros, mas castanhos. Contudo, diz “loiro e castanho são parecidos”.

A esposa de Sabbadin não quis efetuar reconhecimento por causa do trauma e do próprio medo (449). A verdade é que todas as vítimas de crimes selvagens têm traumas e medos, que são agudos logo após o crime. Mesmo assim, muitas pessoas aceitam fazer esse reconhecimento.

No caso destes crimes dos PAC, não se menciona ninguém que aceitasse reconhecer as fotos ou os suspeitos.

As últimas páginas surpreendem pela escassa aparição de Battisti, e pelas faltas de detalhes sobre seu papel nos assassinatos. Na primeira leitura de S88, isto me chamou a atenção, mas depois reparei que, antes deste relatório houve outros relatórios feitos pela Corte D’Assise de Milano, que continham informação detalhada e, talvez, poderiam entrar em contradição com novas descrições. Fora das declarações de Mutti (especialmente) e de Fatone (em menor proporção), as delações parciais de outros “arrependidos” eram muito curtas. Em geral, contam alguma trivialidade, ou dizem “sim” quando lhes perguntam se Mutti e Fatone falaram a verdade.

Ao que parece, a idéia do MP e sua equipe era que quanto mais simplificado fosse o relato, haveria menos possibilidade de contradição.

Na página 460, se insiste em que as chiamate in correità (delações) não podem ser ignoradas quando encontram confirmação objetiva em perícia balística, relatos de testemunhas, modalidade do episódio e aspectos lógico-dedutivos. Mencionam-se algumas vezes as perícias balísticas, mas elas não foram acrescentadas aos autos. Aliás, as menções são vagas.

Diz-se que tal pessoa tinha uma arma tal e tal, e se acrescenta: “isto foi comprovado pela balística”. Não se sabe o que a balística comparou. Não há relatório de perícia balística. Em vários casos, se afirma que uma arma de Battisti, por exemplo, era a arma do crime, porque ambas tinham a mesma marca e calibre. O relator parece pensar que só existe uma arma de cada tipo.

Não há nenhuma comparação do relevo dos projéteis encontrados nos corpos com os disparados pelos peritos contra alvos brandos, que permitiriam identificar o canhão da arma. Em verdade, nem se diz se isto foi feito.

As testemunhas são também fantasmas. Mencionadas apelas pelo nome, teria sido impossível encontrá-las, mesmo se tivesse existido um novo julgamento, como se faria em qualquer país minimamente civilizado.

Já nessa época existiam na Itália vários documentos de identificação: eleitor, identidade, contribuinte de impostos, condutor de veículos, serviço militar. Através do registro de qualquer um deles as testemunhas poderiam ser imediatamente identificadas. Na S88 não há registro de documentos de nenhuma das testemunhas. Obviamente, o tribunal não tem nenhum interesse em que essas testemunhas sejam identificadas.

Ao falar de modalidade do crime, se pretende que cada criminoso tem sua marca registrada. Em algum momento, um dos delatores fala de que os assassinatos eram do estilo de Battisti!

As referências a deduções lógicas são grotescas. A maior parte das “deduções” usadas no relato são inferências indutivas precárias, sem base empírica. Por exemplo, Battisti usava saltos relativamente altos em seus sapatos. Então, como um dos criminosos parecia ter saltos altos, devia ser ele.

Caso Campagna

Novamente, a pessoa que inicia a delação é Mutti. Embora esta insistência em usar Mutti possa criar suspeitas sobre a seriedade das acusações, também serve de precaução. Se a esta altura dos acontecimentos fosse introduzido um novo delator, poderiam aparecer contradições mais chocantes que as redundâncias. Aliás, os indícios mostram que Mutti tinha grande imaginação e armava histórias muito convincentes, embora às vezes fosse descoberto.

Ele disse que encontrou Battisti e que este se atribuiu o crime de Campagna (512).

A polícia diz que umas pessoas (quais?) denunciam um jovem loiro, vestido com uma jaqueta de couro. Battisti também tinha uma jaqueta de couro. O relator reconhece de novo que Battisti não é bem loiro, mas, pelo menos (acrescenta), seus cabelos são castanhos claros! (522)

O tribunal se enfronha na apreciação de coincidências meio cabalísticas, por exemplo, quantos meses passaram entre um crime e outro, ou em que dia de semana foram executados, por que a maior parte dos crimes foi com cinco tiros (553), e daí aponta uma coincidência mais importante: nos últimos crimes usou-se a mesma pistola... mas, na última linha, o relator retifica “ou, pelo menos, o mesmo calibre”.

O relator usa os mais rançosos preconceitos da velha criminologia italiana. Para ele, a personalidade de Battisti é compatível com este tipo de crime. (524)

O protagonismo de Mutti não tira sua parte de mérito a Fatone. Este conta: “Memeo me diz que um dia vamos especialmente matar o Campagna” (525). Mutti arredonda sua colaboração declarando assertivamente: “Battisti e Memeo foram os atores materiais. Battisti disparando e Memeo guiando o carro” (527, 1ª linha).

O relator parece tão identificado com a narração dos informantes, que em alguns momentos esquece de citar ou escrever em estilo indireto e descreve a situação como se ele tivesse sido testemunha dos fatos (528).

C. Os Fatos Irregulares

Torturas Prévias

Antes de atingir o privilégio de “arrependidos” e ter direito a desconto nas penas, os informantes foram “abrandados” por meio de torturas.

No relatório de 1979, Anistia Internacional denuncia a contínua detenção, sem julgamento, de grupos de pessoas relacionadas com a Autonomia Operária. O texto não cita expressamente os PAC, mas quase todos seus membros eram oriundos da Autonomia Operária e poderiam estar incluídos nessas detenções.

Sem nomear os atores explicitamente, AI denuncia as torturas que foram aplicadas a 9 pessoas detidas em relação com o homicídio de um joalheiro em Milão.

Pela data da denúncia (04/1979), só pode referir-se ao nosso antigo conhecido, o joalheiro Torregiani. Ao mesmo tempo, os investigadores de AI receberam na época denúncias de maus tratos nas prisões e especialmente nas delegacias, consistentes em pancadas, posições dolorosas, afogamento, chicotadas, chutes e queimaduras leves.

Valério Evangelisti, escritor e militante de Direitos Humanos, ao responder para uma revista as perguntas sobre Césare Battisti, foi interrogado sobre as torturas:

( Os magistrados torturaram os presos?

(Não. Foi a polícia que os torturou. Foram ao todo treze denúncias: oito provenientes de acusados e cinco de seus parentes. Não que seja um fato inédito, mas é, até certo ponto, insólito, em se tratando de uma investigação daquele tipo. Os magistrados se limitaram a receber as denúncias para depois arquivá-las.

Veja a íntegra desta entrevista em:

Um dos membros menos ativos dos PAC, Sisinio Bitti é quem descreve com maior detalhe o processo de humilhações e torturas às quais foi submetido. Ele tinha sido detido, com muitos outros, pelo assassinato de Torregiani e foi obrigado a confessar sob tortura.

Em 25/01/80, Sisinio Bitti pede para ser novamente escutado pelos magistrados de Milão na presença do promotor Armando Spataro, e declara:

Retiro tudo o que eu disse durante os interrogatórios do caso Torregiani, pois fui induzido a fazer essas declarações por causa das torturas que sofri de parte da policia. Começaram a bater-me e perguntar-me o que eu sabia sobre Torregiani e eu disse que não sabia nada, absolutamente nada a este respeito. Havia uma pessoa que me espancava nas costas e outra que, sentada numa cadeira, apertava as têmporas com os punhos e me pressionava sob as orelhas.

Outro me espancava na entreperna, no estômago e nos testículos. Algo depois fui colocado perto de uma torneira […] onde me obrigaram a deitar-me num banco de madeira. Aí, fui forçado a beber a água que chegava por um tubo conectado à torneira, aberto ao máximo. Ao mesmo tempo outra pessoa me espancava o estômago com os joelhos, me obrigando a vomitar a água engolida.

Tudo isto se repetiu três ou quatro vezes, sempre acompanhado das mesmas perguntas e respostas. Depois de tudo isso, eu desmaiava e ouvia a Marco Masala gritar. Alguém veio perguntar-me se Marco sofria de ataques de epilepsia e falou que o levariam a um hospital. [...]

Fui levado a um local pequeno, onde, lembro, tinha muitas tábuas […]. Fui despido e depois de ter sido amarrado com cordas fui estendido sobre a mesa de costas, com os braços e as pernas atados, e começou uma série de torturas ao final das quais já não podia resistir. Então, admiti na frente dos policiais tudo o que eles pretendiam que dissesse. Depois, eu confirmei aquilo, sempre pelo medo do que poderia acontecer. [...] Também me puseram sobre o estômago e o tórax uma coberta, e uma pessoa de cerca de 40 anos, com óculos pretos, que parecia importante, me espancava com uma bengala no tórax, me dizendo:

( Fala bastardo!

( Realmente, não sei nada do homicídio de Torregiani.

Enquanto a pessoa me seguia espancando, me perguntava:

( Não conhece Ângelo?

Então falei e descrevi o único Ângelo que conhecia[8].

Julgamento em Ausência

Se o réu não se encontra no local em que está sendo julgado, nem está vinculado a ele por um sistema de vídeo-conferência, não será possível formular-lhe nenhuma pergunta. É óbvio, então que julgamentos a revelia podem oferecer alguma garantia ao réu, exclusivamente quando todas estas condições se satisfazem:

1. Possui absoluta confiança em seus advogados.

2. As provas sobre o caso foram conferidas, e são consideradas suficientes como para não ser necessária nenhuma informação emergente.

3. Sua condição de culpado/inocente é de domínio público e não precisa ser aferida do processo de julgamento.

4. Tem garantido um novo julgamento, se este lhe for desfavorável, além dos recursos e apelos que a lei permita.

Mas este raciocínio traz conseqüências perigosas. Se não admitimos a necessidade de que o réu assista a sua defesa, podemos imaginar que o direito de defesa fica submetido ao acaso, ou quase isso.

Isto é extremamente importante para uma visão humanitária da punição. Inclusive grandes genocidas, como oficiais das SS, os líderes da ditadura grega de 1967, e os criminosos militares da ditadura argentina de 1976, foram julgados quase sempre em presença. Em alguns casos, o juiz emite ordem de captura, mas sem pronunciar ainda sentença.

É frequente ouvir a afirmação de que o réu a revelia está abandonando sua defesa e, portanto, se ele for condenado, estará recebendo um castigo produzido por sua própria desobediência. Isto significa que um sujeito suspeito de um crime que não cometeu, punível com 30 anos de prisão, poderá receber essa condenação se o tribunal decidir que sua ausência tende a confirmar sua culpabilidade. Uma pena desproporcional para um ato de contumácia!

Na França e em todo país civilizado (ou, até, semicivilizado), o réu teria direito a um novo julgamento, mas, no caso de Battisti, teria direito à anulação, pois essa paródia de julgamento foi um ato forjado e falso de qualquer ponto de vista.

Voltando mais pontualmente ao assunto do Julgamento em Ausência, seria bom lembrar que esse tipo de processo está em ampla discussão na União Européia, possui grandes, muitos e eminentes inimigos, e é aceito em algumas circunstâncias sob grandes ressalvas.

O Sistema de Justiça Penal do Reino Unido publicou recentemente (04/06/2008) o documento intitulado: Enhancing procedural right and judicial co-operation in EU: Proposed Framework Decision on new rules for cross-border case where judgments are made in absentia[9]

Neste documento se formula uma consulta a 11 entidades européias, que não incluem organizações humanitárias, o que sugere que se está tomando como amostra o setor mais conservador do espectro dos Direitos Humanos. Entre as consultadas há associações de magistrados e até da polícia. Apesar disso, vejam como a resposta é cautelosa (pág. 8):

Todos os que responderam coincidiram em que deve existir o direito de novo julgamento, quando um estado membro [da União Européia] procura a rendição de uma pessoa, e não apenas o direito a solicitar o novo julgamento. [...] O governo concorda plenamente com esta posição e, em particular, adverte que os novos julgamentos devem permitir a presença da pessoa afetada, um novo exame dos méritos do caso, incluindo evidência recente, sendo que o efeito da original revisão deva, possivelmente, ser revertido. Estes pontos de vista são compartilhados por outros Estados Membros, e esperamos que o texto seja emendado desta maneira. [Grifos meus]

No caso de Battisti, o julgamento foi feito em ausência por crimes sobre cuja autoria não existiam provas, nem testemunhas isentas, nem defensores idôneos, num contexto onde não era permitido um novo julgamento.

Neste caso, funciona o argumento oposto: Battisti fugiu porque sabia que não teria um julgamento limpo.

Dissociados e Delatores

Um dissociado, na gíria introduzida pela justiça italiana, é um ex-ativista que renega de seu grupo de origem, para dissociar-se das futuras ações deste. Se o afastamento ou dissociação for premiado com desconto de pena como reconhecimento à decisão do réu, então é uma medida humanitária. Ora, se o desconto exige informações sobre outras pessoas, o dissociado é apenas um simples delator.

Em síntese, o dissociado não precisa ser delator, mas o fato de dissociar-se (de acordo com a justiça italiana) não vai ter nenhuma utilidade prática se ele não se tornar delator. Então, a distinção é ociosa. Na Itália, os delatores são chamados “colaboradores da justiça” ou pentiti (arrependidos). Como diz Battisti em Minha Fuga sem Fim, o arrependido judicial não é aquele que foi perdoado pelo padre, mas aquele que colabora prejudicando os outros.

Este método tem sido fortemente criticado pelo ministro do STF brasileiro Marco Aurélio de Mello, logo após a primeira sessão do julgamento de Battisti . Veja a notícia da Folha On Line de 11/09/2009:

Outra linha do voto de Marco Aurélio será mostrar que, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, a delação premiada de outro envolvido não serve para condenar alguém. "É muito fácil livrar a própria pele desse jeito. E, neste caso, foi justamente o chefe do grupo que o delatou."



A delação premiada foi inventada para poder “fechar” casos, colocando a culpa em alguém, tirando da população o sentimento de insegurança e a mágoa de que o crime fique impune. Nos Estados Unidos e na Itália esta instituição é muito popular, porque os promotores ganham grande prestígio em sua comunidade ao descobrir o suposto autor de um crime. Até filmes baratos da TV mostram que a proporção de erros neste tipo de investigação é astronômica.



Em muitos países existem figuras jurídicas para caracterizar àqueles membros de gangues que decidem fazer um acordo com a promotoria para obter uma redução em suas penas em troca de informação útil, desmantelar um bando, recuperar bens roubados, ou para fins semelhantes. Numa minoria de casos muito especiais, esta “colaboração” com a justiça pode ser eficiente, por exemplo, quando seja possível a verificação imediata e direta. Se um promotor faz um acordo com um traficante, e ele promete mostrar onde foi guardado um carregamento de heroína, o promotor poderá pagar a promessa depois que a droga for encontrada. Mas, é claro que a tentação de livrar-se de parte da cadeia será muito forte, mesmo que produza prejuízos a um inocente.

No caso particular de Mutti, houve inclusive uma reação dura de um dos advogados defensores. Apesar de que a defesa de Battisti foi substituída pelo tribunal por advogados “fajutos” cujo objetivo era deixar que as acusações do MP passassem em objeção, entretanto, alguns dos outros detidos tinham defensores reais. Mutti, em sua paranóia delatora começou a complicar outros detentos, e não apenas Battisti. Um dos advogados (possivelmente de uma garota chamada Marisa Spina, à qual Mutti queria complicar num crime para inocentar uma amiga dele) se manifestou com energia:

Este processo tornou-se assim um puro lugar de contos da parte do “arrependido”, que está interessado nos benefícios dos prêmios dados pela lei. Esta circunstância sozinha priva de todo respeito intrínseco a narração do delator. Pois, em concreto, deve ter-se presente que o principal “colaborador da justiça”, Pietro Mutti, tem acusado falsamente pessoas inocentes, para depois se retratar quando aparecem provas que o desmentem. (S93, p. 19) [Os Grifos são meus]

Depois de ler isto, fiquei surpreso de que o presidente do tribunal permitisse transcrever um texto que parecia mostrar a fraude. Entretanto, a justiça não queria prejudicar os outros réus, mas apenas Battisti. Era impossível impedir o registro dos excessos de Mutti sem levantar suspeitas sobre todo o julgamento. Inclusive, a confusão montada por Mutti foi tanta que, em alguns momentos, o delator foi ameaçado com ter seu benefício anulado.

Este ponto é crucial para entender o sistema todo. O julgamento do PAC nas três instâncias não foi irregular em geral, mas apenas no relativo a Battisti.

Importantíssimo!

Falsas Procurações

Battisti conta para os jornalistas que os ativistas em fuga deixavam folhas de papel assinadas, para que amigos e familiares as pudessem utilizam em caso de precisar usar a autorização do fugitivo. Um uso habitual era para escrever procurações. Como nem sempre podia saber-se qual seria o advogado mais adequado para contratar, o nome ficava em branco, e o procurador o preencheria quando encontrasse o defensor certo.

Em 1979, logo que foi preso, Battisti assinou uma procuração para ser defendido, mas esta não era em branco, porque ele estava mesmo na Itália; continha um texto manuscrito onde dava poderes de representação a sua defesa. Quando fugiu para França, Cesare deixou duas folhas assinadas em branco, que confiou a seus amigos do já dissolvido PAC.

Segundo a reconstrução dos fatos feita com o concurso das lembranças de várias pessoas, essas duas folhas assinadas foram entregues a dois advogados de Milão, Giuseppe Pelazza e Gabrieli Fuga. Possivelmente, o próprio Mutti ou algum outro arrependido foram os entregadores destas procurações para que o tribunal pudesse assumir que Pelazza e Fuga (que jamais viram Battisti) eram verdadeiros defensores.

O plano estava bem pensado. Se uma pessoa era julgada a revelia, numa situação tão delicada, haveria ondas de protesto contra a condenação. Mas se ainda essa pessoa não tinha advogados o escândalo seria maior. Então, os juízes usaram estes falsos defensores como cortinas de fumaça para fingir que Battisti estava realmente defendido.

Ora, essas duas procurações deviam ser falsificadas. Como fazer? A assinatura não era problema: Battisti tinha assinado as duas folhas em 1981. E o texto? Para isso foi usada a procuração real que Cesare escreveu em 1981. Pronto, Pelazza e Fuga já tinham suas procurações e podiam inscrever-se como verdadeiros defensores. Não podia alegar-se que Battisti foi julgado sem defesa. Os advogados eram ao mesmo tempo defensores de outros membros do PAC, que também atuaram como delatores, subordinados a Mutti, e confirmando as mentiras deste.

Entretanto, Pelazza não tinha interesse em fazer condenar Battisti e se sentiu no meio de um jogo de interesses. Escreveu finalmente uma carta onde dizia que o réu não teve oportunidade de uma verdadeira defesa, que não poderia acontecer sem a sua presença.

Até um dos mesmos advogados falsos, sentiu a necessidade moral de dizer que Battisti não tinha uma verdadeira defesa.

O próprio Battisti não sabia que existiam procurações, nem advogados, nem que estava sendo julgado! O fato foi descoberto muito depois (em 2005), por sua advogada francesa Elisabeth Maisondieu-Camus, seu advogado Eric Turcon, e a escritora Fred Vargas. Aquela procuração legítima de 1979, que estava com os membros do PAC, foi copiada por decalque sobre cada uma das folhas em branco. Depois foram colocadas datas diferentes (maio e julho de 1982) para evitar a suspeita de que tinham sido “fabricadas” juntas. Ainda, outra procuração foi falsificada em 1990, para o julgamento da apelação.

A técnica francesa Evelyne Marjanne, do Tribunal de Apelações de Paris, demonstrou, em 2005, que o exame grafológico mostrava as fraudes: as cartas manuscritas tinham sido decalcadas da original (pois os traços se superpunham perfeitamente, algo que tem probabilidade zero quando é feito ao acaso), e a carta de 1990 era datilografada encima de folha em branco assinada por Battisti em 1979.

Um fato que não está bem esclarecido e do qual nem Battisti nem seus amigos advogados se pronunciam é que os advogados Fuga e Pelazza foram presos, com acusações difusas de subversão, pelo promotor Armando Spataro (um funcionário tipicamente vingativo e maniqueísta), e depois foram liberados. Creio que a melhor hipótese é que sua liberdade foi negociada pela participação nesse julgamento.

Mas este texto não seria suficiente para expor todos os detalhes dessa fraude brutal. Veja mais detalhes em:



D. Falsas Provas

Somente os que acreditem cegamente no aparato policial-judicial italiano (ou simulem acreditar) podem ter “provas” de que Battisti cometeu alguns dos homicídios. As únicas provas a que se refere este documento S88, são a palavra dos dois delatores principais (Mutti e Fatone) e a dos magistrados (mais algumas confirmações frágeis feitas pelos outros “arrependidos”.)

Não sei se o título adequado a esta seção é Falsas Provas, porque, de fato, não existem provas! Será que algo que não existe pode ser falso?

Em alguns pontos disseminados pela S88, o redator do texto fala de que “tal coisa foi comprovada pela balística”, “tal outra pelos rastros”, etc., mas nunca se diz o que foi o comprovado, nem quem fez, nem onde ficou a prova, nem foram apresentados os relatórios de perícia. O único que conseguiu “provar” o relator é que para vários crimes se usou uma arma de mesmo calibre. Nenhum dos testes que a tecnologia da época permitia aplicar (incluída a análise do grupo sanguíneo) foi realizado.

Não se mencionam exames feitos no interior dos carros roubados, para comprovar a existência de rastros dos ocupantes, ou marcas de algum tipo, ou objetos pessoais perdidos. Fala-se da maneira de vestir e de disfarces dos assassinos, mas não se mencionam perícias sobre roupas, barbas postiças, perucas, etc.

Enfim, o leitor que leia com alguma atenção (não precisa muita), a parte essencial da S88, que não ocupa mais de 80 páginas com letras grandes, perceberá que não há nenhuma referência a provas concretas. Afirma-se sim que tudo foi provado, mas ninguém diz como, nem o que foi encontrado. Durante o processo de Battisti no Brasil, alguns advogados, operadores de direito e professores, junto com jornalistas e outros, têm afirmado a existência de “provas claras” com grande estardalhaço. É óbvio que nem a pessoa mais alucinada poderia ter encontrado menções de provas nesse texto. Recentemente, porém, alguns ativistas de direitos humanos têm observado que a veemência com que algumas pessoas se referem às “provas” do caso Battisti evidencia que estas pessoas estão comprometidas com o governo italiano, criando na opinião pública o consenso contra Battisti.

Pessoalmente não tenho nenhuma prova, mas pessoas estão fazendo viagens frequentes à Itália e voltando com “novas” pretensas informações que incriminam a Battisti. É óbvio que: (1) se essas provas existissem, a Embaixada Italiana já as teria divulgado e já seriam de domínio público; (2) ninguém precisa cruzar atualmente o Oceano para conseguir informação.

Falsas Declarações

As falsas declarações podem dividir-se em: (1) As informais. (2) As que aparecem como testemunho. As informais são muitas, e quase nenhuma merece o menor comentário, mas quero referir-me apenas a de Armando Spataro, que por ser um importante funcionário compromete, em suas declarações, o MP.

No jornal Corriere della Sera de 23 de janeiro de 2008, quando ainda não tinha começado o julgamento no Brasil, este promotor diz que “Battisti executou Torregiani”. Ora, não é de esperar-se que um juiz e promotor com mais de 30 anos de experiência, use termos sem o devido significado. O que a S88 diz é que Battisti é responsável da instigação, planejamento, controle, etc., do assassinato de Torregiani. Ou seja, é o culpado intelectual. Mas não diz que ele executou, ou seja, que empregou a arma que matou Torregiani. Pelo contrário, o assunto de ter matado a Torregiani ficou esquecido para que não pudesse novamente levantar-se o problema da simultaneidade.

Spataro, quando recém se falava de Battisti no Brasil, pensou que acusar Battisti de executor causaria mais impressão e ajudaria a apressar as coisas. Ele não pensava que alguém no Brasil tivesse lido os autos, nem que soubessem onde ficava Milão. Mas, enganou-se. Como esta falsa declaração houve centenas, mas esta é uma que mostra bem esta suja maneira de agir.

Quanto às testemunhas, todas as que são referidas em S88 estão nesta tabela. Qual é a credibilidade que você daria a estas “informações”?

|Nome |Qualificação |O Que Viu |O Que Prova |

|Duas testemunhas |Desconhecida |O carro dos matadores de Santoro|Que viram um carro branco,|

|?? | |saindo. |Simca ou Fiat. O |

| | | |encontrado depois era |

| | | |Simca. |

|Rosanna Trentin |Desconhecida. Pelo nome, deve ser |Acreditou reconhecer Mutti no |Sem conclusão nenhuma. |

| |mulher. |lugar do motorista, mas depois | |

| | |afirmou não poder reconhecer | |

| | |fotos. | |

|Menegon |Desconhecida, inclusive primeiro |Os cinco viram um casal abraçado|Supondo que essas |

| |nome e sexo. |no cenário da morte de Santoro. |testemunhas são reais, |

| | |Dizem que ambos eram jovens, e |prova que realmente havia |

| | |que o rapaz era algo mais alto. |um casal de jovens |

| | | |abraçados (algo nada |

| | | |especial). |

|Pagano | | | |

|Suriano | | | |

|Zampieri | | | |

|Linassi | | | |

|Ronco |Desconhecida; nome próprio ou |Viu um casal namorando, mas lhe |Prova que Ronco, quem quer|

| |sobrenome? |pareceu suspeito. |que seja, desconfiava de |

| | | |casais jovens. |

|Esposa de Sabbadin |Conhecida |Não testemunha nada porque diz |Como não declarou nada, |

| | |ter medo (sic). |não pode provar muito. |

Cadê Pietro Mutti?

Porque Mutti desapareceu da vida pública e nunca falou das torturas? Esta dúvida é explicada pela delação premiada. A pena de Mutti foi praticamente extinta. Ele passou alguns poucos anos trabalhando junto à polícia até que todo o aparelho de esquerda foi destruído. Se ele tivesse dito que Battisti era inocente e que ele (o próprio Mutti) tinha sido torturado, sem dúvida não conseguiria escapar de uma represália de dimensões incalculáveis. O MP não precisava de todos os testemunhos dos arrependidos. Era suficiente alguns deles e inventar em cima disso.

Numa reportagem que a revista italiana Panorama diz ter feito a Pietro Mutti, o jornalista que redigiu a alegada entrevista se esforça por pintar uma imagem não apenas muito humana do famoso pentito, mas também rodeada de uma espécie de santidade. Mutti tem as mãos endurecidas pelo trabalho, é modesto, silencioso, compreensivo.

Nega ter vivido sob falsa identidade, ou sob a proteção que a justiça concede aos traidores de outros acusados, para evitar vinganças. O jornalista se surpreende com a coragem do ex-arrependido (faz sentido esta palavra?), mas não diz que Mutti nunca precisou falsa identidade, primeiro, porque as pessoas que ele traiu, especialmente Battisti, estão todos dispersos. Nenhum deles pertence a um grupo armado atualmente. Além disso, por que, mesmo que use o verdadeiro nome, ninguém encontra a Pietro Mutti?

O jornalista diz que ele faz uma vida familiar, que ganha um salário médio, que trabalha o dia todo. Mas, não diz onde vive, como é possível encontrá-lo, qual é seu e-mail, não apresenta uma foto atual. Sejam próprias de Mutti, sejam inventadas pelo jornalista, as palavras atribuídas a ele mostram bastante do caráter sórdido daquele julgamento. Tudo o que segue consta em Panorama:

Mutti disse que Battisti era um oportunista, um criminoso comum, não um intelectual (sic!). Diz que ele estava com os PAC porque isso lhe dava prestígio. De acordo com a reportagem, quem quer que seja o entrevistado, este se refere a Battisti com desprezo, como assaltante frio, uma maneira de qualificar os “comuns” frequente nos guerrilheiros improvisados que se acham uma elite da violência, enquanto os outros são apenas aventureiros.

O “Mutti” gaba-se de que suas “chiamate in correità” (ou seja, delações) sempre foram críveis. Confessa-se autor de um homicídio e “se engasga” ao falar nisso e lembrar os filhos da vítima. Toda esta conversa transcorre num bar, um lugar pouco discreto para alguém que os melhores jornalistas independentes de Europa não conseguem encontrar. De resto, toda esta reportagem é uma repetição quase exata das falas de Mutti registradas na SS8. Para isto, são existem duas explicações: ou autor da matéria sabia bem a história e a escreveu com cuidado, ou realmente foi o Mutti que nunca se esquecerá daquela sua façanha como delator.

Vários jornalistas aos que perguntei opinião (não apenas franceses, mas também latino-americanos), acham esta entrevista falsa, e acreditam que “ninguém sabe” onde está o Pietro. Não é necessário ser protegido como testemunha depois de 30 anos, quando o grupo ao qual pertencia se desmanchou. Se o que ele prefere é esquecer aquele passado violento, então tampouco ofereceria uma reportagem como esta. A dúvida principal dos que mergulharam no assunto é se está morto ou escondido. Pessoalmente, penso que está vivo. Não faria sentido para a polícia de Milão mandar matá-lo. Pessoas como Mutti há muitas em todos os cantos e aproveitam os lucros das “chiamate in correta”, vivendo uma vida prazerosa num local também agradável.

Como foi o Julgamento de Battisti

Provas Materiais

Nenhuma.

“Testemunhas” (assim chamadas):

ª De Duas se conhece nome e sobrenome.

ª De Duas não se conhecem nem nome nem sobrenome.

ª De Seis se conhece apenas um nome ou apelido.

ª Algumas são crianças e outras são doentes mentais.

São 10 no total. Destas:

➢ Uma diz que não pode reconhecer fotos.

➢ Outra diz ter medo de falar.

➢ As duas “sem nome” dizem ter visto um carro Fiat ou Simca.

➢ Outras cinco dizem ter visto um casal jovem, onde o rapaz era “algo” mais alto que a garota.

Advogados

Desconhecidos pelo réu, com procuração falsa.

Declaração por meio de:

Tortura num começo.

Delação Premiada na fase central do processo.

Modalidade do Processo

Ausência do réu e desconhecimento de que estava sendo processado.

E. Situações de Exceção

Um juízo de exceção não precisa de um tribunal de exceção. As leis que se aprovaram durante a Estratégia de Tensão poderiam considerar-se especiais, comparando-as com as que qualquer outro país da Europa. Eis o que explica Valério Evangelista numa das reportagens que lhe foram feitas.

( Por que o processo Torregiani, depois estendido a todos os casos dos PAC, não foi regular?

( Façamo-nos claros: não foi regular senão no quadro das distorções da legalidade introduzidas da assim considerada “emergência”. No âmbito do direito geral, o processo estava viciado de pelo menos três elementos: o recurso à tortura para estorcer confissão na fase de investigação, o uso de testemunhas menores de idade ou com distúrbios mentais, a multiplicação das imputações com base nas declarações de um arrependido de confiabilidade incerta, além de outros elementos menores.

Novas Penalidades

Itália não aplicou diretamente o estado de sítio (stato d’assedio), porque alguns setores da própria DC (como Mariano Rumor) se opuseram, com receio de que isso pudesse conduzir a uma ditadura. Entretanto, não houve problemas para emitir decretos e aprovar leis que tornassem o sistema repressivo ao máximo. Não existiu uma lei como o AI5 brasileiro, mas os efeitos do Ato se distribuíram em leis várias.

Em alguns casos (como no julgamento de Battisti no STF em 09/09/2009), os procuradores da Itália insistem em afirmar que o país não gerou um estado de emergência arbitrário. Ora, tampouco os opostos ao OG afirmam isso. De fato, os governos italianos entre 1969 e 1980 tiveram apóio político para introduzir leis específicas que evitassem o aspecto chocante do estado de sítio*.

❖ Em maio de 1975, aprova-se a lei proposta pelo deputado Reale, que permite aos policiais ignorar os poderes dos magistrados, um fato que causou grande escândalo em nível mundial.

❖ A polícia poderá arrestar qualquer um com base no critério pessoal, sem mandato judicial.

❖ O suspeito poderá sem interrogado sem a presença de um advogado, o que viola o artigo 3 de Constituição Italiana.

❖ Em setembro de 1979, o decreto de Cossiga estende a prisão preventiva e autoriza os grampos, quase sem nenhuma restrição, contra os artigos 15 e 27 da Constituição.

❖ Os delatores obtêm vantagens extras, pudendo ganhar anos em proporção às delações feitas. Isto induz a muitos deles a denunciar tantas pessoas como precisam para abater toda sua condena.

❖ Um decreto de abril de 1974 autoriza a prisão preventiva progressiva de indiciados em julgamento, passando de 4 anos no primeiro, para 6 no segundo e 8 no último. A pena pode ser aumentada até 12 anos, por acusações de terrorismo.

❖ O livro 2, título 1 do código penal da época (que possui atualmente poucas modificações) dedica 73 artigos a punir crimes políticos da mais diversa e difusa natureza, incluindo associação subversiva (art. 270) e conspiração (art. 305).

❖ No mesmo documento, alguns artigos punem “delitos fetichistas” como vilipendiar a nação ou as cores da bandeira, anacronismos já eliminados os países mais avançados. Esta sacralização de pessoas jurídicas ou de símbolos foi “amenizada” em 2006, reduzindo a pena máxima a dois anos!

Além disso, os processos são tão massivos que grande parte dos réus deve esperar de maneira indefinida. Em 1978, 62% aguardavam julgamento. Em 1980, as prisões albergavam 4 mil detidos políticos.

O mais aberrante, porém, foi a criação de uma classe especial de crime. Violando o mais básico princípio jurídico de Ocidente (A pena não passa da pessoa do infrator), todos os membros de uma quadrilha podiam ser punidos pelo crime individual cometido por um deles[10].

F. Impunidade dos Stragisti

Se Battisti e muitos outros de diversos grupos de esquerda foram condenados sem provas (em outros casos, com poucas provas), todo o oposto aconteceu com os megaterroristas, fossem neofascistas (a maior parte) ou membros das forças armadas e de segurança, ou de partidos políticos.

Os stragi e os assassinatos com eles vinculados poucas vezes puderam ser apurados, pois sua investigação foi congelada ou ficou pendente até os dias de hoje, sem que exista uma data certa para sua retomada. Na tabela seguinte, vou expor de maneira esquemática a situação. Para lembrar os detalhes de cada strage, veja a tabela do capítulo 1, pois o alinhamento é o mesmo.

|Data |Evento |Passos da Investigação |Resultado |

|12/12/69 |Massacre de Piazza |O governo culpou aos anarquistas. São detidos |Em 1999, o General Giandelio Maletti, ex-chefe de um |

| |Fontana em Milão. |o operário Pinelli e o dançarino Valpreda, |SSc confessou que Ordine Novo, filiado ao OG, cometeu o |

| | |ambos anarquistas. Pinelli é assassinado pela |atentado para culpar à esquerda. |

| | |polícia, sendo lançado (vivo ou morto?) de um |De fato, os fascistas de ON, chamados Pino Rauti, Franco|

| | |4º andar. Valpreda fica preso durante anos, |Freda e Giovanni Ventura são detidos. Comprova-se que |

| | |sem prova nenhuma. |Freda comprou e guardou os explosivos. Em 74, começou a |

| | | |ser julgado. Em 78, sumiu. Em 79 foi condenado a |

| | | |perpétua em ausência. Foi extraditado de Costa Rica. Em |

| | | |81, trocaram a prisão perpétua por 15 anos. Em 85 foi |

| | | |absolvido. Ventura também foi absolvido. |

|08-09/ |Bombas-Teste em Trens.|Não houve investigação. Estes fatos foram |Sem Resultado |

|08/69 | |atribuídos a esquerda como rotina. Soube-se | |

| | |que os autores eram de Ordine Novo. | |

|12/12/69 |Bombardeios |Sem dados |

| |simultâneos em Roma. | |

|22/07/70 |Bombardeio a um Trem | |

| |na Calábria. | |

|1972 |Bombardeio de três |Como era habitual, o primeiro passo foi procurar membros da esquerda, mas a investigação não progrediu.|

| |policiais. |Em 1984, Vincenzo Vinciguerra, já preso, confessou ter cometido o ataque. |

| | |Este é o único dos grandes atentados da direita, cujo autor não foi liberado. |

| | | |

|17/05/73 |Ataque a Quartéis da |Atribuído a Gianfranco Bertoli que se |Bertoli esteve preso vários anos. Liberado, morreu em |

| |Polícia |identificou como anarquista. Em 1990, |2000. Considera-se improvável que tenha agido por própria|

| | |descobriu-se que era um informante do SID e |iniciativa, mas o processo foi encerrado. |

| | |membro de Gladio. Os SSc negaram participação|Resultado Incompleto |

| | |no fato. Em 2002, um ex-diretor do SISMI | |

| | |disse que Bertoli era sim um informante do | |

| | |SIFAR e do SID. | |

|11/73 |Explosão de Aeronave |Não Apurado |Segundo altos mandos militares, o atentado foi |

| |Argos 16. | |responsabilidade do OG. Nada mais se conhece. |

| | | |Sem Resultado |

|05/1974 |Bombardeio de uma |Sem Resultado |

| |passeata antifascista.| |

|28/05/74 |Massacre in Piazza |Em 03/2000, a justiça acusou de novo a Bertoli, e |A Suprema Corte admitiu que o crime provinha dos |

| |della Loggia. |considerou seus cúmplices três membros de Ordine |fascistas, mas afirmou não ter provas para condenar |

| | |Novo, Maggi, Bofelli e Neami, e um coronel do |aqueles quatro. |

| | |exército. Bertoli foi condenado a perpétua, mas |Sem Resultado |

| | |faleceu antes. | |

|08/74 |Bomba em Trem |Mario Tuti, fascista suspeito do ataque ao trem, |A Suprema Corte anulou a sentença, e Tuti foi |

| |Italicus. |autor de outros atentados menores, foi condenado a|absolvido na apelação. |

| | |20 anos. |Sem Resultado |

|20/08/80 |Bombardeio na Estação |Os magistrados suspeitaram de neofascistas, mas |Fioravanti foi condenado a perpétua, mas em 1999 |

| |Central de Bolonha. |não puderam conseguir provas dos SSc. |recebeu liberdade condicional e está livre desde |

| | |Foram convictos Valério Fioravanti e Francesca |abril de 2009. |

| | |Mambro (membros do NAR) como autores, e Licio |Sua esposa, Francesca Mambro, acusada de 95 |

| | |Gelli, seu secretário e vários oficiais por |assassinatos, e foi colocada em liberdade |

| | |acobertamento. |condicional desde 2008. Os outros implicados não |

| | | |foram condenados. |

| | | |Resultados Parciais |

|23/12/84 |Trem Bombardeado em |Nenhum Resultado |

| |Movimento. | |

Observação Importante

Olhando na coluna da direita, se pode ver que a maior parte dos processos sobre os stragi não obteve resultado nenhum, e que apenas um teve resultado completo por enquanto. Deve analisar-se o capricho dos juízes, dos tribunais e da Suprema Corte para não condenar a ninguém sem uma quantidade esmagadora de provas. Inclusive, mesmo com excesso de provas, alguns indiciados, como Tuti, ficaram livres.

Referências

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Bellini, F. & G. Bellini. 2005. Il segreto della Repubblica. La verità politica sulla strage di Piazza Fontana, edited by P. Cucchiarelli. (Milan)

Brambilla, M. 1995. Interrogatorio alle Destre. (Milan)

Bull, Anna Cento.2007. Italian Neofascism, the Strategy of Tension and The Politics Of Nonreconciliation (NY)

Fasanella, G. & C. Sestieri c/ Pellegrino, G.. 2000. Segreto di Stato: La verità da Gladio al caso Moro. (Turin)

Frattini, Eric. 2009. A Santa Aliança (São Paulo)

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Battisti no Brasil

A. Crimes Comuns e não Comuns

Crime Comum

Usualmente, o termo “crime comum” se utiliza para diferenciá-lo de crime político, mas esta definição é insuficiente. De fato, a idéia mais aceita é que um crime comum é aquele que pode ser cometido por qualquer pessoa, sempre em função de um proveito próprio. Esta definição precisa de alguns comentários.

Quando falamos de um criminoso ou delinqüente comum, este seria aquele que rouba, assalta, mata, etc., ou para obter um lucro pessoal, ou para satisfazer uma necessidade psicológica, que também seria um proveito pessoal. Por exemplo, um sujeito ciumento pode bater no amante de sua esposa. Esse “ato de bater” é um crime comum, porque, embora ele não tire um proveito econômico, com esse ato satisfaz um sentimento de possessão, de vingança, de humilhação, etc.

Se excluirmos os crimes comuns com motivação puramente lucrativa (roubo, assalto, estelionato, charlatanismo, etc.), outros crimes de direito público que também são comuns (como lesões, homicídio, etc.) visam sempre uma espécie de satisfação ou benefício, seja individual ou de grupo. Por exemplo, uma pessoa que compete em rachas (pegas) de moto ou automóvel, está satisfazendo sentimentos obscuros de agressão. O mesmo é o caso de vandalismo.

Mas é necessário ter cuidado: poderíamos acreditar que o policial que tortura comete um crime comum, quando, em realidade, ele comete um crime contra a humanidade. Então, duas características do crime comum são:

(1) Que tenha por objetivo um benefício pessoal;

(2) Que seja exercido por particulares, ou por alguém que atua como particular.

Por exemplo, um militar não é um particular, mas se ele rouba um banco está atuando como particular e seu crime é comum. Se ele bombardeia um objetivo civil (ou, ainda, um objetivo militar cujo ataque pode produzir dano colateral civil) seu crime não é comum. É contra a humanidade.

Os crimes comuns admitem gradações. Assim fala-se às vezes de crimes hediondos, de crimes culposos, e assim em diante.

Crime Político

Crime político não é simplesmente um “crime cometido por políticos” ou por “pessoas que se movem com interesses políticos”. Uma pessoa que atua na área pública, como militar, policial, político, magistrado, etc., têm oportunidade de cometer pessoalmente ou, em muitos outros casos, mandar cometer, crimes brutais de repressão contra cidadãos, de tortura, de extermínio, etc.

Embora cometidos com uma finalidade política (por exemplo, se manter no poder), esses crimes não podem ser justificados por esse motivo. Por exemplo, Brasil recebeu como refugiado e depois negou extradição ao ditador paraguaio Alfredo Stroessner. Alguns justificaram esse refúgio dizendo que seus crimes eram políticos!

Na verdade, os crimes dele e muitos outros eram crimes contra a humanidade ou, também, de lesa humanidade.

O crime político é um ato praticado por uma pessoa ou um grupo de pessoas contra um governo por considerar opressor o sistema estabelecido (que se qualifica como crime porque o estado no qual se realiza o coloca fora da lei), com os seguintes atributos:

1) Seu objetivo é modificar uma situação política considerada injusta por quem o executa.

2) Não pode conter violações dos Direitos Humanos (DH).

3) Não está destinado a satisfazer, de maneira prioritária, interesses pessoais dos executores ou mandantes.

Originalmente, DH são aqueles essenciais à condição humana, como o direito de não ser preso sem motivo, não ser torturado, executado, etc. É parte da definição de DH que a violação de um direito humano básico supõe o exercício de alguma forma de poder. Com efeito, um crime cometido por alguém que têm o poder, elimina a possibilidade de defesa da vítima, torna o crime massivo ou serial, e destrói a legitimidade do sistema jurídico que deveria preveni-lo ou puni-lo.

Então, quem viola os direitos humanos é o estado, ou uma corporação que atua paralelamente ao estado, e que possui um poder, mesmo clandestino, numa certa seção territorial. Por exemplo, os crimes cometidos pela máfia na Sicília são, em sua maioria, violações de DH, embora a máfia não detenha oficialmente o poder.

Para um crime ser chamado político é necessário, além do desejo de modificar uma situação considerada injusta, que não se cometam atos cruéis. Supõe-se que defender um grupo de pessoas de um exército torturador, matando um oficial do mesmo, é crime político e não comum. Alguém diria que os militantes franceses que resistiram ao nazismo, e colocaram bombas em delegacias ocupadas pela SS eram criminosos comuns ou terroristas?

Existe uma propaganda de que “crime político” se aplica só a esquerda, e é um conceito inventado pelos marxistas para não serem punidos. Absurdo! O crime cometido por Hitler quando deflagrou o putsch da cervejaria em Munique era, sim, político, mesmo que muitas vezes nos recusemos a admitir. Já o crime que Hitler cometeu ao invadir Polônia foi crime contra a humanidade. Quem defende os DH não nega que um fascista possa cometer um crime político, e que deva ser protegido como qualquer outro.

O chamado crime político não persegue um benefício pessoal direto, mas uma satisfação ética, consistente em realizar uma ação que acredita justa e que deve melhorar a sociedade. O crime político é uma ação proibida, deslegitimada, criminalizada pelos que exercem o poder numa sociedade, contra os que querem enfraquecer o destruir esse poder, por crenças humanitárias, filosóficas, religiosas, ou o que seja. Mas, além disso, para o crime ser político é necessário que sua execução não desrespeite os DH, entendidos como Direitos Naturais. Por exemplo, o Irish Republican Army (IRA) da Irlanda cometeu numerosos crimes políticos, mas também outros que não podem ser tratados como tais, porque violavam direitos básicos das pessoas; um caso desses foi a colocação de bombas em estádios de futebol de Belfast freqüentados por britânicos.

Os crimes com motivações políticas, quando produzem danos aos DH, podem ser comuns, como o assassinato não defensivo de um inimigo político, ou crimes contra a humanidade, que podem ir desde a explosão de uma escola, até aplicação de tortura e genocídio. Por exemplo, Tiradentes era, para o modelo da sociedade colonial, um criminoso político. Já Bin Laden, para qualquer modelo de sociedade humanitária, é um criminoso de lesa humanidade. Jesse James era um criminoso comum, nem político nem anti-humanitário.

Existe uma antiga tradição sobre crimes políticos, mas eles foram claramente diferenciados dos outros, apenas no século 20. Por sua vez, os crimes de lesa humanidade foram tipificados a partir de Nuremberg, e encontram abundante descrição em diversos documentos de Organizações Internacionais.

Como qualquer outro conceito social, o crime político pode ter zonas de incerteza na sua definição, mas não é um conceito relativo. Um fascista que participa de uma passeata, é perseguido pela polícia de um governo liberal e reage, está cometendo um crime político, e não comum, mesmo que, para nossos padrões, o fascismo seja uma ideologia negativa e deva ser combatida. Um militante que delata um colega a uma autoridade fascista não comete um crime político, mas um crime contra a humanidade em escala não massiva. (É um crime contra os direitos humanos.)

Escapar de um campo nazista matando um guarda é um crime terrível para os algozes, mas não é crime para a pessoa que salva assim sua vida de uma estrutura perversa.

É verdade que a transição entre um crime político e um crime comum pode ser tênue, mas a maneira de aproximar-se de uma definição mais apurada não é acumular opiniões de centenas de autores, mas ter em conta o sentido humano da ação. Talvez uma das observações mais profundas feitas durante a Quinta Feira 9 de setembro de 2009, durante a primeira seção do julgamento a Cesare Battisti, foi a do defensor Luís Roberto Barroso, quando advertiu a alguns ministros estarem esquecendo o aspecto humanitário do julgamento!

Crime contra a Humanidade

O conceito de crime contra a Humanidade ou crime de lesa Humanidade foi cunhado depois da Segunda Guerra, quando a opinião pública se horrorizou das atrocidades cometidas pelos nazistas. Mas sempre houve crimes contra a humanidade.

Qualquer guerra que não seja estritamente defensiva e que não possa ser evitada (inclusive com sacrifício de alguns direitos, como espaço territorial) é um crime de lesa humanidade. Isto poucas vezes é manifestado, porque implica reconhecer que as forças militares cometem crimes de lesa humanidade. Bom, em alguns casos pode não ser assim, mas isto é exceção e não regra.

Um crime contra a humanidade é aquele que reflete ódio pela espécie humana ou parte dela e interesse por prejudicá-la. Não importa que esteja enfeitado por termos como patriotismo, coragem, fé em Deus e outras coisas. Exemplos desses crimes são o genocídio, o etnocídio, os massacres, a discriminação, etc. Estes são crimes massivos.

Observe que a tortura geralmente é serial e não massiva. Mesmo assim, ela tem como finalidade principal (ou como conseqüência) produzir sofrimento, e é, portanto, também um crime contra a humanidade. Já o caso da morte é mais complicado. Hoje em dia é uma aberração pensar que a pena de morte tem justificativa, mas podem existir motivos para matar, que não seja da maneira fria e cruel de uma execução. Por exemplo, uma pessoa que mata para defender-se de outra que tomou a iniciativa de atacá-la e que pode matá-la se não for neutralizada.

Mas se apresentam casos complexos. Às vezes, matar um tirano, ou alguém que serve a ele, ou a membros de uma tropa que serve a uma tirania sangrenta, pode ser interpretado como uma forma não imediata de autodefesa. De fato, os liberais do século 18, alguns dos quais eram inimigos da pena de morte, aceitavam o tiranicídio. É por isso que a morte de um tirano ou de um torturador pode ser considerada crime político. Sobretudo, se não houver outra forma de render esta pessoa.

A pena de morte é uma forma de vingança social. A neutralização de alguém em plena atividade pode não ser. É necessário estudar caso por caso, mesmo que a lei deva ser universal.

Aliás, o crime de lesa humanidade é praticado por quem tem poder. Se um particular qualquer tortura ao seu vizinho, ele é um criminoso comum, que deve receber o tratamento justo (prisão ou reeducação ou tratamento psiquiátrico), mas não é um criminoso contra a humanidade, porque ele não possui um poder que possa ser estendido de maneira serial ou massiva.

Entre os crimes que, sem dúvida, são de lesa humanidade, se encontram pelo menos, os seguintes:

← Produção de Tormentos

Aplicação de tortura sistemática por agentes públicos ou seus equivalentes privados (jagunços, seguranças, capangas, etc.). Não deve ser confundido com “brutalidade policial”. Esta é o exercício exagerado de força ou violência num ato de contenção, e pode ser produto do treinamento selvagem, mais que uma mentalidade sádica.

← Crimes contra a Paz

São crimes que consistem em acabar com a paz entre grupos humanos, por exemplo, a violação do tratado de Briand-Kellog depois da Primeira Guerra Mundial, redigido para evitar novas guerras. Obviamente, estes crimes só podem ser cometidos por quem possui poder para provocar uma guerra.

← Crimes de Guerra

São as grandes violações aos DH durante as guerras: tortura de prisioneiros, concentração em campos, matanças, genocídios, uso de armas ditas “cruéis” (como granadas de fragmentação, gases venenosos, napalm, etc. )

← Terrorismo de Estado

Ações terroristas por parte do Estado. Observe que o terrorismo privado, não exercido pelo estado, pode ser também um crime contra a humanidade e não um crime comum, dependendo de suas dimensões, objetivos, etc.

← Crimes contra os princípios das Nações Unidas

No Brasil, a lei 9474/97 sobre Refugiados, artigo 3º, IV, considera inaceitáveis para refúgio, os que “sejam considerados culpados de atos contrários aos fins e princípios das Nações Unidas”.

No relatório contra Battisti, o relator se refere de maneira incompreensível a este assunto, mostrando que não tem idéia do que significa.

Atos contra os princípios da ONU são aqueles que contribuem a diminuir ou prejudicar a paz e convívio entre povos, etnias, nações, etc. e/ou abalar a dignidade de grupos sociais. Portanto, os crimes contra humanidade seriam todos eles crimes contra as Nações Unidas, mas no texto da lei se refere a atos mais específicos como racismo, sexismo, propaganda da guerra, genocídio, etnocídio, democídio, etc.

Terrorismo

Os organismos internacionais não têm ainda uma definição oficial de terrorismo. O Conselho de Segurança das Nações Unidas propôs uma definição bastante razoável, mas foi rejeitada por governos que desejam chamar terroristas àqueles que incomodam seus projetos, e preferem que não exista uma definição oficial. Esta foi formulada num relatório do Conselho, emitido em 11/2004:

Ato Terrorista ( Qualquer ato que tenda a produzir a morte ou ferir gravemente civis não combatentes, com o propósito de intimidar uma população, obrigar a um governo ou organização internacional a fazer ou deixar de fazer algo.

Esta explicitação faz parte do relatório do Conselho, mas não possui valor legal. Alguns países percebem que, definindo terrorismo dessa maneira, a violência em defesa própria não poderia ser chamada terrorista, sendo então menos viável rotular assim a todos os que se defendem de invasão, genocídio ou exploração.

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou um pedido de extradição do governo argentino em 04/10/89, com o relato de Sepúlveda Pertence, e rejeitou o pedido por unanimidade. Nesse contexto, caracterizou o que deve ser excluído da qualificação de “terrorista”. Transcrevo a parte 5 do acórdão:

5. Não constitui terrorismo o ataque frontal a um estabelecimento militar, sem utilização de armas de perigo comum nem criação de riscos generalizados para a população civil.

Esta é a primeira jurisprudência nas Américas que permite uma caracterização limitativa de terrorismo. Para ser terrorista, um ato precisa, pelo menos, que os atores usem armas de perigo comum (como explosivos ou tiroteio indiscriminado) e gerem riscos generalizados à população civil.

Observe, entretanto, que mesmo um ato sendo terrorista (em sentido privado), ele pode não ser um crime de lesa humanidade. Todo ato de terrorismo de estado é crime contra a humanidade, mas nem todo ato de terrorismo privado é. Por exemplo, um sujeito que coloca uma bomba numa delegacia e mata vários policiais de maneira indiscriminada comete sim um ato de terrorismo, mas pode ser um ato isolado e não constituir crime de lesa humanidade. Para qualificar o terrorismo de crime contra a humanidade é necessário ter em conta vários fatores: impacto, objetivos, planejamento, serialidade, etc.

Outro ponto importante: o terrorismo, quando não é crime contra a humanidade, é crime comum, como no exemplo acima. Mas nunca é um crime político. Nesse sentido, a lei 9474 está certa ao não oferecer refúgio a terroristas.

Observe-se que no começo do caso Battisti no Brasil, o refugiado foi qualificado pela mídia como terrorista, como maneira de criar animosidade contra ele e para jogar lenha na fogueira de seu julgamento. Aos poucos, os jornais considerados mais sérios foram modificando essa imagem. A Folha de S. Paulo passou a chamar-lo ex-terrorista e, depois ex-ativista.

B. O CONARE e o Ministro de Justiça

No Brasil, o Conselho Nacional para os Refugiados (CONARE) é uma dependência do Ministério da Justiça, cuja missão consiste em analisar os pedidos de refúgio, deferi-los ou indeferi-los, auxiliar os refugiados, e assuntos conexos.

É presidido por um representante do Ministério de Justiça e se forma com representantes de vários ministérios, da Polícia Federal, da ONG católica Cáritas, e do Alto Comissionado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Entretanto, o representante do ACNUR, que é o único organismo universal especializado em refugiados, possui apenas direito a voz, porém não a voto.

O CONARE está regulado pela lei 9.474/97, que estabelece sua subordinação direta ao Ministro da Justiça. Suas decisões podem ser revistas mediante recurso ao próprio ministro. Esta subordinação é perfeitamente regular, pois a Conselho atua como uma primeira instância, cujos pareceres devem ser interpretados como informativos e não necessariamente como obrigatórios.

Depois que Battisti foi detido, ele pediu para ser aceito como refugiado, e o CONARE indeferiu. Votou contra a concessão do refúgio a representante do Ministério de Relações Exteriores, que confessou que desejava agradar o governo italiano. Também, obviamente, a Polícia Federal se manifestou contra a admissão de Battisti como refugiado.

Finalmente, o placar ficou em 3 contra e 2 a favor. Foi nesse momento que Battisti entrou com recurso ao Ministro da Justiça Tarso Genro, fazendo uso dos direitos dados pela lei. O ministro lhe concedeu o caráter de refugiado, numa decisão que até o mesmo relator do STF qualificou de “claríssima”, mostrando certo desconforto, pois uma decisão clara é mais difícil de refutar que uma obscura.

Genro usa como argumento o artigo 1º, I, da lei 9474 onde se admite o refúgio para pessoas que tem fundado temor de perseguição. Para tanto, o ministro descreve de maneira sóbria e precisa a situação de Itália durante a Estratégia de Tensão. Entretanto, deve compreender-se que a condição de político obriga a certa etiqueta, e não permite a liberdade que tem um particular. Digo isto, porque ele manteve sua descrição da repressão italiana, um pouco aquém do real. Além disso, evita dizer que condições de terrorismo de estado ainda existem, embora sejam dirigidas contra outros alvos, como ciganos, albaneses, africanos, e imigrantes em geral, incluindo brasileiros.

O Anuário de 2009 de Anistia Internacional, que tomaria muito espaço citar neste resumo (mas o leitor encontra na Internet), menciona claramente algumas formas de repressão e perseguição que existem na Itália, embora sejam menores que as das décadas de 70 e 80.

Apesar de que a decisão de Genro era absolutamente legal, impecável, justa e fundamentada, produziu uma reação agressiva em diversos meios.

O Presidente do Supremo Tribunal Federal do Brasil (STF), numa decisão insólita, permitiu que essa Corte tivesse intervenção no caso Battisti, criando um gravíssimo precedente de conflito de poderes. Se isto não for revertido, pode significar o fim do refúgio no Brasil e de países que adotem sua jurisprudência.

O STF tem competência, pelo artigo 102 da Constituição Federal de julgar extradição, mas não refúgio, e ambos não são a mesma coisa. A reversão necessária não é apenas a rejeição do pedido de extradição. A própria Corte deve declarar todo este processo prejudicado e inexistente.

C. Refúgio e Asilo

Os dois típicos mecanismos de proteção de pessoas que são objeto de perseguição (não necessariamente política, pudendo ser religiosa, racial, sexista, de opinião, ou de qualquer outra índole) são o refúgio e o asilo.

Refúgio em Sentido Clássico

O refúgio é uma instituição proposta de maneira sistemática pela Convenção de Genebra de 1951, como remédio transitório para os sofrimentos de milhões de pessoas que tinham sido deslocadas, na Europa, pela Segunda Guerra Mundial. Nos anos 60, vários protocolos tiraram desta Convenção seus aspectos europeístas: agora, ela poderia ser aplicada a cidadãos de qualquer país, residentes em qualquer lugar, e cujos problemas tivessem começado em qualquer data. Não se restringia a europeus, nem perseguidos da Segunda Guerra.

Atualmente, o refúgio está caracterizado por:

1. Ser uma proteção que organismos internacionais (notadamente, o Alto Comissariado da ONU, o ACNUR) outorgam a grupos de pessoas, de qualquer tamanho, que se encontram em risco por perseguições com base em etnia, raça, cor, religião, opinião política, gênero, ou qualquer outra forma de diversidade.

2. O refúgio se concede, usualmente, numa jurisdição diferente à do local da perseguição. Por exemplo, centenas de cidadãos do Uruguai, Chile e Argentina receberam, do ACNUR, refúgio em território brasileiro.

3. O refúgio é concedido, em geral, porém não necessariamente, em forma massiva, a um grupo que pertence a etnia, grupo social ou país designado (ou seja, marcado como estando sob risco). Por exemplo, os Romã (ciganos) perseguidos na Itália, não precisariam provar que são acusados de algum ato específico. Todo o mundo sabe que sua própria condição os expõe a repressão.

4. A proteção dada pelo refúgio torna a pessoa candidata a ser derivado legalmente para um país que o reconheça como imigrado com os direitos e deveres de um cidadão normal, junto com sua família, quando sua condição estiver em risco. Ou seja, passa de ser um refugiado sob mandato internacional, provisoriamente assentado num território, a ser um refugiado reconhecido por um país, e sob o mandato conjunto de órgãos internacionais e do governo nacional, com assentamento estável, seja indefinidamente, seja até que a causa desapareça.

No entanto, nem sempre é necessário ser aceito pelo país dentro de cuja jurisdição se constituiu o mandato de refúgio. 

Então, em termos gerais (porque há casos mistos), o refúgio é uma medida de proteção (a) Massiva ou Grupal; (b) Outorgada fora do local de perseguição; (c) Baseada em Riscos Coletivos e Difusos; (d) Assumida por um país de maneira definitiva, ou pela ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) em forma provisória, até encontrar um país hospedeiro ou até que o perigo tenha desaparecido; (e) Estabelecida em Convenções Internacionais e diplomas legais que, pelo menos semanticamente, devem ter valor prioritário às leis do país, ou equivalentes aos mandamentos constitucionais.

O refúgio pode ser também individual, é óbvio, como o prescreve a lei de Refugiados, 9474 no Brasil. Todos os casos anteriores de refúgio, mesmo os que não foram polêmicos como o de Battisti (Falco, Lollo, Medina, etc.) foram individuais.

O Brasil, em 1960, foi o primeiro país da região que ratificou a Convenção de 1951, e primeiro a sancionar uma Lei Nacional de Refúgio, em 1997 e, em 1998, criou o CONARE.  Junto com a Venezuela, o Brasil foi um dos primeiros integrantes do Comitê Executivo do ACNUR, que é composto pelos países que têm demonstrado o maior grau de compromisso com a temática dos refugiados. Esta tradição em favor do refúgio por parte do Brasil é coerente com a tradição pré-jurídica do país como um grande receptor de pessoas perseguidas ou marginalizadas em outras regiões do planeta. Esta tendência à hospitalidade com os refugiados é, provavelmente, produto da composição miscigenada e tolerante de nosso povo.

Observe que este tesouro de tradições pode ser perdido pela ação ilegal de transferir ao judiciário a avaliação da condição de refúgio, que é típica do executivo.

Asilo Territorial e Diplomático

Asilo é um termo pouco usado fora das Américas, apesar de que ele existe em várias legislações européias, inclusive em Portugal, onde está regido pela lei 15/98. O asilo é uma instituição que permite que uma pessoa seja protegida num país por motivos de perseguição específica.

Quando se aplica em países europeus, ele aparece muitas vezes confundido com refúgio, quase como se fossem sinônimos, salvo quando se concede a certas celebridades políticas, para a qual a proteção aparece “personalizada”.

Nos Estados Unidos, país que concedeu maior quantidade de asilo ou refúgio na época moderna, a diferença é a seguinte (literalmente):

Asilados: Indivíduos já fisicamente presentes nos EEUU podem solicitar asilo, suposto que eles satisfazem a condição para refugiado e não estão impedidos por lei.

Refugiados: Um refugiado é uma pessoa que não pode ou não quer voltar a seu país devido a um temor bem fundado de perseguição ou porque sua vida ou liberdade estão ameaçadas. O aspirante deve estar fisicamente localizado fora dos Estados Unidos.

asylum_refugee.html

Como se pode ver, as duas condições se superpõem: um asilado é alguém que poderia ser refugiado. Mas, como a pessoa está dentro do país, recebe asilo territorial. Já se o potencial refugiado qualifica para asilado, mas se encontra em outro país, poderia pedir asilo diplomático, muito utilizado na América Latina.

Enfim: os dois institutos têm diferenças técnicas, mas o asilo poderia ser considerado um subconceito do refúgio. Aliás, o refúgio é dado às vezes também em alguns casos dentro do próprio país. É muito comum, que ACNUR refugie pessoas em países africanos e as desloque para outros onde correm menos risco. Ambos são ferramentas de proteção humanitária, mesmo que sejam usados às vezes com propósitos de propaganda política.

Um asilado é um refugiado que, em vez de ser recebido como parte de um grupo (por exemplo, os curdos perseguidos na Turquia) é recebido individualmente. Por outro lado, no caso de refúgio há um medo fundado de perseguição, e no caso de asilado há uma perseguição específica. Entretanto, a distância entre os dois casos pode ser pouca: um cidadão africano que chega ao Brasil fugindo de um massacre na Etiópia, pode ter fundado medo de ser morto em seu país de origem, e pede refúgio. Já, por exemplo, o ex presidente do Uruguai Wilson Ferreira Aldunate foi perseguido pela ditadura de seu pais desde 1973 e pediu asilo na Argentina. Ele era uma caso de perseguição específica, mas provavelmente não corria risco de morte.

 A concessão de asilo político se encontra como um princípio da República Federativa do Brasil em suas relações internacionais, segundo artigo 4º, inciso X, da Constituição Federal. Ocorre quando alguém é perseguido por crimes de índole política, de opinião, ou qualquer outro que não configure violação ao direito penal comum.

Advirta-se que esta definição difere pouco da definição de refugiado, dada pela lei de refúgio.

O refúgio político e o asilo são apresentados às vezes como formas de proteção antagônicas, que não podem aplicar-se no mesmo caso. Esta visão do problema está orientada por interesses políticos, já que alguns governos não cumprem seus compromissos internacionais de refúgio e, por outro lado, reservam o asilo para perseguidos célebres. Este foi o caso de Garcia Márquez, que recebeu asilo no México, argumentando ser perseguido na Colômbia.

Em realidade, uma massa enorme de pessoas que são perseguidos globalmente por razões políticas, raciais, religiosas ou nacionais, pode conter muitas pessoas que precisem do asilo individualmente. Portanto, ambos os conceitos, apesar de suas diferentes metodologias, podem ter a mesma utilidade e devem ser aplicados da mesma maneira.

Na América Latina, muitas vezes os governos utilizam a fórmula de refúgio, porém aplicada caso por caso, o que permite que a recepção de perseguidos seja menos espetacular e gere menos tensão com o país perseguidor, do que aconteceria quando se confere asilo.

Isto completa a explicação de por que refúgio e asilo podem ser confundidos, e por que a acusação contra Tarso Genro de ter cometido uma infração ao outorgar asilo “disfarçado” de refúgio, é produto da ignorância história e sociológica dos que afirmam essa banalidade.

É interessante observar que a proteção ao autor de um crime comum não aberrante, que está dissociado da atividade criminosa, mesmo que tenha praticado seu crime num país onde não existe trato desumano com os detentos, é uma atitude humanitária, como foi aplicada pelo Brasil com Ronald Biggs. Vejamos o que aconteceria no outro extremo:

Se Battisti fosse extraditado (um homem cujos crimes não foram comprovados, e que, além disso, são de caráter político), seria enviado a um sistema prisional desumano, pelo sistema político brasileiro, considerado “democrático”.

D. Causas de Refúgio e/ou Asilo

Perigo de Morte

O perigo de morte é uma razão típica, expressa nos tratados internacionais, nas leis nacionais, e presente em toda a prática do refúgio ou asilo, para conceder proteção a um estrangeiro perseguido.

Battisti tem declarado várias vezes que tem medo por sua vida na Itália. Se alguém duvida, proponho que faça este breve raciocínio: O governo italiano tem promovido uma campanha internacional de proporções inusitadas. Não existe, em toda a história das extradições, nem mesmo em caso de guerra, escândalos tão grandes como os que Itália está promovendo. Vejamos alguns:

1. Políticos e diplomatas italianos se entrevistaram com membros do governo, do congresso e, obviamente, do STF, um grande número de vezes. Confesso que não consegui fazer uma conta completa, mas, encontrei nos jornais mais de 30 registros desses encontros.

2. Itália não usou os canais normais, através do ministério de relações exteriores, nem seguiu a etiqueta adequada para o pedido de extradição, mas “pulou” para o STF, em aberto desafio ao governo.

3. Mesmo que um mandato de segurança possa ser impetrado por nacionais ou estrangeiros, não existe a figura jurídica que permita a um governo estrangeiro usar esse tipo de recurso.

4. Os políticos, magistrados e diplomatas italianos insultaram aos juristas brasileiros, ofenderam a população, se expressaram com estilo machista, sexista, discriminatório sobre nossas dançarinas, numa amostra de grosseria e brutalidade que não se encontra em nenhuma manifestação diplomática, nem do Terceiro Reich. (Sugiro a quem duvide disso, fornecer um exemplo).

5. Nada ficou fora da alucinada investida contra Battisti: propuseram boicote a um amistoso de futebol, boicote a produtos brasileiros, retirada temporária do embaixador, boicote ao turismo, e até atos masoquistas como greves de fome de senadores e acorrentamento junto à embaixada brasileira. Também se tentou o aliciamento dos italianos residentes no Brasil para revoltar-se contra o governo brasileiro (sic!). De fato, estas últimas bravatas não foram muito longe.

É um fato óbvio que matar Battisti seria muito fácil. O ódio irracional contra Cesare não é o mesmo que o luto ou a indignação compreensível que têm os parentes de pessoas assassinadas pelos PAC. Entretanto, para quem visita o site das Vítimas do Terrorismo (AIVITER), é evidente que eles só consideram vítimas às pessoas que foram assassinadas pela esquerda, mas não às assassinadas pela direita, cujo número foi quase quatro vezes superior.

As pessoas que têm parentes mortos nos ataques claramente de direita, como os de Piazza Fontana, Piazza da Loggia, Italicus, Bolonha e muitos outros lugares, deveram criar suas próprias associações porque o pessoal do AIVITER não os considera vítimas, nem os aceita como pessoas que precisam compartilhar sua dor.

O sindicato de carcereiros se tem manifestado duramente contra o governo brasileiro, pela “demora” em extraditar Battisti. Por que tem tanta pressa? Justamente os carcereiros, que se consideram prejudicados pela morte de Santoro, são os que reclamam! Ato de justiça ou vingança?

Se Battisti fosse à prisão, há alguma dúvida de que seria assassinado com a maior facilidade? Ninguém tentaria, nem mesmo poderia, impedi-lo.

Lembremos, por exemplo, o caso do terrorista Mário Tuti, o autor do atentado contra o trem Italicus, e Pier-luigi Concutelli, outro prisioneiro também comprometido em atos terroristas de ultra-direita, que estrangularam na cadeia a Ermanno Buzzi, um suspeito de terrorismo que tinha muito para falar.

Mortes por vendeta ou por queima de arquivo na Itália são as coisas mais frequentes. É o primeiro país em crimes per capita desse tipo na Europa.

Se na Itália foi possível matar a Aldo Moro, Peccorelli, o general Della Chiesa, e muitos outros, por que poupariam uma pessoa sem defesa como Battisti, especialmente estando presa e rodeada de seus inimigos?

Perigo de Prisão

No relatório contra Battisti, o ministro relator faz uma afirmação que não deixa dúvidas sobre suas intenções. A afirmação é que Battisti, que está condenado à prisão perpétua, não tem sua liberdade em perigo na Itália. Esta afirmação do relator é difícil de ser levada a sério: Um indivíduo condenado a prisão perpétua não tem sua liberdade em perigo?

Suponhamos que alguém argumentasse que as prisões italianas não são tão horríveis, e que todo condenado a perpétua pode sair aos 26 anos, como tenta fazer crer a lei de execuções penais da Itália.

Para desfazer esse mito, que até é aceito até por pessoas bem intencionadas, sugiro a leitura da Carta Aberta ao Presidente Lula de Alguns Condenados a Prisão Perpétua, que eu traduzi por sugestão do jornalista Celso Lungaretti, e se encontra em vários sites, entre eles:



Aí, os condenados descrevem não apenas a brutalidade do sistema prisional, como a falsidade de que exista um limite para a pena. As autoridades italianas costumam falar de que a pena máxima são 26 anos, mesmo que a condenação formal seja perpétua, de maneira análoga ao limite máximo de 30 anos no Brasil. Mas, segundo estes prisioneiros, isso não se cumpre. Eles falam de casos de pessoas que já pagaram 39 anos de cadeia.

Por outro lado, as mesmas autoridades não se furtam em dizer, em entrevistas jornalísticas, que não estão dispostas a aceitar do Brasil nenhuma indicação de como devem punir a seus prisioneiros. O ministro da defesa Ignazio La Rusa garantiu ao grupo revanchista de AIVITER, que Battisti cumpriria sua pena até morrer.

O ministro de justiça da Itália, Clemente Mastella, foi interpelado pelos parentes das vítimas da esquerda armada. Estes criticaram a Mastella por aceitar a exigência de Brasil de manter a Battisti preso “apenas” 30 anos. Mastella disse para não se preocuparem. Isso é uma coisa que falamos para que nos facilitem a extradição. É apenas para f... os brasileiros.

Veja uma matéria do prestigioso jornalista Tito Papo sobre as promessas do governo italiano.



Perigo de Tortura

Já foi dito várias vezes neste texto que os relatórios de Anistia Internacional bem como jornalistas e historiadores prestigiosos, ilustram a história da tortura aplicada na Itália nos anos da Estratégia de Tensão. Também reproduzimos de maneira integral a narração de Bitti sobre as torturas a que foi submetido. Os autores coincidem em que estas torturas não são tão brutais como as que aplicaram as ditaduras latino-americanas, e quase sempre são reversíveis, mas não se pode pensar que a aplicação de tormentos seja algo “normal”. Tal pensamento é uma terrível aberração.

Atualmente, as condições são menos duras que naquela época, porém os tratos brutais não têm desaparecido. Quem desejar ver um relatório atual pode consultar:

Amnesty International Reports, 2009. Itália se encontra na pág. 186 ss.

Aí podem observar-se inclusive casos de morte de pessoas que foram detidas pela policia apenas para investigação e acabaram sucumbindo à tortura. Aliás, o Estado ainda não incluiu a aplicação de tortura como delito. Então se alguém tortura uma pessoa pode ser acusado, no máximo, de lesões. Se os tormentos não deixam rastos, ninguém investigará. Aliás, Anistia Internacional reclama da falta de interesse dos magistrados por investigar estes casos. Embora a maioria das vítimas seja estrangeira, também há alguns casos de italianos.

Julgamento Justo

Quando se fala do perigo que correria um perseguido se voltasse a seu país, não se deve entender, como acontece habitualmente, que a pessoa protegida deve ser alguém que é injustamente perseguido. Não. Suponha que a pessoa tem motivos para ser perseguido, como seria o caso de um ditador, mas, se ele voltar a seu país de origem, receberia um trato injusto, brutal, etc. Então, por muito que doa, essa pessoa deve ser protegida.

Por exemplo, todos lembram que há pouco tempo, quando Sadam Hussein foi executado em Iraque, a Anistia Internacional se manifestou contra e o considerou um ato cruel. Não é que nossa organização tenha a menor simpatia por aquele patológico genocida. Mas, não achamos que o linchamento seja um procedimento justo.

Pessoalmente, quando trabalhei algum tempo como voluntário do ACNUR, conheci muitos argentinos, uruguaios e chilenos perseguidos. Um caso totalmente esquisito foi o de um oficial do exército argentino que fugia do país, porque tinha participado de um grupo de extermínio, e agora era ele que estava em risco. Com efeito, o coronel que dirigia o extermínio queria queimar arquivo e fez uma lista com as pessoas que ia matar. Este tenente descobriu que seu nome estava aí.

O leitor pode imaginar a repugnância que esse indivíduo me inspirava, mas pensei que não podíamos deixá-lo morrer, porque então também estaríamos atuando como os próprios militares. Então, o encaminhei a meu chefe.

Quando se protestou contra o refúgio de personalidades monstruosas, como foi o ditador Stroessner, não era porque a gente pensava: “ele merece ser arrebentado”. Era porque o estado brasileiro lhe estava garantindo a impunidade e não a justiça, mesmo que soubéssemos que o sistema paraguaio estava dominado por pessoas semelhantes a ele. Sem dúvida, a pena que lhe teriam dado, seria simbólica, muito menor àquela que ele merecia, mas haveria um julgamento.

E. Direitos dos Refugiados

Refugiados Irregulares

O relator do STF no caso Battisti tem afirmado de que uma prova de culpabilidade de Battisti era o fato de que ele tenha fugido várias vezes, entrando clandestinamente nos diferentes países. Não quero discutir o valor social, moral ou intelectual desta opinião. Mas sim é importante entender que até os próprios legisladores desautorizam essa opinião.

Na lei 9474, no artigo 8º se estabelece o seguinte:

Artigo 8º - O ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes.

Antes de ser convertido oficialmente em refugiado, um deslocado ou um autoexilado é possuído, quase sempre, por graves temores de repressão, intimidação e especialmente de refoulement (regresso forçado). Mesmo que não os tivesse, seria difícil que um perseguido possa conseguir todos os documentos necessários para seu ingresso no país, e dispusesse da calma e os contatos necessários para preencher essas formalidades.

Direito à Liberdade

A maioria dos governos, ainda que outorguem asilo ou refúgio, guardam enormes preconceitos sobre os perseguidos, sejam deslocados ou autoexilados. O caráter classista deste preconceito merece uma análise que está fora dos limites deste texto, mas vale pontuar. Uma praxe abominável é a de encarcerar os candidatos a extradição, como se o fato de ser requerido pelos governos os tornasse perigosos.

No Brasil, país que sempre brilhou por sua gentileza com os estrangeiros e por sua ampla política de aceitação de perseguidos, permanece o hábito infame de colocar em prisão preventiva aos extraditandos. Essa praxe é normatizada pelo Estatuto do Estrangeiro, introduzido na Lei nº 6.815/80, que a ditadura brasileira sancionou em 1980 para conter o fluxo de perseguidos do Cone Sul.

As pessoas com mais de 40 anos devem lembrar que o dia que se votou essa lei no congresso houve enormes mobilizações de organismos de DH, da OAB, de órgãos das igrejas, de intelectuais e até dos próprios políticos. Mesmo com a enorme heterogeneidade do Movimento Democrático Brasileiro (atual PMDB), quase todos os seus membros se manifestaram contra.

A lei recebeu algumas modificações que a tornaram mais humana, mas permaneceu o artigo 84, que foi renumerado para 81 na versão da lei 6964/81:

Art. 81. O Ministério das Relações Exteriores remeterá o pedido ao Ministério da Justiça, que ordenará a prisão do extraditando colocando-o à disposição do Supremo Tribunal Federal

Entretanto, algum tempo atrás, o STF passou a entender que este pedido de prisão preventiva devia ser harmonizado com as normas do Código de Processo Penal.

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria

Esse novo entendimento do STF, por ser uma decisão judicial, obviamente não é uma lei, mas induz a pensar que uma pessoa que não oferece risco para a sociedade não deveria ser privada de sua liberdade, até que se confirme o mérito do pedido de extradição.

5

Refúgio e Extradição

C. Poder de Conceder Refúgio

Na maior parte dos países, o representante da pessoa jurídica de um país (ou seja, um estado-nação), quem personaliza a soberania e pode atuar a nível internacional para gerenciar tratados, é o chefe de estado. Nos países presidencialistas, portanto, é o presidente.

Assim sendo, a condição de refugiado deve ser outorgada pelo funcionário de máximo nível que controla a entrada de estrangeiros no país. Essa função não necessariamente cabe ao chanceler, pois uma vez que o exilado se encontra em território nacional, a dependência deste de seu país de origem (que seria o aspecto internacional) deixa de ser dominante. O foco do problema se desloca para a decisão sobre se deve ou não o exilado receber refúgio. Embora este não seja uma variante das fórmulas de imigração, sua permanência no país é um ato migratório.

Em geral, então, as máximas autoridades que decidem o refúgio de um estrangeiro são os ministros de justiça, o do interior, como é habitual na maioria dos países da América Hispana, ou o secretário de governo, como no México. Em outros países, especialmente parlamentaristas, o refúgio é outorgado por secretários de estado de secretarias típicas de imigração, como o Migrationsverket na Suécia.

Em relação com o refúgio que o ministro Tarso Genro, como representante do executivo no ministério de justiça, concedeu a Battisti, abriu-se imediatamente uma acirrada polêmica (para não dizer, uma diatribe ou, ainda, uma peleja) destinada a sabotar essa decisão e atingir dois alvos com um único míssil: criar dificuldades ao governo e começar a sabotar a condição de refugiado, para que esta sofresse bastante desgaste ao chegar ao STF.

B. Faculdade Discricionária

As atividades administrativas são tradicionalmente consideradas discricionárias, porque é claro que se cada decisão que toma uma autoridade executiva tivesse de passar pela justiça, o mundo não poderia literalmente funcionar. Além disso, implicaria num preconceito extremo, baseado na suspeita de que o administrador que toma uma medida deve ser policiado pela justiça, porque pode estar agindo de maneira ilegal.

Este poder discricionário era invocado inclusive pelos próprios juízes, aduzindo sua incapacidade de apreciar as características específicas de certas medidas. Muitas vezes isso foi usado para “lavar-se as mãos” em caso de denúncias específicas de arbitrariedade (por exemplo, fraudes em concursos públicos) que prejudicavam especificamente algumas pessoas.

Mas, desde a concessão de refúgio a Battisti, virou rotina dizer que a concessão de refúgio deve ser um ato vinculado. Se conseguirmos contornar a gíria com que os problemas jurídicos são geralmente abordados, fica claro que quase todos os atos administrativos produzem um componente discricionário e um vinculado. Até o ato administrativo pode ser “vigiado” pelo judiciário, em caso que se produza uma exorbitância. Pelo menos em teoria, o objetivo da justiça é defender os direitos dos indivíduos. Em atenção a isso, em alguns países, mesmo que o refúgio possa ser outorgado livremente pelo funcionário administrativo (ministro ou coisa que o valha), uma pessoa que vê negado seu pedido de refúgio pode recorrer à justiça, que, nesse caso, talvez entenda que a vida e segurança dessa pessoa (mesmo sendo estrangeira) vale mais que a vaidade do funcionário que recusou o refúgio.

Para descaracterizar a decisão do ministro Tarso Genro (que foi chamada “ideológica”, “partidária” e coisas do gênero) entrou-se na sutileza de que o refúgio é um ato vinculado, enquanto o asilo é um ato discricionário. Talvez pensando nesta brecha, o ex-ministro do STF, Carlos Mário da Silva Velloso atribui a Tarso Genro ter concedido asilo sob a cor do refúgio.

Alguns magistrados afirmam que a proteção concedida pelo ministro Tarso Genro foi injustificada, porque Battisti teria sido declarado refugiado, mas, na realidade, a figura jurídica que se lhe atribuiu foi o asilo. Segundo alguns membros do TSF isto invalidaria o direito dado. A justificação é tão confusa e bizantina que é impossível entender o que está sendo proposto. Veja o comentário de um ministro do STF neste site:

.br/?p=15883

Será que Battisti deve ser punido porque mentiu, ou seja, ele aceitou ser refugiado e de fato, é asilado? E será que essa mentira merece, como castigo, a deportação e a cadeia perpétua?

Vejamos:

É trivialmente conhecido que o refúgio é aplicável a perseguições ou catástrofes massivas geradas pelas discriminações e pelas opiniões políticas, avaliando a média do risco geral do grupo, com independência da vulnerabilidade individual de cada membro. Além disso, usualmente o refúgio se concede de fora do país dos refugiados e com base em convenções internacionais, mas isto é relativo, como o mostram numerosos exemplos bem conhecidos.

Por sua vez, o asilo, especialmente na forma Latino-Americana, é uma proteção individual para alguém especificamente perseguido e sobre cujos riscos existe quase-certeza. Um raciocínio simples mostra, então, que o asilo é um caso particular do refúgio. Um asilado é o refugiado considerado individualmente (fora da massa de pessoas que mereceria, por motivos parecidos, a mesma proteção), e cuja evidência de correr risco é bem maior do que a média.

Exemplos:

Durante as ditaduras neofascistas da América Latina nos anos 70 e 80, países europeus como Alemanha, Suécia, Noruega, Suíça, Holanda, Bélgica e França deram proteção a cidadãos chilenos, uruguaios e argentinos. Em todos os casos, se aplicou a instituição de refúgio. O asilo estrito foi concedido pelo México e o Equador. Essas pessoas foram adotadas às vezes em grupo, por provir de um país designado como perigoso num determinado período (como Argentina ou Chile), mas também com base na investigação pessoal de cada caso. Houve então uma mistura de asilo e refúgio, o que mostra que ambos não são excludentes.

A maneira em que o STF tenta contrapor-los, para aplicar-lhes direitos diferentes, carece de sentido. No Brasil, nos últimos anos, houve várias pessoas que foram protegidas através do ACNUR; portanto, tecnicamente eram refugiados. Mas foram acolhidos depois de um estudo individual, com base no grau de perigo que cada de um deles corria. Outra possibilidade é que o juiz que escreve sobre o assunto esteja acusando Tarso Genro de má fé, porque deu asilo sob o disfarce de refúgio. Ora, algo puramente semântico pode anular um ato jurídico? Se um matador serial for detido, e em seu BO é indiciado por “assassinato” e não por “homicídio”, será que deveria ser anulada a apreensão?

Estou apresentando estes casos, porque eles mostram muito bem o enfoque de uma parte do STF. Alguns ministros não parecem interessados em fazer justiça a um acusado de crimes não provados. Trata-se de encontrar qualquer pequeno detalhe sintático ou semântico que possa derrubar o refúgio (ou deveria dizer “asilo”?).

Para alguém ser qualificado como asilado é preciso que haja uma alta probabilidade de que, no caso de voltar a seu local de origem, corra grave risco. No caso de refugiados, a existência de risco exige uma probabilidade menor.

No caso de um asilado, a perseguição e o perigo são personalizados. A pessoa que se asila possui uma quase certeza de que está sendo procurada e que, se atingida, será objeto de morte, tortura ou prisão. No entanto, observe que esta diferença não é tão grande. Como dissemos antes, o asilo é, na prática, uma forma especializada de refúgio. Mesmo as organizações internacionais muitas vezes misturam o termo “asilado” com “refugiado”.

Embora exista diferença conceitual, o importante, da perspectiva do direito humanitário, é a proteção do perseguido.

Em muitos casos, o perigo que enfrenta um refugiado e o perigo que ameaça a um asilado pode ser a mesma coisa.

Então, uma condição para que Battisti se qualifique como asilado (ou refugiado) é a existência de perigo na Itália. Ora, de que tipo seria esse perigo? Os organismos internacionais consideram que é suficiente o perigo de perder a liberdade.

No caso de Battisti, não existe a mínima dúvida de que ele perderia a liberdade. Itália o condenou a prisão. Saber que ele vai ser preso sob condições subumanas não é uma conjetura; é uma certeza!

Portanto, os que exigem “provas” de sua perseguição e do grave risco que correria na Itália, pensam que a prisão perpétua não seria um perigo, mas um castigo justo e necessário. Este arrazoado é uma manifestação de preconceito. Novamente, como foi dito, este tipo de raciocínio torna inútil o asilo. Para que asilar a alguém cuja culpabilidade se aceita por subserviência?

Mas, Battisti também tem argumentado que enfrenta risco de morte. Alguns membros do CONARE afirmaram que não havia certeza de que ele pudesse ser assassinado. Veja a seguinte página de Internet.

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Obviamente, não pode existir uma garantia de 100% de que um asilado que é vítima de refoulement, vai ser morto. Salvo que o perseguido tenha sido, oficialmente, condenado a morte, os que se propõem matá-lo vão produzir um atestado prometendo isso.

No caso de Battisti parece muito provável o risco de morte. Simular um acidente numa prisão é um artifício trivial, que na Itália foi usado várias vezes, inclusive com pessoas menos perigosas, como se descreve na obra Morte Acidental de um Anarquista do prêmio Nobel Dario Fo, onde o anarquista Pinelli, enquanto estava sendo interrogado numa delegacia “caiu de um 4º andar”. Segundo um delegado, ele confundiu a janela com uma porta!

Aliás, a Itália possui características culturais especiais no Ocidente, como a de ser o primeiro país que teve sociedades criminosas organizadas e foi capaz de exportá-las às Américas, onde esse problema não existia. Também, a tradição das vendettas no Sul tem-se mantido durante séculos, e é evidente de que estes 30 anos corridos desde a fuga de Battisti não fizeram aos policiais italianos esquecer seu ódio pela esquerda.

Como indicamos antes, se deve levar muito a sério que os sindicatos de agentes penitenciários se tenham manifestado contra Battisti, depois de 28 anos que ele saiu da Itália. Um caso concreto o oferece a já mencionada AIVITER, Associazione Italiana de Vittime del Terrorismo (vittimeterrorismo.it). Um de seus editores chama “gentalha desprezível” aos que defendem os direitos de Battisti dentro da lei, especialmente a seus advogados franceses. Ou seja, eles não aceitam nem o direito tradicional de defesa.

Quando o asilado não é perseguido massivamente (como acontece mais frequentemente no caso do refúgio), por causa de raça, fé, nacionalidade, etc., pode acontecer que a pessoa tenha cometido um ato que, para os perseguidores, é crime.

Então, a condição para ser asilado deve ser que esse crime seja político. Entres esses crimes estão: formação de quadrilha, guarda de armas, roubos com finalidades políticas, pertinência a organização de luta política violenta. Todos esses delitos foram considerados políticos pelo STF até 2006. Não há nenhum motivo para pensar que a legislação devesse ter mudado tão rapidamente, até porque a realidade do problema do refúgio não mudou nada nestes três anos.

Mas, agora, alguns membros do STF parecem achar que toda aquela jurisprudência tornou-se, bruscamente, errada.

C. Quem Autoriza a Extradição?

Quando Battisti foi detido no Brasil em 18/03/2007, logo em seguida, no mês de maio, a Itália pediu sua extradição. Ambos os países já tinham assinado um tratado de extradição, mas observemos qual é seu teor.

Tratado de Extradição com Itália - Artigo 1 - Obrigação de Extraditar

Cada uma das Partes obriga-se a entregar à outra, mediante solicitação, segundo as normas e condições estabelecidas no presente Tratado, as pessoas que se encontrem em seu território e que sejam procuradas pelas autoridades judiciárias da Parte requerente [...] Grifo meu.

É evidente que as partes (os chefes de cada um dos estados) se obrigam reciprocamente a extraditar as pessoas pedidas, porém “segundo as normas e condições estabelecidas no presente Tratado”. O Tratado estabelece uma obrigação moral entre chefes de estado e não implica deixar a decisão final ao Supremo Tribunal Federal. No que se refere às normas e condições do Tratado, o artigo 3 é sumamente claro:

1. A extradição não será concedida:

b) se, na ocasião do recebimento do pedido, segundo a lei de uma das Partes, houver ocorrido prescrição do crime ou da pena;

c) se o fato pelo qual é pedida tiver sido objeto de anistia na Parte requerida, e estiver sob a jurisdição penal desta;

e) se o fato pelo qual é pedida for considerado, pela Parte requerida, crime político;

f) se a Parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição [...] Grifos meus.

O Ministro Marco Aurélio de Mello está estudando o problema da prescrição, mas já houve várias vozes autorizadas (Greenhalgh, Barroso, e outros) que afirmaram, ao longo dos oito meses do cativeiro de Battisti, que esta condição já se cumpriu. Portanto, o ponto (b) do artigo 3 nega a extradição.

O Brasil já emitiu uma ampla anistia para todos os opositores armados ao governo nas décadas de 70 e 80, incluindo a anistia constitucional de 1988, que é muito abrangente. Por analogia, um cidadão estrangeiro que esteja sob jurisdição brasileira e que tenha sido condenado por ações similares, deveria estar protegido da mesma maneira.

As conseqüências internacionais da possível extradição de Battisti seriam desastrosas. O poder de conceder refúgio passaria dos especialistas a juristas que lidam com os aspetos formais do direito. A vida e a segurança dos perseguidos passariam a depender de questões formais.

Ao falar no problema da extradição, o relatório do STF não diferencia entre quem autoriza e quem ordena a extradição.

A lei 9474 diz, no título V, capítulo 1, artigo 33, de maneira muito categórica, que:

o reconhecimento do refúgio obstará...qualquer pedido de extradição.

Por sua vez, o que a Constituição Federal afirma no artigo 120 é que:

Compete ao STF [...]

i) processar e julgar, originariamente: [...]

g) a extradição solicitada por estado estrangeiro.

Ora, quando Battisti foi considerado refugiado pelo ministro Tarso Genro, em janeiro de 2009, pelo art. 33 da lei 9474, o pedido de extradição ficou, nesse momento, “obstado”. Ou seja, esse pedido deixou de existir.

Então, esse pedido de extradição não pode ser enviado ao STF nem a parte nenhuma para tomar decisão sobre ele, porque ele foi extinto. Não se estudam coisas que já não existem.

Há outro detalhe:

O STF está incumbido de processar e julgar a extradição, segundo a Constituição. Mas, não diz que sua decisão tenha força compulsória para o poder executivo, ou seja, o STF não pode obrigar o poder executivo a extraditar ninguém. Podemos combinar o artigo 102 da Constituição com o artigo 83 (ou 81) do Estatuto do Estrangeiro, que diz:

Nenhuma extradição será concedida sem prévio pronunciamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre sua legalidade e procedência, não cabendo recurso da decisão.

Isso significa que é necessário que o STF se pronuncie sobre a legalidade do pedido. Se o STF diz: “sim, podem extraditar”, então ele está autorizando. Se ele diz “não podem”, então nem o presidente nem ninguém poderia executar a extradição.

Entretanto, esta condição necessária não é suficiente. Nem a Constituição nem o Estatuto dizem que a decisão do Supremo, quando positiva, obriga a autoridade a cumpri-la.

O refúgio extingue a extradição. Então, o STF vai julgar algo que não existe. Para contornar essa falácia, o relator usou um recurso igualmente equivocado: anular o refúgio dado por Genro.

D. Quem Ordena a Extradição?

A única autoridade que pode ordenar a extradição é o poder executivo, ou seja, o próprio presidente ou a pessoa à qual delegue esse poder. Existem várias razões que determinam esta situação.

Primeiro: o STF é uma corte constitucional e não um organismo executor. Mesmo que tenha poder, como qualquer órgão judiciário, para convocar a polícia, não pode, por sua própria conta, ordenar à polícia federal que entregue Battisti ao governo italiano. Como teoricamente deveria acontecer com qualquer tribunal, seu objetivo é proteger o indivíduo e não atuar como procurador de quem quer que seja (brasileiro ou estrangeiro) para punir os inimigos do requerente.

Então, o STF pode proibir ao presidente extraditar uma pessoa que, de acordo com o julgamento do tribunal, não deveria ser entregue aos requerentes. Mas não pode obrigar a entregar alguém.

Segundo: pelo princípio que rege as relações internacionais, como a extradição não é um problema interno do país (diferentemente do refúgio), quem representa o país no exterior (ou seja, o executivo) é quem deve tomar a decisão final.

O presidente do STF e o próprio relator disseram que o presidente Lula deveria lhes obedecer (sic), mas atualmente essa prepotência parece ter diminuído face ao descabido da ameaça. Aliás, na sessão de 09 de setembro de 2009, os ministros Carmen Lúcia, Joaquim Barbosa e Eros Grau deixaram muito claro que o tribunal não tem como missão extraditar ninguém. Ele só pode apreciar a validade ou não validade jurídica do pedido do requerente.

Ao mesmo tempo, alguns dos próprios juízes que acompanharam o relator na votação parecem mostrar dúvidas sobre a afirmação da cúpula do tribunal, de que é possível passar por cima da decisão do Presidente da República.

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Jurisprudência

A. Extradições não Concedidas

Um caso interessante, não político, de extradição negada, foi a do assaltante britânico Ronald Biggs, que se escondeu no Brasil depois de uma longa fuga por diversos lugares do planeta.

Em 1974, um jornalista britânico descobriu a presença de Biggs no Rio de Janeiro e comunicou o fato a Scotland Yard. Apesar das gestões do governo britânico junto à ditadura brasileira, Biggs não pôde ser extraditado, porque sua parceira estava grávida. Este fato não tem relação com refúgio, mas mostra que alguns princípios (por exemplo, o de que o pai de um brasileiro não pode ser expulso) fazem parte de uma tradição humanitária e hospitaleira tão forte, que nem os próprios militares, inclusive ante um crime comum, tiveram ânimo de violá-los.

A proteção que brindou o governo brasileiro foi ilimitada, e inclusive se ofereceu a receber novamente a Biggs, quando um grupo de piratas o seqüestrou e o levou ao Caribe, com ânimo de “vendê-lo” à Grã Bretanha. A iniciativa falhou, porque não existia tratado de extradição com o país dos seqüestradores. Recentemente Biggs abandonou o Brasil por própria vontade e, aparentemente, sem pressão nenhuma por parte do Brasil.

B. O Caso Firmenich

Houve no Brasil poucos casos de extradições que prejudicaram autores de crimes estritamente políticos. O mais conhecido, que marcou tristemente a história do Brasil por sua extrema iniquidade, foi o de Olga Benário.

O único caso recente é o do argentino Mario Eduardo Firmenich. Este foi um dos fundadores e principal chefe da organização armada Montoneros, um grupo especializado em guerrilha urbana, cujo objetivo nos anos 60 era derrubar a ditadura militar da época e favorecer o retorno de Perón, tarefa na qual Firmenich teve importante participação.

Depois das eleições argentinas de 1983, quando a mais recente das ditaduras abandonou o poder, o novo governo democrático decidiu acalmar a possível ira dos militares, e passou a perseguir antigos chefes de movimentos guerrilheiros. É importante ter em conta que estes movimentos, salvo o chamado Exército Revolucionário do Povo, não eram marxistas, senão grupos nacionalistas católicos cujo apelo ao socialismo era bastante difuso.

O governo argentino pediu a extradição de Firmenich à já agonizante ditadura de Figueiredo, e o réu foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 24/10/1984. Este foi o único caso de extradição de um refugiado por razões políticas desde Olga Benário até hoje.  Entretanto, embora movido por interesses políticos de ambos os governos, essa extradição não foi totalmente iníqua. Segue um resumo da ementa do Acórdão do STF em que aparece esse processo. Os grifos são meus.

Extradição. Crimes políticos. Decisão sobre os mesmos crimes em outro processo de extradição, o de Mario Eduardo Firmenich, do Movimento Peronista Montonero. No processo de extradição de Mario Eduardo Firmenich, foram considerados crimes de natureza política os que lhe foram imputados de deposito de explosivos e posse de arma de guerra, pelo que sua extradição veio a ser concedida por outros crimes, mas não por aqueles. Em conseqüência, de conceder-se habeas corpus a paciente, Maria Elpidia Martinez Aguero, para que seja trancado qualquer expediente relativo à sua extradição e que tenha por base a acusação de cometimento daqueles mesmos crimes de deposito de explosivos e de posse de armas de guerra, que por ela teriam sido cometidos juntamente com o aludido Mario Eduardo Firmenich.

Deve observar-se que a posse de armas de guerra e explosivos foi considerada crime político pelo STF e, portanto, não causadores do processo de extradição. Uma amostra disso é que a companheira de Firmenich, que tinha cometido os mesmos delitos, não foi extraditada, e pôde conservar sua condição de refugiada.

O caso de Firmenich foi infinitamente mais grave que o de Battisti e não pode servir de argumento para a extradição deste. Com efeito, desde junho de 1970 em diante, os atos de violência cometidos pelo grupo de Firmenich foram abertamente propagandeados por ele próprio e por seus simpatizantes.

A revista El Descamisado (O Descamisado), órgão dos Montoneros, que na década de 70 tinha uma enorme circulação, descreveu em um de seus números a execução de um militar reformado que tinha sido ditador nos anos 1955-1958. Eles se atribuem essa execução sem nenhum atenuante, a consideram justa, e se gabam do método empregado para fazê-la, que não deixou ao executado nenhuma chance de defesa.

Também, Firmenich se orgulhou de diversos sequestros e de atentados a bomba onde morreram civis, e também policiais que não estavam em serviço naquele momento, nem podiam ser qualificados, massivamente, de torturadores.

O Relator de Battisti compara esse caso com o de Firmenich. Ambos, entretanto, não têm nada a ver. Firmenich anunciou ter cometido crimes durante 14 anos, enquanto sobre Battisti não há prova nenhuma. Aliás, o fato de que as provas contra Battisti tenham sido inventadas é um indício de que existe o propósito de prejudicá-lo. Se ele tivesse cometido algum desses assassinatos, a Corte de Milão com certeza apresentaria as provas!

C. O Caso Falco

Em fevereiro de 1989, o jovem argentino Fernando Carlos Falco, membro do movimento de esquerda denominado Todos pela Pátria, fugiu ao Brasil depois de ter caído numa cilada montada pelo Exército Argentino no quartel de um poderoso regimento localizado na cidade de La Tablada, perto de Buenos Aires. O objetivo era atrair os membros do movimento, com o boato de que nesse quartel se gestava um golpe de estado, sabendo que os jovens, que estavam engajados em ações muito decididas em defesa da democracia, se dirigiam ao local para evitar a revolta militar. Depois de que o grupo de jovens chegou ao quartel, os militares abriram as portas, e receberam os ativistas com fogo de armas pesadas, granadas e bombas incendiárias, matando quase cinquenta ativistas.

Uns 40 militantes foram torturados e mortos, outros foram capturados, mas Falco e uns poucos colegas conseguiram escapar. No Brasil, o jovem foi sequestrado por um comando conjunto das polícias federais argentina e brasileira, mas a PF brasileira deveu entregá-lo à justiça. Naquele momento, o governo democrático argentino (presidido por Raúl Alfonsín, tido na América Latina como um dos líderes da democracia do continente) tentou mantê-lo sequestrado, mas não conseguiu e apresentou um pedido de extradição ao governo brasileiro. Por razões que desconheço seu caso não mereceu muita difusão, apesar de ser o mais parecido ao de Battisti. Ele foi julgado pelo tribunal pleno no dia 04/10/1989.

Segue uma transcrição do acórdão do STF. Todos os trechos em destaque foram grifados por mim, e mostram a tendência do Tribunal que caracteriza sua visão dos crimes políticos como diferentes do terrorismo.

1. Pedido de extradição: dele se conhece, embora formulado por carta rogatória de autoridade judicial, se as circunstancias do caso evidenciam que o assumiu o governo do estado estrangeiro.

2. Associação Ilícita Qualificada e a Rebelião Agravada, como definidas no vigente código penal argentino, são crimes políticos puros.

3. (a) Fatos enquadráveis na lei penal comum e atribuídos aos rebeldes:

Roubo de veículo utilizado na invasão do quartel, e privações de liberdade, lesões corporais, homicídios e danos materiais, perpetrados em combate aberto, no contexto da rebelião, são absorvidos, no direito brasileiro, pelo atentado violento ao regime, tipo qualificado pela ocorrência de lesões graves e de mortes (...)

(b) A imputação de dolo eventual quanto às mortes e lesões graves não afasta necessariamente a unidade do crime por ela qualificado.

4. Ditos fatos, por outro lado, ainda quando considerados crimes diversos, estariam contaminados pela natureza política do fato principal conexo, a rebelião armada, à qual se vincularam indissoluvelmente, de modo a constituírem delitos políticos relativos.

5 - Não constitui terrorismo o ataque frontal a um estabelecimento militar, sem utilização de armas de perigo comum nem criação de riscos generalizados para a população civil.

O STF indeferiu o pedido de extradição argentino e garantiu a Falco a permanência no país. Ele ficou na condição de asilado/refugiado, o qual é mais uma prova de que ambos os conceitos não são fáceis de separar como pretendem alguns magistrados. O asilo foi concedido pelo governo, que lhe forneceu documentos e estadia legal no país, e em condição de refugiado recebeu ajuda econômica do ACNUR durante os primeiros meses. Viveu normalmente no Brasil, onde formou uma família, até 2004, quando o novo governo argentino revogou as ordens de perseguição contra ele, e o convidou a voltar.

O caso Falco é ilustrativo por vários motivos:

A Corte entende de que “homicídios são absorvidos [...] pelo atentado conexo ao regime” (§ 3), e que todos os atos estão contaminados pelo caráter político do crime principal (§4). Este é um fato que o relatório contra Battisti tenta negar, pretendendo que ambos os casos são muito diferentes. Isto é uma distorção evidente da realidade.

Deve observar-se que Falco e alguns de seus companheiros foram perseguidos e ameaçados pelo governo argentino, não durante a ditadura, mas durante o governo posterior a ela (1983-1989), que era considerado um modelo de democracia latino-americana. Este é pelo menos um dos numerosos contra-exemplos possíveis contra a ridícula falácia de que “nos governos democráticos não existem abusos judiciais”.

Talvez o relatório contra Battisti pretenda sugerir que, em 1989, os membros do plenário do STF que votaram massivamente a favor de Falco estavam todos equivocados. Mas, se isso é o que pensa o relator, deveria comprometer-se e afirmá-lo claramente.

Como pode o relator sustentar que regimes democráticos não perseguem seus cidadãos. Então, o governo argentino de Alfonsín, em 1989 era uma ditadura? Curiosamente, todos os políticos e diplomatas brasileiros sempre citaram esse governo como sinônimo de democracia.

D. O Caso Medina

Oliverio Medina é um padre colombiano devotado à pastoral em defesa dos camponeses, e um grande mediador desde 1983 até 2000, nos processos de paz entre as diversas forças revolucionárias e o governo da Colômbia.

Em 2000, foi preso pela Polícia Federal brasileira, mas foi logo liberado. Por exigência da Colômbia, foi novamente capturado em 2005, num operativo sigiloso em cumplicidade com Interpol. Como de hábito, o governo colombiano o acusou de terrorismo e pediu sua extradição, que foi negada num processo memorável.

Em julho de 2006, o CONARE lhe concedeu refúgio. Este é o terceiro exemplo importante de alguém perseguido por um estado formalmente democrático, o que contradiz novamente que um perseguido por uma democracia não deveria ser asilado. Finalmente, a extradição foi indeferida pelo STF em março de 2007, uma data muito próxima. Reproduzo a Ementa do STF, onde todos os grifados e as observações entre os parágrafos são minhas e não aparecem no texto original.

Extradição: Colômbia. Crimes relacionados à participação do extraditando ( então sacerdote da Igreja Católica ( em ação militar das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Questão de ordem. Reconhecimento do status de refugiado do extraditando, por decisão do comitê nacional para refugiados ( CONARE: pertinência temática entre a motivação do deferimento do refúgio e o objeto do pedido de extradição: aplicação da Lei 9.474/97, art. 33 (Estatuto do Refugiado), cuja constitucionalidade é reconhecida: ausência de violação do princípio constitucional da separação dos poderes.

1. O STF reconhece que o Estatuto do 1. De acordo com o art. 33 da L. 9474/97, o reconhecimento administrativo da condição de refugiado, enquanto dure, é elisiva [proibitiva] por definição, da extradição que tenha implicações com os motivos do seu deferimento.

2. É válida a lei que reserva ao Poder Executivo ( a quem incumbe, por atribuição constitucional, a competência para tomar decisões que tenham reflexos no plano das relações internacionais do Estado ( o poder privativo de conceder asilo ou refúgio.

3. A circunstância de o prejuízo do processo advir de ato de outro Poder ( desde que compreendido na esfera de sua competência ( não significa invasão da área do Poder Judiciário.

4. Pedido de extradição não conhecido, extinto o processo, sem julgamento do mérito e determinada a soltura do extraditando.

5. Caso em que de qualquer sorte, incidiria a proibição constitucional da extradição por crime político, na qual se compreende a prática de eventuais crimes contra a pessoa ou contra o patrimônio no contexto de um fato de rebelião de motivação política (Ext. 493).

A condição de refugiado é constitucional, e sua aplicação pelo poder Executivo não viola a separação de poderes, e que o fato de ter sido declarado refugiado impede imediatamente a extradição. Além disso, reconhece a atribuição do poder executivo para conceder refúgio.

Isto foi deliberado 3 anos antes de começar o caso Battisti.

Entretanto, o relatório do STF contra Battisti contradiz notoriamente essas afirmações. Numa manifestação cheia de retórica, o relator diz que a atitude de Tarso Genro é uma “intromissão” nas atividades do STF. Também, ignora-se a imediata extinção da extradição produzida pelo Instituto do Refúgio.

Trata-se de um critério que é o estritamente oposto da famosa máxima de que a lei é universal e abstrata. No caso Battisti, a lei é individual e personalizada, e tratada de tal maneira que visa prejudicar o réu. Trata-se do caso de distorção mais iníquo e incoerente da história jurídica do Brasil. Aliás, não apenas isso. Seu grau de iniquidade é extremo, comparável apenas à forma que atuaria um tribunal de exceção num sistema absolutista.

Esta é uma situação de extrema gravidade que não guarda nenhum paralelo com outros fatos acontecidos no país, nem mesmo durante a ditadura. Trata-se de ir modificando não apenas a lei, mas também os princípios legais básicos, como o direito de isonomia, para obstruir o refúgio de Battisti.

Há ainda um ponto muito importante levantado pelo parágrafo 2 do acórdão acima, onde se ignora a diferença metafísica que o magistrado Carlos Veloso faz entre asilo e refúgio.

O parágrafo 2 reconhece o direito do executivo para conceder tanto refúgio como asilo, contrariando a pretensão do atual STF de que cabe a ele próprio decidir sobre esse assunto.

É evidente que existe ampla animosidade contra Battisti, pela qual alguns ministros se forçam de maneira ostensiva em ignorar a semelhança das jurisprudências. Desejo sair agora um pouco do tema jurídico e fazer um comentário que ajudará melhor a entender a situação.

A profunda repulsa que o presidente ou relator e alguns outros membros do STF mostram contra Battisti deve estar baseada em razões muito profundas. Sem dúvida, algumas são ideológicas. Outras devem estar relacionadas com interesses sociais, diplomáticos e, eventualmente, de alguma outra natureza mais pragmática.

É necessário, todavia, fazer uma ressalva importante. Apesar de que o direito de Battisti a ser imediatamente liberado é evidente, é possível que alguns dos ministros se tenham sentido arrastados pela retórica do relator, rica em sofismas, extrapolações e citações totalmente fora de contexto. Por isso, desejo salientar:

Nem todos os juízes que acompanharam o voto do relator parecem ter ânimo negativo. Alguns dos votos favoráveis à extradição sugerem que os ministros que assim votaram se sentiram confundidos pela forma ambígua do relatório. Mas, isso não deve ser um problema. Reconhecer os próprios erros é mais corajoso que a capacidade de não errar.

7

Julgado no Brasil

A. Violações à Carta Americana

Em 18/03/2008, Battisti foi detido pela Interpol, e pelas polícias italiana, francesa e brasileira, em arrepio do art. 33 da Convenção de Genebra de 1951 que proíbe punir imigrantes irregulares que procuram refúgio. Desde então, a justiça brasileira tem violado os seguintes artigos da Convenção Americana de DH:

Art. 14. Todos têm direito de apresentar petições [...] e obter pronta resolução.

No 11/02/2009, o Senador Suplicy pediu ao STF que permitisse a Battisti se manifestar, mas não obteve resposta do presidente nem do vice-presidente.

Art. 15. Todo preso tem direito à verificação da legalidade de sua prisão, e a ser julgado sem demora ou liberado.

A justiça não verificou a legalidade da prisão de Battisti até o dia do julgamento. Quando o julgamento começou, a demora, que segundo a Carta Americana deve ser mínima, já atingia os 30 meses. A prisão foi mantida a pesar de 9 pedidos de liberdade da defesa, e seu único fundamento foi a proibição do governo italiano, que atuou como supervisor dos presidentes do STF.

Art. 16. Todo acusado é inocente, até que se prove o contrário.

Em 04/02/2009, o ministro Celso de Mello confessou à mídia que existia um caminho para condenar Battisti: mudar a jurisprudência, que é totalmente favorável ao réu. Inclusive deixou transparecer que as leis podem ser mudadas aos poucos. Mostrou-se favorável à possibilidade de extraditar pessoas inclusive quando a pena que receberá no país requerente seja perpétua, o que está expressamente proibido pelas leis brasileiras. Até usou como exemplo um cidadão chileno cumprindo pena por sequestro no Brasil, não extraditado porque o Chile possui pena de prisão perpétua. No entanto, o ministro parece entender que essa cláusula constitucional (que constitui uma das cláusulas pétreas da Constituição) poderia ser violada.

Pode ver-se esta conversa em:

.br/noticias/740386/mello-stf-pode-mudar-jurisprudencia-no-caso-battisti

O ministro Celso de Mello declarou-se impedido no julgamento de Battisti, sem indicar as razões do impedimento. Battisti era desconhecido no Brasil e seu julgamento não envolve, de maneira aberta, nenhum conflito de interesses dentro do estado brasileiro. Então, por que um juiz estaria impedido? Vou ousar fazer uma conjetura: pessoalmente, acredito que Celso de Mello tomou consciência de que a animosidade que tinha demonstrado contra Battisti era totalmente infundada, e preferiu mostrar perfil baixo. Entretanto, cometer erros, inclusive em casos graves, é próprio da condição humana: o Ministro Celso de Mello talvez possa ajudar a salvar a imagem de parcialidade da cúpula do STF, e votar de acordo com sua consciência.

Finalmente, o último artigo da Carta Americana de DH violado pelo STF foi:

Art. 17. Proclama o direito de receber asilo.

Em 24/03 o presidente do STF afirmou que, se este Tribunal assumir uma atitude favorável à extradição, o governo será obrigado a baixar a cabeça e obedecer. Desta maneira, o STF não apenas declara seu próprio caráter todo poderoso, mas também atribui à sentença italiana uma espécie de sacralidade intocável. Isto é totalmente contrário aos princípios básicos do direito, segundo os quais qualquer dúvida beneficia o réu. E, neste caso, não há uma dúvida. Há dúzias de dúvidas, e dúzias de certezas de fraude pelo Tribunal de Milão.

Foi por causa disto que, em junho de 2009 enviei uma denúncia ao Conselho Interamericano de Direitos Humanos (CIDH), dependente da OEA, colocando ao presidente do STF e ao relator, como possíveis réus de violações aos DH. Neste momento (outubro de 2009) espero que essa denúncia não seja necessária!

B. Julgamento Prévio

A intromissão do STF no mérito desta decisão, mostra que pretende não apenas cumprir sua função legítima de interpretar a lei, mas também modificar e até criar leis. Esta decisão aberrante foi reconhecida, porém, por um dos ministros do STF.

Como já mencionamos, o ministro Celso de Mello tinha dito que o STF poderia modificar sua jurisprudência anterior sobre refúgio.

É verdade que, em alguns casos, é necessário modificar a jurisprudência por razões muito poderosas que obriguem a um novo entendimento da lei. Por exemplo, quando o Fascio foi derrotado durante a Segunda Guerra Mundial, não apenas foram derrogadas muitas leis repressivas, mas foi mudada a jurisprudência baseada em muitas das leis que permaneceram. Também em América Latina houve modificações de jurisprudências deflagradas por processos profundos, como a re-democratização de em diversos países, e em alguns casos, como no México, certa jurisprudência foi considerada muito atrasada.

Entretanto, que problemas graves houve no Brasil nos últimos três anos, para modificar uma jurisprudência que está diretamente vinculada com algo tão radical e permanente como os Direitos Humanos?

A invasão do STF sobre o governo foi declarada sem nenhuma inibição pelo presidente do tribunal. Gilmar Mendes ameaçou ao presidente Lula, durante uma conferência de imprensa, sobre a suposta obrigação deste de obedecer ao que o STF decida sobre a extradição de Battisti. É provável que mesmo esta aberração não tenha sido muito popular, porque Mendes não voltou a insistir no assunto.

.br/noticias/2009/03/24/materia.2009-03-24.8979725370/view

Uma forma permanente de manifestar julgamento prévio contra Battisti apareceu durante muitos meses na forma em que a cúpula do STF obedeceu todas as indicações da embaixada e do governo italiano. Mesmo se Battisti fosse culpado, a maneira extrema de agradar aos funcionários do Quirinal constitui uma agressão prévia e ilegal contra o réu. Também é, claro, uma afronta a autonomia do Brasil.

Há numerosos exemplos disto (no total, devem ser mais de 50), mas quero mencionar o mais escandaloso.

O Embaixador da Itália no Brasil, Michele Valensisi, manteve uma conversa privada com o presidente do STF, Gilmar Mendes, no dia 20 de janeiro de 2009. A reunião entre ambos esteve rodeada de excepcional mistério, como se descreve nos jornais da época. Vide, por exemplo:

ultimainstancia..br/noticia/61278.shtml

O sigilo em torno deste encontro, que foi encerrado de maneira crítica, com a saída do embaixador por uma porta secreta e a negativa das assessorias de imprensa de ambos a comentar o evento, é inusitado inclusive em reuniões de cúpula entre altas autoridades. Apesar de todo isto, se supõe que Valensisi pediu garantias a Gilmar Mendes de que poderia entrar com mandato de segurança contra a decisão de Tarso Genro de conceder asilo a Battisti.

Como é bem sabido (e foi lembrado recentemente pela defesa de Battisti), o mandato de segurança pode ser exercido por pessoas físicas e jurídicas dentro do país, ou por pessoas físicas e jurídicas de direito privado fora dele, mas não por governos estrangeiros. De acordo com isto, a acolhida do mandato de segurança foi ilegal. Deve ter sido esse aspecto o que motivou tamanho mistério.

Como as irregularidades são muitas, mencioná-las todas entediará o leitor. Mas, quero mencionar o último caso. Extraoficialmente, as forças dirigentes na Itália alentaram a pretensão de Alberto Torregiani, filho do ourives assassinado em 1979, de prestar declarar pessoalmente no STF. Mesmo que o sentimento da vítima seja compreensível, a colocação jurídica do problema carece de sentido. O STF não é uma delegacia de polícia onde se podem fazer acareações.

Finalmente, cabe destacar a função obscura do governo italiano, quando o relator do processo (nesse momento, presidente interino do STF) lhe permitiu algo assim como “participar do processo”. O que quer dizer isso, exatamente? Itália é parte requerente, então já está participando. Nomeou um advogado como lhe permite a lei. Não é amicus curiæ, já que é parte diretamente interessada. O que, então, pretende? O relator deixou transparecer que Itália tinha direito a algo que foi formulado em obscuro juridiquês, mas poderia ser traduzido assim: “participar das decisões do STF”. De fato, o relator sempre obedeceu todas as indicações do governo italiano e o consultou permanentemente.

Uma pura curiosidade: quanto a Itália terá participado na redação do relatório? Talvez algum dia saibamos.

C. Parecer do Procurador

O procurador-geral da República na época em que Battisti foi preso, Antonio Fernando de Souza, recomendou, em seus últimos pareceres que o processo de extradição deveria ser arquivado. Ele manteve o critério de que devia respeitar-se o artigo 33 da lei 9474, que diz:

Artigo 33 - O reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio

Este critério foi mantido pelo procurador que sucedeu a Souza no cargo.

D. Argumentos da Defesa

O advogado Luís Barroso, que compartilha com Eduardo Greenhalgh a defesa de Battisti, tem colocado os eixos de sua argumentação em várias dimensões complementares: a presunção da inocência, o caráter político dos delitos atribuídos, a existência de uma anistia, a prescrição da pena e, especialmente, o aspecto humanitário do problema, que é fortemente negligenciado no relatório do STF.

Barroso afirma que a questão é jurídica e não política, afastando as críticas maliciosas feitas pela mídia e pela direita, no sentido de que Tarso teria concedido refúgio a Battisti por ser um ex-guerrilheiro, e que não o faria com pessoas de outra ideologia.

Nesse contexto, coloca ênfase no fato de que o que está em jogo é a vida de uma pessoa (o que mostra, claramente, sua suspeita do que possa acontecer a Cesare na Itália) e de seu direito à liberdade. Portanto, conclui que não se pode falar de direitos de esquerdistas ou direitistas, pois se trata de direitos da condição humana em geral.

O discurso de Barroso surpreende pela objetividade e precisão, munidas de calor humano, características infrequentes na linguagem jurídica, o que talvez seja o sinal de uma nova geração de juristas, influenciados pelos avanços dos Direitos Humanos e de uma sutil, mas importante diminuição das tendências rançosas e formalistas.

Numa das apresentações de seus argumentos, ele diferencia entre teses morais e teses jurídicas.

Do ponto de vista moral, mostra que a afirmação de Battisti que nada teve a ver nos quatro assassinatos é muito provavelmente verdadeira, dada a falta de provas, com independência de qualquer apreciação subjetiva sobre a mesma.

O segundo argumento moral se refere à tradição humanitária do Brasil, ao manifestar oposição a condenar uma pessoa a passar a vida numa prisão. É a primeira pessoa que faz uma referência enfática a um fato capital: Battisti está re-socializado, porque 28 anos após sua fuga nunca mostrou uma atitude negativa.

Dentre as causas jurídicas, afirma um fato de evidência absoluta a luz das leis: é válida, tanto formal como materialmente a decisão do Ministro da Justiça de conceder refúgio. Assim, sendo, não cabe a extradição, que é extinta pela mesma condição do refúgio. Além disso, tanto a concessão de refúgio quanto a extradição são atos soberanos do Estado Brasileiro e seu representante é o governo, na pessoa do presidente da república.

E. É Possível Julgar Sentença Estrangeira?

Não apenas nesta composição atual do STF, mas de uma maneira mais geral, existe em vários países o preconceito de que o mérito de uma sentença estrangeira não pode ser julgado. Esta crença não se baseia numa concepção de justiça nem, muito menos, de Direitos Humanos, mas num problema de conveniência internacional. Não devemos criticar os abusos e iniquidades de outros países, para que não tomem represálias contra nós, especialmente a nível econômico.

Esta etiqueta recebe o pomposo nome de Soberania Jurídica.

Esta concepção conduz, no melhor dos casos, a um círculo vicioso. O país A recebe um estrangeiro que é requerido pelo país B. Suponhamos que A descobre que a acusação feita contra o estrangeiro é falsa, mesmo que a evidência não seja tão gritante como no caso Battisti. Então, A deveria entregar a B uma pessoa que ele acha ser inocente, e que será tratada como culpada. A se recusa a usar seus tribunais, sua polícia, sua autoridade para entregar o extraditando, e B o pode acusar de violar sua soberania. Ora, quando B exige a entrega de sua presa, se sente com direito a atropelar a soberania de A.

Seria impossível que o Brasil quisesse reconstruir todo o processo sofrido por Battisti, mas não se trata disso. O que se afirma é simplesmente que o crime não está provado.

A objeção não é um problema técnico. Por exemplo, Itália usa o sistema escocês de sentença trivalente (culpado, inocente, não provado), enquanto Brasil usa o típico culpado ou inocente. Ninguém diz que Itália não tem direito a extradição porque a semântica de suas sentenças é diferente da semântica brasileira.

Não se pretende que Battisti seja julgado pelos mesmos rituais brasileiros, com os mesmo códigos e penas, com cronograma e planejamento similar. Existem, de fato, no mundo todo, diversos critérios para celebrar um julgamento e emitir sentenças. Alguns são mais seguros, eficientes e humanos que outros, mas seria difícil questionar todos esses pontos quando há razoável evidência da culpabilidade do réu.

O que aqui se pretende, com uma definição sensata e universal de DH, é que, para se conceder a extradição, seja condição necessária provar que existiu o crime.

A atual proposta do relator é que não se investigue se realmente Battisti foi ou não um assassino. Então, o STF pode estar julgando um fato que não existe. Isto acrescentaria à iniquidade, ainda o absurdo de pronunciar-se sobre um fato imaginado ou inventado.

Não queremos que Itália adote nosso método de abrir uma sessão de julgamento, que as togas sejam similares em ambos os países, nem mesmo que utilize sentenças bivalentes. Queremos que ninguém possa ser condenado sem provas, ou, como neste caso, alguém não seja condenado com numerosos indícios de que é inocente.

Entretanto, existe uma tendência a reverter esse quadro. O brilhante jurista Marco Aurélio de Mello já se manifestou a jornalistas sobre a delação premiada. Essa manifestação não envolve apenas aspectos formais da extradição, mas se refere de maneira medular aos métodos usados, na Itália, no julgamento de Battisti. Ou seja, ele está mostrando a existência de falhas no processo contra Battisti, o que significa abandonar o tabu de que a justiça italiana é sagrada.

F. O Relatório

O relatório de Cézar Peluso, reproduzido por scanner dos fólios originais, pode ver-se nos site:



Dentro do relatório, como citação, aparece o texto com a decisão de Tarso Genro sobre o refúgio, em forma quase íntegra (a partir do parágrafo 10). Entretanto, apesar da integridade, os comentários aos parágrafos são feitos para tirar a decisão de Tarso de contexto, com o qual se apresentam algumas frases como se tivessem sido ditas pelo ministro. Uma delas, por exemplo, é a insinuação de que Itália não seria um país democrático, o que nunca foi afirmado por Genro.

A seguir, faço algumas referências aos problemas encontrados no relatório, que podem ser chamados de “erros” ou “sofismas”.

Uma observação final é que o STF não está interessado em ver as provas que estariam no inquérito de Battisti, caso elas realmente existam. Não há interesse em saber se Battisti é inocente ou culpado. Segundo várias pessoas do círculo de defensores de Battisti, como, por exemplo, a escritora e arqueóloga francesa Fred Vargas, o STF não aceitou pedir a Itália os autos com as perícias, dado que nem ela nem os advogados conseguiram que o governo italiano entregasse cópias.

Rejeição do Refúgio

O primeiro ato do relator teve lamentável sucesso, criando um precedente catastrófico na justiça brasileira: extinguir o refúgio dado pelo Ministro da Justiça.

Dalmo Dallari, considerado o maior jurista brasileiro vivo, defende a atribuição do Ministro para conceder refúgio. No mesmo sentido se pronunciaram outros juristas, advogados e até agora quatro dos membros do STF. A crença de que o relator estava certo e que só era contestado por amadores é falsa, porque, se assim fosse, o tribunal não estaria dividido.

Aliás, a leitura dos votos faz suspeitar que inclusive alguns juízes que acompanharam o voto do relator pareciam ter alguma dúvida sobre a negação do poder discricionário do ministro.

Situação Italiana

O relator considera uma injúria contra a Itália a afirmação do ministro Tarso Genro de que, durante o período da Estratégia de Tensão, existiram no país condições obstrutoras dos DH e que funcionava um estado paralelo. Apesar da cautela excessiva e até tímida com que o ministro Genro formula todos esses reparos. O magistrado relator refere-se com ironia às declarações do ministro Genro sobre a existência de atos terroristas da direita, como aquele de Piazza Fontana, conhecido hoje por milhões de pessoas.

Se o relator tivesse lido mesmo o capítulo 1 deste resumo de meu livro, teria evitado refutar coisas tão evidentes: o estado terrorista não era “paralelo”, mas o próprio estado oficial italiano; houve tormentos, sadismos e abuso; os stragi foram 26 , muito mais, portanto, do que os mencionados por Tarso; e o pior, a situação atual da repressão, embora menos grave, é semelhante. Se o relator tivesse respeito pelas ONGs de DH, e tivesse lido os relatórios de Anistia Internacional sobre a Itália, de 1977 até 2009 (alguns se encontram em meu site, os mais novos podem ser encontrados no site americano de AI), teria evitado cometer erro tão grave.

“Fundados Temores”

O relator também acha um desaforo duvidar da segurança que Itália oferece a seus prisioneiros. Deixando a discussão confusa sobre o que seria “fundado temor”, o concreto é que o juiz manifesta uma espécie de sagrada indignação ao desconfiar de um governo e uma sociedade tão impecável.

Battisti está condenado à prisão perpétua. Então, ele não suspeita que possa poder a liberdade. Ele sabe que a vai perder. O governo italiano diz isso. Então, ser condenado à perpétua sem luz solar, isso não é perseguição? Que mais o relator pretende que se possa fazer contra ele?

Mesmo se Battisti não tivesse sido julgado, e fosse acusado de delitos mais leves, a Itália não oferece nenhuma segurança. Se aceitasse se informar, comprovaria o seguinte:

Trabalhadores honestos de diversos países, dedicados, produtivos, pacíficos, que não têm antecedentes criminais nem políticos, sofrem o inferno na Itália. Seus acampamentos e cabanas são incendiados, são capturados pela polícia, são submetidos à tortura, suas crianças são espancadas.

Segundo Patrizio Gonella, presidente de Antígone em 2009, Itália ficou famosa como o país europeu cujas punições contra os presos políticos no pós-guerra foram mais desproporcionais e cruéis.

É absurdo desprezar a opinião de organizações já provadas por sua honestidade e prestígio, como a ONG de DH Antigone, cuja credibilidade local é tão grande como a de Anistia Internacional. Vide o site da mesma:



O presidente de Antígone diz que vários juízes americanos consideram o regime italiano de reclusão, 41 bis, uma forma de tortura permanente e, por esse motivo, muitos se recusaram a conceder extradição de criminosos italianos retidos nos Estados Unidos e reclamados pela Itália.



Mesmo criminosos confessos, traficantes e mafiosos americanos, cumprindo penas duras nos Estados Unidos, não foram extraditados a Itália, porque algumas autoridades americanas entenderam que o tratamento dado nesse país era exageradamente desumano. Um caso bem conhecido desta opinião é o da juíza americana de imigração Sitgraves (2001-2006), que, apesar de sua fama de moralista e inquisitorial, se recusou a repatriar dois italianos por entender que seriam submetidos a um sistema penitenciário de tormento. Ver detalhes em:



Crime Político

Os crimes que se atribuem a Battisti são, sem dúvida, políticos, seja quem for o autor. Há várias razões:

1. A forma de aplicar a sentença é típica de perseguidos políticos.

Na S88, o tribunal acusa a todos os indiciados de “subverter violentamente o ordenamento econômico e social do Estado Italiano, de promover a insurreição armada...” (linha 4 em diante), que são típicos delitos políticos.

Além disso, roubo, intimidação e outros podem ser considerados conexos com crimes políticos. Isto foi o entendimento do STF brasileiro no caso Falco como já foi visto.

2. O mesmo ministro que implementou as leis repressivas diz que Battisti cometeu delitos políticos:

Cossiga, que foi ministro de defesa e autor das leis repressivas disse que Battisti é um criminoso político, mesmo reconhecendo que o odeia.

3. Na Itália, o estado não oferece reparações às vítimas de crimes comuns, porque se entende que o estado não pode ser responsável por todos os delitos que acontecem. Portanto, quando paga uma indenização é sempre para vítimas de crime político.

Alberto Torregiani, filho do ourives assassinado, recebe uma pensão pelos danos produzidos pela bala que recebeu. Considera-se então, que o ataque a seu pai foi crime político.

4. É uma praxe universal da justiça de Ocidente, que as penas dos crimes sejam aplicadas individualmente, e depois adicionadas. Mas, no caso de Battisti, ele foi condenado à prisão perpétua de maneira global.

A condenação de Battisti por “subversão mais assassinatos” é uma sentença típica para crimes políticos e não comuns. Este ponto também foi enfatizado por Marco Aurélio de Mello.

5. O próprio estado italiano está tratando os crimes como se fossem políticos. Nenhum delinqüente comum foi nunca reclamado com tanto afinco, com tanta arrogância, com tamanha coleção de ameaças e provocações. Ninguém faz isso por um criminal comum.

6. As vítimas de Memeo, Mutti e outros, atribuídas a Battisti, eram inimigos políticos dos executores. Santoro era um carcereiro que maltratava prisioneiros, Campagna não era um simples motorista, mas transportava pessoas aos centros de tortura. Já Torregiani e Sabbadin não eram inofensivos lojistas. Eram membros de associações de extermínio de pequenos ladrões, marginais e “vagabundos”, ou seja, linchadores fascistas.

As mortes destas quatro pessoas foram atos cruéis e sem sentido, são contrários à tradição marxista de luta aberta, mas são políticos e não comuns.

Pseudo-Provas

Apesar de afirmar que o Brasil não deve julgar o mérito da sentença italiana, o relator reproduz numerosos trechos das sentenças, e descreve os crimes aí narrados como se ele tivesse certeza de que tudo isso é verdadeiro. Enquanto nega o direito a mostrar a evidente falsidade das acusações, não duvida em apresentá-las como se fossem verdadeiras.

Se o jurista nega o direito a avaliar sentenças estrangeiras e proíbe que se mostre a falsidade das provas, então, por simetria, não deve cometer o erro de pretender a verdade de pseudo-provas.

Prescrição

Para uma pena como aquela à qual foi condenado Battisti, o prazo de prescrição é de 20 anos. O ponto polêmico, porém, é determinar a origem da contagem desse prazo.

Para alguns, a prescrição deve valer desde a última confirmação da pena, para outros desde a primeira condenação, há ainda quem defenda que depende do ângulo (defesa ou acusação) a partir do qual se fez a contagem. Neste relatório todas as referências à prescrição são feitas com base na alternativa que mais prejudica o réu.

Segundo Greenhalgh, o parecer da Procuradoria Geral da República, quando afirma que ainda não prescreveram as penas, incorre no erro de se fiar na Nota Verbal da Itália. De acordo com o defensor, os termos do trânsito em julgado que foram analisados são relativos aos recursos da defesa, não da acusação. E a prescrição da pretensão executória, segundo a lei brasileira, ocorre quando a sentença transita em julgado para a acusação.

O advogado deduz, então, que a prescrição já aconteceu em 13 de dezembro de 2008. Luís Barroso possui um argumento similar. Outros juristas convocados a se manifestar sobre o assunto possuem a mesma opinião.

Sofismas de Autoridade

O relator baseia alguns de seus argumentos no fato de que outras instituições do planeta se recusaram a apoiar a Battisti. O venerável juiz parece ignorar que todos somos cientes dos jogos de interesse que existem detrás da aparente pureza da justiça, especialmente no plano internacional, de modo que esse argumento ad uerecundiam (de autoridade) não parece muito sério.

No caso do Parlamento Europeu, deve lembrar-se que o governo italiano insistiu muitas vezes para que emitissem uma nota de repúdio contra o Brasil, e a instituição se recusava alegando que era um problema bilateral. Finalmente, numa reunião simbólica, produziu uma nota muito morna.

O Parlamento Europeu votou contra o Brasil, é verdade, mas o fez com um quórum de menos de 8%! Aliás, a maioria dos que apoiaram a moção (46 dos mais de 700) eram italianos, de diversos partidos neofascistas.

Justiça Proxy

O relator não atua como um juiz que está processando um cidadão de outro país dentro do território nacional, mas como um procurador do governo italiano, o qual, através da pessoa do relator, julga a seu pretendido extraditando. Os exemplos são inúmeros. Ele disse literalmente:

“O Estado requerente [Itália] é parte neste processo, que, instaurado a seu pedido, não pode deixar de atender, em certos limites, às exigências do contraditório” (?)

Ou seja, Itália é mais que requerente. É um componente do próprio tribunal.

Um fato insólito que, até onde eu pude pesquisar em processos internacionais, não possui antecedentes, é que o relator consultou ao governo de Itália sobre todos os pedidos da defesa de Battisti, especialmente os relativos a sua liberdade. Ele acatou as “decisões” da Itália, salvo uma, onde esta pedia liminarmente a anulação do refúgio.

Definição non sense

O relator pretendia acusar Battisti de ter cometido crime hediondo, já que terrorismo, tráfico de drogas, crimes contra a paz, crimes de guerra, e atos contrários às Nações Unidas não podiam ser aplicados, salvo forçando a situação a um limite extremo. Entretanto, como fez notar a ministra Carmen Lúcia, na época dos crimes, nem o próprio Brasil tinha definido o conceito de “crime hediondo” que, aliás, é muito típico do país e precisa “tradução” a outras situações.

O relator resolve com uma tautologia, que vou escrever simplificada: “Não se pode dar refúgio ao autor de um crime hediondo porque os crimes hediondos são tão repulsivos que seus autores não merecem ser refugiados”.

Lei de Anistia

O relatório não leva em conta que Battisti está sendo julgado no Brasil, por leis brasileiras. Se fosse o correto que o destino do extraditando seja decidido pelo país requerente, então o único sensato seria entregar o réu a Itália de maneira sumária, sem nenhuma deliberação.

Ora, se o julgamento se faz de acordo com os padrões jurídicos brasileiros, se deve ter em conta que no Brasil houve, a partir de 1979, várias leis e decretos vinculados com anistia, e uma anistia constitucional totalmente abrangente. Se o relator considera que esse instituto legal carece de valor, deveria ser mais coerente.

Por que não pede o processamento de vários membros do governo que estariam em situações similares (de anistiados) e até mais duras que a de Battisti?

Porco Vermelho

Já falamos do ceticismo do relator sobre os abusos aos direitos humanos na Itália. Não vamos insistir nesse ponto. Entretanto, quero chamar a atenção sobre um fato que me parece falta de informação.

Em nenhum momento o relator se manifesta (como é indicado pela escritora Fred Vargas nas chamadas “13 perguntas”) sobre a organização policial-fascista DSSA, que tinha um plano para seqüestrar Battisti. Esse plano se chamou Porco Vermelho, uma forma chula de se referir a um membro da esquerda.

Será que o sequestro de uma pessoa não é um ato de perseguição contra ela?

Conclusões

1. O julgamento de Cesare Battisti na Itália, cuja sentença foi publicada em 1988, está baseado em ausência de provas, dez testemunhas (dentre elas crianças e doentes mentais) que não testemunharam nada significativo, dois delatores, a confirmação de outros delatores menores, e confissões de outros réus extraídas sob tortura.

2. Mesmo não sendo Battisti o culpado, os que realmente cometeram esses assassinatos são criminosos políticos, não comuns. E se Memeo, Mutti, ou qualquer um deles estivesse no Brasil, tampouco deveriam ser extraditados.

3. Crimes como os que se atribuem a Battisti e até outros mais graves foram anistiados no Brasil, e cabe, portanto, a mesma atitude agora, por um critério elementar de isonomia.

4. Em casos análogos ao de Battisti (Medina, Falco, e italianos das Brigadas Vermelhas), talvez até alguns deles mais graves, foram negadas as extradições.

5. Existem advogados prestigiosos que afirmam que as penas aplicadas a Battisti estão prescritas. Portanto, caberia considerar essas opiniões.

6. Battisti é uma pessoa plenamente re-socializada, que publicou livros, organizou edições de revistas, realizou exposições de arte, editou jornais, fez trabalho comunitário. Não se diz que a punição é para re-socializar o réu e não para vingança?

7. Esta ação de extradição deveria ter sido arquivada sumariamente. O Brasil está sendo exposto a interesses espúrios, a atos humilhantes e está sendo usado como experiência piloto para derrubar o direito de asilo/refúgio em toda América Latina.

LEMBREMOS

O Caso Battisti se reveste de uma enorme importância, porque todo o esforço que está sendo feito por alguns fatores de poder (judicial, mediático, político, etc.) para extraditá-lo, é uma amostra clara da decisão de sabotar totalmente as estruturas democráticas, de acabar com a tradição humanitária que o Brasil sempre teve, e de impor um regime de autoritarismo, de falta de direitos, de arbítrio absoluto. Apesar de envolver uma pessoa só, este caso tem implicações para milhões de brasileiros e para toda América Latina. Através deste julgamento, se procura atacar o asilo político e as tradições de tolerância em todo o continente, e se pretende tornar ainda maior nossa dependência de potências autoritárias e prepotentes, que tratam o resto do mundo como seus escravos.

Apêndice

O Caso de Olga Benário

Quando a polêmica sobre o caso Battisti atingiu seu máximo, na metade de 2009, numa época em que a manipulação da Itália no STF parecia muito bem sucedida, começaram a aparecer as comparações entre o caso Battisti, e a extradição, durante a década de 1930, da militante comunista Olga Benário, que foi entregue aos nazistas estando grávida e assassinada em 1936.

A comparação não gostou muito aos mesmos políticos e magistrados que propagavam o ódio contra Battisti, porque o caso Benário foi o fato mais vergonhoso e a mácula mais indelével da política brasileira de todos os tempos.

Ninguém gostava ser considerado um admirador de Getúlio Vargas nem de Flinto Müller. Aliás, aqueles que acreditam que sua alma viverá para sempre, sentiam mal-estar ao pensar que a eventual extradição de Battisti podia criar um herói eterno, como aconteceu como Olga Benário, sobre a qual se escreveram milhares de páginas, foi rodado um filme de muito impacto, e ficou inclusive na memória das pessoas menos informadas como expoente da canalhice do Estado Novo. Salvo alguma figura medíocre remunerada por grupos de ultra-direita, ninguém teve coragem de sujar aquela história.

Então, para alguns inquisidores, a idéia de olhar desde os céus dentro de 50 ou 100 anos, e ver-se no triste papel do carrasco que mandou Battisti à morte, poderia ser inquietante. Portanto, a comparação Benário/Battisti nunca foi discutida e os aludidos preferiram ignorar.

Mas, vamos ser objetivos e a observar suas muitas coincidências.

A mentalidade fascista de Vargas parece, atualmente, um fato que nem faz sentido discutir. Seu violento conflito com o Integralismo foi uma “divisão de território”, como a que existiu entre Perón e os nazistas argentinos tradicionais em 1945, porém mais cruenta. A posterior aliança do ditador com os aliados para combater o Eixo tampouco desmente o fascismo de Vargas. Era óbvio que os Estados Unidos não iam tolerar a neutralidade do Brasil, sendo que mal conseguiam tolerar à da Argentina, um país muito menos estratégico.

Então, Vargas, apesar de sua política oportunista, foi um ‘moderado’ fascista e não podia ignorar a violência que existia na Alemanha logo após do fim da República de Weimar. Por outro lado, Vargas era um ditador, e o Supremo Tribunal Federal lhe obedecia, como se fosse mais um ministério. Se alguém tivesse tido liberdade para criticar o Supremo, seus juízes se poderiam ter-se protegido, aduzindo sua incapacidade para desobedecer a Vargas. Afinal, ser covarde não é bom, mas pode produzir certa compaixão. Já ser sádico é mais difícil de justificar, até porque os sádicos são socialmente uma minoria.

Entretanto, se quisermos fazer o papel de advogados do diabo, e fizéssemos abstração do fascismo de Vargas, e imaginássemos que esses fatos aconteciam em outros países (por exemplo, Chile ou Venezuela), poderíamos argumentar que em 1935 não era totalmente clara a crueldade do nazismo.

Ninguém está tentando justificar o nazismo! Simplesmente, assinalamos que a imagem do nazismo começou a ser mundialmente clara depois que os efeitos na Noite dos Cristais ficaram conhecidos no mundo todo.

Aliás, até 1936, mesmo judeus alemães cultos, amplamente informados, não acreditavam que o extermínio seria total. Em 1934, por exemplo, Heydrich, o açougueiro de Praga, ainda mantinha relações sociais e familiares (muito mornas), com seu primo afastado Hans, que estava casado com uma judia.

Os campos de concentração eram conhecidos como locais brutais, mas havia certa confusão em torno deles. Mesmo o cinegrafista alemão, Ingmar Bergman, de cuja inteligência não é fácil duvidar, e que tinha, como todo escandinavo, informações atualizadas do que acontecia na Alemanha, acreditava que os Lage eram lugares de reeducação, e chegou a levar a sério aquela frase cínica dos nazistas O Trabalho Faz Livre.

Mesmo depois do genocídio de milhares de crianças deficientes em outubro de 1938, o mundo não entendia corretamente o dimensão da crueldade nazista. O Ministério de Saúde usou gases pouco perceptíveis, e os pais das vítimas receberam cartas onde o Reich contava que suas crianças tinham morrido de suas próprias doenças, e mandava indenizações e pêsames.

Sabemos que Vargas, tanto como os Integralistas, conheciam a barbárie do nazismo, mas o ditador poderia ter argumentado não ter certeza de que Olga ia ser executada. Aliás, sendo que seus principais inimigos eram os comunistas, Vargas poderia ter pensado: “Vou banir do Brasil estes inimigos!”. Ele podia ter aduzido que Alemanha, por ser a nação de Olga, era o lugar natural.

Tudo bem; sabemos que nada disso foi verdade, e que Vargas foi um demagogo frio! Mas, ele poderia ter-se defendido dessa maneira.

Brasil, 2009. Não temos uma ditadura. Quaisquer que sejam seus defeitos, o governo atual é um dos mais populares do Continente.

O STF não esta sendo pressionado pelo governo para extraditar Battisti. Exatamente, o contrário. O governo, aderindo a suas obrigações internacionais como assinante da Convenção de Genebra, está dando a Battisti toda sua proteção.

É verdade que o STF está sim sendo pressionado pelo governo de Itália, mas, mesmo um internacionalista radical como quem escreve, se pergunta: “Será que é justo que um tribunal de um país obedeça linha por linha a um governo estrangeiro?”.

Quando as conseqüências. Já falamos nos capítulos anteriores sobre os riscos que corre Battisti. Se eles quiserem matá-lo, não haverá nenhum problema. Itália não tem assinado o convênio contra tortura, tem retificado recentemente o acordo contra a pena de morte, está pouco interessado em dar uma imagem humanitária. Não foi que Pinelli caiu de um 4º andar de uma delegacia? Por que Battisti não pode cair do 6º andar de um presídio?

Pode argumentar-se que não se pode comparar a Alemanha nazista com a Itália de Berlusconi. Entretanto, a vida de pessoas individuais não depende de condições macroscópicas. A Itália de Mussolini não conseguiu fazer nem uma fração das vítimas que fez Hitler, mas, se observarmos a quantidade de derrotas sofridas pelos exércitos do Duce, e sua incapacidade para lidar com problemas simples, esse menor volume de massacre talvez não deva ser atribuído a uma mentalidade mais humanitária.

Por outro lado, não se precisa um exército genocida para matar uma única pessoa. Battisti corre riscos equivalentes aos que correu Olga Benário, e os que sejam responsáveis por sua extradição não poderão dizer que foram pressionados por um tirano nacional... embora possam usar o pretexto de que os italianos não devem ser desobedecidos.

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[1] “NATO’s secret armies linked to terrorism?”, em: globalresearch.ca/articles/GAN412A.html

[2] Battisti fez esta declaração a um jornalista do magazine brasileiro Istoé: .br/istoe/edicoes/2047/artigo124312-1.htm

[3] archivio900.it/it/sigle/sigl.aspx?id=788

[4] , Pergunta número 12.

[5]

[6] Quirinal:palácio do governo italiano.

[7]

[8] Grimaldi, Laura: Processo all’istruttoria. Cronaca di un’inquisizione politica (Milano, Milano Libri, 1981) p. 35-37

[9] .uk/consultations/docs/cpr0408-response.pdf

* L’Orchestre noir (A Orquestra Preta), o documentário difundido em 13-14/01/98 pela rede Arte dá uma idéia do que foi o Estado Italiano nos anos 60 e 70, e especialmente seu grau de perversidade e manipulação maquiavélica. (Comentário da jornalista Anne Schimel em Le Monde Diplomatique, abril de 1998)

[10] monde-diplomatique.fr/1998/04/SCHIMEL/10247

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