UNINTER
GRUPO EDUCACIONAL UNINTERCRISTINA FURUTA DE MORAES TONTINIJUSTI?A DE TRANSI??O: PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATECuritiba2017CRISTINA FURUTA DE MORAES TONTINIJUSTI?A DE TRANSI??O: PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATEDisserta??o apresentada ao Programa de Pós-gradua??o em Direito do Grupo Educacional Uninter como requisito parcial para obten??o do grau de Mestre em Direito. ?rea de concentra??o: História do Direito e Jurisdi??o Orientador: Prof. André Peixoto de Souza Curitiba2017DEDICAT?RIAAos meus pais, os maiores amores da minha vida a quem eu dedico todas as minhas vitórias. A minha filha Yasmin, pela compreens?o e carinho. AGRADECIMENTOSAgrade?o primeiramente ao Grupo Educacional Uninter pela concess?o da gratuidade do curso de Pós-gradua??o Strictu Sensu em Direito o que possibilitou o meu ingresso nesta jornada. Agrade?o ao meu orientador André Peixoto de Souza pela paciência, coopera??o e disponibilidade em me assessorar no decorrer do desenvolvimento deste trabalho. Agrade?o ao professor Luiz Fernando Coelho por também ter me auxiliado e pela disponibiliza??o da bibliografia que tornou modelo para esta pesquisa e a todos os professores que desta jornada participaram, transmitindo o conhecimento necessário que muitas vezes esclareciam, e em outros, instigavam, colaborando sempre para nossa evolu??o. Agrade?o aos colegas de mestrado que compartilharam comigo esses momentos de aprendizado. “A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos.”HANNAH ARENDTRESUMOAs transi??es democráticas ocorridas no final da década de 1980 deram inicio a vários estudos sobre a democratiza??o. No campo político, essas teorias enfatizaram os processos transicionais a partir da atua??o dos agentes políticos relevantes. Assim, outros campos como o social, ficaram para em segundo plano. Ao mesmo tempo, no campo jurídico, era formulado uma outra perspectiva de análise, inserindo no centro da discuss?o a formula??o de mecanismos que possibilitassem a transi??o de regimes n?o autoritários para regimes democráticos que pudessem proporcionar uma transi??o com justi?a. Estes mecanismos serviram de paradigma para a justi?a de transi??o brasileira, movendo esfor?os para a sua efetiva??o. Diante desta intensa atividade surgiram várias discuss?es com entendimentos antag?nicos exigindo a elabora??o de teorias jurídicas, doutrinários e de decis?es políticas. Neste circunstancia fez-se necessário á busca por caminhos viáveis dentro da realidade brasileira. Diante das antinomias surgidas aflora a proposta elaborada pelo professor Luiz Fernando Coelho como via possível de interpreta??o: o principio in dubio pro humanitate. Palavras-chave: transi??es democráticas, democratiza??o, justi?a de transi??o, antinomias, principio in dubio pro humanitate. ABSTRACTThe democratic transitions that occurred in late 1980s initiated several studies on democratization. In the political field, these theories emphasized the transitional processes from the performance of the relevant political agents. Thus, other fields like the social, were pushed it aside. At the same time, in the juridical field, another perspective of analysis was formulated, inserting in the center of the discussion the formulation of mechanisms that would allow the transition from no-authoritarian regimes to democratic regimes that could provide a transition with justice. These mechanisms served as a paradigm for the transitional justice in Brazil, moving efforts towards its implementation. Faced with this intense activity, several discussions arose with antagonistic understandings requiring the elaboration of legal, doctrinal, and political decision theories. In this circumstance it became necessary to search for viable paths within the Brazilian reality. Faced with the antinomies that arise, the proposal developed by Professor Luiz Fernando Coelho emerges as a possible interpretation: the principle in dubio pro humanitate.Key words: democratic transitions, democratization, transitional justice, antinomies, principle in dubio pro humanitate.LISTA DE SIGLASADPF- Argui??o de Descumprimento de Preceito Fundamental ADCT- Ato de Disposi??es Constitucionais Transitórias CNV- Comiss?o Nacional da Verdade CISA- Centro de Informa??es de Seguran?a da Aeronáutica CEMDP- Comiss?o Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos CIE - Centro de Informa??es do Exército CONADEP- La Comisión Nacional sobre la Desaparición de PersonasCORTEIDH- Corte Interamericana de Direitos Humanos CIDH- Comiss?o Interamericana de Direitos Humanos DOI- Destacamento de Opera??es de Informa??esMRE - Ministério das Rela??es Exteriores ONU- Organiza??o das Na??es UnidasOAB- Ordem dos Advogados do BrasilPSOL- Partido Socialismo e Liberdade PIC- Pelot?o de Investiga??es Criminais PTB- Partido Trabalhista Brasileiro STF- Supremo Tribunal Federal SUM?RIOPARTE I – TRANSI??O E CONSOLIDA??O DEMOCR?TICA 151 IMPLICA??ES DO REGIME N?O DEMOCR?TICO PARA A DEMOCRACIA 161.1 REGIMES TOTALITARIOS: O TOTALISTAMOS E O DOMINIO REAL 161.2 REGIMES AUTORIT?RIOS: UMA SINTESE DA EXPERIENCIA BRASILEIRA 181.3 IMPLICA??ES DO REGIME ANTERIOR PARA A TRANSI??O 222 REGIME DEMOCR?TICO 242.1 CONCEITO OPERACIONAL DE DEMOCRACIA: SCHUMPETER E DAHL 252.2 INFLU?NCIA DAS RELA??ES CIVIS-MILITARES NA TRANSI??O 303 TRANSI??O E CONSOLIDA??O DEMOCR?TICA 323.1 LIBERALIZA??O E DEMOCRATIZA??O 333.1.1 Ondas democráticas 343.1.2 Transi??o por transforma??o, substitui??o e “transplacement” 36PARTE II – JUSTI?A DE TRANSI??O LATO SENSU 451 CONSTRU??O DA JUSTI?A EM TEMPOS DE TRANSI??O 451.1 GENEALOGIA DA JUSTI?A DE TRANSI??O 481.1.1 Primeira fase: Justi?a Pós-guerra (1945) 491.1.2 Segunda fase: Justi?a Pós-guerra Fria 511.1.3 Terceira fase: A justi?a “estável” 531.2 PILARES DA JUSTI?A DE TRANSI??O 541.3 TIPOS DE JUSTI?A DE TRANSI??O 62PARTE III – OS CAMINHOS DA JUSTI?A DE TRANSI??O NO BRASIL 661 JUSTI?A DE TRANSI??O EM SENTIDO ESTRITO 661.1 LEI DE ANISTIA E A JUSTI?A CERCEADA681.2 RECONHECIMENTO DA ANISTIA AOS PERSEGUIDOS POL?TICOS 721.3 INICIO PELA BUSCA DA VERDADE: CRIA??O DA COMISS?O ESPECIAL DE MORTOS E DESAPARECIDOS 731.4 ELABORA??O DO PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS771.5 EIXO DA REPARA??O: COMISS?O DA ANISTIA 812 ADPF 153 E A CORTE INTERAMERICANA DOS DIREITOS HUMANOS 832.1 POSICIONAMENTO DO STF NA ADPF N° 153/2008 862.2 POSICIONAMENTO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: CASO JULIA GOMES LUND E OUTROS VS. 942.3 UM DI?LOGO POSS?VEL ENTRE AS DECIS?ES DO STF E DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS? 1023 CRIA??O DE COMISS?ES NACIONAIS DA VERDADE PARA APURA??O DE GRAVES VIOLA??ES DE DIREITOS HUMANOS 1083.1 ARGENTINA: LA COMISI?N NACIONAL SOBRE LA DESAPARICI?N DE PERSONAS (CONADEP) 1103.2 OUTRAS COMISS?ES1123.3 A CRIA??O DA COMISS?O NACIONAL DA VERDADE NO BRASIL E SUA ATUA??O 1163.3.1 Obstáculos à atua??o da Comiss?o Nacional da Verdade 1234 EM BUSCA DE UMA NOVA INTERPRETA??O: ADPF 320125PARTE IV – JUSTI?A DE TRANSI??O E O PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATE 1281 OLHANDO A JUSTI?A DE TRANSI??O DE “BAIXO PARA CIMA”1312 ASPECTOS CR?TICOS SOBRE A JUSTI?A DE TRANSI??O NO BRASIL 1333 PRINCIPIOLOGIA DOS DIREITOS HUMANOS 1364 JUSTI?A DE TRANSI??O: PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATE 136CONCLUS?O 143INTRODU??OAs transi??es democráticas ocorridas no final da década de 1980 deram inicio a vários estudos sobre a democratiza??o. No campo político, essas teorias enfatizaram os processos transicionais a partir da atua??o dos agentes políticos relevantes. Buscando uma sistematiza??o dos processos de democratiza??o, estes estudos analisaram a transi??o exclusivamente em sua acep??o temporal elaborando modelos excessivamente abstratos e formalistas focados nas estratégias dos atores relevantes e na atua??o das elites políticas. Assim, outros campos como o social, ficaram para em segundo plano. Em meio aos cálculos das elites políticas a dimens?o moral dos reclamos por justi?a das vítimas foi relativizada sendo mais importante conseguir efetivar a transi??o e consolida??o democrática do que abrir quest?es que fizessem com que o regime militar recuasse na sua decis?o de abertura política. A presen?a da cautela e da prudência se justificava pelo medo de que, caso a transi??o n?o ocorresse, um pior cenário de regress?o autoritária poderia surgir. A análise desses conceitos é importante para que possamos entender como se deram essas transi??es, quais as implica??es do regime anterior no processo de transi??o, e para que possamos extrair conceitos sobre o desenvolvimento da teoria da democracia, essencial para a compreens?o do desenvolvimento de outro campo nos estudos sobre transi??o a ser desenvolvida na segunda parte deste trabalho. Assim na Parte I buscamos realizar uma análise descritiva dos processos transicionais na perspectiva política verificando o seu desenvolvimento e a sua rela??o com as demandas por justi?a que foram surgindo no desenvolvimento de outra perspectiva sobre essas transi??es. Ao mesmo tempo, no campo jurídico foi inserindo no centro da discuss?o a formula??o de mecanismos que possibilitassem a transi??o de regimes n?o autoritários para regimes democráticos que pudessem proporcionar uma transi??o com justi?a. Esta constru??o metodológica relacionada à necessidade de respostas a problemas concretos, desenvolvemos na Parte II deste trabalho, utilizando-se da proposta elaborada por Ruti Teitel (2011). Nesta perspectiva ent?o, a justi?a de transi??o indica uma atividade focada na supera??o de legados de abusos dos direitos humanos, atrocidades em massa ou outras formas de trauma social severo, incluindo genocídio ou guerra civil, a fim de construir um processo mais democrático, justo e um futuro pacífico desenvolvendo medidas a serem apreendidas como o resgate a memória e a verdade, efetiva??o da justi?a, repara??o das vítimas e reforma das institui??es repressoras. Estes mecanismos serviram de paradigma para a justi?a de transi??o brasileira, movendo esfor?os para a sua efetiva??o. No Brasil, a busca pela efetiva??o destes mecanismos foi e continua sendo intensa. Desde a implanta??o do silêncio marcado pela aprova??o da Lei de Anistia de 1979, diversas disputadas contra esta imposi??o já foram realizadas. Vítimas e seus familiares, Organiza??es de Direitos Humanos e a sociedade n?o medem esfor?os para que este período da história n?o caia no esquecimento. Na parte III deste trabalho, desenvolvemos os caminhos que a justi?a transicional vem percorrendo desde a aprova??o da Lei de Anistia de 1979, onde uma cultura do silencio sobre os fatos da ditadura foram implantadas, até o momento atual, onde se rediscute a n?o realiza??o do Controle de Convencionalidade pelo Supremo Tribunal Federal na a??o de Argui??o de Descumprimento Fundamental n° 153. Diante desta intensa atividade surgiram várias discuss?es com entendimentos antag?nicos passaram a exigir da doutrina a elabora??o de teorias jurídicas que tornassem possível o encontro de caminhos viáveis dentro da realidade brasileira. Diante das antinomias surgidas aflora a proposta elaborada pelo professor Luiz Fernando Coelho como via possível de interpreta??o: o principio in dubio pro humanitate que será desenvolvida na Parte IV deste trabalho. Neste sentido, prop?e-se uma análise zetética e crítica da Justi?a de Transi??o, utilizando da hermenêutica para solucionar a antinomia ent?o presente no nosso ordenamento jurídico brasileiro. Assim, ao invés realizar a análise sob uma perspectiva restrita e dogmática, prop?e-se resolvê-la pela aplica??o da Teoria Geral do Direito. Este critério hermenêutico favorece a análise das viola??es sistemáticas contra os direitos humanos estabelecendo que o terrorismo de Estado e a crueldade contra o povo devem motivar a rea??o dos governos democráticos. PARTE I - TRANSI??O E CONSOLIDA??O DEMOCR?TICAEste capítulo pretende realizar uma abordagem descritiva dos estudos elaborados sobre os processos de transi??o e consolida??o democrática na América Latina a partir de uma abordagem política. No fim dos anos 1980 a América Latina passou a vivenciar vários processos de restaura??o democrática. Bolívia (1982), Argentina (1983), Uruguai (1985), Brasil (1985) e Chile (1990), deixaram de ser governados por ditaduras e passaram a adotar procedimentos democráticos para a escolha de seus governantes. Estes processos de transi??o deram ensejo à elabora??o de várias teses sobre a constru??o democrática, em especial, a transitologia e a consolidologia. Buscando uma sistematiza??o dos processos de democratiza??o, estes estudos analisaram a transi??o exclusivamente em sua acep??o temporal elaborando modelos excessivamente abstratos e formalistas focados nas estratégias dos atores relevantes e na atua??o das elites políticas. Neste sentido, outras quest?es como as econ?micas, sociais e culturais acabaram ficando em segundo plano. A análise desses conceitos, porém, é importante para que possamos entender como se deram essas transi??es, quais as implica??es do regime anterior no processo de transi??o, e para que possamos extrair conceitos sobre o desenvolvimento da teoria da democracia, essencial para a compreens?o do desenvolvimento de outro campo nos estudos sobre transi??o a ser desenvolvida no capitulo 2. Deste modo, este capítulo aborda sobre os pressupostos mínimos para a compreens?o sobre as transi??es políticas, trazendo primeiramente a leitura da política para que depois possamos desenvolver a leitura do direito, a justi?a de transi??o, que surge no mesmo contexto, mas, como produto de uma demanda pela mudan?a do entendimento da rela??o entre direito e justi?a. 1 IMPLICA??ES DO REGIME N?O DEMOCR?TICO PARA A DEMOCRACIANesta sess?o iremos desenvolver a abordagem sobre dois principais regimes n?o democráticos ocorridos no século XX, o totalitarismo e o autoritarismo. Objetiva-se a partir desta análise extrair suas principais características e suas implica??es para a transi??o democrática. 1.1 REGIMES TOTALIT?RIOS: O TOTALITARISMO E O DOM?NIO TOTALA análise da obra “As origens do totalitarismo” de Hannah Arendt é essencial para esclarecer sobre a experiência totalitária que eclodiu na Europa do século XX lan?ando desafios para a frágil democracia do século XXI, tornando possível a reflex?o das condi??es para a a??o política, a partir de uma ordena??o social alheia à política, no qual o terror e a ideologia tomaram lugar. O totalitarismo se desenvolveu através da evolu??o do antissemitismo para o racismo, e do marxismo para o despotismo, sendo um regime que “pode destruir n?o só o mundo ocidental, mas toda a civiliza??o humana” (ARENDT,2012, p.147)O surgimento deste regime n?o-democrático come?ou da derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial onde grandes potências europeias assinaram o Tratado de Versalhes (1919) pretendendo devolver a paz à Europa. Neste, impuseram penalidades excessivamente penosas à Alemanha como, a perda de seu território, o enfraquecimento de seu potencial bélico, além do pagamento de altas indeniza??es. Tais penalidades somadas à crise economia que assolou o país trouxeram um forte sentimento nacionalista no qual o movimento nazista explorou para ascender ao poder. Quando da hegemonia do regime nazista na Alemanha o poder do Estado n?o estava limitado à esfera pública, este passou a penetrar em todo o tecido social, “destruindo todas as tradi??es sociais, legais e políticas do país” (ARENDT, 2012, p.391). A descoberta das atrocidades nazistas nos campos de concentra??o trouxeram reflex?es sobre o surgimento de estruturas de poder voltadas para a domina??o total sendo este, um fen?meno novo que se diferenciou essencialmente de outras formas de opress?o política, como o despotismo, a tirania e a ditadura (ARENDT, 2012). O totalitarismo instaurou um novo regime baseado na ideologia e no terror, na busca de destruir toda e qualquer forma de poder, de eliminar o pluralismo político, social ou econ?mico em nome do domínio total. O domínio totalitário n?o se contenta apenas com o isolamento dos homens e das suas capacidades políticas, “destrói também a vida privada. Baseia-se na solid?o, na experiência de n?o se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter” (ARENDT, 2012, p.406), isto é, promove esfor?os para controlar e regular todos os aspectos da vida pública e privada ancorando-se no uso da propaganda massiva para refor?ar seu modelo ideológico. ? um regime que se instala em grande escala, com grandes massas supérfluas que podem ser sacrificadas sem resultados desastrosos de despovoamento. As massas s?o compostas por “pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto” (ARENDT, 2012, p. 280) sendo essenciais para o sucesso totalitário. ?Essa experiência n?o aconteceu como efeito da loucura de poucos, chegou ao poder em uma sociedade onde o sentimento de xenofobia e o antissemitismo, estavam fortemente presentes. N?o havia diferen?as étnicas e de classe para instaurar o processo de exclus?o e domínio de pessoas consideradas de ra?as inferiores. Além destes fatores o totalitarismo ao utilizar dos movimentos de massa tem a forte capacidade de transformar, a qualquer momento, o indivíduo em algo supérfluo e descartável, representando “uma contesta??o frontal à ideia do valor da pessoa humana enquanto?valor-fonte?da legitimidade da ordem jurídica” (LAFER, 1997, p.57). Há um centro de poder monista, ideologia exclusiva, aut?noma, com a qual o grupo dominante ou o líder s?o a alma da na??o. A participa??o popular é encorajada, exigida e compensada, desta forma a autora afirma, “no cintur?o de ferro do terror, que destrói a pluralidade dos homens e faz de todos, aquele Um, que invariavelmente agirá como se ele próprio fosse parte da corrente da história ou da natureza” (ARENDT, 2012, p.397). Todas as leis s?o lei do movimento, ou seja, é a lei imposta através do terror porque “pressionando os homens uns contra os outros, o terror total destrói o espa?o entre eles” (ARENDT, 2012, p.396). Portanto o regime totalitário possui as seguintes características: No totalitário n?o há pluralismo econ?mico, social ou político significativos; Há a imposi??o de uma ideologia que articula uma utopia alcan?ável;A vida privada é fortemente criticada. A mobiliza??o extensiva ocorre em torno de um vasto rol de organiza??es compulsórias organizadas pelo regime. A lideran?a totalitária governa sem limites definidos e com grande imprevisibilidade para os membros e n?o-membros dessa lideran?a (LINZ;STEPAN, 1999) 1.2 REGIMES AUTORIT?RIOS: UMA SINTESE DA EXPERI?NCIA BRASILEIRA O regime autoritário, por sua vez, é um regime político onde há a falta de democracia, mas ainda resta um mínimo pluralismo. O pluralismo ao qual nos referimos é a existência de um complexo corpo societário formado pela diversidade de partido e movimentos políticos, organiza??es sociais e forma??es aut?nomas de poder (WOLKMER, 2001). Os regimes autoritários s?o sistemas políticos no qual um líder ou, ocasionalmente, um pequeno grupo exerce o poder dentro de limites formalmente mal definidos, mas realidade, bem previsíveis (LINZ, 1979). Portanto se associa com governos excessivamente centralizadores que estabelecem um regime de exce??o decorrente de golpes de Estado no qual a mobiliza??o política é fortemente repreendida e o pluralismo existente é limitado na medida em que o seu exercício só ocorre através de aparelhamentos autorizados. Há o esfor?o em se criar a apatia política e a obediência passiva da sociedade em rela??o às quest?es públicas, e geralmente tais medidas s?o asseguradas através a imposi??o da for?a militar. A América Latina foi controlada por regimes militares entre os anos de 1960 e 1970. O fim da Segunda Guerra Mundial significou a divis?o do mundo em dois blocos dominantes: Estados Unidos e Uni?o Soviética. A diferen?a ideológica entre estas duas superpotências resultou na cria??o de mecanismos dos dois lados para combater a expans?o de suas influências. O acirramento da Guerra Fria ocasionou a cria??o da Doutrina da Seguran?a Nacional pelos Estados Unidos no qual orientou as suas a??es perante as “amea?as comunistas”. A divis?o geopolítica que a Guerra Fria ocasionou interferiu veemente na política de vários países, principalmente na América Latina, que foi dominada por sucessivos golpes de Estado e instaura??o de regimes autoritários. O mundo ficou dividido entre o capitalismo e o comunismo. Neste contexto o Brasil visando o desenvolvimento econ?mico do país firmou alian?a com os Estados Unidos absorvendo a ideologia proposta de combate ao comunismo. Isto gerou um grande movimento tanto das elites, quanto da própria sociedade civil, para salvar o país da “subvers?o”. Neste período, o Brasil permaneceu na órbita da diplomacia norte-americana, assim como o restante dos países latino-americanos, Os países da regi?o que haviam participado com tropas na Segunda Guerra Mundial, como o Brasil, lutaram como aliados dos Estados Unidos e sob seu comando militar, iniciando aí uma coopera??o operacional que avan?aria nas décadas seguintes, gerando unidade de doutrinas, treinamento conjunto na forma??o de quadros e estreita identidade ideológica em política e diplomacia, como, por exemplo, a cria??o do bloco dos países n?o-alinhados, a partir de 1955, o cisma sino-soviético dos anos 1960 e a resistência de Charles De Gaulle a uma lideran?a absoluta dos Estados Unidos ao longo do período (BRASIL. COMISS?O ESPECIAL DE MORTOS E DESAPARECIDOS POL?TICOS, 2007, p.19). O Paraguai (1954), Brasil (1964), Chile e Uruguai (1973) e na Argentina (1976) tornaram-se regimes autoritários. A Doutrina de Seguran?a Nacional passou a vigorar nesses países pautando-se no combate a figura do inimigo público interno no qual os militares eram os únicos que estariam aptos devolver o terreno de tranquilidade que os subversivos haviam inquietado. Segundo Condato (2005) o regime autoritário no Brasil durou 25 anos (1964 – 1989) passando por seis governos e pode ser divida em cinco fases. A primeira fase foi a constitui??o do regime militar nos governos Castello Branco, e Costa e Silva entre mar?o de 1964 e dezembro de 1968. O ato institucional n°1, de 9 de abril de 1964, lan?ou a ditadura militar que derrubou o governo democrático de Jo?o Goulart. A organiza??o política do país foi abalada pelo “movimento revolucionário”, que se investindo de Poder Constituinte legitimou-se por si mesma. Expurgos políticos, militares e administrativos come?aram a ocorrer no país. Em outubro de 1965, o governo promulgou o Ato Institucional n°2 prevendo outras medidas de exce??o, dissolvendo todos os partidos políticos e estabelecendo elei??es indiretas para Presidente da República e Governadores. Em 1966 o Congresso Nacional foi convocado para votar e promulgar o projeto constitucional que revogava a Constitui??o de 1946. Em 1967, a nova Constitui??o foi promulgada dando amplos poderes ao Presidente da República, que a partir de ent?o passou a editar todas as normas em forma de atos institucionais (AI). Em 1968, iniciaram os “anos de chumbo” através do AI-5. O Presidente da República passou a ter poderes para suspender os direitos políticos de qualquer cidad?o pelo prazo de dez anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais. As garantias constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade foram suspensos. O habeas corpus também foi suspenso, retirando dos perseguidos políticos seus meios de defesa. Ademais, o AI-5 excluiu da aprecia??o judicial todos os atos alcan?ados por ele e por seus atos complementares. A segunda fase foi a consolida??o do regime militar no Governo Medici entre 1969 e 1974. O aparato repressivo se institucionalizou e as viola??es sistemáticas de direitos humanos tornaram-se prática comum do Estado. Incontáveis casos de tortura, homicídios, desaparecimentos for?ados, execu??es sumárias, incinera??es de corpos, pris?es arbitrárias se intensificaram em toda a América Latina. A política de Estado se voltou a elimina??o dos seus opositores. Os principais setores da sociedade civil como sindicatos, organiza??es profissionais, igrejas e partidos come?aram a estar sob vigil?ncia constante. A repress?o política foi exercida através de uma combina??o de institui??es distintas como as For?as Armadas, Polícia Civil, Polícia Militar, inclusive, civis que financiavam, ou apoiavam as a??es repressivas. A repress?o n?o ficava restrita a apenas o ?mbito interno. Segundo relatório da Comiss?o Nacional da Verdade (CNV) o Estado brasileiro participou de graves viola??es de direitos humanos no exterior. A ditadura n?o se preocupava apenas com seus opositores no Brasil: o inimigo interno n?o podia ser descuidado, mesmo quando fora do território nacional. Potencialmente, incluíam-se nessa categoria n?o só os que foram afastados da política pelo Ato Institucional no 1, de 9 de abril de 1964, ou identificados pelos órg?os da repress?o ao longo dos anos seguintes, mas também todos aqueles que deixavam o país por discordarem da ditadura. Suspeitos, precisavam ser vigiados (BRASIL. COMISS?O NACIONAL DA VERDADE, 2014, p.176). Perante os organismos internacionais o Ministério das Rela??es Exteriores (MRE) articulou a cobertura e a dissimula??o negando sistematicamente a ocorrência desses crimes. A terceira fase foi a transforma??o do regime militar no governo Geisel entre 1974 e 1979. O golpe de 1964 completava dez anos no momento em que Geisel assumiu a Presidência da República promovendo o debate da oposi??o quanto a prolongada interven??o militar e a necessidade do retorno da democracia no país. Neste contexto foi iniciada a liberaliza??o controlada que pretendia realizar o retorno à democracia de forma “lenta, gradual e segura”. Em 1978 a aprova??o da emenda constitucional n°11 aboliu o AI-5 “extinguindo a autoridade do presidente para colocar o Congresso em recesso, cassar parlamentares ou privar os cidad?os dos seus direitos políticos” (BRASIL. COMISS?O NACIONAL DA VERDADE, 2014, p.106). O habeas corpus foi restabelecido e as penas da Lei de Seguran?a Nacional tornaram-se mais brandas. A distens?o pelo governo Geisel permitiu a suspens?o da censura prévia, os resultados eleitorais foram permitidos, os protestos dos empresários contra o modelo econ?mico foram admitidos. A quarta fase foi a desagrega??o do regime militar no governo Figueiredo entre 1979 e 1985. O governo manteve o projeto de distens?o iniciado no governo Geisel. Em 1979 a Lei de Anistia – L.6.683/1979 – foi aprovada concedendo anistia a todos aqueles que no período entre 1961 e 1979 havia cometido crimes políticos. Neste momento havia forte movimenta??o para a aprova??o da emenda “Dante de Oliveira” que estabelecia as elei??es diretas para presidente em 1985, com forte atua??o do movimento “Diretas já”. Apesar da ampla concord?ncia da popula??o esta emenda n?o foi aprovada pela C?mara dos Deputados, sendo promovida em 1985 a elei??o indireta para presidente entre os candidatos Tancredo Neves e Paulo Maluf. E a quinta e ultima fase foi à transi??o do regime militar para um regime liberal-democrático. Após a queda do regime e o inicio da abertura política, processos de transi??o para o regime democrático come?aram a ocorrer. Porém, muitas destas transi??es partiram dos próprios regimes autoritários ocasionando grande insatisfa??o dos movimentos de direitos humanos e das vítimas que se sentiram injusti?adas com a impunidade dos agentes de Estado, o qual será objeto de discuss?o do próximo capítulo sobre Justi?a de Transi??o. Em suma, as principais características do regime autoritário foram: Sistema político com pluralismo político limitado e n?o responsável. Costuma ter algum lugar para uma semi-oposi??o;? um sistema político sem ideologia complexa ou idealizadora;N?o há mobiliza??o política, salvo em alguns momentos do seu desenvolvimento;? um sistema político onde os lideres ou um pequeno grupo exerce o poder dentro de limites formalmente mal definidos, mas com normas bastante previsíveis (LINZ;STEPAN, 1999) 1.3 IMPLICA??ES DO REGIME ANTERIOR PARA A TRANSI??O As características do regime n?o-democrático possui um ampla implica??o no processo de transi??o e consolida??o democrática. Dentre estas cabe ressaltar duas implica??es quanto às vias para a transi??o democrática (LINZ;STEPAN, 1999). A primeira implica??o ocorre quanto ao estabelecimento de reformas e rupturas pactuadas. Para que ocorram os pactos é necessário que haja a abertura política do regime n?o-democrático para dialogar com a oposi??o democrática. No caso do autoritarismo a reforma pactuada é possível entre os moderados do regime e a oposi??o democrática moderada, enquanto no regime totalitário n?o há espa?o para uma oposi??o democrática organizada, portanto, a realiza??o de pactos n?o é possível A segunda implica??o decorre da influência da hierarquia militar no poder. No autoritarismo, se o regime for governado por uma hierarquia militar e os militares enquanto institui??o se sinta amea?ados, interna ou externamente, pode haver press?o para que estes deixem o poder, substituindo-se por um governo civil estabelecido por meio de elei??es. Caso o regime n?o-democrático for liderado por militares n?o-hierárquicos a imposi??o do controle civil democrático torna-se mais fácil, podendo acarretar em julgamentos. No regime totalitário n?o é possível que a hierarquia abra m?o do poder porque a primazia do partido e o papel ilimitado dos líderes torna impossível o governo de uma hierarquia militar. Em rela??o às tarefas mínimas para completar a transi??o e consolida??o democrática Linz e Stepan (1999) estabelecem cinco condi??es necessárias: 1. A existência de um Estado de direito e liberdade da sociedade civil; 2. Autonomia da sociedade política; 3. A existência de normas constitucionais que aloquem o poder de forma democrática; 4. Uma burocracia estatal aceitável e utilizável pelo governo democrático e ; 5. A existência de uma autonomia suficiente para a economia e para os atores econ?micos, para assegurar o pluralismo na sociedade civil, na sociedade política e na sociedade econ?mica. Como no totalitarismo inexiste o estado de direito e grande parte do aparato legal serve como instrumento para o movimento do partido e as liberdades civis s?o mínimas, deve haver o afastamento de todo o sistema totalitário para que haja o recome?o de um novo regime. Neste sentido as liberdades civis devem ser legalizadas, desenvolvidas e protegidas, a posi??o de domínio do partido em todas as áreas da sociedade e sua situa??o e recursos privilegiados devem ser desmontados, deve haver a elabora??o de uma nova constitui??o haja vista que a constitui??o do regime totalitário n?o foi projetada para uma sociedade democrática, há a necessidade da cria??o de uma burocracia n?o-politizada e o desenvolvimento de uma reforma fundamental da economia. No autoritarismo há uma tradi??o do estado de direito e de sociedade civil, porém estas se encontram apenas na ideia de estado de direito formal. Dessa forma, as liberdades civis devem ser ampliadas e protegidas de fato, a livre competi??o entre partidos deve ser criada, a constitui??o deve ser restituída, emendada ou revogada, a burocracia existente pode ser reformada havendo alguns expurgos entre os burocratas, e a economia pode, ou n?o, ser reformada. Em outras palavras, um regime autoritário em seu estado tardio necessita ter “uma sociedade civil forte, uma cultura legalista que propicie o constitucionalismo e o estado de direito, uma burocracia estatal eficiente, que opere dentro das normas profissionais, e uma sociedade econ?mica razoavelmente institucionalizada” (LINZ;STEPAN, 1999, p. 77). Para O’Donnell (1988, p.83) “a din?mica da transi??o de um regime autoritário n?o se resume a meras disposi??es, cálculos ou pactos das lideran?as”. Podemos verificar, portanto, que a depender do regime n?o-democrático institucionalizado o processo de transi??o e consolida??o democrática resulta em implica??es e exige tarefas mínimas distintas. Para a justi?a de transi??o – que será objeto de estudo no segundo capítulo – tais contextos políticos influenciam na escolha das medidas que devem ser tomadas pelo novo governo a respeito dos acontecimentos relacionados ao regime anterior. 2 REGIME DEMOCR?TICOContemporaneamente apesar de haver o consenso sobre a validade e legitimidade da democracia em detrimento de outros regimes n?o democráticos, o significado do que esta representa ainda encontra-se em debate. A crise da representa??o política nos países de democracia consolidada e o resultado da falência dos regimes autoritários no Leste Europeu, ?sia e América Latina geraram incertezas quanto às possibilidades de consolida??es democráticas (GAMA, 2009) incentivando a produ??o de inúmeros estudos sobre a sua representa??o. Desta maneira, para que possamos abordar sobre as transi??es democráticas é necessário delimitar a defini??o de democracia que iremos utilizar neste trabalho. 2.1 CONCEITO OPERACIONAL DE DEMOCRACIA: SCHUMPETER E DAHL A concep??o minimalista de Joseph Schumpeter (1961) para determinar o conceito de democracia real tornou-se o modelo hegem?nico que influenciou e deu ensejo a outros estudos no mesmo campo. Este autor desenvolve sua teoria a partir de uma forte crítica a teoria clássica da democracia. A doutrina liberal clássica do século XVIII define a democracia como o “arranjo institucional para se chegar a certas decis?es políticas que realizam o bem comum, cabendo ao próprio povo decidir, através da elei??o de indivíduos que se reúnem para cumprir-lhe a vontade” (SCHUMPETER, 1961, p.300), ou seja, pressup?e a existência de indivíduos plenamente conscientes, com forte interesse pela política, e que desejam participar ativamente do controle dos negócios públicos orientados pela busca do bem comum. Para o autor, o conceito clássico de democracia encontra várias barreiras práticas para efetivá-la. Em primeiro lugar, n?o há “um bem comum inequivocamente determinado que o povo aceite ou possa aceitar por for?a de argumenta??o racional”, isso porque o conceito de bem comum pode resultar em inúmeras interpreta??es dependendo do contexto em que o indivíduo está inserido, fato que os “domínios da lógica” s?o incapazes de prever. Em segundo lugar, mesmo que o bem comum pudesse ser definido este n?o conseguiria trazer “solu??es igualmente definidas para os casos individuais” restando sempre um espa?o para novas divergências. Em terceiro lugar, tentar determinar a “vontade do povo” é algo difícil de ser alcan?ado “pois esse conceito pressup?e um bem inequivocamente determinado e compreendido por todos”, ainda esta vontade pode ser artificialmente fabricada durante os processos políticos (SCHUMPETER, 1961, p. 301-303).Deste modo Schumpeter (1961) elabora a teoria minimalista da democracia trazendo uma percep??o da política instrumental e elitista “marcadamente influenciada pelas teorias sociológicas de Max Weber sobre a racionalidade e o desenvolvimento da sociedade capitalista ocidental” (GAMA, 2009, p. 2), pois, em uma sociedade complexa como a que vivemos n?o há espa?o para a participa??o democrática da forma como exige a teoria clássica. Assim como Schumpeter (1961), Norberto Bobbio (2000) também entende que ninguém tem condi??es de definir precisamente o interesse comum ou coletivo, a n?o ser confundindo interesses grupais ou particulares com o interesse de todos. Tratando sobre a “natureza humana na política” o autor explica que na segunda metade do século XIX gradualmente a ideia de unidade homogênea da personalidade humana come?ou a desaparecer. O estudo da “psicologia das massas” realizada pelo sociólogo francês Gustave Le Bon, em 1886, desconstruiu as teorias da natureza do homem que sustentavam o modelo clássico de democracia (SCHUMPETER, 1961, p. 307) passando a afirmar que quando um indivíduo é inserido nas multid?es adquire um sentimento de poder invencível de tal maneira que a sua atividade consciente acaba sendo substituída pela a??o inconsciente das multid?es, isto é, as pessoas quando inseridas em massas n?o conseguem elaborar um pensamento racional, deixando fluir os seus instintos primitivos gerando um lapso dos freios morais. Todos os parlamentos, todos os comitês, todos os conselhos de guerra formados de generais sexagenários revelam, por menor que seja o grau, alguns dos aspectos que surgem t?o claramente no caso da ralé, e, em particular, menor senso de responsabilidade, grau mais baixo de energia mental e maior sensibilidade a influências n?o-lógicas. Ademais, esses fen?menos n?o est?o limitados à multid?o no sentido de aglomera??o física de numerosas pessoas. Leitores de jornal, audiências de rádio, membros de partidos políticos, mesmo quando n?o fisicamente reunidos, podem ser facilmente transformados psicologicamente em multid?o e levados a um estado de frenesi, no qual qualquer tentativa de se apresentar um argumento racional desperta apenas instintos animais (SCHUMPETER, 1961, p.308). O comportamento das pessoas inseridas nessas grandes massas torna-se imprevisível. Partindo dessa premissa, de que existem vícios da natureza humana, Schumpeter (1961) se afasta da concep??o clássica para filiar-se a Teoria das elites – pensamento fundado por Gaetano Mosca, Vifredo Pareto e Robert Michels – definindo a democracia de forma estritamente procedimental. O processo democrático é, portanto, “um método político, isto é, um certo tipo de arranjo institucional para chegar a uma decis?o política (legislativa ou administrativa)” (SCHUMPETER, 1961, p.291), ou seja, um conjunto de regras que estabelecem como devem ser escolhidos aqueles que ir?o realizar as decis?es políticas. Na mesma linha Bobbio (1997, p.65) afirma que “o que distingue um sistema democrático dos sistemas n?o democráticos é um conjunto de regras do jogo”. A concep??o schumpeteriana desarticula o protagonismo no povo para demonstrar que nas sociedades modernas o papel central da participa??o e da tomada de decis?es por parte destes é empiricamente irrealista, uma vez que é evidente que “o povo, como povo, n?o pode jamais governar ou dirigir realmente” (SCHUMPETER, 1961, p.296). Logo, a democracia é o “governo dos políticos” (SCHUMPETER, 1961, p. 339). Este repúdio a participa??o advém da impossibilidade de ampla participa??o política na crescente complexidade das sociedades modernas, e ainda, da reflex?o de que as pessoas comuns além de n?o possuírem interesses por assuntos políticos, ao serem inseridos na grande política, tornam-se irracionais, irresponsáveis e de fácil manipula??o (QUADROS, 2015), podendo ser facilmente influenciados pela propaganda política, por exemplo. Cabe às elites, portadoras de racionalidade política, a tomada de decis?es e ao povo incumbe uma participa??o passiva.Deste modo o autor toma uma preocupa??o procedimental com as regras de tomada de decis?es elevando-a a um método para a constitui??o de governos. Toda a??o política deve se pautar em estratégias de maximiza??o do voto, definindo a competência política daqueles que ir?o governar da maior, ou menor, capacidade de atender às expectativas dos eleitores e capturar adeptos (HOLLANDA, 2011). Em outras palavras, a democracia se torna uma grande disputa entre os concorrentes ao cargo político para arrecadar o maior número de votos e assim adquirir o poder por meio do processo eleitoral. Deste modo se estabelece alguns critérios importantes para que haja o efetivo funcionamento da democracia: 1) A lideran?a política deve ser dotada de alta qualidade e possuir a voca??o para a atividade política; 2) Devem observar as limita??es do domínio real nas decis?es políticas; 3) Deve possuir um corpo técnico-burocrático eficiente; 4) Deve haver o autocontrole democrático e as normas devem ser respeitadas; A contribui??o deste autor para a teoria da democracia foi de suma import?ncia, pois afastou a incompatibilidade entre elites e democracia defendendo que a existência de indivíduos vocacionados para a complexa vida política é essencial no processo democrático. Sua análise prop?s que a democracia está subordinada a situa??es concretas ligadas aos resultados, e n?o ao ideal democrático (QUADROS, 2015). A vontade da maioria (e n?o da vontade do povo) é determinante para a escolha dos representantes considerados mais capacitados para elaborar um plano de governo que atenda a expectativas, porém, a sua participa??o direta na vida política n?o é necessária e nem viável. Afirma o autor que as pessoas possuem uma grande capacidade para resolver as quest?es do cotidiano, mas, quando encarregadas de temas públicos estas apresentam pouco senso de realidade analisando e argumentando o problema público de forma infantil. Esse reduzido senso de realidade explica n?o apenas a existência de um reduzido senso de responsabilidade, mas também a ausência de uma vontade eficaz. O indivíduo fala, deseja, sonha, resmunga. E, principalmente, sente simpatias e antipatias. Mas, ordinariamente, esses sentimentos n?o chegam a ser aquilo que chamamos de vontade, o correspondente psíquico da a??o responsável e intencional. De fato, o cidad?o privado que medita sobre a situa??o nacional n?o encontra campo de a??o para sua vontade nem tarefa em que ela possa se desenvolver. Ele é membro de um comitê incapaz de funcionar — o comitê formado por toda a na??o — e é por isso mesmo que emprega menos esfor?o disciplinado para dominar um problema político do que gasta numa partida de bridge.(SCHUMPETER, 1961, p. 312). Assim, entende que o êxito democrático decorre da qualidade existente entre aqueles que se disp?em à participa??o ativa, ou seja, a existência de profissionais altamente qualificados para a tomada de decis?es. A partir da concep??o de democracia como método político, Robert Dahl (2005) encontrou o quadro referencial para a elabora??o da sua teoria. Neste sentido Dahl (2005, p.11) trata “do problema da democratiza??o, definindo-a como um processo de progressiva amplia??o de competi??o e da participa??o politica”, trazendo critérios para a classifica??o dos regimes políticos. Denominando a forma e o modo como funcionam os regimes democráticos de “poliarquia”, tendo em vista que para este “nenhum grande sistema no mundo real é plenamente democratizado” (DAHL, 2005, p. 31) afirmou que a democracia seria um ideal enquanto a poliarquia corresponderia ao regime democrático que realmente existe. Um dos elementos presentes em democracias de grande escala como a que temos atualmente seria a representatividade. Deste modo além da capacidade da elite em competir pelo voto popular, o governo deve ser responsivo as preferências dos seus cidad?os, e estes últimos, devem ter oportunidades plenas de formular, expressar e de ter igualmente suas preferências consideradas pelo governo. Para que isso seja possível devem existir diversos grupos políticos e sociais que algumas vezes cooperam, e em outras se combatem, mas que de certo modo se equilibram e representam a press?o da base. Em outras palavras, deve existir o pluralismo societal, onde nenhum grupo social possui privilégio sobre os recursos de poder. Deste modo, o autor n?o se atém a apenas entender como o sistema democrático funciona, mas sim, busca promover a democracia através da análise das condi??es que aumentam ou diminuem as chances de democratiza??o, e dos fatores que aumentam ou diminuem as chances de contesta??o pública num regime fortemente inclusivo. A democratiza??o é formada por pelo menos duas dimens?es, a contesta??o pública e direito de participa??o. Assim, quanto maior as oportunidades de expressar, organizar e representar preferências políticas, maior será a variedade de interesses passíveis de representa??o, pois a multiplicidade de centros de poder complementam a presen?a de minorias concorrentes ligados por um acordo mínimo sobre as regras do jogo. Uma democracia representativa existe quando constatamos oito garantias institucionais que tornam possível medir o grau de democratiza??o dos regimes políticos: 1) Liberdade de formar e aderir a organiza??es; 2) Liberdade de express?o; 3) Direito ao voto; 4) Direito de líderes políticos disputarem apoio; 5) Fontes alternativas de informa??o; 6) Elegibilidade para cargos políticos; 7) Elei??es livres e id?neas; 8) Rela??o de dependência entre as a??es de governo e as elei??es ou outras formas de manifesta??es de preferência da popula??o (DAHL, 2005, p.27). Podemos deste modo, perceber que apesar de Schumpeter e Dahl compreenderem a democracia como método político, o primeiro reduz a concep??o de democracia restringindo-a a disputa entre grupos políticos no poder, enquanto o segundo busca promover a democracia, a partir do conceito de poliarquia, como mecanismo de avalia??o empírica de modelos de governo no qual convivem vários centros de poder. Em outras palavras, se para Schumpeter a democracia é aquela em que as elites competem pela ades?o e condu??o das massas, onde a participa??o do governado fica restrita à escolha de seus governantes. Para Dahl “as poliarquias podem ser pensadas ent?o como regimes relativamente, mas incompletamente, democratizados, ou, em outros termos, as poliarquias s?o regimes que foram substancialmente popularizados e liberalizados, isto é, fortemente inclusivos e amplamente abertos à contesta??o pública” (DAHL, 2005, p.31) A defini??o de poliarquia no qual a democratiza??o consiste em um processo de progressiva amplia??o de contesta??o, participa??o política, existência de uma livre competi??o pacífica pelo poder e a garantia de liberdades civis fundamentais, apesar de ser uma vis?o minimalista sobre o que seria um regime democrático se tornou referência para as discuss?es sobre transi??o de regimes políticos.2.2 INFLU?NCIA DAS RELA??ES CIVIS-MILITARES NA TRANSI??O Analisando as democracias da América do Sul Stepan (1988) complementa a abordagem de Schumpeter e Dahl inserindo a quest?o das rela??es civis-militares. Deste modo desenvolve um esquema analítico que possibilita verificar a influência dos militares em qualquer regime e a seguran?a do processo democrático a partir das prerrogativas militares e do nível de contesta??o militar às ordens civis. As prerrogativas militares referem-se aos espa?os sobre os quais, existindo ou n?o contesta??o, os militares como institui??o pressup?em ter o direito de exercer um controle efetivo considerando-se no direito de controlar ou mesmo de estruturar as rela??es entre o Estado e a sociedade (STEPAN, 1988). Através da proposi??o das prerrogativas o autor buscou formular um modelo analítico para verificar essas rela??es classificando-as em prerrogativas militares baixa, moderada e alta intensidade. Nesse sentido quanto maior for a tutela militar sobre o poder político, maiores s?o as prerrogativas militares e menor será o controle democrático. Altas prerrogativas implicam na inexistência de facto, assim como de jure, de controle civil democrático sobre os militares (ZAVERUCHA, 1998). Deste modo as sociedades com baixas prerrogativas e um baixo nível de contesta??o militar podem ser consideradas democracias, Portanto, o que se espera de um país democrático é a erradica??o de tais prerrogativas, caso se queira estabelecer um controle civil democrático sobre os militares, e, consequentemente, um regime democrático. Até porque altas prerrogativas militares se correlacionam com alto grau de autonomia castrense, no sentido dos militares serem capazes de impor, frequentemente, seus interesses aos civis via canais legais ou quando ocorram resistências (ZAVERUCHA, 1998, p.2). Jelin e Hershberg (2006) comparando às experiências democráticas da Argentina e do Brasil afirmam que a Argentina possuía prerrogativas baixas e alta contesta??o no Governo Alfosín, passando para prerrogativas e contesta??es baixas na administra??o Menem. No Brasil durante o governo Sarney as prerrogativas eram altas e havia uma media contesta??o militar. Já nas administra??es de Collor e Itamar Franco as prerrogativas passaram a ser médias e contesta??o militar atingiu um baixo nível. Porém verifica-se que mesmo com o processo de redemocratiza??o as prerrogativas militares continuaram sendo mantidas. Deste modo a baixa contesta??o militar n?o significa que estes n?o possuam participa??o nos processos de decis?o política. Conforme afirma Zaverucha (1998, p.33) “a democracia brasileira é t?o conservadora com os interesses castrenses que os militares n?o se sentem impulsionados a contestarem os governos civis”. Esta quest?o explica a abertura política “lenta, gradual e segura” imposta pelo regime militar brasileiro em oposi??o à transi??o “ampla, geral e irrestrita” movida pela sociedade. Nesse sentido Stepan (1988) afirma que o que ocorreu foi mais para uma liberaliza??o do regime ditatorial do que a democratiza??o do sistema político. A distens?o promovida durante a abertura política permitiu a continuidade excepcional do autoritarismo gerando altos custos para a transi??o política, no qual, até hoje n?o conseguimos efetivar. 3 TRANSI??O E CONSOLIDA??O DEMOCR?TICA A queda dos regimes militares durante os anos 1980 estimulou uma série de estudos sobre as transi??es dos regimes autoritários para os regimes democráticos. Debru?ando-se sobre o problema da transi??o, vários autores buscaram estruturar modelos que explicassem como e porque essas mudan?as de regime ocorreram. Essas explica??es, que se tornaram clássicas na Ciência Política, priorizaram a atua??o das elites, bem como os “arranjos políticos-institucionais” (TRIBESS, 2014, p. 172). Isso porque os debates sobre a natureza e as possibilidades da transi??o mantinham vínculos estreitos com os debates políticos sobre as oportunidades e estratégias. Neste sentido era salientada a necessidade de separar as quest?es de procedimento das quest?es que fossem substantivas e relevantes para o processo. Deste modo a consolida??o dos novos regimes democráticos apoiou-se basicamente nas quest?es políticas fundadas em procedimentos e em institui??es democráticas deixando de “recorrer à dimens?o substantiva, historicamente contida nos programas populistas ou desenvolvimentistas” (KECK, 2010, p. 22).A transi??o é conceituada como o movimento de uma coisa para outra, representando o intervalo entre dois regimes, e seu encerramento acontece quando a anormalidade n?o constitui tra?o principal da vida política (O’DONNEL;SCHMITTER, 1988). Portanto a transi??o política é, [...] um momento histórico em aberto, marcado por um processo complexo e n?o linear, em que diversas for?as sociais concorrem por imprimir um destino comum à coletividade. Nesse processo, inexiste uma escala de estágios ou pontos de passagem definidos de antem?o (QUINALHA, 2013, p. 30). As normas que surgem neste processo passam a definir quais s?o os canais que ir?o ser utilizados para promover o acesso a cargos de governo, os meios legítimos que poder?o ser utilizados para a solu??o de conflitos e os procedimentos para a tomada de decis?es, ou seja, ser?o definidos quais s?o as “regras do jogo” que todos dever?o observar. Deste modo a transi??o democrática é permeada por um amplo conjunto de estratégias e escolhas realizadas pelas elites políticas e militares a fim de promover os processos de mudan?a política. 3.1 LIBERALIZA??O E DEMOCRATIZA??O As transi??es n?o ocorrem da mesma maneira em diferentes países e nem mesmo seguem um curso determinado ou sugerem uma resposta definida. Estas podem se arrastar no tempo reunindo um conjunto de fatores complexos e de quest?es diversas a depender do contexto em que s?o propostas. Apesar disso é possível identificar alguns elementos constitutivos da transi??o política: a liberaliza??o e a democratiza??o. A liberaliza??o do regime n?o-democrático é o ponto de partida do processo de transi??o desencadeando a “redefini??o e extens?o de direitos, em que apenas algumas liberdades parciais e restritas, típicas do liberalismo clássico, seriam salvaguardadas” (QUINALHA, 2013, p.124) ou seja, o regime autoritário passa a ser menos repressivo aceitando um grau tolerável de liberdades de express?o, organiza??o e participa??o políticas. Para Linz e Stepan a liberaliza??o, pode implicar uma combina??o de mudan?as sociais e de diretrizes políticas, tais como menos censura da mídia, um espa?o um pouco maior para a organiza??o de atividades aut?nomas da classe trabalhadora; a introdu??o de algumas salvaguardas jurídicas para o indivíduo, como o habeas corpus; a liberta??o da maior parte dos presos políticos; o retorno dos exilados; talvez algumas medidas visando a melhoria da distribui??o de renda e, o que é mais importante, a toler?ncia à oposi??o (LINZ;STEPAN, 1999, p.21-22)Trata-se, portanto, da concess?o da “liberdade negativa” que promove a n?o interferência do Estado sobre as quest?es individuais. A liberaliza??o ocorre sem diminuir necessariamente a for?a política do regime repressivo, mas gera mudan?as institucionais que possibilitam em um primeiro momento uma abertura superficial e pontual. As lideran?as políticas passam a negociar os processos de transi??o podendo resultar na migra??o para o regime democrático, ou por vezes, acabar elevando o nível de repress?o no caso do recuo das for?as repressoras. A liberaliza??o é a “medida de intensidade da transi??o” (QUINALHA, 2013, p. 126), podendo ocorrer em maior, ou menor, grau, visando aliviar a tens?o política e a falta de legitimidade do regime n?o-democrático. Após a liberaliza??o, segue o próximo processo que é o da democratiza??o. Este é “um momento mais avan?ado e expressivo do ponto de vista da garantia de direitos e de liberdades públicas comparativamente à liberaliza??o” (STEPAN, 1988, p.13). Neste sentido há a substitui??o das regras e procedimentos encontrados nas institui??es públicas oriundas do regime autoritário, sendo observadas as regras e procedimentos voltados a cidadania que devolvem o exercício destas garantias aos cidad?os. Por fim, somam-se também “temas e institui??es que previamente n?o estavam sujeitas a participa??o dos cidad?os” (O’DONNEL e SCHMITTER: 1988, p. 22). Portanto na democratiza??o n?o basta que haja apenas uma atua??o limitada da oposi??o política como ocorre na fase da liberaliza??o, é necessário haver espa?o para a contesta??o aberta em rela??o ao controle do governo através de elei??es livres. Deste modo a democratiza??o esta relacionada a a??es de afirma??o e transforma??o removendo os impedimentos à participa??o grupos antes excluídos visando corrigir as desigualdades. Um regime político pode ser liberalizado sem que haja de fato a democratiza??o. Isso porque a democratiza??o n?o ocorre automaticamente com a queda de um regime autoritário. Deste modo a interferência do militares na política do governo pode gerar percal?os para a consolida??o democrática produzindo uma série de consolida??es democráticas incompletas, assim como ocorreu no Brasil. 3.1.1 Ondas democráticas Conforme Huntington (1994) as ondas de democratiza??o e ondas reversas s?o manifesta??es de um fen?meno geral que ocorrem em determinados momentos históricos de maneira mais ou menos simult?nea em diferentes países e/ou sistemas políticos. Para o autor três ondas de democratiza??o ocorreram no mundo moderno. A primeira onda de ocorreu no período entre 1828 a 1926. Neste momento, o sufrágio foi ampliado de maneira que nos Estados Unidos metade da popula??o adulta, do sexo masculino e de cor branca passou a contar com o direito ao voto. Na Inglaterra o sufrágio já atingia a trinta por cento entre os maiores de vinte e um anos na segunda metade dos anos 1980. Nos anos seguintes outros países ampliaram o sufrágio, introduziram o voto secreto e aumentaram a responsabilidade dos governantes em rela??o à sociedade. Podemos verificar que a democratiza??o da primeira onda transformou as “oligarquias competitivas em quase-poliarquias” (DAHL, 2005, p. 33). A primeira onda reversa ocorreu entre 1922 e 1942 nos países que haviam implantado a democracia logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, eclodindo uma série de países autoritários e totalitários. A ascens?o de Mussolini na Itália, de Hitler na Alemanha, de Stalin na Uni?o Soviética, os golpes militares na Litu?nia e Pol?nia, o Estado Novo de Getúlio Vargas no Brasil. A segunda onda coincidiu com a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial (1945) e a consequente ascens?o dos Estados Unidos e da Uni?o Soviética como superpotências no qual deram inicio à Guerra Fria. Neste contexto promoveu o retorno das institui??es democráticas primeiramente na Alemanha Ocidental, Jap?o, ?ustria, Itália e Coreia, e ao final dos anos 1940, na Turquia, Grécia, Costa Rica, Brasil, Argentina, Perú, Colombia e Venezuela. O auge democrático ocorreu em 1962 com trinta e seis países governados democraticamente. Sua onda reversa aconteceu entre 1958 e 1975 marcada pela ascens?o dos regimes autoritários na América Latina. Pelo contexto da Guerra Fria o combate ao comunismo ensejou a instaura??o de ditaduras militares. O autoritarismo come?ou no Peru em 1962 e chegou ao Brasil em 1964, seguido de outros países latino- americanos como Argentina, Chile e Uruguai, ao todo foram trinta e oito países que possuíam governos originados de Golpes de Estado. A terceira onda de democratiza??o instalou-se a partir da “revolu??o dos cravos” (1974) ocorrida em Portugal ocasionando a queda do regime salazarista. Logo se propagou para a América latina, ?sia e Europa gerando a queda dos regimes autoritários que eclodiram na segunda reversa de democratiza??o. A terceira onda – que perdura nos dias atuais – é o período onde mais temos a prevalência de regimes democráticos, ou seja, um total de sessenta e cinco democracias no mundo. Estas novas democracias surgidas na terceira onda têm enfrentado grandes problemas de transi??o no sentido de buscar resolver quest?es complexas sobre o que fazer sobre os grupos políticos que apoiaram o regime autoritário, como elaborar a reforma das institui??es, a constru??o da memória e da verdade, e a efetiva??o da justi?a. 3.1.2 Transi??o por transforma??o, substitui??o e “transplacement”A transi??o da democracia brasileira ocorreu na “terceira onda” de democratiza??o identificada por Huntington. O?Donnell e Schmitt (1988, p.108) comparam o processo de transi??o democrático a um “jogo de xadrez de níveis múltiplos” jogado por vários atores. Neste jogo s?o inventadas regras que podem ser impostas tanto unilateralmente pelo ator dominante “devendo os demais jogadores obedecer – por medo ou respeito – ou, ser elaboradas multilateralmente por acordos implícitos ou pactos explícitos” (O’DONNELL; SCHMITT, 1988, p. 111). Portanto o “jogo” transicional n?o decorre de um processo linear, e nem garante por si só a finalidade da instaura??o democrática. Pode criar regras meramente políticas que permitem mudan?a de regime, mas também garantem que o regime autoritário saia do jogo sem sofrer arranh?es. Para isso usam de mecanismos jurídicos legítimos – porque ainda s?o de fato os detentores do poder – para promover essa mudan?a. Dentre todos os países da América Latina o Brasil foi o que mais teve dificuldade na busca da consolida??o democrática. Como vimos anteriormente, as rela??es civis-militares influenciaram na escolha das regras do jogo brasileiro minando grande parte das possibilidades de transi??o. As condi??es restritivas impostas pelos militares para deixar o poder afetaram tanto a origem do novo governo quanto o seu desempenho (LINZ;STEPAN, 1999). Huntington (1994) entende que a transi??o democrática pode ocorrer de três maneiras a depender do equilíbrio relativo de poder entre a elite governante e a oposi??o. E durante a consolida??o democrática os países podem passar por problemas na transi??o, problemas contextuais e problemas sistêmicos. Os problemas na transi??o correspondem às regras que ir?o compor o processo que institucionaliza o novo regime, como, o procedimento a ser seguido para as elei??es e as modifica??es que ir?o ser realizadas nas institui??es autoritárias. Os problemas contextuais est?o relacionados a quest?es de cunho social no momento da transi??o, como o anseio da oposi??o na instaura??o do processo democrático, as press?es populares e a resistência daqueles que ainda defendem o regime autoritário. Os problemas sistêmicos relacionam-se com a quest?o das lideran?as na transi??o. Por consolida??o democrática seguimos a defini??o de Linz e Stepan:Uma transi??o democrática está completa quando um grau suficiente de acordo foi alcan?ado quanto aos procedimentos políticos visando obter um governo eleito; quando um governo chega ao poder como resultado direto do voto popular livre; quando esse governo tem, de fato a autoridade de gerar novas políticas; e quando os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, criados pela nova democracia, n?o têm que, dejure, dividir o poder com outros organismos (LINZ;STEPAN, 1999, p.21). Para o autor as democracias consolidadas precisam necessariamente ter estabelecido cinco campos de intera??o: 1. Condi??es para o desenvolvimento de uma sociedade civil livre a ativa; 2. Uma sociedade política relativamente aut?noma e valorizada; 3. Um estado de direito que assegure as liberdades políticas; 4. Burocracia estatal que possa ser usada pelo novo regime; 5. Sociedade econ?mica institucionalizada. Agora que sabemos a defini??o de transi??o e consolida??o democrática podemos seguir a análise das formas de transi??o e se houve uma consolida??o democrática. A primeira forma de transi??o é a transforma??o (transformation) do regime através de controle da liberaliza??o pelo regime autoritário, ou seja, o processo de abertura democrática é iniciado pelo próprio regime n?o democrático e estritamente controlado por este. A transforma??o que ocorre n?o está relacionada ao retorno da legalidade ou com a ruptura com o regime autoritário, mas sim, com a altern?ncia do poder daquele que detêm para a oposi??o. Deste modo n?o significa que ambos n?o ir?o partilhar do exercício do poder, pois a interferência no processo de transi??o normalmente acarreta a continuidade do regime repressivo gerando um alto custo para o regime democrático insurgente. Nesta forma de transi??o, a qual é a mais partilhada entre regimes militares, há um deslocamento gradual na substitui??o do sistema político, pois o regime autoritário possui mais for?a política e institucional do que a oposi??o, que se encontra enfraquecida pelo longo período de repress?o imposto. Deste modo todas as regras do processo transicional como tempo, prazo, etapas e condi??es, acabam sendo determinadas pelo regime militar que possuem “poder suficiente para controlar o ritmo da transi??o e extrair um alto pre?o por se retirar do poder” (LINZ;STEPAN, 1999, p.205). Oito estratégias s?o comumente utilizadas durante a transi??o por transforma??o (HUNTINGTON, 1994): 1. A base política deve ser protegida posicionando os apoiadores da democratiza??o em posi??es estratégicas; 2. Utilizando-se de procedimentos estabelecidos pelo regime n?o democrático deve-se manter a estrutura de legitimidade e tranquilizar os grupos conservadores através de concess?es simbólicas. Nesse sentido deve agir com parcim?nia, um passo a frente e dois para trás; 3. Deve-se mudar gradualmente o seu próprio círculo eleitoral para reduzir sua dependência de grupos governamentais que se op?em às mudan?as; 4. Esteja preparado para as a??es extremas, como um golpe de Estado, devendo ataca-los implacavelmente isolando e renegando os adversários mais extremos. 5. As iniciativas e processos de democratiza??o devem ser mantidos sob controle. Deve-se agir a for?a n?o cedendo aos grupos de oposi??o; 6. Deve-se manter baixas expectativas ao invés de incentivar um utopia democrática totalmente elaborada; 7. Deve-se incentivar o desenvolvimento de um partido de oposi??o que os setores chave aceitar?o como um governo alternativo plausível; 8. Deve-se criar uma sensa??o de inevitabilidade sobre o processo de democratiza??o para que este se torne amplamente aceito como um fator necessário e natural. O processo de transi??o brasileiro ocorreu via transforma??o. A liberaliza??o do regime autoritário iniciou no governo Geisel ante a inexistência do combate aos movimentos de guerrilha que sustentavam o regime de exce??o. Partindo do regime autoritário a transi??o foi iniciada através um complexo processo de abertura política controlada pelo governo propondo uma transi??o “lenta, gradual e segura”. Esta liberaliza??o foi vinculada a aprova??o de uma Lei de Anistia que perdoou indistintamente os crimes políticos e conexos a estes cometidos pelos opositores do regime autoritário que lutaram pelo retorno da democracia e os militares. Com a imposi??o dessa forma de transi??o o processo de altern?ncia de poder perdurou por anos. A primeira vai de mar?o de 1974 a mar?o de 1985, e abrange os dois últimos governos militares, as presidências dos generais Geisel (1974-1979) e Figueiredo (1979-1985). A segunda etapa – a constru??o da democracia – desenvolve-se durante o governo civil de José Sarney (1985-1990). Quanto ao processo de consolida??o do novo regime democrático, uma espécie de segunda transi??o, ela inicia-se com a presidência de Fernando Collor de Mello em mar?o de 1990 (eleito por sufrágio universal e afastado do poder por um processo de impeachment em dezembro de 1992), e encontra-se ainda em andamento. (ASTURI, 2001, p.6). A transi??o controlada pelo regime anterior gerou uma forte continuidade dos mecanismos autoritários em nossa sociedade. Isso porque quanto maior o apoio político detido pelo regime autoritário no inicio da transi??o, mais gradual e controlado este se torna, dificultando a consolida??o democrática (ASTURI, 2001). Durante grande parte deste período a Constitui??o de 1967 – elaborada para legalizar e institucionalizar o regime militar originado do Golpe de 1964 – continuou em vigor. O movimento pela anistia “ampla, geral e irrestrita” movida pelos setores populares foi amplamente controlado pelos setores militares. Como mostrada nas oito estratégias elucidadas por Huntington, o Brasil elaborou a lei de anistia justamente durante o período de decadência do regime autoritário para assegurar que os militares que cometeram crimes em nome do regime ficassem impunes. O fracasso do modelo político-econ?mico mergulhou o país em uma crise que resultou em altas taxas de infla??o e endividamento externo, fazendo com que setores antes apoiadores da instaura??o do regime militar encontravam-se insatisfeitos. Mudan?as eram reivindicadas, como a campanha “Diretas já”, movendo multid?es as ruas para promover as elei??es diretas para presidente. Mas a elei??o para o Presidente da República em 1985 continuou sendo conduzida pelo Colégio eleitoral através de elei??es indiretas e somente em 1989 as elei??es diretas para presidente ocorreram. Atualmente podemos notar a for?a política que os militares ainda exercem sobre a atua??o do governo. Tomamos por exemplo a aprova??o em 2009 da terceira edi??o do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) que previu a Cria??o Nacional da Verdade. Na 11° Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizado em dezembro de 2008, foi proposta a cria??o de uma Comiss?o Nacional da Verdade e Justi?a para apurar os crimes de lesa humanidade e viola??o de direitos humanos ocorridos durante a ditadura militar. Esta quest?o gerou grande polêmica no seio político visto que os militares entenderam que a cria??o de uma comiss?o desta forma animaria espíritos revanchistas. A assinatura do decreto que aprovava o PNDH-3 culminou em cartas de demiss?es do ministro da Defesa e de Comandantes das For?as Armadas como forma de pressionar o governo a suprimir a própria cria??o dessa comiss?o. Rapidamente o governo retirou do texto o trecho que previa a apura??o das viola??es de direitos humanos praticadas durante a ditadura militar, ficando restrita a apenas a apura??o dos fatos. Ainda, suprimiu o termo “Justi?a” passando a ser ent?o uma “Comiss?o Nacional da Verdade”. Desde a aprova??o do PNDH-3 ainda as negocia??es para a cria??o da CNV se estenderam durante mais dois anos, sendo aprovada apenas em 2011. Além da forte influência dos setores militares, ainda podemos constatar os resquícios do antigo regime repressor na democracia instaurada. A Constitui??o de 1988 apesar de trazer significativas mudan?as n?o recebeu as devidas altera??es quanto às quest?es referentes às For?as Armadas, Polícia Militar e seguran?a pública. A violência policial no país ainda continua alarmante com a prevalência de práticas discriminatórias e repressivas. As escolas públicas ainda s?o de baixa qualidade com métodos de ensino restritos e os currículos de educacionais est?o longe de ser democráticos. Há forte resistência na mudan?a de leis instauradas durante o regime ditatorial que apesar de legitimamente criadas, n?o observaram um fator essencial, a prote??o dos direitos humanos. Se formos analisar a defini??o de democracia consolidada elaborada por Linz e Stepan o caso brasileiro é claramente uma situa??o de democracia n?o-consolidada. Além do controle exercido pelo regime militar no processo de transi??o, outras quest?es como a forte crise econ?mica rapidamente vieram a se tornar mais importantes do que as quest?es propriamente políticas. Entre os anos 1991 e 1992 o apoio ao regime democrático havia decrescido, gerando uma perigosa avalia??o por parte da popula??o de que o desempenho do regime militar no passado foi melhor do que o regime democrático no presente. E ainda, que este poderia ser uma preferência para o futuro. (LINZ;STEPAN, 1999). Diferentemente do modelo por transforma??o, segue o segundo modelo apresentado por Huntington (1994) que é o modelo pautado na substitui??o (replacement) ou “transi??o por ruptura”. Ocorre quando a proposta de mudan?a parte dos opositores do regime n?o democrático, de tal maneira que acabam promovendo o colapso, ou mesmo a derrubada pela for?a. Neste tipo de transi??o há uma ruptura brusca com o regime anterior. Deste modo pode ocasionar altos graus de conflito e violência. Culmina na responsabiliza??o dos máximos líderes da ditadura militar através da promo??o de julgamentos e expurgos. O exemplo é a o processo de transi??o ocorrido na Argentina (HUNTINGTON, 1994). Esta transi??o contou com duas crises que desestruturaram o regime autoritário. A primeira crise ocorreu com o fracasso argentino na “Guerra das Malvinas” em 1982. E a segunda crise ocorreu com colapso econ?mico e a insatisfa??o generalizada dos setores populares. Mesmo após a derrota na Guerra das Malvinas o regime autoritário ainda tentou manter a sociedade sob sua tutela, porém, “a popula??o percebeu a manipula??o exercida pelos meios de comunica??o, que abundavam detalhes sobre a vitória da Argentina na guerra das Malvinas, em realidade inexistente” (SANTOS, 2016, p. 176). Em 1983, Raúl Ricardo Alfonsín foi eleito democraticamente e seu governo foi pautado no esclarecimento dos fatos e puni??o das viola??es de direitos humanos, estabelecimento de igualdade perante a lei e a formula??o de um política que gerou uma linha divisória em rela??o ao passado em busca de promover uma transi??o que se desvinculasse de todo o aparato do regime anterior e consolidasse a democracia emergente. Durante o governo de Alfonsín, importantes Tratados Internacionais foram assinados como a Conven??o Americana de Direitos Humanos, Pacto Internacional de Direitos Civil e Políticos, Pacto Internacional de Direito Economicos, Sociais e Culturais, e a Conven??o contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (SANTOS, 2016). Em conson?ncia com entendimento internacional de direitos humanos sobre leis que promovem autoanistias a Argentina revogou as duas leis que anistiavam os crimes cometidos na ditadura - “Lei do Ponto Final” e a “Lei de Obediência Devida”, - possibilitando a continuidade da persecu??o penal dos crimes cometidos pelos agentes de Estado. Este modelo de transi??o é o que mais se aproxima aos mecanismos propostos pela Justi?a de Transi??o no qual iremos abordar no seguinte capítulo deste trabalho. O terceiro modelo de transi??o, chamado “transplacement”, ocorre da combina??o das suas primeiras formas constituindo uma democracia negociada entre o regime n?o democrático e a oposi??o para estabelecer a mudan?a de regime (HUNTINGTON, 1994). Um exemplo é o modelo de transi??o do Uruguai. O Uruguai teve um regime autoritário entre 1973 e 1985. No início foi dominado de facto pelos militares, e a partir de 1976, governado de jure por militares hierarquicamente comandados. Em 1985, “uma organiza??o militar unida entregou o poder a um presidente democraticamente eleito” (LINZ;STEPAN, 1999, p. 187). O processo de transi??o no Uruguai ocorreu entre os anos 1980 e 1984 tendo como marco inicial o plebiscito convocado pelos militares para aprovar o projeto de reforma constitucional. Para a surpresa dos militares que contavam com a aderência da popula??o, o projeto foi rejeitado pela sociedade uruguaia demonstrando ao regime militar que a abertura política n?o iria ocorrer sem que houvesse a negocia??o com os partidos políticos. Entendia-se que o Uruguai n?o precisava de uma Constitui??o de autoria dos militares. O poder de barganha dos militares foi reduzido, pois, naquele momento n?o havia o perigo de uma amea?a interna, como a guerrilha, porque esta já havia sido eliminada quando da posse dos militares no poder. Ainda soma-se a falta de alian?as com a sociedade civis e a promessa de respeitar a decis?o proferida no plebiscito (LINZ;STEPAN, 1999). N?o restou outra op??o as For?as Armadas sen?o uma retirada segura do poder a fim de impedir os julgamentos dos agentes repressivos, da mesma maneira que estava ocorrendo na Argentina. Em 1984 foi firmado o “Pacto do Clube Naval” entre as For?as Armadas e os dirigentes dos Partidos Políticos no qual foi realizado o acordo para a transferência do poder aos civis. No mesmo ano elei??es foram convocadas com livre participa??o dos partidos (CABRAL, 2012), porém com restri??es quanto aos candidatos que poderiam concorrer ao cargo à presidência. Em 1989 foi realizada mais uma elei??o onde foi permitida a participa??o de todos os candidatos, havendo ampla participa??o da popula??o uruguaia (LINZ;STEPAN, 1999). Para Linz e Stepan (1999) o Uruguai foi o único país a se tornar uma democracia consolidada dentre todos que passaram por regimes autoritários na América Latina. Isso porque em termos conceituais o caso uruguaio se encaixa no esquema teórico sobre democracia consolidada. De 1973 a 1985, teve um regime autoritário, sendo dominado de facto pelos militares e, a partir de 1976, governado de iure por militares hierarquicamente comandados, até que, em 1985, uma organiza??o militar unida entregou o poder a um presidente democraticamente eleito (LINZ;STEPAN, 1999, p. 187). Os demais países, principalmente o Brasil, ficaram estagnados no processo de democratiza??o estando longe de efetivá-la. Assim cabe apontar algumas considera??es quanto à concep??o minimalista da democracia abordada até o momento. As conceitua??es desenvolvidas neste primeiro capítulo privilegiam a dimens?o procedimental de democracia consistente em um processo de progressiva amplia??o de contesta??o, participa??o política, existência de uma livre competi??o pacífica pelo poder e a garantia de liberdades civis fundamentais. Estas análises que colocam em primeiro plano as estratégias seguidas pelas elites dirigentes ignorando as demandas sociais trouxeram grandes consequências para a democracia insurgente, como a continuidade de práticas autoritárias nos países latino-americanos. A limita??o em definir a consolida??o democrática como um conjunto de regras e procedimentos para altern?ncia de poder, n?o considerou outras quest?es importantes como os “processos de transforma??o social, com os anelos de emancipa??o e justi?a substantiva e com as vivencias quotidianas das grandes maiorias populares” (VITULLO, 2005, p.26). Para Vitullo (2006) é essencial o resgate das dimens?es n?o contempladas nos trabalhos até ent?o elaborados sobre a transi??o e consolida??o democrática para entender melhor o processo de crise estrutural que sofrem as institui??es democráticas. Quinalha aponta três problemas principais quanto à teoria da transi??o e consolida??o elaboradas sem a inclus?o das demandas sociais, O primeiro é a ideia de que a democratiza??o deve, necessariamente, decorrer de uma conex?o entre o autoritarismo e a democracia, como se a ausência do primeiro levasse de modo mais ou menos natural à segunda. Outro aspecto criticado é o fato dessa tradi??o desvincular o autoritarismo dos problemas de constitui??o do Estado moderno, ou seja, desconsiderar a rela??o estreita entre formas modernas de racionalidade política e formas contempor?neas de autoritarismo. Por fim, uma última crítica é a de que as rela??es entre Estado e sociedade n?o devem ser concebidas apenas enquanto continuidade, como faz crer essa literatura. Isso faz perder de vista as a??es sociais de caráter coletivo e solidário, que têm impacto no sistema político (QUINALHA, 2013, p.138-139).A democracia n?o pode ser vista como uma alternativa civilizada frente às viola??es de direitos humanos que ocorreram durantes os regimes militares (VITULLO, 2005). Se n?o considerarmos os outros elementos na conceitua??o de democracia, como por exemplo, a necessidade de se realizar uma transi??o que observa n?o apenas as quest?es políticas, mas também as quest?es de justi?a para as vítimas, dificilmente poderemos refletir sobre o tipo de democracia que vêm sendo construído em nossa sociedade. Deste modo, seguindo esta ideia de que o processo democrático deve se atentar também a outros fatores como a justi?a, iremos abordar no próximo capítulo outro campo que emergiu sobre transi??es democráticas. Este novo campo chamado Justi?a de Transi??o possibilita o confronto com o passado como meio para gerar uma maior transforma??o política, atentando aos anseios por justi?a que emergem durante os períodos de transi??o de um regime n?o democrático para um regime democrático. PARTE II – A JUSTI?A DE TRANSI??O LATO SENSU 1 A CONSTRU??O DA JUSTI?A EM TEMPOS DE TRANSI??OAs experiências totalitárias da Segunda Guerra Mundial e os regimes autoritários que eclodiram na América Latina, ?sia, ?frica e Europa nos deixaram importantes li??es. Se antes a democracia como forma de governo foi considerada a “pior das boas e melhor das más” (BOBBIO, 2003, p. 142), contemporaneamente estamos convencidos de que a paz só pode ser perseguida com a democratiza??o, e que esta deve observar a prote??o dos direitos humanos. Como pudemos ver no capítulo anterior, os estudos sobre as transi??es e consolida??es democráticas refletiram sua aten??o na análise dos procedimentos políticos adequados para facilitar o processo de mudan?a dos regimes autoritários para a democracia. Nestes estudos os fatores substanciais, como o anseio das vítimas por justi?a, foram excluídos devido ao contexto em que a abertura política foi proposta. Neste momento o que se evitava era por em cheque a efetiva reconcilia??o por meio de um acordo político entre o regime autoritário e a oposi??o. Esse cenário de incertezas quanto à transi??o e consolida??o democrática decorreu do forte controle que os regimes militares ainda possuíam no momento da abertura política, no qual impuseram a transi??o para a democracia de forma “lenta, gradual e segura”. Em meio aos cálculos das elites políticas a dimens?o moral dos reclamos por justi?a das vítimas foi relativizada sendo mais importante conseguir efetivar a transi??o e consolida??o democrática do que abrir quest?es que fizessem com que o regime militar recuasse na sua decis?o de abertura política. A presen?a da cautela e da prudência se justificava pelo medo de que, caso a transi??o n?o ocorresse, um pior cenário de regress?o autoritária poderia surgir. (QUINALHA, 2013). Diante dessa lacuna deixada por esses conceitos surge um novo campo de estudos denominado de Justi?a de Transi??o. Nesta nova forma de análise o papel da justi?a em tempos de transi??o é considerado t?o importante quanto o procedimento para a transi??o em si, ilustrando a “impossibilidade de retomar a convivência democrática do momento em que ela foi interrompida, sem que haja um olhar especialmente voltado aos elementos do passado que persistem no presente” (QUINALHA, 2013, p. 83). Neste sentido, a Justi?a de Transi??o é uma rea??o crítica que busca verificar se as regras, princípios e práticas respondem às expectativas e às necessidades das popula??es que antes haviam sido objeto de terrorismo do Estado (COELHO, 2014). Seguindo esta linha, entende-se que n?o basta a derrubada de uma ditadura, a instala??o de uma Assembleia Constituinte para a elabora??o de uma nova Constitui??o, nem o retorno dos exilados para que possamos afirmar que houve a promo??o de uma reconcilia??o nacional. Os mecanismos transicionais baseados na cultura do silencio e do esquecimento através da imposi??o de autoanistias n?o condiz com a constru??o de um Estado Democrático de Direito. A transi??o democrática n?o pode ser pautada em um discurso consensual. Para que seja efetivamente democrática, esta deve observar os anseios da sociedade, que deve poder participar desse processo. Com a abertura política na América Latina entre os anos 1980 e 1990 uma série de conferências foram organizadas para discutir as din?micas da transi??o para a democracia e as experiências vivenciadas no Cone Sul. Ativistas e acadêmicos foram convocados para discutir como os governos sucessores deveriam lidar com os crimes dos regimes antecessores, objetivando analisar as implica??es morais, políticas e jurídicas dos “recentes julgamentos, comiss?es de inquérito, expurgos e outras medidas que buscaram responsabilizar antigos regimes pelo sistemático abuso aos direitos humanos, bem como promover a transi??o para a democracia” (ARTHUR, 2011, p.74). Esta constru??o metodológica relacionada à necessidade de respostas a problemas concretos nós podemos encontrar a partir da proposta de Ruti Teitel, Niel Kritz, e outros autores (ARTHUR, 2011). A justi?a de transi??o indica uma atividade focada na supera??o de legados de abusos dos direitos humanos, atrocidades em massa ou outras formas de trauma social severo, incluindo genocídio ou guerra civil, a fim de construir um processo mais democrático, justo e um futuro pacífico (BICKFORD, 2004). Desta forma desenvolve medidas a serem apreendidas no processo transicional como o resgate a memória e a verdade, efetiva??o da justi?a, repara??o das vítimas e reforma das institui??es repressoras. O estudo da Justi?a de Transi??o é fundamental compreender os processos, mecanismos, formas de transi??o e consolida??o democrática em países que passaram por momentos autoritários, como o Brasil. Isto porque a justi?a n?o se instaura necessariamente com a transi??o política. ? necessário atentar meios para que a esta ocorra. Portanto este capítulo se concentrará no desenvolvimento teórico e a aplica??o desses mecanismos de transi??o, e em especial, abordará como a justi?a de transi??o ocorreu no caso brasileiro. Conforme os estudos de Jon Elster (2004) as transi??es de sistemas políticos bem como a escolha de medidas que modificam o pensamento político hegem?nico n?o s?o novidades da contemporaneidade. Em seu livro Closing the books: transitional justice in historial perspective apresentou algumas de transi??es de regimes ocorridas no passado, como por exemplo, a restaura??o democrática em Atenas (411 a.C), e mecanismos que poderiam caracterizar uma Justi?a de Transi??o. Porém, tais processos transicionais n?o se relacionam com o conceito de justi?a de transi??o no qual iremos trabalhar. Posto que, estamos nos referindo a uma série de mecanismos legais para o enfrentamento da heran?a autoritária cujo significado remete às experiências vividas no século XX. Luiz Fernando Coelho tra?a alguns contornos sobre o tema: No estudo dos direitos humanos, especialmente quanto ao problema da eficácia da legisla??o que os declara e os garante, uma situa??o particularmente relevante se apresenta: como lhe dar com a necessidade de preservá-los na plenitude de seus princípios quando um governo autoritário, em face da iminente restaura??o do Estado de Direito e consequente substitui??o por um governo democrático, trata de impedir a investiga??o, processamento e puni??o dos delitos contra os direitos humanos praticados na vigência do regime opressor. Este e outros problemas resultantes da passagem de um sistema autocrático para uma ordem democrática exigem solu??es jurídicas que repercutem no contexto ético, político e social do novo regime. ? um conjunto interdisciplinar que vem sendo caracterizado como justi?a de transi??o. (COELHO, 2014, p.233)Deste modo a justi?a de transi??o moderna, tal qual conhecemos, possui o recorte histórico partir do final da Segunda Guerra Mundial com a institui??o do Tribunal de Nuremberg para julgar o alto escal?o nazista pelos crimes de guerra e crimes contra a humanidade (TEITEL, 2011). Isso porque só recentemente as medidas que chamamos de justi?a de transi??o foram justificadas por meio de apela??es às normas universais, como os direitos humanos. Conforme o relatório S/2004/616, resultado das reuni?es do Conselho de Seguran?a da Organiza??o das Na??es Unidas (ONU) realizadas em 2003, a no??o de Justi?a de Transi??o Compreende o conjunto de processos e mecanismos associados às tentativas da sociedade em chegar a um acordo quanto ao grande legado abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem contas de seus atos, que seja feita a justi?a e se conquiste a reconcilia??o. Tais mecanismos podem ser judiciais e extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou nenhum), bem como abarcar o juízo de processos individuais, repara??es, busca da verdade, reforma institucional, investiga??o de antecedentes, a destitui??o de um cargo ou a combina??o de todos esses procedimentos. (ANNAN, 2009, p.325).Portanto a justi?a de transi??o moderna discute sobre os “processos judiciais, resgate da verdade, transforma??o dos aparatos de seguran?a de um estado abusivo e a reabilita??o ou compensa??o de danos” (ARTHUR, 2014, p.115). A Justi?a de Transi??o é, portanto, um modelo de justi?a que pretende a reconcilia??o nacional com o seu passado, manifestando-se por meio de medidas como, a constru??o da memória e da verdade, a devida responsabiliza??o dos responsáveis pelas viola??es de direitos humanos e a reforma das institui??es perpetradoras e coniventes com estes atos, com vistas a impedir que novas viola??es sistemáticas de direitos humanos possam ressurgir. Em um par?metro geral sobre a Justi?a de Transi??o a autora Ruti Teitel (2011) elaborou uma genealogia da justi?a transicional nos ofertando um importante estudo estruturando-a em fases como veremos a seguir. 1.1 A GENEALOGIA DA JUSTI?A DE TRANSI??ORuti Teitel (2011, p. 136) visando tra?ar a busca histórica pela justi?a em tempos de mudan?a política prop?s a elabora??o de uma genealogia para demonstrar através do tempo a rela??o entre a “justi?a que se almeja e as restri??es políticas relevantes”. Deste modo analisando o desenvolvimento dos acontecimentos políticos ocorridos, a partir da segunda metade do século XX, estruturou a genealogia em três fases distintas: 1° fase: pós-Segunda Guerra Mundial; 2° fase: pós-Guerra Fria; 3° fase: Contemporaneidade. O estudo proposto apresenta uma abordagem indutiva, construtivista e contextualizada que define a Justi?a de Transi??o como “a concep??o de justi?a associada a períodos de mudan?a política, caracterizados por respostas no ?mbito jurídico, que tem o objetivo de enfrentar os crimes cometidos por regimes opressores do passado” (TEITEL, 2011, p. 135). Trata-se, portanto, na implica??o em processar os perpetradores das viola??es de direitos humanos, revelar a verdade histórica sobre os fatos ocorridos, fornecer às vítimas a devida repara??o (financeira e simbólica) e promover uma verdadeira reconcilia??o nacional sob a perspectiva das vítimas. 1.1.1 Primeira fase: justi?a Pós-guerra (1945) A primeira fase da genealogia da justi?a de transi??o está associada ao modelo de justi?a conduzido pelos Aliados logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Através do Acordo de Londres (1945) foi determinada a forma??o de um Tribunal Militar Internacional – conhecido por Tribunal de Nuremberg - para julgar os responsáveis pelos crimes cometidos durante a guerra. Neste sentido três acusa??es foram tipificadas: 1. Crimes contra a Paz, sendo a participa??o direta ou indireta, na prepara??o e execu??o de guerras violando tratados, acordos e garantias internacionais; 2. Crimes de Guerra, no qual há a viola??o aos costumes e leis de guerra; 3. Crimes contra a Humanidade, no qual englobam o assassinato, extermínio, escravid?o, deporta??o e outros atos desumanos cometidos contra a popula??o civil, bem como, persegui??es civis, raciais e religiosas. Cabe observar que os Crimes contra a Humanidade foram aplicados pela primeira vez nos julgamentos ocorridos no Tribunal de Nuremberg, dado que a compreens?o tradicional carecia de respostas à nova forma de domina??o que eclodiu na Europa: o Totalitarismo. Assim, os Crimes contra a Humanidade representaram uma inova??o ao Direito Internacional estabelecendo um novo sistema constituído pelo Direito Humanitário. Sem dúvida o Tribunal de Nuremberg constituiu o maior símbolo da primeira fase da justi?a transicional. Neste momento o objetivo central da justi?a era delinear os par?metros a ser seguidos para punir a Alemanha e se tais as medidas deveriam ser deixadas a cargo dos agentes nacionais, ou se deveriam ser realizadas pelos agentes internacionais (TEITEL, 2011). A justi?a de transi??o da primeira fase ganhou um forte caráter internacional e punitivo deslocando a competência para julgar a Alemanha nas m?os dos Aliados. Isso porque neste momento havia grande hesita??o na capacidade da jurisdi??o nacional, pautada no positivismo jurídico, em estar processando e julgando o regime nazista. Esta dúvida parte da experiência vivida pós-Primeira Guerra Mundial onde Tribunais nacionais falidos n?o conseguiram “evitar a futura matan?a ocorrida na Segunda Guerra Mundial” (TEITEL, 2011, p. 140). Nesse sentido o Direito Penal Internacional foi usado para atingir diretamente os indivíduos, permitindo responsabilizar os mais altos escal?es do Reich pelos crimes cometidos. Verifica-se, portanto, que estas condi??es foram consideradas uma garantia para se efetivar o Estado de Direito através da reforma das institui??es e responsabiliza??o. Desta primeira fase da justi?a transicional a autora tece algumas considera??es: O Tribunal de Nuremberg criou um precedente histórico do poder cogente do direito internacional no qual influenciou na forma??o da estrutura central do Direito Humanitário contempor?neo; Apesar de o objetivo ser a responsabiliza??o pelos crimes cometidos na guerra, a inova??o trazida nesta fase está no uso do Direito Penal Internacional e o seu alcance. Os julgamentos de Nuremberg permitiram atingir o individuo; A primeira fase foi marcada pelo internacionalismo e a cria??o de Tribunais ad hoc. O importante abandono das respostas transicionais nacionalistas prévias e a proximidade de uma política de internacionalismo foram considerados uma garantia de Estado de Direito; A aplica??o da justi?a internacional acarretou irregularidades que tencionaram o Estado de Direito, especialmente dado seu objetivo liberalizador; O Tribunal de Nuremberg criou precedentes importantes, porém limitados, visto que foi possível somente no contexto da supera??o de uma nova forma de domina??o: o Totalitarismo. Desde modo foi um modelo sui generis. Deste modo o desenvolvimento deste modelo elaborado na primeira fase da Justi?a de Transi??o se exauriu logo após os julgamentos de Nuremberg. O legado deixado pelo julgamento da Segunda Guerra possibilitou a incorpora??o de conven??es internacionais como a Conven??o contra o Genocídio (1948) no qual se consolidou o que o genocídio é um crime contra o Direito Internacional, contrario ao espírito e aos fins das Na??es Unidas e do mundo civilizado. 1.1.2 Segunda fase: justi?a Pós-guerra Fria As transi??es da segunda fase da transi??o situadas entre 1970 e 1989, apresentaram como pano de fundo uma ordem mundial em plena muta??o. O seu início se deu no término da Guerra Fria com o declínio da Uni?o Soviética e a emergência de um mundo multipolar que provocou a onda de liberaliza??o na América do Sul, estendendo-se para a Europa do Leste e América Central. Sendo um período de acelerada democratiza??o e fragmenta??o política (TEITEL, 2011). Diferentemente da primeira fase onde a transi??o ocorreu com a interven??o de atores internacionais, na segunda fase os processos transicionais foram iniciados e executados pelos próprios regimes autoritários. Segundo Teitel (2011, p.144) “n?o havia clareza se o ajuizamento de a??es contra os responsáveis no estilo Nuremberg seria seguido com êxito” devido ao contexto em que essas transi??es ocorriam. Apesar dos regimes autoritários estarem enfraquecidos devido as sucessivas crises econ?micas e sociais que foram surgindo durante os anos 1980 estes ainda possuíam o controle político do Estado. Esses processos de transi??o política controlados pelo Estado resultaram na produ??o de uma série de Leis de Anistia no qual o regime perdoou a si próprio, ou seja, leis que promoveram a autoanistia. Assim como a primeira fase da justi?a transicional esta segunda fase também n?o poderia ser transportada para outros “contextos de soberanias radicalmente diferentes” (TEITEL, 2011, p. 145). Essa segunda fase foi marcada pelas seguintes características: Em alguns países as transi??es políticas controladas pelos Estados autoritários ocorreram na esfera nacional, onde comumente Leis de Anistia foram elaboradas assegurando a impunidade dos agentes de Estado que cometeram crimes contra os direitos humanos. Os conceitos de perd?o e reconcilia??o foram comumente utilizados como recursos necessários para a transi??o. O interesse das vítimas na invalidade das leis de anistia geraram dilemas que incluíam “a retroatividade da lei, altera??o e manipula??o indevidas de leis existentes e um alto grau de seletividade na submiss?o de processos e um poder judicial sem suficiente autonomia” (TEITEL, 2011, p.146). A tens?o entre puni??o e anistia se complicou com a admiss?o e reconhecimento dos dilemas inerentes aos períodos de mudan?as políticas;A justi?a neste período se vinculou a uma concep??o de justi?a imparcial e imperfeita, gerando a quest?o: o que é justo e equitativo em circunstancias políticas extraordinárias? A viabilidade de buscar a justi?a através da esfera internacional, como as condena??es contra os crimes de lesa humidade julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH), dependeu de critérios como: a escala dos crimes cometidos, da sua sistematiza??o e do efetivo patrocínio do Estado repressor. O entendimento sobre justi?a nas transi??es é mais bem compreendido quando analisamos o contexto político da transi??o considerando as contingencias políticas, jurídicas e sociais. Como meio alternativo a impossibilidade julgamentos penais outros mecanismos foram buscados como: repara??o e o estabelecimento das Comiss?es da Verdade. Observa, portanto, que no contexto da segunda fase surgiu um modelo alternativo que buscou na restaura??o uma forma de se buscar a justi?a, por meio da constru??o da verdade histórica dos acontecimentos ocorridos durantes os regimes repressores. Nesse sentido busca-se oferecer uma perspectiva histórica ampla, refutando vers?es oficiais sobre as mortes, persegui??es, pris?es arbitrárias, torturas, estupros e demais crimes contra os direitos humanos praticados pelos agentes de Estado. O direito à “verdade e a memória” passou a ser o direito de toda a sociedade saber sobre o que realmente aconteceu neste período sombrio da história através de audiências públicas, publica??es de relatórios, livros, filmes, cria??o de museus, e demais mecanismos que gerassem ampla publicidade de modo a evitar, através da conscientiza??o, a repeti??o desses acontecimentos em gera??es futuras. 1.1.3 Terceira fase: a justi?a “estável”A terceira fase da justi?a transicional corresponde a contemporaneidade no qual a autora afirma ser a “justi?a transicional em todo momento” (TEITEL, 2011, p. 164). A justi?a transicional estável está relacionada a expans?o e normaliza??o deste ramo para aplica??o de seus mecanismos n?o apenas em condi??es extraordinárias, mas sim, em tempos normais (guerras em tempo de paz, Estados frágeis e conflitos constantes). A Justi?a de Transi??o torna-se jurisprudência a ser seguida pelos Estados, em conson?ncia aos valores que atualmente entendemos indispensáveis: Estado de Direitos, Democracia, Paz e Direitos Humanos. O símbolo da normaliza??o da jurisprudência da transi??o nós encontramos com a consolida??o do Tribunal Penal Internacional (TPI) estabelecido pelo Estatuto de Roma em 1998. Este Tribunal simboliza a consolida??o do modelo de Nuremberg: a cria??o de um Tribunal internacional permanente para julgar os autores de crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade (TEITEL, 2011). O Tribunal Penal Internacional iniciou as suas atividades em 2002, e sua competência é para julgar indivíduos (exame de litígios entre Estados é julgado pela Corte Internacional de Justi?a). Conta com a participa??o de cento e vinte e dois Estados-parte: 34 africanos, 27 latino-americanos e caribenhos, 25 países ocidentais e outros,18 da Europa do Leste e 18 da ?sia e Pacífico. O Direito Internacional Humanitário incorpora a rela??o entre o indivíduo e o Estado como modelo jurídico (TEITEL, 2011) possibilitando julgar indivíduos responsáveis pelos atos de guerra, genocídio e crimes de lesa humanidade. Também permite identificar as falhas na a??o do Estado e pressionar que este respeite os direitos humanos. Apesar dos avan?os para o Direito Humanitário e o seu fortalecimento perante a comunidade internacional, devemos nos atentar ao poder que esse mecanismo possui. O uso dos discursos de prote??o aos direitos humanos somados a um contexto de existência de uma “aparente guerra permanente” (TEITEL, 2011, p. 167) pode ressuscitar a opress?o ao invés de trazer prote??o. Os direitos humanos direcionados a apenas alguns, n?o como direito de todos, como no caso do combate ao terrorismo, cria novamente um terreno sombrio onde tudo é justificável em nome de um ideal. Isso aconteceu na Segunda Guerra, aconteceu nas ditaduras militares, e pode tornar a acontecer na contemporaneidade. Deste modo devemos nos atentar com o uso inadequado desses mecanismos. Evidenciado o conceito de Justi?a de Transi??o e as suas respectivas fases conforme a genealogia proposta por Teitel (2011) cabe dar seguimento a nossa abordagem pronunciando-se a respeito dos pilares que a constituem. Os pilares da Justi?a de transi??o visam a recomposi??o do Estado e da sociedade trazendo par?metros mínimos que devem ser observados no processo de restaura??o social. A elabora??o desses pilares é resultado da agenda ativa da Justi?a de Transi??o na busca de mecanismos para lidar com o passado repressivo, podendo ser pautados em modelos judiciais e n?o judiciais como veremos à seguir. 1.2 PILARES DA JUSTI?A DE TRANSI??O A Justi?a de Transi??o é formada por mecanismos de enfrentamento dos fatos passados objetivando a supera??o das massivas viola??es de direitos humanos para que estas n?o se repitam no futuro. Para que isto ocorra é de suma import?ncia o estabelecimento de par?metros para que as novas gera??es possam, primeiramente, conhecer sobre o seu passado e, através desta, reformular sua concep??o sobre a história. Neste sentido, podemos constatar a intrínseca rela??o entre o passado, o presente e futuro. Isto porque só as pessoas que têm direito a reconhecer plenamente seu passado podem ser verdadeiramente livres para decidir seu futuro. Deste modo, este tipo de justi?a engloba alguns pilares ou dimens?es que refletem as obriga??es do Estado no qual ainda encontram-se cal?adas em quatro dimens?es indispensáveis: i. fornecimento da verdade e constru??o da memória; ii. Repara??o; iii. Reforma das institui??es perpetradoras de viola??es contra os direitos humanos; iv. Regulariza??o da justi?a e restabelecimento da igualdade perante a lei. (TORELLY, 2011, p. 215). Deste já ressaltamos que esta n?o se trata de uma lista fechada de mecanismos, mas sim, o passo inicial para a consolida??o de uma política direcionada a aten??o do Direito Internacional dos Direitos Humanos, dado que, este campo possui grande versatilidade no que condiz aos caminhos que cada país escolhe para a supera??o do seu passado. Direito à verdade e a memória Diante das ditaduras que ocorreram na América Latina surge o apelo a um Direito à memória e à verdade em rela??o a todos os fatos ocorridos neste período. Esta express?o “vem preenchendo as pautas de reivindica??o política e encontrando eco na promo??o de mecanismos transicionais e na implementa??o de políticas de memória relacionadas aos eventos traumáticos vivenciados coletivamente” (SILVA, 2010, p.213). A verdade que nos apoiamos está relacionada ao interesse de buscar a verdade que está na própria realidade, que depende da plena manifesta??o dos fatos e dos acontecimentos, no qual é possível através do acesso à informa??o e disponibiliza??o dos arquivos no período da ditadura. Deste modo o direito à verdade seria o direito ao desvelamento – o ente em seu descobrimento – sendo o direito de “tirar o véu” no processo da justi?a de transi??o de todo discurso falacioso que se construiu durante a ditadura, primeiramente para constituí-la e depois para mantê-la como regime de Estado (SANTOS, 2016). Este pensamento está pautado no que é prevalecente no direito internacional em meio a reflex?es sobre como lidar com práticas de um período de violência política extraordinária, praticadas por agentes de Estado. Nas palavras de Torelly (2010): Neste contexto de alta complexidade, a simples altera??o formal de leis n?o é suficiente para garantir a consolida??o de uma democracia substancial limitada exclusivamente pelas garantias fundamentais originadas dos direitos humanos. ? necessária a promo??o de uma nova cultura política, que seja capaz de transformar o espólio autoritário e o legado de viola??es individuais em aprendizado para a democracia, valendo-se tanto da memória consciente (aquela que o agente ou grupo sabe possuir, ou seja, lembra-se), quanto da memória n?o-consciente (aquela que se acumula de forma arcaica na experiência de vida do indivíduo ou grupo), fomentando um senso comum democrático que oriente o agir. ? assim que surge a necessidade de afirma??o e avivamento de memórias sociais que somem as vivências individuais de viola??es passadas ao processo reflexivo de supera??o do legado autoritário e consolida??o do Estado Democrático de Direito, fomentando o surgimento de narrativas reflexivas que, ao dialogar com o autoritarismo, promovam o pluralismo, a democracia e os direitos humanos traduzidos em uma cultura que, por conter este senso comum democrático, repele o autoritarismo, consolidando a democracia desde um ponto de vista prático (e n?o estritamente jurídico) e possibilitando que os elementos n?o conscientes de memória n?o sejam vinculados com a violência do passado. (Torelly, 2010, p.104). O direito à verdade e a memória é o direito relacionado à aten??o as vítimas. ? o direito que estas possuem de saber o que realmente aconteceu neste período sombrio da história, onde pessoas desapareciam e tudo o que restava eram certid?es de óbito forjadas. Homícidios cometidos pelos agentes de Estado eram constantemente alterados nos relatórios das institui??es para suicídio. Isso quando era possível saber o que foi que aconteceu com os perseguidos políticos. Em muitos casos nem mesmo uma resposta se tinha a respeito. A cria??o do direito à verdade se relaciona com a percep??o de que essas graves viola??es de direitos humanos, muitas das quais ocorreram em um período de violência extraordinária, requerem mecanismos específicos de tratamento. Silva afirma que no caso brasileiro, As violências cometidas pelo regime militar n?o ganharam a dimens?o pública e transparente que seriam necessárias para a concretiza??o desse direito. As investiga??es para apurar os fatos ocorridos foram continuamente abortadas sob o efeito multiplicador da anistia política praticada no Brasil a partir de 1979. [...] Ela revelou-se, igualmente, uma auto-anistia, pois serviu de pretexto para que n?o se realizasse nenhum tipo de investiga??o e apura??o das responsabilidades dos agentes do regime ditatorial por seus atos ilegais e aviltantes (SILVA, 2010, p.214). Busca-se desta maneira uma verdade que traga à tona todos os fatos ocorridos neste período. Conforme entendimento da Organiza??o das Na??es Unidas (ONU): “todo povo tem o direito inalienável de saber a verdade sobre acontecimentos passados, relacionados à perpetra??o de crimes aberrantes e sobre as circunst?ncias e motivos que levaram, por meio de viola??es massivas ou sistemáticas, à perpetra??o desses crimes” (ORGANIZA??O DAS NA??ES UNIDAS, 2005, principle 2). Deste modo o reconhecimento da memória e da verdade é um direito fundamental de todo ser humano, [O] conhecimento, por um povo, da história de sua opress?o, o que constitui parte de seu patrim?nio e, por isso, deve ser conservado, adotando medidas adequadas em favor do dever de recordar incumbido ao Estado, para preservar os arquivos e outras provas relativas às viola??es dos direitos humanos e do direito humanitário, e para facilitar o entendimento/conhecimento de tais viola??es. Essas medidas devem ser encaminhadas no sentido de preservar a memória coletiva contra o esquecimento e, em particular, evitar que surjam teses revisionistas e negacionistas. (ORGANIZA??O DAS NA??ES UNIDAS, 2005, principle 3). A memória também está intrinsicamente ligada à ideia de verdade. Neste sentido, criar uma memória é lidar com tanto com a verdade quanto com o esquecimento imposto no propósito de reconcilia??o da transi??o brasileira. Busca a supera??o da anistia como “amnésia” abrindo espa?o para refutar os fatos e reescrever a história. A memória e o esquecimento, operando dialeticamente, possibilitam o estabelecimento de confluências e dissidências narrativas que, ademais de permitirem a constitui??o de uma “vers?o histórica” sobre determinados acontecimentos que influenciam fortemente percep??es individuais e sociais de mundo significando que “lembrar ou esquecer, individual e/ou coletivamente, implica, portanto, em alterar os elementos que d?o significado e sentido ao futuro” (TORELLY, 2010, p. 107), uma vez que o que lembramos do passado é fundamental para que possamos refletir sobre quem somos no mundo e onde nos encontramos no tempo. O direito à verdade tem ultrapassado os limites dos desaparecimentos for?ados e evoluído em dire??o a outras graves viola??es de direitos humanos. Conforme afirma a Comiss?o Nacional da Verdade (2014) desde a Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993, tem-se atrelado o tema das graves viola??es de direitos humanos ao aspecto do combate à impunidade. Os Principios Joinet, aprovados em 1997, remetem ao direito de saber, de natureza tanto individual como coletiva, relacionado ao dever do Estado de recordar, com a finalidade de prevenir o revisionismo ou o negacionismo, na medida em que se considera que a história de opress?o de um povo pertence ao seu patrim?nio e assim deve ser preservada. Santos (2016, p.71) conceitua a memória como “o direito fundamental de acesso, utiliza??o, conserva??o e transmiss?o do passado e dos bens materiais e imateriais que comp?em o patrim?nio cultural de determinada coletividade”. O direito à memória relativa às graves viola??es dos direitos humanos cometidos pelos agentes do Estado pode ser ocorrer através da implementa??o de políticas públicas que fomentem a investiga??o história dos fatos ocorridos, garantam o amplo acesso aos documentos oficiais, criem museus ou espa?os públicos dedicados às vítimas, formulem pedidos oficiais de desculpas às vítimas e à sociedade como um todo, promovam debates a respeito dos atos de violência e de mecanismos para que possamos evitar a repeti??o de atos contra os direitos humanos (SOARES, 2011). No Brasil podemos dizer que o pilar da memória e da verdade come?ou a ser construído a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, com a cria??o da Comiss?o Especial dos Mortos e Desaparecidos políticos através da Lei 9.140/1995. Ainda cabem mencionar a cria??o da Comiss?o da Anistia (L.10.559/2002) e da Comiss?o da Verdade (12.528/2011), mecanismos importantes que possibilitaram um conjunto de a??es para que a aten??o às vítimas finalmente pudesse ser implementada. Sobre esses mecanismos nós iremos abordar mais adiante neste trabalho especificando como cada um nos ajuda a estar cada vez mais próximos ao tipo de sociedade que queremos alcan?ar. Aquela em que os indivíduos possuem direitos fundamentais inerentes à sua condi??o humana que devem ser veemente protegidas para que atos de viola??es sistemáticas n?o se repitam manchando mais uma página da história da humanidade. Direito à repara??o O direito à repara??o das vítimas tem por objetivo reparar devidamente os danos causados. Estas repara??es podem ser tanto materiais como: indeniza??es, aposentadorias, medidas de reabilita??o e reintegra??o ao servi?o público, restitui??o de direitos políticos. Quanto simbólicos: pedidos oficiais de desculpa, divulga??o da verdade dos fatos, registro oficial de mortos e desaparecidos (SANTOS, 2016). No caso brasileiro o direito à repara??o teve início com a aprova??o da Lei de Anistia de 1979 (L.6.683/1979) grande marco do inicio da transi??o política para a democracia. Através desta lei as vítimas tiveram seus direitos políticos restaurados, puderam reintegrar ao trabalho nos quais estavam afastados, e através da concess?o do perd?o puderam retornar ao Brasil. Com a Emenda Constitucional 26/1985, no qual convocou a Assembleia Nacional Constituinte, foi acrescentada a previs?o de restitui??o dos direitos políticos aos dirigentes e representantes de organiza??es sindicais ou estudantis. Na Constitui??o de 1988 a repara??o passou a fazer parte das garantias constitucionais (TORELLY, 2011). A partir de ent?o vieram outras várias iniciativas de repara??o: Comiss?o Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (1995), Comiss?o da Anistia (2002), projeto Direito à Memória e à Verdade (2007), projeto Marcas da Memória I (2010), II (2011), III (2012) e IV (2013), Caravanas da Anistia (2012), projeto Memórias Reveladas no qual possui um vasto banco de dados para pesquisa pública, cria??o da Comiss?o Nacional da Verdade (CNV), Lei de Acesso à informa??o (L.12.527/2011) e o Memorial da Anistia. Nas palavras de Torelly (2011): Podem-se extrair algumas conclus?es sobre o processo reparatório no bojo da efetiva??o da justi?a de transi??o brasileira. A primeira conclus?o importante, extrai-se do art. 8? do ADCT, cujo texto explicitamente se traduz em genuíno ato de reconhecimento dos direitos dos perseguidos políticos e entre eles o direito de resistir à opress?o. A segunda é a de que, no Brasil, desde a sua origem, a anistia é ato político que se vincula à ideia de repara??o. A terceira conclus?o é a de que a anistia é concedida pela Constitui??o àqueles que foram perseguidos, e n?o aos perseguidores. Por fim, pode-se ainda afirmar que existe no Brasil a implanta??o de uma rica variedade de medidas de repara??o, individuais e coletivas, materiais e simbólicas (TORELLY, 2011, p. 223). Todas essas iniciativas movem a agenda política do país para além da repara??o. Estas constituem importantes mecanismos para a constru??o de uma nova história, descontruindo as verdades oficiais criadas a partir do regime militar.Direito à reforma das institui??es A reforma das institui??es envolve uma série de modifica??es institucionais com o objetivo de descaracterizar a cultura de repress?o existente nos órg?os estatais mudando-as radicalmente e em alguns casos dissolvendo-as. Neste sentido, cabe às Comiss?es da Verdade fazer sugest?es em seus relatórios finais para a mudan?a legal, administrativa e institucional visando evitar a repeti??o de crimes sistemáticos. Ao governo, realizar depura??es e saneamento administrativo nos órg?os públicos visando afastar as pessoas que cometeram viola??es aos direitos humanos ou participa??o em corrup??o, esses programas também “podem contribuir para estabelecer a responsabilidade n?o penal por viola??es dos direitos humanos, particularmente em contextos nos quais resulta impossível processar todos os responsáveis” (ZYL, 2011, p. 54).Temos como exemplos de reformas nas institui??es no Brasil a extin??o de órg?os de repress?o como o Centro de Informa??es da Marinha (CENIMAR), Centro de Informa??es do Exército (CIE), Centro de Informa??es da Aeronáutica (CISA), Servi?o Nacional de Informa??es (SNI), Destacamento de Opera??es de Informa??o – Centro de Opera??es de Defesa Interna (DOI-CODI), Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e outros órg?os que atuavam em conson?ncia a ditadura militar. Ainda cabe observar que a reforma n?o é apenas para excluir pessoas ou extinguir órg?os. Esta também tem a fun??o de criar novas institui??es para garantir a nova ordem democrática. Direito à justi?aQuando buscamos o direito à justi?a estamos nos referindo a obriga??o do Estado em investigar, processar e punir na esfera penal cada pessoa responsável pelos crimes cometidos sistematicamente contra os direitos humanos. O que se busca é evitar a repeti??o de novas viola??es sistemáticas cometidas por agentes de Estado, além de servir como uma resposta ao anseio das vítimas por justi?a. Neste contexto enquadra-se o chamado crime contra a humanidade. O conceito de crime contra a humanidade surgiu do Acordo de Londres (1945) que instituiu o Tribunal de Nuremberg para julgar os crimes cometidos pelo regime nazista. Conforme explica Gomes e Mazzuoli crimes contra a humanidade s?o:O assassinato, extermínio, escravid?o, a deporta??o e qualquer outro ato desumano contra a popula??o civil, ou persegui??o por motivos religiosos, raciais ou políticos quando esses atos ou persegui??es ocorram em conex?o com qualquer crimes contra a paz ou em qualquer crimes de guerra (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p.88).Esses crimes s?o considerados pelo direito internacional dos direitos humanos imprescritíveis, n?o anistiáveis e extraditáveis, o que significa dizer que n?o podem deixar de ser processados e julgados devido a leis de anistia, por exemplo. Neste sentido, é de entendimento internacional que tais leis, que funcionam como impeditivo para que seja efetuada a justi?a, devem ser invalidadas. Os crimes contra a humanidade faz parte do costume e do jus cogens internacional. Portanto s?o normas imperativas no qual nenhum tratado ou norma de direito interno se sobrep?e. De acordo com a Conven??o de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969), assinada pelo Brasil em 23 de maio de 1969 e ratificada pelo Decreto 7.030/2009, uma parte n?o pode invocar as disposi??es de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado, e ainda, os tratados incompatíveis com uma norma imperativa de direito internacional (jus cogens): Artigo 53.? ? nulo todo o tratado que, no momento da sua conclus?o, seja incompatível com uma norma imperativa de direito internacional geral. Para os efeitos da presente Conven??o, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceite e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu todo como norma cuja derroga??o n?o é permitida e que só pode ser modificada por uma nova norma de direito internacional geral com a mesma natureza. (grifo nosso). Neste sentido afirma-se que quando um país firma um tratado internacional a sua soberania passa a ser relativizada, portanto, as condena??es internacionais advindas de viola??es aos direitos humanos devem ser cumpridas pela justi?a nacional. No entanto, Paul Van Zyl (2011, p. 50) faz uma observa??o importante, “os sistemas da justi?a penal est?o desenhados para sociedades em que a viola??o da lei constitui exce??o e n?o a regra”. Neste sentido a justi?a penal n?o é suficiente quando tratamos de viola??es sistemáticas e generalizadas de direitos humanos, isso porque tais demandas exigem uma designa??o significativa de tempo e recursos. Desta forma, para além da busca dos julgamentos penais, devemos fortalecer todos os outros mecanismos da justi?a de transi??o em busca do enfrentamento de um passado marcado por sistemáticas viola??es aos direitos humanos. 1.3 TIPOS DE JUSTI?A DE TRANSI??O As transi??es podem gerar diversas formas de respostas às graves viola??es de direitos humanos. Dentre estas, quatro formas merecem destaque: Vingan?a: A vingan?a privada representa um sistema primitivo de justi?a onde o culpado é punido pela própria vítima e/ou por outros integrantes que se julgam injusti?ados, unindo-se para depreciar o acusado. Pode ocorrer, na maioria das vezes, pela inércia do Estado em efetivar uma resposta coletiva ou institucionalizada a respeito das viola??es aos direitos humanos das vítimas ou quando esta resposta e considerada insuficiente por estas (SANTOS, 2016). O discurso da vingan?a vem desde o Tribunal de Nuremberg sendo gradativamente afastado. N?o resolve o problema e em um sistema de direito a vingan?a privada é algo n?o tolerável. E é justamente por isso que o direito deve oferecer uma resposta adequada. Se o direito falha em sua fun??o negando justi?a às vítimas de graves viola??es de direitos humanos, este falha na aplica??o da lei e n?o na aplica??o da vingan?a. A invés da vingan?a, a resposta cabe ao Poder Judiciário por ser “o recurso mais válido que a sociedade tem para declarar o que considera justo e injusto" (HUHLE, 2005, p.18). Esquecimento:A transi??o pelo esquecimento ocorre quando mecanismos s?o utilizados para impor o esquecimento dos fatos. ? o caso das Leis de Anistia que autoanistiam, a falta de informa??es sobre os fatos ocorridos, oculta??o de documentos emitidos durante o período, o silencio, e qualquer movimento que impe?a que a sociedade lembre a respeito dos crimes cometidos.O processo de transi??o brasileira se encaixa perfeitamente neste tipo de transi??o. A abertura política controlada pelo regime militar imp?s à sociedade brasileira uma reconcilia??o que exigiu como moeda de troca o esquecimento dos fatos ocorridos naquele período através do que muitos afirmam ter sido um acordo político. Ocorre, pois, que para a justi?a transicional esta forma de transi??o ignora os anseios das vítimas e seus familiares, impondo à for?a a supera??o de um passado violento e perpetuando a impunidade dos agentes violadores de direitos humanos. Julgamento: A transi??o através do julgamento é feita por órg?os judiciais, ou quase-judiciais, permitindo a responsabiliza??o dos agentes do Estado atendendo as reivindica??es das vítimas. Ademais, promovem a publicidade dos fatos e conscientizam as futuras gera??es de que tais atos n?o podem se repetir. Este é o exemplo da transi??o ocorrida na Argentina, que logo após a queda dos regimes militares, se prop?s a processar e julgar os agentes violadores de direitos humanos. Cabe observar que o julgamento nem sempre é possível devido a impedimentos jurídicos e políticos que v?o surgindo durante o processo de transi??o. Ademais, muitas transi??es acabam posteriormente seguindo um modelo restaurativo em substitui??o dos modelos retributivos ou punitivos, pois caso contrário, é difícil conseguir que agentes perpetradores de viola??es de direitos humanos se proponham a revelar os verdadeiros fatos ocorridos durante o regime de exce??o. Desta forma, a constru??o da memória e da verdade através das Comiss?es da Verdade tornam-se importantes instrumentos na busca pela reconstru??o dos fatos normalmente encobertos ou distorcidos pelo regime militar. Conhecimento: A transi??o via conhecimento significa trazer a luz fatos obscuros sobre o período repressivo sem necessariamente exigir que processos criminais ocorram. Busca-se uma justi?a restaurativa, onde a busca da verdade passa para o primeiro plano. Conforme dito anteriormente, as Comiss?es da Verdade criadas para investigar os fatos ocorridos na repress?o, no qual, recha?am informa??es oficiais elaboradas sobre os acontecimentos s?o um grande exemplo desta forma de transi??o. Em sua atua??o as Comiss?es da Verdade realizam uma análise minuciosa em documentos, testemunhos e oitivas dos opressores, para reconstruir a história. Ainda, outros meios simbólicos como a mudan?a de nome de ruas, cria??o de museus, lan?amento de livros e filmes, s?o implementados possibilitando que a sociedade tenha acesso a este período da história refor?ando o combate a repeti??o desses atos pelas gera??es futuras. PARTE III - OS CAMINHOS DA JUSTI?A DE TRANSI??O NO BRASILNeste capítulo vamos realizar a análise da justi?a de transi??o em seu sentido estrito, ou seja, justi?a de transi??o apresenta-se como uma plataforma de justifica??o, a partir do qual se realizam avalia??es críticas sobre o passado. Neste sentido insere-se a abordagem dos caminhos que a justi?a de transi??o percorreu (e ainda continua percorrendo) no Brasil, desde a promulga??o da Lei de Anistia, em 1979, até o atual momento com a propositura da A??o de Argui??o de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 320. 1 JUSTI?A DE TRANSI??O EM SENTIDO ESTRITO O Brasil, assim como outros países da América Latina, passou por um longo período de ditadura militar desde o início da década de 1960. Com a eclos?o da Revolu??o Cubana em 1959, que abalou a influência hegem?nica dos Estados Unidos na América Latina, pacotes de ajuda econ?mica foram lan?ados objetivando promover o desenvolvimento econ?mico em países latino-americanos e ao mesmo tempo evitar que a nova configura??o política de Cuba servisse como exemplo para as outras na??es (TOSI; SILVA, 2014). Nessas circunst?ncias o governo passou a robustecer a sua política frente às amea?as comunistas desencadeando a eclos?o do regime militar através de um golpe de Estado. Os militares envolvidos no golpe justificavam as suas a??es assentadas na ideia de combate à amea?a da ordem capitalista e da seguran?a nacional. Mas n?o foram apenas os militares os responsáveis pelo golpe. A elite política, os conservadores, a imprensa e os empresários também fizeram parte deste movimento. Temos como exemplo a “Marcha da Familia com Deus pela liberdade”, onde cerca de quinhentas mil pessoas foram às ruas para apoiar a deposi??o de Jo?o Goulart. Durante a ditadura militar diversos atos institucionais(AI) foram decretados buscando legitimar o estado de exce??o no país, iniciando uma série de persegui??es políticas contra os que passaram a ser considerados subversivos perante o regime ent?o instaurado. Os cidad?os tiveram as suas liberdades e direitos civis negados pelo Estado sendo os setores da oposi??o veemente reprimidos pela lei de seguran?a nacional. Os anos de chumbo foram inaugurados pela edi??o do Ato Institucional n°5 (DL 477/1969), que proclamou o fim do livre pensamento nas universidades e bancos escolares, e da possibilidade organiza??o e mobiliza??o política dos movimentos sociais. (SILVA, 2010). Marcou a realidade brasileira com práticas sistematizadas de tortura, homicídio, persegui??o política, pris?o arbitrária, oculta??o de cadáveres, desaparecimentos for?ados, incinera??o de corpos humanos em usinas de cana de a?úcar (COELHO, 2014) executadas nos por?es do Destacamento de Opera??es de Informa??o – Centro de Opera??es de Defesa Interna (DOI-CODI). Estima-se que no período de exce??o, pelo menos, 50 mil pessoas foram presas somente nos primeiros meses de 1964; cerca de 20 mil brasileiros foram submetidos a torturas e cerca de quatrocentos cidad?os foram mortos ou est?o desaparecidos. Ocorreram milhares de pris?es políticas n?o registradas, 130 banimentos, 4.862 cassa??es de mandatos políticos, uma cifra incalculável de exílios e refugiados políticos, além de ainda constar cerca de 140 desaparecidos políticos. (PNDH-3, 2010, p.173)Conforme a Comiss?o Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) o Brasil foi o único país da América Latina que n?o trilhou procedimentos penais para examinar as viola??es de direitos humanos cometidos sistematicamente pelo Estado durante o período de ditadura militar, mesmo tendo oficializado, com a lei 9.140/1995, o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes e desaparecimentos for?ados ocorridos neste período. Tudo isso devido à obstaculiza??o criada pela Lei de Anistia em 1979 que implantou a interpreta??o do perd?o de “dupla via”, concedendo benefícios recíprocos aos agentes estatais e aos opositores políticos (BRASIL; CEMDP, 2007). Foram vinte e um anos de governo comandado pelas For?as Armadas e elites políticas que atuando sob o regime ditatorial institucionalizou praticas de viola??es sistemáticas de direitos humanos que perduram até hoje, como por exemplo, a tortura e as execu??es sumárias praticadas pelas polícias. N?o há dúvida de que este período da história é uma zona cinzenta na qual restam muitos fatos a serem revelados. Deste modo abordaremos adiante o processo de Justi?a de Transi??o brasileiro. 1.1 LEI DE ANISTIA E A JUSTI?A CERCEADAA Lei de Anistia foi o marco inicial da justi?a de transi??o brasileira. Foi promulgada durante o governo do presidente Jo?o Baptista Figueiredo para reverter puni??es pautadas nos Atos Institucionais dos opositores políticos. Por ela, ficava extinta a punibilidade a todos os que haviam cometido crimes políticos ou conexos com estes, garantindo o retorno dos exilados ao País, o restabelecimento dos direitos políticos e a volta ao servi?o de militares e funcionários da administra??o pública, excluídos de suas fun??es durante a ditadura.Apesar do movimento em busca da anistia já existir desde o início da ditadura, esta se fortaleceu entre 1974 e 1975 através de um intenso processo de mobiliza??o da sociedade civil, em especial o liderado por m?es, esposas e familiares de desaparecidos, presos e exilados políticos. Em fevereiro de 1978 o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) - composto por advogados, estudantes, militantes de partidos e organiza??es de esquerda, familiares de presos e de mortos e desaparecidos, setores progressistas da Igreja Católica, grupo dos parlamentares autênticos no Movimento Democrático Brasileiro (MDB), jornalistas, professores, e intelectuais - foi fundado para coordenar as a??es na luta pela anistia, defendendo o perd?o imediato dos presos e perseguidos políticos, o fim das torturas, a volta de todos os exilados, cassados e banidos políticos, além do esclarecimento a respeito dos desaparecidos políticos e a revoga??o da Lei de Seguran?a Nacional (MEZAROBBA, 2006). A luta era por uma transi??o “ampla, geral e irrestrita”. Nesta primeira fase se buscava o resgate das liberdades públicas civis e políticas (ABR?O; TORELLY, 2015), organizando os movimentos de oposi??o em torno de uma plataforma de lutas democráticas que almejava o reestabelecimento da democracia, a volta do Estado de Direito e principalmente, o reconhecimento e respeito aos direitos humanos. Para esses militantes, n?o era aceitável uma anistia que pactuasse com o regime, que n?o fosse um instrumento de justi?a e que n?o trouxesse garantias realmente democráticas para todos. Deste modo a anistia deveria se pautar no reconhecimento de mortes e desaparecimentos, na responsabiliza??o dos agentes de Estado e na n?o reciprocidade. Neste contexto foram elaborados dois projetos de Lei de Anistia, um projeto elaborado pelo regime militar e o outro projeto de iniciativa popular. Apesar da ampla mobiliza??o popular e a elabora??o de um projeto de anistia visando estes propósitos, o projeto aprovado foi o elaborado pelo regime militar. Com a Lei 6.683/1979 – Lei de Anistia – foi estabelecida uma abertura política “lenta, gradual e segura” na qual se promoveu uma reciprocidade do perd?o e esquecimento. Isso porque n?o havia nenhum interesse do governo em promover rupturas com o passado que pudessem geram um movimento de revanchismo contra os agentes de estado. A vota??o da Lei de Anistia ocorreu em um Congresso Nacional composto majoritariamente por políticos que apoiavam a ditadura militar – os chamados “senadores bi?nicos” - sendo afastada a ampla participa??o e o anseio da sociedade. A anistia beneficiou mais de cem presos políticos e permitiu o retorno de cento e cinquenta pessoas banidas e duas mil exiladas ao país (CNV, 2014). Mas nem todos foram beneficiados pela anistia. Presos que estavam detidos por crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal n?o foram beneficiados, mantendo-se presos até a altera??o da Lei de Seguran?a Nacional em 1983. Desta forma se ignorou todo o contexto no qual a ditadura militar se instaurou, onde os revolucionários foram aqueles que lutaram contra um regime ilegítimo imposto a partir de falsos discursos de promo??o da democracia. Os revolucionários foram vítimas, e n?o os algozes. Na anistia, estes n?o foram apresentados como “partidários de um movimento ostensivo” (BORGES, 2012, p.72), mas sim, como terroristas que seriam finalmente perdoados por terem cometidos os crimes contra o Estado. Verifica-se, portanto, que o processo de transi??o para a democracia ocorrendo de forma controlada pelo regime repressor, além de corroborar para a manuten??o da pris?o de vários resistentes ao excluir os chamados “crimes de sangue”, implantou na conjuntura social uma Lei de anistia “amnésia”, porque se o Estado estava disposto a esquecer todos os crimes cometidos contra este, ent?o todos deveriam esquecer os atos de Estado. Da ausência de ruptura entre o regime ditatorial para o regime democrático insurgiu a ideia de um acordo que promovesse a reconcilia??o nacional. Este posicionamento fica claro quando atualmente vemos as decis?es dos ministros em rela??o a esta parte da história brasileira, como a interpreta??o realizada pelo Supremo Tribunal Federal na a??o de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 153 na qual reafirmou a validade da lei de anistia desconsiderando todo o contexto no qual este período ocorreu, ignorando toda constru??o internacional que ocorre em torno da prote??o dos direitos humanos no qual crimes contra a humanidade s?o imprescritíveis e, portanto leis que buscam manter tal impunidade s?o inválidas. A transi??o pautada no esquecimento dos fatos retirou das vítimas a possibilidade de decidir quando e como poderiam de fato perdoar, ou n?o, todas as atrocidades cometidas contra elas e seus familiares. O perd?o foi imposto como um “mal necessário” projetado para lidar com a violência contínua ou em massa (PAYNE;ABR?O;TORELLY, 2011) tornando-se moeda de troca para que perseguidos pudessem retomar as suas vidas. Cabe ressaltar que o perd?o concedido pela Lei n?o partia da perspectiva das vítimas para os seus agressores. Nesta interpreta??o eram os agressores quem estavam perdoando os setores da sociedade que lutaram contra o regime militar. O que se percebe é o propósito de “colocar no mesmo saco” aqueles que golpearam e os que foram golpeados, o que n?o é nem jurídica e nem moralmente aceitável (GENRO, 2009). Isso porque se formos comparar os agentes de estado com os opositores, resta claro uma grande desproporcionalidade entre estes, mesmo considerando o fato de que uma parte da oposi??o optou pela luta armada como meio para combater o regime. No caso brasileiro n?o há como se aplicar a ideia de que houve uma “guerra” no qual ent?o os dois lados precisam ser considerados (REIS, 2000), porque para isto haveria a necessidade do combate ter corrido entre duas for?as iguais, ou ao menos parecidas, no qual ambas as partes possuem a capacidade de combate. O que tivemos foi um aparato sistematizado utilizado pelo Estado para combater estudantes, professores, políticos – sem distin??o entre crian?as, mulheres, idosos ou o que for – como pudemos constatar nos relatórios elaborados pela Comiss?o da Verdade. Apesar da existência de alguns movimentos de luta armada estas foram facilmente trucidadas pelo aparato estatal. Um exemplo disto é o que aconteceu na Guerrilha do Araguaia, fato pelo qual o Brasil foi condenado atualmente – em 2010 - pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Lei de Anistia representou o início da transi??o para a democracia, mas pelo fato de ter sido uma transi??o controlada pelo regime militar e pela falta de real ruptura entre um regime e outro, transformou-a em um grande obstáculo para a concretiza??o do pilar da justi?a no processo de transi??o. Atualmente o conceito de anistia está em disputa. Na década de 1960 a luta era em busca da liberdade aos presos políticos e o restabelecimento do regime democrático. Após a reabertura política do país a anistia passou a significar uma espécie de impunidade dos agentes de estado haja vista as vítimas n?o conseguirem processá-los pelos atos ocorridos na ditadura. Atualmente, a luta encontra-se na adequa??o da interpreta??o da Lei de anistia à luz dos preceitos internacionais, no qual a anistia n?o pode significar o esquecimento ou a impunidade, a anistia é direcionada as vítimas, deve significar o reconhecimento de que estas n?o devem ser punidas por terem lutado contra um regime repressor. A anistia reverteu a puni??o de todos os cidad?os brasileiros que entre os anos de 1961 e 1979 foram considerados criminosos pelo regime militar, ou seja, opositores políticos e militares foram anistiados aos mesmo tempo. Isso porque os partidários da ditadura viam os crimes cometidos pelos opositores como uma autêntica guerra revolucionária. E havendo uma guerra, todos os lados devem ser considerados (REIS, 2005, p.42) 1.2 RECONHECIMENTO DA ANISTIA AOS PERSEGUIDOS POL?TICOSCom a restaura??o do estado de direito a nova constitui??o (1988) precisa estabelecer regras de muta??o. Através dos Atos Dispositivos Constitucionais Transitórios (ADCT) se estabelece regras de transi??o entre o antigo ordenamento jurídico e novo ordenamento instituído pelo poder constituinte originário, em outras palavras, buscou-se a harmoniosa transi??o do regime constitucional anterior (1969) para o novo regime constitucional (1988). Depois da Lei de Anistia de 1979 a primeira oportunidade para que o Estado de Direito promovesse a repara??o das vítimas da ditadura foi a Constitui??o de 1988 (TOSI;SILVA, 2014) através das disposi??es transitórias: T?TULO X - ATO DAS DISPOSI??ES CONSTITUCIONAIS TRANSIT?RIAS Art. 8?. ? concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulga??o da Constitui??o, foram atingidos, em decorrência de motiva??o exclusivamente política, por atos de exce??o, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo n.? 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto Lei n.? 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promo??es, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou gradua??o a que teriam direito se estivessem em servi?o ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos (BRASIL, 1988, grifo nosso). Veja que neste momento a Constitui??o Federal de 1988 apenas tratou de assegurar o do reconhecimento da condi??o de anistiado político estendendo o prazo da sua aplica??o para o período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulga??o da Constitui??o. Desta forma esta n?o se pronunciou sobre a revoga??o ou reabertura da lei de anistia imposta pelo regime militar (TOSI;SILVA, 2014). Através da persistência dos familiares de mortos e desaparecidos foi iniciado o movimento da agenda política em busca de mudan?as a respeito do silencio implantado sobre os fatos da ditadura. Em dezembro de 1995 durante os governos de Fernando Henrique Cardoso houve um grande processo de discuss?o entre esses familiares, o Ministério da Justi?a e o Poder Legislativo Federal em torno da responsabilidade do Estado brasileiro pela morte dos opositores políticos do regime. Isso porque em nenhum momento durante a ditadura e mesmo após o seu fim as autoridades militares haviam reconhecido oficialmente a responsabilidade pelos atos cometidos por seus agentes neste período. Em cumprimento a determina??o contida no artigo 8? do ADCT foi aprovada a Lei n.? 9.140/1995 no qual instituiu a Comiss?o Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Sua finalidade foi proceder ao reconhecimento de pessoas mortas ou desaparecidas em raz?o de graves viola??es de direitos humanos cometidos pelo Estado, a localiza??o de seus corpos, emitir parecer sobre os requerimentos relativos à indeniza??o devida aos familiares das vítimas. 1.3 O INICIO PELA BUSCA DA VERDADE: CRIA??O DA COMISS?O ESPECIAL DE MORTOS E DESAPARECIDOSApós a concess?o da Anistia no ano de 1979 e os desdobramentos por ela causados, como a abertura política, os movimentos sociais e de direitos humanos passaram por um momento de reorganiza??o no campo político que promoveu o fortalecimento da sociedade em rela??o a importantes conquistas para a democracia. Em 1995, devido ao comprometimento da campanha eleitoral do presidente Fernando Henrique Cardoso com as famílias das vitimas e a grande press?o internacional em torno da quest?o, o Ministro da Justi?a Nelson Jobim informou que a causa dos desaparecidos políticos teriam reconhecimento do governo. Um projeto de lei para a cria??o da comiss?o foi elaborado, porém n?o atendia ao todo os pedidos dos familiares das vítimas em atendimento ao acordo realizado com os militares (SANTOS, 2008). Apesar de todas as críticas elaboradas pelos familiares das vítimas a Comiss?o Especial de Mortos e Desaparecidos (CEMDP) em rela??o ao projeto de lei proposto pelo governo a Lei 9.140/1995 foi aprovada, sendo o primeiro passo para o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes e desaparecimento ocorridos na ditadura. Segundo o 1° da Lei 9.140/1995: S?o reconhecidos como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participa??o, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste ent?o, desaparecidas, sem que delas haja notícias. (BRASIL, 1995). O trabalho da Comiss?o iniciou logo após a edi??o da Lei 9.140/1995, sendo composta por sete membros indicados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, pela Comiss?o de Direitos Humanos da C?mara, pelas For?as Armadas, pelo Ministério Público Federal e pela Comiss?o de Familiares.Conforme artigo 4° da referida lei cabe à Comiss?o averiguar o caso de pessoas: a) desaparecidas;b) que, por terem participado, ou por terem sido acusadas de participa??o, em atividades políticas, tenham falecido por causas n?o-naturais, em dependências policiais ou assemelhadas;c) que tenham falecido em virtude de repress?o policial sofrida em manifesta??es públicas ou em conflitos armados com agentes do poder público;? d) que tenham falecido em decorrência de suicídio praticado na iminência de serem presas ou em decorrência de seqüelas psicológicas resultantes de atos de tortura praticados por agentes do poder público; (BRASIL, 1995)Da promulga??o desta lei foram reconhecidos imediatamente como desaparecidos políticos 136 pessoas baseado dossiê dos mortos e desaparecidos políticos, elaborado pela Comiss?o de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, e que havia sido entregue ao Ministro da Justi?a Nelson Jobim. A partir de ent?o inaugurou o ciclo de trabalhos realizados pela Comiss?o Especial de Mortos e Desaparecidos em conjunto com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Durante a sua primeira etapa apreciou 480 pedidos de repara??o e reconhecimento Entre estes, 362 foram deferidos, ou seja, as causas ou circunst?ncias de morte ou desaparecimento por for?a do arbítrio instalado e perpetrado pela ditadura militar (1964-1985), pelo Estado ou por seus agentes, foram oficialmente reconhecidas. Destes, 136 constaram do anexo da Lei n? 9.140/95. Os outros 118 foram indeferidos. (CEMDP, 2007). Do reconhecimento da responsabilidade do Estado foi garantida a indeniza??o reparatória calculada a partir da expectativa de vida de cada um dos mortos e desaparecidos, ou seja, o pagamento de valor único igual a três mil reais multiplicado pelo número de anos correspondentes à expectativa de sobrevivência do desaparecido no qual foi estabelecido em uma tabela própria anexa a Lei. Esta repara??o somente foi regulamentada em 2002 pela Lei 10.559/2002. Da mesma forma que a Lei de Anistia de 1979 n?o abordou sobre a possibilidade de puni??es aos agentes do Estado a lei que criou a Comiss?o Especial de Mortos e Desaparecidos também n?o, recebendo inúmeras críticas dos familiares das vítimas que se viam impossibilitados de buscar a puni??o dos agentes do Estado. Porém o trabalho da Comiss?o Especial trouxe um grande avan?o na constru??o da verdade e da memória no processo de transi??o. Na primeira etapa de seus trabalhos, encerrada em 2006, concluiu a fase de analise, investiga??o e julgamento dos processos relativos aos casos de mortos e desaparecidos. Em 2007 durante o segundo mandato do Presidente Lula foi publicada a obra “Direito à memória e à Verdade” no qual relatou todos os casos averiguados pela Comiss?o Especial ao longo de onze anos sinalizando a busca do sentimento de reconcilia??o e os objetivos humanitários que a movem, registrando-os para os anais da história. A partir do fechamento desta primeira etapa, a Comiss?o Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, iniciou em setembro de 2006, a coleta de material genético de familiares de desaparecidos políticos para a cria??o de um banco de DNA que irá ajudar na identifica??o de possíveis corpos ainda a serem encontrados, e ainda, em conson?ncia com o disposto no inciso II do Artigo 4° da Lei 9.140/1995, se comprometeu “a sistematizar informa??es sobre a possível localiza??o de covas clandestinas nas grandes cidades e em áreas prováveis de sepultamento de militantes na área rural”. (VANNUCHI; BARBOSA, 2007, p. 17).Outro fato importante para o processo de transi??o brasileiro ocorreu em 2001 com a Medida Provisória n° 2151-3 que criou a Comiss?o da Anistia do Ministério da Justi?a - sendo reeditada pela Medida Provisória n° 65/2002 e convertida em Lei 10.559/2002 em 13 de novembro de 2002 – finalmente regulamentando o direito previsto no artigo 8° ADCT. Além de prever direitos como a declara??o de anistiado político, a repara??o econ?mica, a contagem do tempo e a continua??o de curso superior interrompido ou reconhecimento de diploma obtido no exterior, instituiu a Comiss?o de Anistia, no ?mbito do Ministério da Justi?a, para a aprecia??o e julgamento dos requerimentos de anistia e exame de requerimentos de repara??o econ?mica. 1.4 A ELABORA??O DO PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS (PNDH) O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) surgiu através do compromisso assumido pelo Brasil durante a 1° Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (Conven??o de Viena) ocorrida em junho de 1993. Esta conferência buscou reafirmar o empenho de todos os Estados em cumprirem as suas obriga??es quanto à promo??o, prote??o e respeito aos direitos humanos e liberdades individuais dispostos na Carta das Na??es Unidas ensejando a coopera??o internacional para percorrer esse fim. O Brasil foi o primeiro país da América Latina a lan?ar um programa nacional para direitos humanos. Em meio ao massacre a trabalhares rurais sem terra, ocorrido durante uma opera??o realizada pela Polícia Militar em Eldorado dos Carajás no Pará, o governo de Fernando Henrique Cardoso lan?ou em 1996 o Primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-I) através do Decreto 1.904/1996. Este foi elaborado a partir de ampla consulta à sociedade, de organiza??es n?o-governamentais (ONG’s), universidades e centros de pesquisa no qual algumas dezenas de entidades e centenas de pessoas formularam sugest?es e críticas, participaram de debates e seminários. (PINHEIRO;NETO, 1997). Nas palavras do ent?o Presidente Fernando Henrique Cardoso o objetivo das propostas elaboradas neste importante documento s?o, [...] estancar a banaliza??o da morte, seja ela no tr?nsito, na fila do pronto socorro, dentro de presídios, em decorrência do uso indevido de armas ou das chacinas de crian?as e trabalhadores rurais. Outras recomenda??es visam a obstar a persegui??o e a discrimina??o contra os cidad?os. Por fim, o Programa sugere medidas para tornar a Justi?a mais eficiente, de modo a assegurar mais efetivo acesso da popula??o ao Judiciário e o combate à impunidade (PNDH-1, 1996, p.2)O PNDH-1 enfatizou a aten??o aos direitos civis e políticos. Para tanto contou com duzentas e vinte e oito propostas de a??es governamentais voltadas à integridade física, liberdade, cidadania e discrimina??o, afirmando a import?ncia da prote??o aos direitos humanos e que estes devem ser protegidos em todos os Estados e na??es (CICONELLO;PIVATO;FRIGO, 2009). Dentre as propostas de a??es governamentais est?o:Políticas públicas para prote??o e promo??o dos direitos humanos no Brasil: Prote??o do direito à vida e liberdade;Prote??o do direito a tratamento igualitário perante a Lei;Educa??o e cidadania como bases para uma cultura de direitos humanos;A??es internacionais para a prote??o e promo??o de direitos humanos: ratifica??o de atos internacionais, implementa??o e divulga??o de atos internacionais, apoio a organiza??es e opera??es de defesa de direitos humanos; implementa??o e monitoramento do PNDH; Trata-se, portanto, de um quadro referencial para a concretiza??o das garantias do Estado de Direito em uma a??o conjunta entre o Estado e a comunidade, transformando indivíduos e coletividades em beneficiários das garantias e da prote??o do direito internacional dos direitos humanos. Da mesma forma garantiu o acesso o organismos internacionais para a prote??o nos sistema global (Organiza??o das Na??es Unidas – ONU) e regional (Organiza??o dos Estados Americanos – OEA). Apesar de n?o dispor sobre os mecanismos de incorpora??o das propostas nos instrumentos de planejamento e or?amento brasileiro e a maior parte das suas propostas se colocarem de maneira pouco afirmativa (CICONELLO;PIVATO;FRIGO, 2009), o PNDH-I significou um importante instrumento na constru??o da verdade e da memória (PNDH-II, 2002): Houve o reconhecimento das mortes de pessoas desaparecidas em raz?o de participa??o política (Lei n? 9.140/95), onde o Estado brasileiro reconheceu a responsabilidade por essas mortes e concedeu indeniza??o aos familiares das vítimas; A transferência da justi?a militar para a justi?a comum dos crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares (Lei 9.299/96), que permitiu o indiciamento e julgamento de policiais militares em casos de múltiplas e graves viola??es como os do Carandiru, Corumbiara e Eldorado dos Carajás;A tipifica??o do crime de tortura (Lei 9.455/97), que constituiu marco referencial para o combate a essa prática criminosa no Brasil; e a constru??o da proposta de reforma do Poder Judiciário, na qual se inclui, entre outras medidas destinadas a agilizar o processamento dos responsáveis por viola??es, a chamada ‘federaliza??o’ dos crimes de direitos humanos. Em 2002 foi lan?ado o PNDH-II por meio do Decreto 4.229/2002. Neste sentindo ofereceu a oportunidade de fazer um balan?o dos progressos alcan?ados desde 1996, das propostas de a??o que se tornaram programas governamentais e dos problemas identificados até ent?o. A ênfase neste momento foi a aten??o aos direitos econ?micos, sociais e culturais, sendo ent?o incorporadas a??es como, direito à educa??o, à saúde, à previdência e assistência social, ao trabalho, à moradia, a um meio ambiente saudável, à alimenta??o, à cultura e ao lazer, assim como propostas voltadas para a educa??o e sensibiliza??o de toda a sociedade brasileira com vistas à constru??o e consolida??o de uma cultura de respeito aos direitos humanos (PNDH-II, 2002). Uma importante novidade foi cria??o de novas formas de acompanhamento e monitoramento das a??es contempladas no PNDH, por meio da rela??o entre a implementa??o do programa e a elabora??o dos or?amentos nos níveis federal, estadual e municipal (CICONELLO;PIVATO;FRIGO, 2009).Em 2008, ocorreu um grande debate nacional na 11° Conferência Nacional de Direitos Humanos sobre quais seriam as prioridades que o Estado brasileiro deveria assumir ao longo dos próximos anos de modo a dar mais efetividade ao PNDH. Foram realizados debates em todos os vinte e sete estados da federa??o, com mais de quatorze mil participantes (CICONELLO;PIVATO;FRIGO, 2009). Em 2009, por meio do Decreto 7.037/2009, foi lan?ado o PNDH-3. A terceira vers?o do Programa Nacional de Direitos Humanos gerou grande polêmica entre a sociedade, o Estado e os militares. Isso porque no Eixo Orientador VI reconheceu o direito à memória e à verdade como direito humano da cidadania e dever do Estado. Estabeleceu na Diretriz 23 o objetivo de promover a apura??o e esclarecimento público das viola??es de direitos humanos praticadas durante a repress?o política no período fixado no artigo 8° do ADCT. Para tanto foi proposta a cria??o de uma “Comiss?o da Verdade e Justi?a”. Esta quest?o gerou grande polêmica visto que os militares entenderam que a cria??o de uma comiss?o desta forma animaria espíritos revanchistas. A assinatura do decreto que aprovava o PNDH-3 culminou em cartas de demiss?es do ministro da Defesa e de Comandantes das For?as Armadas como forma de pressionar o governo a suprimir a própria cria??o dessa comiss?o. As negocia??es a respeito da Comiss?o da Verdade perduraram até 2011 quando ent?o a Lei 12.528/2011 finalmente criou a Comiss?o Nacional da Verdade (CNV). O PNDH-3 ainda previu quest?es importantes à mudan?a da cultura de esquecimento que restou com a transi??o política no Brasil. Na Diretriz 24 estabeleceu a preserva??o da memória histórica e a constru??o pública da verdade, e na Diretriz 25, a moderniza??o da legisla??o relacionada com a promo??o do direito à memória e à verdade como meio de fortalecer a democracia. Deste modo o PNDH-3 (2009) previu as seguintes a??es programáticas: Designou Grupo de Trabalho composto por representantes da Casa Civil, do Ministério da Justi?a, do Ministério da Defesa e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, para elaborar, até abril de 2010, projeto de lei que institua Comiss?o Nacional da Verdade no qual esta comiss?o teria a??o em conjunto com o Arquivo Nacional, Comiss?o da Anistia; Comiss?o Especial criada pela Lei 9.140/95, Comitê interinstitucional de Supervis?o, e o Grupo de Trabalho instituído pela Portaria n° 567/2009 do Ministro da Defesa; Financiamento para a cria??o de centros de memória sobre a repress?o política, em todos os estados, com projetos de valoriza??o da história cultural e de socializa??o do conhecimento por diversos meios de difus?o; Cria??o de Grupo de Trabalho para acompanhar, discutir e articular, com o Congresso Nacional, iniciativas de legisla??o propondo: revoga??o de leis remanescentes do período 1964-1985 que sejam contrárias à garantia dos Direitos Humanos ou tenham dado sustenta??o a graves viola??es; revis?o de propostas legislativas envolvendo retrocessos na garantia dos Direitos Humanos em geral e no direito à memória e à verdade.Este ultima a??o programática no qual foi proposta a revoga??o de leis remanescentes do período de 1964 a 1985 resultou na A??o de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n°153 proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 2008 no qual iremos abordar mais adiante. 1.5 EIXO DA REPARA??O: COMISS?O DA ANISTIA A Comiss?o da Anistia iniciou as suas atividades através da medida provisória 2.151-3/2001, posteriormente convertida na Lei 10.559/2002, regulamentando o direito a repara??o dos perseguidos políticos estabelecido no artigo 8° do ADCT. ? um órg?o vinculado ao Ministro da Justi?a, tendo por finalidade examinar e apreciar os requerimentos de anistia possibilitando a concess?o da anistia e repara??o econ?mica. ? composta por no mínimo vinte Conselheiros designados mediante portaria do Ministro de Estado da Justi?a no qual prestam servi?o de relev?ncia social sem qualquer tipo de remunera??o, verificando todos os casos ocorridos entre 18 de setembro de 1946 até 05 de outubro de 1988. Desde o inicio do seu funcionamento até 2007 a Comiss?o de Anistia recebeu mais de cinquenta e sete mil requerimentos dos quais vinte e nove mil foram apreciados, concluindo em 2016 a aprecia??o dos processos em primeiro grau (GENRO; ABR?O, 2009). A declara??o de condi??o de anistiado político foi direcionada às pessoas que por motiva??o exclusivamente política: Art. 2° . S?o declarados anistiados políticos aqueles que, no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, por motiva??o exclusivamente política, foram: I. atingidos por atos institucionais ou complementares, ou de exce??o na plena abrangência do termo; II. punidos com transferência para localidade diversa daquela onde exerciam suas atividades profissionais, impondo-se mudan?as de local de residência; III. punidos com perda de comiss?es já incorporadas ao contrato de trabalho ou inerentes às suas carreiras administrativas; IV. compelidos ao afastamento da atividade profissional remunerada, para acompanhar o c?njuge; V. impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica no S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e no S-285-GM5; VI. punidos, demitidos ou compelidos ao afastamento das atividades remuneradas que exerciam, bem como impedidos de exercer atividades profissionais em virtude de press?es ostensivas ou expedientes o' ciais sigilosos, sendo trabalhadores do setor privado ou dirigentes e representantes sindicais, nos termos do § 2o do art. 8o do Ato das Disposi??es Constitucionais Transitórias. (BRASIL, 2002, p.1) As pessoas declaradas anistiadas políticas passaram a ter o direito a dois tipos de indeniza??o. A primeira é a repara??o econ?mica em presta??o única no valor de trinta salários mínimos por ano de persegui??o econ?mica, observados o teto legal de cem mil reais, dirigido aos perseguidos políticos que n?o puderem comprovar vínculos com a atividade laboral como, por exemplo, estudantes, profissionais aut?nomos, etc. A segunda é a presta??o mensal permanente e continuada. Esta é dirigida a aqueles que comprovarem o vinculo laboral interrompido à época da persegui??o. O valor é estabelecido de acordo com as provas oferecidas pelo requerente. Nesse sentido a grande dificuldade da Comiss?o de Anistia para a efetiva??o do direito à repara??o foi a assimetria existente entre os valores reparatórios percebidos por diferentes anistiados durante o período anterior à cria??o da Comiss?o da Anistia. Até 2009 a Comiss?o da Anistia havia concedido a declara??o de anistiado a mais de trinta mil pessoas, concedendo algum tipo de repara??o econ?mica a pelo menos dez mil pessoas (GENRO; ABR?O, 2009)Apesar de ser uma comiss?o de repara??o a atua??o da Comiss?o da Anistia possibilitou a mudan?a na concep??o de anistia como esquecimento, pois a concess?o da condi??o de anistiado político requereu uma ampla apresenta??o de documentos e narrativas sobre os fatos ocorridos nas sess?es de julgamento promovidas por esta comiss?o. Ainda como meio de promover à memória e a verdade desde 2007 a Comiss?o passou a promover projetos de educa??o, cidadania e memória deslocando, através do projeto Caravanas da Anistia, as sess?es de aprecia??o dos pedidos aos locais onde ocorreram as viola??es de direitos humanos. Entre os anos de 2008 e 2011 ocorreram cinquenta Caravanas da Anistia percorrendo o Rio de Janeiro, S?o Paulo, Goi?nia, Curitiba, Caxias do Sul, Belo Horizonte, Salvador, Maceió, Brasília, e demais cidades do Brasil. Uma das Caravanas que podemos destacar foi a Caravana do Araguaia. No dia 17 de junho de 2009, a Comiss?o de Anistia julgou os processos de camponeses que foram perseguidos pelo exército brasileiro durante a Guerrilha do Araguaia (SILVA, 2010). Conforme afirma Silva: A instru??o desses processos foi algo muito difícil, visto que até a edi??o da Lei 9.140/95 o Estado brasileiro n?o admitia a ocorrência da Guerrilha, refletindo o forte empenho dos militares em varrer da história do país um exemplo de resistência de t?o grandes dimens?es. Assim, ao contrário das demais persegui??es políticas empreendidas, como no caso das guerrilhas urbanas, por exemplo, n?o vieram à tona documentos oficiais produzidos sobre o episódio. O que se tem s?o apenas alguns relatórios até hoje n?o admitidos pelas For?as Armadas e que já foram objeto de reportagens e livros. (SILVA, 2010, p.216). Ent?o para poder averiguar os acontecimentos a prova testemunhal assumiu um ponto central. Foram promovidas audiências abertas ao publico, as histórias contadas foram compiladas e disponibilizadas no Memorial da Anistia. Documentários, exposi??es artísticas e fotográficas, palestras, musicias, restaura??o de filmes, preserva??o de acertos, locais de memória, produ??es teatrais e materiais didáticos foram constantemente fomentados. Deste modo promoveu além da repara??o individual às vítimas, a repara??o coletiva na medida em que permitiu que a sociedade pudesse conhecer os fatos ocorridos durante a ditadura militar no Brasil.2 A ADPF 153 E A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS O fim da ditadura militar e a promulga??o da Constitui??o de 1988 anunciaram novos caminhos para a sociedade brasileira em rela??o à prote??o dos direitos humanos. A ideia de direitos humanos, diretamente ligada à necessidade de prote??o as ingerências do Estado e de seus agentes, tornou-se tema central introduzindo um “indiscutível avan?o na consolida??o legislativa das garantias e direitos fundamentais e na prote??o de setores vulneráveis da sociedade brasileira” (PIOVESAN, 2013, p.84). Os direitos e garantias fundamentais passaram a ser o suporte axiológico de todo o sistema jurídico sustentando a no??o de estado democrático de direito. Deste modo, as rela??es fundamentadas no princípio da prevalência dos direitos humanos passaram a refor?ar o reconhecimento do Estado brasileiro da existência de limites e condicionamentos à no??o de soberania estatal transformando todo o arcabou?o de suas regras jurídicas. Fundamentado neste princípio os principais tratados de prote??o aos direitos humanos, como, os Pactos das Na??es Unidas sobre direitos humanos, a Conven??o contra a Tortura e a Conven??o sobre os Direitos da Crian?a, a Conven??o Americana sobre Direitos Humanos, Conven??o Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, dentre outros, passaram a ser aderidos pelo Brasil ocasionando também no reconhecimento da jurisdi??o de vários mecanismos internacionais judiciais para sua efetiva??o. Conforme André de Carvalho Ramos, Dentre esses mecanismos est?o o reconhecimento da jurisdi??o da Corte Interamericana de Direitos Humanos, do Tribunal Penal Internacional, de Comitês diversos de tratados internacionais de direitos humanos, do ?rg?o de Solu??o de Controvérsias da Organiza??o Mundial do Comércio, do Tribunal permanente de Revis?o do Mercosul, demonstrando como o Brasil avan?ou no trato do Direito Internacional (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 175). Segundo este autor a existência desses tribunais internacionais contribuiu para que o “truque de ilusionista” perante o plano internacional pudesse ser combatido através da fiscaliza??o e controle das condutas dos Estados. Isto porque no campo dos direitos humanos “era fácil o ilusionismo” no qual era possível que um Tribunal Superior invocasse as garantias processuais penais à luz da Conven??o Americana de Direitos Humanos sem que citasse um precedente de interpreta??o desta Corte (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 175). Portanto, passou a ser afirmada a necessidade da jurisdi??o internacional e a nacional a dialogarem entre si, afirmando uma rela??o de interdependência entre estes sistemas. Neste sentido Mazzuoli esclarece que o principio do domestic affair (ou da n?o ingerência) evoluiu para o princípio do international concern, ou seja, o gozo dos direitos e garantias fundamentais pelos cidad?os passou a ser uma quest?o de direito internacional, n?o cabendo apenas aos juízes internos exercer essa prote??o. Em suas palavras, “estes últimos já n?o tem mais a última palavra quando se trata de amparar um direito humano ou fundamental” (MAZZUOLI, 2011, p. 56). A Conven??o Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (1969) – foi ratificada pelo Brasil pelo Decreto 678 de 6 de novembro de 1992, sendo a jurisdi??o da Corte Interamericana de Direitos Humanos, órg?o internacional responsável pela aplica??o e interpreta??o da conven??o, somente reconhecida após a aprova??o, no Congresso Nacional, do Decreto Legislativo n° 89, de 3 de dezembro de 1998. A promulga??o deste reconhecimento pelo Poder Executivo ocorreu com o Decreto 4.463 de 08 de novembro de 2002, afirmando ser “obrigatória, de pleno direito e por prazo indeterminado” a competência da Corte Interamericana para os fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada em S?o José da Costa Rica, é um órg?o judicial internacional aut?nomo do sistema da Organiza??o dos Estados Americanos (OEA) que disp?e de competência contenciosa e consultiva podendo conhecer de qualquer caso relativo à interpreta??o e aplica??o das disposi??es da Conven??o Americana sobre Direitos humanos. No plano consultivo exerce o seu papel de interprete ultima da Conven??o Americana emitindo pareceres que devem ser respeitados pela jurisdi??o nacional no exercício do controle de convencionalidade. No plano jurisdicional, a Corte Interamericana realiza o julgamento de casos relacionados aos Estados-partes da Conven??o Americana, que por for?a do artigo 62 da Conven??o reconheceram expressamente a sua competência. A Corte Interamericana, na sua atua??o, exerce o controle de convencionalidade das leis apreciando a compatibilidade dos dispositivos internos – inclusive as normas constitucionais originárias – com os textos internacionais de direitos humanos. Este controle também deve ser exercido internamente, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e os juízos locais, zelando pelo cumprimento dos dispositivos convencionais e depurando as normas nacionais que conflitem com as normas internacionais de prote??o aos direitos humanos (CARVALHO RAMOS, 2011). Porém, a ratifica??o e incorpora??o de um tratado internacional de direitos humanos pelo Estado nem sempre significa o efetivo diálogo entre as jurisdi??es nacionais e internacionais. Um exemplo disso é a decis?o proferida pelo STF na Argui??o de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153 e a posterior decis?o da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund e outros Vs. Brasil, ambas proferidas em 2010. Desta forma, analisaremos neste tópico, o posicionamento do STF e o da Corte Interamericana de Direitos Humanos a respeito da interpreta??o da Lei de Anistia e os principais impactos desses entendimentos para a justi?a de transi??o brasileira. 2.1 POSICIONAMENTO DO STF NA ADPF N° 153/2008Em 2008, a Comiss?o de Anistia, apoiada por mais de 30 entidades internacionais de diretos humanos, promoveu uma audiência pública para discutir sobre os limites e possibilidades para a responsabiliza??o jurídica dos agentes violadores de direitos humanos durante o estado de exce??o no Brasil (PAYNE, ABR?O, TORELLY, 2011), recolocando em pauta o questionamento sobre o alcance e a interpreta??o da Lei de Anistia (L. 6.683/1979). Como fruto dessa discuss?o, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil promoveu no mesmo ano a Argui??o de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 153 questionando a anistia oferecida aos representantes do Estado – policiais e militares – que praticaram os crimes de homicídio, desaparecimento for?ado, abuso de autoridade, les?es corporais, estupro, e atentado violento ao pudor contra os opositores políticos ao regime militar. Na respectiva ADPF 153 a OAB afirmou n?o ser possível, consoante o texto da Constitui??o do Brasil, considerar válida a interpreta??o segundo o qual a Lei n. 6.683 teria anistiado vários agentes públicos responsáveis pelos delitos acima citados, sendo tal entendimento violador de vários preceitos fundamentais da Constitui??o. Deste modo afirmou que o dispositivo legal foi “redigido intencionalmente de forma obscura, a fim de incluir sub-repticiamente, no ?mbito da anistia criminal, os agentes públicos que comandaram e executaram crimes comuns contra os opositores políticos” (BRASIL, 2008, p. 9), n?o podendo ser aceita pela nova ordem constitucional que preza pelo Estado de Direito e prote??o aos direitos humanos. Invocando os preceitos fundamentais constitucionais da isonomia (art. 5°, caput), direito à verdade (art. 5° XXXIII) e os princípios republicano, democrático (art. 1°, parágrafo único) e da dignidade da pessoa humana (art.1°, III), a OAB contestou o § 1° do artigo 1° da Lei 6.683/1979 que considera conexos os crimes de “qualquer natureza” relacionados aos crimes políticos ou praticados por motiva??o política durante a ditadura militar. Deste modo, a previs?o do §1° do art. 1° da Lei 6.683/1979 operou no esvaziamento do conceito da anistia como perd?o somente aos crimes efetivamente políticos, fazendo valer no nosso ordenamento uma forma de “anistia-amnésia”, onde os atos da resistência e os atos dos agentes de Estado foram colocados no mesmo pacote, distorcendo o conceito de crimes políticos, e o alcance dos crimes conexos a estes, no momento em que estendeu a aplicabilidade da lei a crimes comuns e aos crimes contra a humanidade (SANTOS, 2016). O crime político seria um delito próprio que exige que, tanto a motiva??o, quanto o bem jurídico tutelado, seja necessariamente político. Ainda, s?o crimes que devem provocar uma situa??o de ofensa real ou potencial a integridade territorial e à soberania nacional. Em contrapartida, o crime de motiva??o política é um crime político impróprio, ou seja, embora apresente uma les?o jurídica de índole comum, causa um dano potencial ou abstrato ao Estado. Os crimes conexos a estes s?o infra??es penais dependentes do delito principal, entendido como infra??es cometidas para realizar ou ocultar o proveito, ou impunidade, do delito principal (SANTOS, 2016). Dentre os principais crimes praticados pelos agentes de estado durante a ditadura militar enquadram-se a usurpa??o do poder e destitui??o do governo eleito democraticamente, homicídio, oculta??o de cadáver, sequestro, cárcere privado, tortura, violência arbitrária, abuso sexual e estupro, pris?o arbitrária, abuso de autoridade, extravio ou inutiliza??o de documento, desaparecimento for?ado de pessoas, corrup??o passiva, crime de extermínio e crime de genocídio. Ou seja, os crimes cometidos pelos agentes de estado contra os opositores políticos n?o afetaram a integridade do Estado ou a soberania nacional, mas sim, foram crimes cometidos em nome do Estado para assegurar a permanência do regime ditatorial ent?o implantado. Isto fez com que a anistia perdesse sua característica – estar vinculada aos crimes políticos – para se tornar uma medida de ordem subjetiva e pessoal, aplicando-se inclusive a crimes comuns e perpetuando a impunidade. Segundo Carvalho Ramos (2011) entre os precedentes internos que aplicaram a citada lei da anistia está o homicídio do jornalista Vladimir Herzog ocorrido nas dependências do DOI/CODI de S?o Paulo em outubro de 1975. A tentativa de persecu??o penal dos responsáveis pela sua morte foi proposta pelo Ministério Público de S?o Paulo que, em 1992, requisitou a abertura de inquérito policial para apurar as circunstancias do homicídio, refutando a vers?o oficial de que o jornalista havia se suicidado nas dependências do Destacamento. No entanto, o Tribunal de Justi?a de S?o Paulo determinou o trancamento inquérito policial por considerar que tais atos ilícitos foram anistiados pela Lei 6.683/1979. Os crimes cometidos pelos agentes de Estado n?o se encaixam no conceito de crimes políticos, crimes por motiva??o política e muito menos de crimes conexos a estes. Portanto, para a OAB seria irregular estender a anistia aos agentes de Estado. O objetivo da respectiva ADPF n°153 n?o buscou declarar a nulidade da Lei de Anistia, mas sim, obter o posicionamento do STF de que esta lei deveria ser interpretada conforme a Constitui??o de 1988, declarando que a anistia concedida n?o se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes de estado. Portanto a procedência da a??o proposta pela OAB “afastaria um dos principais argumentos a favor da continuidade da impunidade dos agentes de repress?o: a de que eles foram anistiados” (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 180). Porém, o STF decidiu em 2010 pela improcedência da a??o afirmando que a interpreta??o da ADPF 153 é compatível com a Constitui??o de 1988. Acontece que a interpreta??o concedida a Lei de Anistia operou em “um esvaziamento do conceito de anistia enquanto perd?o geral, predominando a anistia enquanto esquecimento juridicamente comandado” corroborando para que esta continuidade da impunidade continue vigorando (SANTOS, 2016, p. 163). Vejamos um trecho do voto do Ministro Relator Eros Grau:A inicial ignora no momento talvez mais importante da luta pela redemocratiza??o do país, o da batalha da anistia, autentica batalha. Toda a gente que conhece a nossa História sabe que esse acordo político existiu, resultando no texto da Lei n°6.683/79. A procura dos sujeitos da História conduz à incompreens?o da História. ? expressiva uma vis?o abstrata, uma vis?o intimista da História, que n?o se reduz a uma estática cole??o de fatos desligados uns dos outros. Os homens n?o podem fazê-la sen?o nos limites materiais da realidade. Para que a possam fazer, a História, h?o de estar em condi??o de fazê-la. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou n?o ceder e continuar a viver em angústia (em alguns casos, nem viver). Quando se deseja negar o acordo político que efetivamente existiu, resultam fustigados os que manifestam politicamente em nome dos subversivos, inclusive a OAB de hoje contra a OAB de ontem (STF, 2010, p.21). Podemos verificar que esta análise carrega um discurso fortemente conservador e de caráter histórico e político, prevalecendo a perspectiva da anistia como um pacto que n?o poderia ser mexido sem que se comprometesse a estabilidade democrática. Para este “romper a boa fé dos atores sociais e os anseios das diversas classes e institui??es políticas” significaria prejudicar o “acesso à verdade histórica” (STF, 2010, p.21). O relator rejeitou todas as preliminares arguidas pela OAB afirmando que a revis?o da Lei de Anistia n?o caberia ao STF, mas sim, ao Poder Legislativo. Para este “o Poder Judiciário n?o está autorizado a alterar, a dar outra reda??o, diversa nele contemplada, a texto normativo” (STF, 2010, p. 58). Ainda, acrescentou que o acordo teria sido amplo viabilizando o consenso entre a oposi??o e os agentes do regime militar. No entanto, segundo relatório da Comiss?o de Anistia “o nome de cada anistiado era publicado formalmente no Diário Oficial da Uni?o, ao passo que nenhum agente da repress?o política teve seu nome incluído nesses anúncios” demonstrando que na verdade a anistia n?o incluía o perd?o aos crimes cometidos pelos Agentes de Estado (BRASIL;CEMDP, 2007, p. 31). O voto do relator Ministro Eros Grau foi acompanhado pelos Ministros Carmen Lúcia, Cézar Peluso, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio e Celso de Mello.Conforme o entendimento do Procurador Regional da República Marlon Weichert (2015) a respectiva decis?o do STF enveredou por um caminho inadequado na avalia??o da validade da anistia aos agentes do Estado que praticaram graves viola??es de direitos humanos. Ao tratar apenas dos fundamentos históricos da lei e dos reflexos decorrentes da sua suposta interpreta??o, a Suprema corte deixou de realizar o “indispensável juízo de constitucionalidade da norma editada pela Lei 6.683/79, em face do par?metro constitucional que vinculava a atividade legislativa no momento do seu exercício” (WEICHERT, 2015, p. 120). Explica o autor que, no exame do controle de constitucionalidade da Lei de Anistia o par?metro de análise a ser adotado deveria ter prestigiado a possibilidade, ou n?o, da elabora??o desta lei conforme a Constitui??o democrática de 1946. A Constitui??o outorgada pelo regime militar em 1967, n?o serviria como paradigma para esta análise. Isso porque “é incompreensível que se pretenda avaliar a validade constitucional de uma norma legal sobre prote??o de direitos fundamentais com a utiliza??o de um par?metro decorrente de uma ordem jurídico-constitucional outorgada por ditadores” que desde a sua implanta??o buscou socorrer-se formalmente do direito como instrumento para legitimar os seus atos. Seguindo esta lógica, as normas que tratam de assuntos diretamente ligados à sustenta??o do regime de for?a, careceriam de legitimidade porque s?o incompatíveis com os valores constitucionais de um Estado de Direito. Portanto, inclusive em matéria penal, o intérprete constitucional n?o pode adotar como critério de valor para aferi??o da validade material de uma norma infralegal de direitos fundamentais o ordenamento constitucional outorgado pelos ditadores (WEICHERT, 2015). Conforme afirma Weichert (2015, p. 124) “o Estado de Direito é quem fornece os instrumentos para o combate à criminalidade. Fora desses limites, é o agente público quem envereda pelo caminho do crime, praticando a violência arbitrária”. Por este motivo, as anistias elaboradas como artifícios para a manuten??o da impunidade destes atos n?o poderiam prosperar. Seguindo este exame, a Lei de Anistia de 1979 n?o passaria pelo filtro da constitucionalidade, pois o reconhecimento da anistia aos excessos praticados pelos agentes da repress?o, além de ser incompatível com os princípios republicanos e do Estado de Direito, ainda fere a autoridade do Estado de Direito, na medida a impunidade indica à sociedade que o Estado pode praticar qualquer ato sem que este esteja adstrito às consequências da Lei. Já na perspectiva do direito internacional Carvalho Ramos segue a crítica (2011, p. 183-185) tecendo algumas considera??es sobre os votos desfavoráveis à revis?o da interpreta??o da Lei de Anistia. Para o autor o voto do relator, Ministro Eros Grau, n?o considerou a Conven??o Americana de Direitos Humanos, “que poderia auxiliar a reflex?o sobre a n?o recep??o da interpreta??o de extens?o da anistia a agentes da ditadura”, realizando apenas a transcri??o da opini?o de Nilo Batista que considera o precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a invalidade das leis de anistia um “fantasma” que pode ser afastado, pois, o reconhecimento da jurisdi??o da Corte Interamericana pelo Brasil ocorreu apenas em 1998. Neste sentido, o autor esclarece que há precedentes na jurisprudência da Corte Interamericana “que reconhecem o caráter permanente de determinadas viola??es de direitos humanos, sendo inútil a alega??o de que os fatos ocorreram antes do reconhecimento da jurisdi??o da Corte pelo Estado réu”. Ainda, nenhuma palavra sobre o papel do Judiciário local e da aceita??o da jurisprudência da Corte Interamericana foi dita. Na ADPF 153 n?o houve a reflex?o “sobre a necessidade do judiciário brasileiro interpretar a lei de anistia conforme os direitos humanos internacionais, preferindo remeter o problema ao nosso Poder Legislativo”. No voto da Ministra Ellen Gracie, que acompanhou o voto do relator, também “n?o houve a men??o a dispositivo internacional dos direitos humanos”, e ainda, parte a fundamenta??o colidiu com os precedentes internacionais sobre leis de anistia ao afirmar que “a anistia foi o pre?o que a sociedade brasileira pagou para acelerar o processo pacífico de redemocratiza??o”. O voto do Ministro Celso de Mello, que “desconsiderou a existência do direito internacional consuetudinário de combate à impunidade dos violadores bárbaros de direitos humanos”, ainda afirmou que o entendimento da jurisprudência internacional sobre leis de anistia seriam aplicáveis somente a casos de leis de autoanistia, o que n?o seria o caso brasileiro já que a transi??o foi fruto de um acordo político entre os dois lados (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 186-189). Por outro lado, dois Ministros votaram pela procedência da a??o, Ricardo Lewandowski e Carlos Britto. Para Lewandowski há a ausência de conex?o entre crimes comuns praticados pelos agentes de Estado e os crimes políticos afirmando a necessidade de afastar a incidência da Lei de Anistia. O mesmo se diga quanto ao delito de tortura. Embora este crime tenha sido formalmente tipificado apenas a partir da Lei 9.455/1997, a sua prática, evidentemente, jamais foi tolerada pelo ordenamento jurídico republicano, mesmo aquele vigente no regime de exce??o. N?o bastasse a previs?o da lei penal ordinária, que sancionava, dentre outros crimes, as les?es corporais e os maus-tratos, a Lei 4.898/1965, definia – e ainda define, por continua e vigor -, em seus arts. 3° e 4°, e as hipóteses de abuso de autoridade, arrolando, dentre elas, o atentado à incolumidade física ao indivíduo e de submiss?o de pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou constrangimento n?o autorizado em lei [...] Ainda que se admita, apenas argumentar, que País estivesse em uma situa??o de beliger?ncia interna ou, na dic??o do Ato Institucional n°14/1969 – incorporado à Carta de 1967, por for?a da EC n° 1/1969 – enfrentando uma “guerra psicológica adversa”, “guerra revolucionária” ou “guerra subversiva”, mesmo assim os agentes estatais estariam obrigados a respeitar os compromissos internacionais concernentes ao direito humanitário, assumido pelo Brasil desde o inicio do século passado (STF, 2010, p. 19). O Ministro Carlos Ayres Britto ainda complementou considerando que a anistia n?o foi “ampla, geral e irrestrita”, estando a referido parágrafo 1° do artigo 1° da Lei 6.683/1979 de fato em colis?o com a Constitui??o Federal. Os agentes estatais n?o estariam automaticamente contemplados pela anistia porque “para a coletividade perdoar certos infratores, é preciso que o fa?a por modo claro, assumido, autêntico, n?o incidindo jamais em tergiversa??o racional, em prestidigita??o normativa, para n?o dizer em hipocrisia normativa” (SOARES, 2009, p. 148). Se considerarmos os aspectos históricos do contexto de aprova??o da Lei de Anistia podemos afirmar que esta n?o foi fruto de um pacto político democrático entre a oposi??o e os militares. Embora o processo pela busca da anistia tenha iniciado pelo movimento dos familiares das vítimas da repress?o, é sabido que este processo foi altamente controlado pelo regime militar sendo a respectiva lei elaborada por um Congresso Nacional composto majoritariamente por políticos apoiadores do regime. N?o havia espa?o para um verdadeiro consenso a respeito deste tema, que inclusive, continuou sendo um “tabu” durante muitos anos após o fim da repress?o. Apesar de a lei ter sido extremamente importante para que a oposi??o pudesse retornar do exílio e para que alguns presos políticos pudessem ser libertados, a interpreta??o da anistia que colocou no mesmo pacote os atos de repress?o e os atos de resistência. Dentre os votos indeferindo o pedido da OAB, podemos verificar inclusive o trecho em que os atos cometidos pelos agentes públicos e os crimes cometidos pela resistência encontram-se comparados, refor?ando a existência da “Teoria dos dois dem?nios”, Se é verdade que cada povo acerta as contas com o passado de acordo com sua cultura, com os seus sentimentos, com sua índole e com a sua história, o Brasil fez uma op??o pelo caminho da concórdia. E diria, se pudesse, mas n?o posso, concordar com a afirma??o de que certos homens s?o monstros, que os monstros n?o perdoam, só o homem perdoa. Só uma sociedade superior, qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos da humanidade, é capaz de perdoar, porque só uma sociedade que, por ter grandeza, é mais do que seus inimigos, é capaz de sobreviver (STF, 2010, p. 204). Ao igualar a atua??o dos agentes de Estado e dos opositores durante a ditadura, os Ministros passam a ignorar o contexto de forte repress?o aos movimentos contrarrevolucionários impostos pela Guerra Fria. Tal compara??o “faz crer que todos os sequestros, mortes, estupros e desaparecimentos cometidos contra opositores foram resultados de a??es terroristas, ataques a bombas, assaltos e sequestros de diplomatas” (MACHADO, 2011, p. 252-253). A afirma??o de que houve uma luta entre dois grupos rivais durante a ditadura militar desvalorizou a busca pela verdade sendo este entendimento veemente reprovado pela jurisprudência internacional. Conforme entendimento do Ministério Público Federal a omiss?o cúmplice do sistema de justi?a com a violência praticada nos centros clandestinos e oficiais da repress?o política ditatorial contribuiu para que todos esses atos fossem acobertados “por meio de laudos falsos, sindic?ncias dolosamente preparadas para eximir os agentes e noticias de crimes jamais apuradas”. (BRASIL, 2017, p.88) Ainda, cabe lembrar que o pacto imposto pelo governo militar para a sociedade foi uma condi??o para apaziguar o regime repressor e consequentemente possibilitar o retorno dos presos políticos à sociedade, n?o sendo havendo na verdade um contexto em que uma negocia??o pudesse ser realizada. A validade deste acordo é questionável na medida em que o pacto afrontou nitidamente a “dignidade da pessoa humana e do povo brasileiro” (BORGES, 2012, p. 89). Acertadamente afirmou o Ministro Ricardo Lewandowski que a Lei de Anistia “longe de ter sido outorgada dentro de um contexto de concess?es mútuas, obedecendo a uma espécie de acordo tácito [...] foi editada em meio a um clima crescente de insatisfa??o popular contra o regime autoritário” que após ter exterminado a oposi??o política já n?o possuía raz?o para se manter no poder (STF, 2010, p. 107). Por sete votos a dois, o STF foi contra a revis?o da Lei de Anistia julgando improcedente o pedido realizado pela OAB na ADPF 153, mantendo a interpreta??o de que a Lei de Anistia de 1979 teria assegurado anistia ampla, geral e irrestrita indistintamente. Podemos destacar a decis?o do STF da seguinte forma, (a) a Lei da Anistia abrangeu quaisquer crimes praticados com motiva??o política, o que inclui os delitos praticados pelos agentes do Estado na repress?o; (b) a anistia foi, portanto, bilateral; (c) a lei teve efeitos instant?neos, n?o sendo possível rever sua aplica??o após 30 anos; (d) deve ser privilegiada uma interpreta??o compatível com o momento histórico, que leve em considera??o a inten??o do legislador da época; (e) houve um pacto político entre o governo militar e entidades da sociedade civil, que teriam anuído com a anistia aos agentes estatais para viabilizar a liberdade de presos políticos e o retorno do exílio de milhares de perseguidos do regime; (f) n?o seria legítimo rever esse acordo, especialmente por decis?o judicial; (g) o Brasil tem tradi??o de conceder anistias dessa natureza, após conflitos políticos; (h) n?o houve autoanistia, dada a bilateralidade do benefício penal, sendo inaplicável a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos que reputa inválidas normas legais instituidoras de anistia dessa natureza; e (i) a edi??o e a aplica??o da Lei n? 6.683/79 n?o se sujeitam à Corte Interamericana por serem anteriores ao reconhecimento, pelo Brasil, de sua jurisdi??o, válida apenas para fatos ocorridos após dezembro de 1998. Portanto, o Supremo Tribunal Federal n?o precisava temer uma condena??o internacional (WEICHERT, 2015, p. 119-120). 1Com esta decis?o o STF denegou às vítimas o direito à justi?a, como também, “reescreveu a história brasileira mediante uma lente específica, ao atribuir legitimidade político-social à lei de anistia em nome de um acordo político e de uma reconcilia??o nacional” (PIOVESAN, 2011, p. 82). Como veremos adiante, a decis?o do STF foi ao desencontro do posicionamento consolidado na Corte Interamericana que afirma a obrigatoriedade dos Estados em investigar, processar e punir os atos contra os direitos humanos cometidos pelos agentes da ditadura. A resistência do STF na ADPF 153 em se adequar ao entendimento internacional sobre direitos humanos demonstra a imensa dificuldade que ainda encontramos de harmonizar a teoria com a prática. Aceitar a primazia da norma mais favorável ou benéfica a pessoa humana é de extrema import?ncia para a constru??o e consolida??o do Estado Democrático de Direito. 2.2 POSICIONAMENTO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: CASO JULIA GOMES LUND E OUTROS VS. BRASIL (GUERRILHA DO ARAGUAIA) Em 07 de agosto de 1995 o Centro pela Justi?a e Direito Internacional (CEJIL) e a Human Rights Watch/América propuseram à Comiss?o Interamericana de Direitos Humanos uma peti??o contra o Brasil a respeito do desaparecimento de membros da Guerrilha do Araguaia entre os anos de 1972 e 1975. A Guerrilha do Araguaia foi um movimento político radial organizado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) que abrangeu a regi?o sul e sudeste do Estado do Pará e o oeste do Estado do Maranh?o, nos meados da década de 1960, para organizar um grupo de resistência contra a ditadura militar. Tal propositura foi baseada na demora injustificada e na impossibilidade de se fazer justi?a no plano interno, onde desde 1982, os familiares aguardavam uma resposta do Poder Judiciário brasileiro sobre a localiza??o dos corpos dos guerrilheiros, a elucida??o das circunst?ncias das mortes, e a entrega das informa??es que estavam sob guarda das For?as Armadas. Na referida peti??o foi alegado que os fatos ocorridos na Guerrilha do Araguaia constituem viola??es dos direitos garantidos pelos artigos I (Direito à vida, à liberdade, à seguran?a e à integridade da pessoa), XXV (Direito de prote??o contra pris?o arbitrária) e XXVI (Direito a processo regular) da Declara??o Americana de Direitos e Deveres do Homem (doravante denominada “Declara??o Americana” ou “Declara??o”) bem como pelos artigos 4 (Direito à vida), 8 (garantias judiciais), 12 (Liberdade de consciência e religi?o), 13 (Liberdade de pensamento e de express?o), e 25 (Prote??o judicial) conjugados com o artigo 1(1) (obriga??o de respeitar direitos) da Conven??o Americana de Direitos Humanos (CORTEIDH, 2001). Durante o tr?mite ante a Comiss?o, as organiza??es postulantes – CEJIL, Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM-RJ) e a Comiss?o de Familiares de Mortos e Desaparecidos de S?o Paulo (CFMDP-SP) identificaram, além dos aspectos referentes à nega??o da verdade e justi?a, obstáculos como, à falta de devida diligência nas poucas investiga??es n?o penais realizadas, a n?o colabora??o das For?as Armadas e as medidas administrativas e legislativas que impediram o acesso às informa??es, gerando um efeito direto nas medidas estatais para esclarecer a verdade e localizar os restos mortais dos desaparecidos (AFONSO; ROCHA, 2009). Em 20 de maio de 1996 a Comiss?o ainda recebeu mais duas novas informa??es mediante comunica??o dos peticionários correspondentes à cria??o da Comiss?o de Mortos e Desaparecidos Políticos no qual o Estado brasileiro passou a reconhecer a responsabilidade pelos desaparecimentos provocados entre setembro de 1961 e agosto de 1979 e, a produ??o de várias matérias jornalísticas que identificaram alguns locais de sepultamento dos corpos dos guerrilheiros. Em 06 de mar?o de 2001, a Comiss?o Interamericana expediu o relatório de admissibilidade n° 33/01, e após exaustivo processamento perante a Comiss?o foi emitido o Relatório de Mérito 91/2008, nos termos do art. 50 da Conven??o, contendo determinadas recomenda??es ao Estado brasileiro. A Comiss?o Interamericana concluiu, que o Estado brasileiro deteve arbitrariamente, torturou e desapareceu os membros do PCdoB e os camponeses listados no parágrafo 94 deste Relatório. Além disso, a CIDH conclui[u] que, em virtude da Lei 6.683/79 (Lei de Anistia), promulgada pelo governo militar do Brasil, o Estado n?o levou a cabo nenhuma investiga??o penal para julgar e sancionar os responsáveis por estes desaparecimentos for?ados; que os recursos judiciais de natureza civil com vistas a obter informa??o sobre os fatos n?o foram efetivos para garantir aos familiares dos desaparecidos o acesso à informa??o sobre a Guerrilha do Araguaia; que as medidas legislativas e administrativas adotadas pelo Estado restringiram indevidamente o direito ao acesso à informa??o desses familiares; e que o desaparecimento for?ado das vítimas, a impunidade dos seus responsáveis, e a falta de acesso à justi?a, à verdade e à informa??o afetaram negativamente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos (COMISS?O INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2009, p. 7). O Brasil foi notificado em 21 de novembro de 2008 sendo outorgado o prazo de dois meses para que o Estado informasse sobre as a??es executadas a fim de implementar as recomenda??es da Comiss?o. Diante da falta de uma implementa??o satisfatória pelo Estado brasileiro, em 26 de mar?o de 2009, conforme o disposto nos artigos 51 e 62 da Conven??o Americana, a Comiss?o Interamericana de Direitos Humanos submeteu o caso à jurisdi??o da Corte Interamericana, com o fim de for?ar o Estado brasileiro a adotar medidas de repara??o – observa-se que a Comiss?o Interamericana é um órg?o consultivo e a Corte Interamericana detém competência consultiva e jurisdicional. Para a Comiss?o, o Brasil deve responder pela deten??o arbitrária, tortura e desaparecimento for?ado de setenta pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e camponeses da regi?o do Araguaia enfatizando que esta seria “uma oportunidade importante para consolidar a jurisprudência interamericana sobre as leis de anistia com rela??o aos desaparecimentos for?ados e à execu??o extrajudicial e a consequente obriga??o dos Estados de dar a conhecer a verdade à sociedade e investigar, processar e punir as graves viola??es de direitos humanos” (CORTEIDH, 2010, p. 3). Na fase processual, o Estado brasileiro exerceu o seu direito de defesa alegando perante a Corte Interamericana três exce??es preliminares: a) incompetência da Corte para examinar supostas viola??es que teriam ocorrido antes da competência contenciosa do Tribunal, ou seja, fatos anteriores a 10 de dezembro de 1998; b) falta de esgotamento dos recursos internos e; c) falta de interesse processual da Comiss?o e dos representantes. Ainda em audiência pública alegou como exce??o preliminar a regra da quarta instancia com rela??o a um fato que qualificou como superveniente. Todas as alega??es foram indeferidas pela Corte Interamericana. Quanto à alega??o de ausência de jurisdi??o da Corte para os fatos anteriores a 10 de dezembro de 1998, a Corte considerou que em respeito ao princípio da irretroatividade a Corte interamericana somente pode analisar os fatos ocorridos após o respectivo reconhecimento pelo Estado da sua jurisdi??o. Porém, conforme jurisprudência consolidada, no caso de atos de caráter contínuo ou permanente a sua competência para julgar prevalece na medida em que estes atos perduram durante todo o tempo em que o fato continua. Assim, a Corte decidiu que poderia analisar todos os fatos e omiss?es ocorridos após 10 de dezembro de 1998, ou seja, a falta de investiga??o, julgamento e san??o das pessoas responsáveis pelos desaparecimentos for?ados e execu??o extrajudicial, a falta de efetividade dos recursos judiciais de caráter civil para obter informa??es sobre os fatos, as restri??es ao direito de acesso à informa??o e o sofrimento dos familiares. Quanto à suposta falta de esgotamento dos recursos internos – requisito essencial para propor uma a??o perante a comunidade internacional – o Estado brasileiro teve a oportunidade de ter alegado a suposta falta de esgotamento dos recursos internos na etapa de admissibilidade do procedimento perante a Comiss?o, porém, as alega??es brasileiras relativas à Argui??o de Descumprimento, à A??o Civil Pública, à possibilidade de interposi??o de uma a??o penal subsidiária e às diversas iniciativas de repara??o, foram expostas pelo Brasil somente na fase de Contesta??o perante a Corte (MAZZUOLI, 2011) contrariando o entendimento consolidado de que n?o é tarefa da Corte, e nem da Comiss?o, identificar ex officio quais s?o os recursos internos a serem esgotados. Quanto à falta de interesse processual a Corte se manifestou afirmando que a “responsabilidade internacional do Estado se origina imediatamente após ter sido cometido um ato ilícito segundo o Direito Internacional, e que a disposi??o de reparar esse ato no plano interno n?o impede a Comiss?o ou Corte de conhecer um caso” (CORTEIDH, 2010, p. 14). O Tribunal considerou, portanto, que as a??es que o Estado afirmou que adotou para reparar as supostas viola??es cometidas no presente caso, ou evitar sua repeti??o n?o têm efeito sobre o exercício da competência da Corte para dele conhecer. Em rela??o à regra da “quarta inst?ncia”, a Corte estabeleceu que possui uma clara doutrina demonstrando que a mesma n?o é um tribunal de apela??es e nem uma quarta inst?ncia. A sua legitima??o encontra-se na revis?o de supostos erros de fato ou de direito cometidos pelos tribunais nacionais. Deste modo, a Corte afirmou que a demanda apresentada pela Comiss?o Interamericana “n?o pretende revisar a senten?a do Supremo Tribunal Federal”, mas sim, estabelecer se “o Estado violou determinadas obriga??es internacionais dispostas em diversos preceitos da Conven??o Americana, em prejuízo das supostas vítimas”. Para a Corte, “o esclarecimento quanto à viola??o ou n?o, pelo Estado, de suas obriga??es internacionais” pode acarretar no exame de processos internos, inclusive das decis?es dos Tribunais Superiores. Neste sentido, a Corte n?o pretende realizar o controle de constitucionalidade, mas sim, realizar o controle de convencionalidade, analisando a incompatibilidade das leis nacionais com as “obriga??es internacionais do Brasil contidas na Conven??o Americana” (CORTEIDH, 2010, p. 20). A condena??o do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos foi proferida em 24 de novembro de 2010 decidindo que: O Estado é responsável pelo desaparecimento for?ado e, portanto, pela viola??o dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Conven??o Americana sobre Direitos Humanos, em rela??o com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas indicadas no parágrafo 125 da presente Senten?a, em conformidade com o exposto nos parágrafos 101 a 125 da mesma (CORTEIDH, 2010, p. 113). Seguindo os seus precedentes, tais como o caso Castillo Páez versus Peru, o caso Bairro Altos versus Peru, a caso Almonacid Arellano e outros versus Chile, e o caso La Cantuta versus Peru, a Corte Interamericana condenou duramente o Brasil. A senten?a prolatada, por unanimidade, decidiu: a) Viola??o ao direito à integridade pessoal dos familiares das vítimasA Corte ainda decidiu que o Estado foi responsável pela viola??o do direito à integridade pessoal previsto no art. 5.1 da Conven??o em prejuízo dos familiares das vítimas. A Corte afirmou que se pode presumir um dano à integridade psíquica e moral dos familiares diretos de vítimas de certas viola??es de direitos humanos, aplicando uma presun??o juris tantum a respeito de m?es e pais, filhas e filhos, esposos e esposas, companheiros e companheiras permanentes. b) A responsabilidade do Estado pelo desaparecimento for?ado: uma viola??o permanente: A Corte reiterou que o desaparecimento for?ado de pessoas tem caráter permanente e persiste enquanto n?o se conhe?a o paradeiro das vítimas ou que seja encontrado os seus restos mortais. A omiss?o do Brasil referente a esses fatos consistiu em uma infra??o ao dever de preven??o de viola??es dos direitos à integridade pessoal e à vida, estabelecidos nos artigos 5° (direito à integridade pessoal) e 4° (direito à vida) da Conven??o Americana, ainda na hipótese em que os atos de tortura ou de priva??o da vida destas pessoas n?o possam ser demonstrados no caso concreto. A Corte ainda concluiu que o desaparecimento for?ado também implica a vulnera??o do direito ao reconhecimento da personalidade jurídica (art. 3° da Conven??o) e da liberdade pessoal (art. 7° da Conven??o), uma vez que o desaparecimento busca n?o somente uma das mais graves formas de subtra??o de uma pessoa de todo o ?mbito do ordenamento jurídico, mas também negar sua existência e deixá-la em uma espécie de limbo ou situa??o de indetermina??o jurídica perante a sociedade e o Estado. c) Supera??o das alega??es de prescri??o e a falta de tipifica??o penal prévia:Os representantes expuseram para a Corte que a Lei de Anistia, alega??es de prescri??o e a falta de tipifica??o penal, s?o três obstáculos legais à investiga??o e à puni??o dos fatos ocorridos durante a ditadura militar. Neste sentido, a Corte indicou que os atos de caráter continuo ou permanente, como os desaparecimentos for?ados, perduram durante todo o tempo em que o fato continua, sendo este entendimento reconhecido reiteradamente pelo Direito Internacional de Direitos Humanos. A falta de tipifica??o desse crime viola o art. 2° da Conven??o impondo ao Estado a obriga??o de adotar as providencias de toda índole para que ninguém sejam privado da prote??o judicial e do exercício do direito. Deste modo, o principio da legalidade n?o deve prejudicar o julgamento e a san??o dos atos considerados delitos pela comunidade internacional. d) Viola??o ao direito à verdade:A Corte condenou o Brasil pela viola??o do direito da liberdade de pensamento e de express?o previsto no art. 13 da Conven??o, pois, foi negado aos familiares das vítimas o direito de buscar a verdade quanto aos fatos ocorridos durante a Guerrilha do Araguaia. Deste modo a Corte Interamericana ressaltou a import?ncia da institui??o e do funcionamento de uma Comiss?o da Verdade integrando o conjunto de medidas de promo??o do acesso à informa??o e revela??o da verdade. e) A nega??o da anistia a todos os agentes de repress?o da ditadura militar: A Corte considerou que as disposi??es da Lei de Anistia de 1979 que impedem a investiga??o e san??o de graves viola??es de direitos humanos s?o incompatíveis com a Conven??o Americana de Direitos Humanos. ? de entendimento da Corte que, Quanto à alega??o das partes a respeito de que se tratou de uma anistia, uma auto-anistia ou um “acordo político”, a Corte observa, como se depreende do critério reiterado no presente caso (par. 171 supra), que a incompatibilidade em rela??o à Conven??o inclui as anistias de graves viola??es de direitos humanos e n?o se restringe somente às denominadas “autoanistias”. Além disso, como foi destacado anteriormente, o Tribunal, mais que ao processo de ado??o e à autoridade que emitiu a Lei de Anistia, se atém à sua ratio legis: deixar impunes graves viola??es ao direito internacional cometidas pelo regime militar. 252 A incompatibilidade das leis de anistia com a Conven??o Americana nos casos de graves viola??es de direitos humanos n?o deriva de uma quest?o formal, como sua origem, mas sim do aspecto material na medida em que violam direitos consagrados nos artigos 8 e 25, em rela??o com os artigos 1.1. e 2 da Conven??o (CORTEIDH, 2010, p. 65). Após a senten?a de improcedência do STF na ADPF 153 sobre a invalidade da interpreta??o da Lei de Anistia, a Corte Interamericana afirmou que o Brasil é responsável de forma permanente pelos desaparecimentos for?ados executados durante a ditadura militar. A Corte no exercício do controle de convencionalidade declarou que a Lei de Anistia carece de efeitos jurídicos em rela??o aos crimes de graves viola??es de direitos humanos, n?o podendo continuar representando um obstáculo para que os fatos deste período sejam devidamente investigados, processados e julgados pelo ordenamento jurídico nacional. Deste modo, a Corte ressaltou a import?ncia do Estado brasileiro em adequar o seu ordenamento jurídico nacional, retirando-se da condi??o de ilegalidade frente ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, afirmando a import?ncia da prevalência desses direitos frente às tentativas de perpetuar a impunidade dos crimes cometidos. Diante do que foi exposto, denota-se um aparente conflito entre os entendimentos do STF e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Logo anunciada à senten?a, ressoaram na mídia algumas declara??es dos Ministros do STF rejeitando-a, afirmando que a decis?o da Corte Interamericana de Direitos Humanos somente valeria “no plano moral”, “só no plano internacional”, “só no campo de convencionalidade”, “só no plano político” (MAZZUOLI, 2011, p. 52). Segundo afirma Mazzuoli (2011, p. 52) tais declara??es dos Ministros do STF encontram-se equivocadas e se explicam em raz?o da tradicional conivência de setores do Judiciário Brasileiro com a chamada “legalidade autoritária”. Tais declara??es partem da premissa de um ordenamento jurídico dualista, onde o direito interno n?o possui nenhuma rela??o com a ordem internacional. Tal entendimento tem sido recha?ado pela comunidade internacional, sobretudo, a partir da entrada em vigor da Conven??o de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, que adota nitidamente o sistema monista internacionalista. Para esta teoria o direito é uno e indivisível e conforme previs?o do Artigo 27 da Conven??o de Viena “uma parte n?o pode invocar as disposi??es de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”. Desta forma, quando um Estado é parte de tratados internacionais, cabe aos três poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – observar o seu efetivo cumprimento n?o podendo se escusar de tal obriga??o (MAZZUOLI, 2011). O cumprimento da senten?a da Corte Interamericana proferida no Caso Gomes Lund poderá representar um grande passo para a concretiza??o da justi?a de transi??o brasileira. Ineditamente o cumprimento desta senten?a representa uma a??o conjunta entre os três poderes do Estado, que dever?o mover esfor?os para adequar nosso ordenamento e efetivar a promo??o dos direitos humanos. Esta senten?a representa muito além da busca pela efetiva??o da justi?a, representa o nosso interesse de que tais atrocidades nunca mais aconte?am em nossa sociedade. 2.3 UM DI?LOGO POSS?VEL ENTRE AS DECIS?ES DO STF E DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS? Como podemos constatar as decis?es proferidas pelo STF e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos seguem em lados opostos. De um lado, o STF no exercício do controle de constitucionalidade decidiu que a interpreta??o da Lei de Anistia é constitucional e, de outro, a Corte Interamericana exercendo o controle de convencionalidade afirmou que leis de autoanistia s?o inválidas na medida em que promovem a impunidade das graves viola??es de direitos humanos. Foi dito também, que o cumprimento da senten?a Gomes Lund é uma obriga??o do Estado brasileiro, cabendo aos três poderes dar cumprimento das obriga??es de fazer contidas na respectiva senten?a e ao Ministério Público a tarefa de atuar no caso de inércia desses poderes. Ao Poder Executivo incumbe boa parte das obriga??es de fazer impostas na senten?a. Recai no Ministério da Justi?a o dever de investigar os desaparecimentos for?ados e outros atos de viola??o de direitos humanos cometidos pelos agentes da repress?o, assim, deve o Poder Executivo formar uma equipe de trabalho, supervisionado pelo Ministério Público Federal, para apurar os fatos. Ainda, deve o Poder Executivo ocupar-se da entrega dos arquivos e documentos da ditadura, para que os restos mortais dos desaparecidos possam ser encontrados e para que possamos saber o que aconteceu durante este período. Também incumbe a este órg?o a disponibilidade do tratamento médico adequado aos familiares das vítimas, a publica??o da senten?a da corte e a edi??o de um livro eletr?nico, dando publicidade aos fatos ocorridos (CARVALHO RAMOS, 2011). Ao Poder Legislativo cabe a aprova??o de uma lei instituindo a Comiss?o da Verdade, a fim de promover a apura??o e esclarecimento público das graves viola??es de direitos humanos praticados sistematicamente pelo Estado, e ainda, a tipifica??o do delito de desaparecimento for?ado. E ao Poder Judiciário cabe dar o cumprimento integral da senten?a da Corte Interamericana negando as tentativas dos autores das graves viola??es de direitos humanos de interromper tais esfor?os, atuando em conson?ncia com a jurisprudência internacional sobre direitos humanos (CARVALHO RAMOS, 2011).Apesar de contrárias as decis?es, ambas s?o plenamente válidas no ordenamento jurídico brasileiro. Diante disso, como devem atuar os agentes nacionais encarregados de dar cumprimento à condena??o da Corte? Primeiramente incumbe destacar que a ades?o do Brasil à Conven??o Americana de Direitos Humanos e o reconhecimento da jurisdi??o obrigatória da Corte Interamericana foi um ato soberano e voluntário do Estado brasileiro que, através da Presidência da República e do Congresso Nacional, decidiu integrar o sistema internacional de prote??o aos direitos humanos. Incumbe adicionar que tal decis?o n?o decorreu apenas de uma vontade política em se adequar aos par?metros internacionais de prote??o a esses direitos, mas também, do cumprimento de uma exigência prevista na própria Constitui??o Federal de 1988. Conforme afirma Weichert (2011) a aceita??o da jurisdi??o e da competência da Corte Interamericana concretiza seguintes preceitos constitucionais: art. 4°, II ( A República Federativa rege-se nas suas rela??es internacionais pelo principio da prevalência dos direitos humanos); art. 5° §2° (Os direitos e garantias expressos nesta Constitui??o n?o excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacional em que o Brasil seja parte); e o art. 7° dos Atos das Disposi??es Constitucionais Transitórias (O Brasil propugnará pela forma??o de um tribunal internacional de direitos humanos). O ato soberano do Estado brasileiro em aceitar a jurisdi??o da Corte Interamericana, limitando a competência do STF, n?o afronta a Constitui??o, mas sim, dá efetivo cumprimento ao que nela está prevista. A Corte Interamericana - órg?o máximo para interpreta??o da Conven??o Interamericana de Direitos Humanos – em sua competência contenciosa age de forma complementar ao ordenamento nacional quando da sua transgress?o ou omiss?o quanto às normas contidas na Conven??o. Deste modo, a sua atividade ocorre na falta do amparo do Estado à prote??o dos direitos humanos. No exercício da sua jurisdi??o, a Corte n?o revogou a decis?o proferida pelo STF na ADPF 153. O que se verificou foi à falta do exercício do controle de convencionalidade pelo respectivo tribunal, desconsiderando as obriga??es internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos arts. 8° (garantias judiciais) e 25 (prote??o judicial) da Conven??o Americana, em rela??o com os arts. 1.1 (obriga??o de respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos) e 2 (dever de adotar as disposi??es quanto o exercício dos direitos e liberdades) do mesmo instrumento. Na sua analise verificou-se que a decis?o proferida pelo STF na ADPF 153 n?o estava em conson?ncia com a jurisprudência internacional que reiteradamente vem afirmando que as leis de autoanistia promovem a impunidade, portanto, devem ser invalidadas e carecem de valor jurídico. Quando um Estado se recusa a dar cumprimento a uma senten?a da Corte Interamericana após ter aceitado voluntariamente a sua jurisdi??o, está atuando contrariamente ao princípio da boa fé. Neste sentido o Tratado de Viena (1969) é claro ao afirmar que uma parte n?o pode invocar as disposi??es de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado. O caminho para que o STF possa recusar a autoridade da Corte Interamericana seria pela existência de algum vício na constitucionalidade dos atos de ratifica??o, aprova??o e promulga??o da Conven??o e da aceita??o da jurisdi??o internacional no plano interno. Ou seja, o STF teria que demonstrar que o Presidente da República n?o possuía competência para ratificar e promulgar a Conven??o e tampouco o Congresso Nacional para aprová-la, o que n?o se verificou, pois o Brasil seguiu todos os requisitos constitucionais (WEICHERT, 2011). Ainda mais, para sustentar que a jurisdi??o da Corte Interamericana n?o é obrigatória, teria o Brasil que denunciar integralmente a Conven??o Americana retirando o país do sistema interamericano de direitos humanos, o que é geraria um enorme retrocesso. Mesmo com a denúncia, o Brasil ainda continuaria obrigado ao cumprimento das senten?as já proferidas pela Corte Interamericana por for?a da previs?o do art. 78 da Conven??o, e ainda, responderia por todas as senten?as de casos propostos por viola??es ocorridas até um ano após a data da denuncia (WEICHERT, 2011). Conforme entendimento de Carvalho Ramos, Do ponto de vista do direito brasileiro, entendemos que a denuncia da Conven??o seria, por sua vez, inconstitucional. De fato, a Conven??o tem a natureza de norma materialmente constitucional. Logo, seria aplicável a proibi??o do retrocesso cuja essência é prevista no art. 60, §4°, IV, da própria Constitui??o: n?o se admite sequer emenda constitucional que tenda a abolir os direitos e garantias individuais. Assim, o efeito cliquet ou proibi??o do retrocesso impediria que a denuncia brasileira (em consequência natural da postura negacionista) pudesse ser feita sem que fosse gerado verdadeiro trauma na coerência da interpreta??o dos direitos humanos no Brasil (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 216). Na mesma linha Mazzuoli (2011, p. 61-65) afirma que mesmo que a denuncia seja tecnicamente possível, “esta seria totalmente ineficaz sob o aspecto pratico, uma vez que seus efeitos continuam operando no nosso ordenamento jurídico, pelo fato de eles serem clausulas pétreas do texto constitucional”. Desta forma, com o ato de denuncia o Estado passa a n?o ter responsabilidade apenas no plano internacional, mas no plano nacional nada muda “uma vez que eles já se encontrar?o petrificados no nosso sistema de direitos e garantias”. Um caminho possível a ser seguido para solucionar o conflito aparente desses dois entendimentos pode ser encontrado na proposta de Carvalho Ramos (2011). Segundo o professor de direito internacional da Universidade de S?o Paulo (USP) o conflito entre as decis?es é apenas aparente podendo ser solucionado através da hermenêutica. Em sua teoria o autor prop?e o uso de dois critérios para a análise. O primeiro seria um critério preventivo o qual o autor chamou de “diálogo das Cortes ou fertiliza??o cruzada”. O autor entende que o STF ao tomar as suas decis?es deve observar a jurisprudência da Corte Internacional uma vez que ambas cumprem a mesma miss?o de assegurar o respeito à dignidade humana e aos direitos fundamentais, evitando assim, o surgimento de divergências entre a jurisprudência nacional e a internacional. Deste modo, o autor sugere a instala??o de foro ou de uma secretaria permanente “unindo os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, além do Ministério Público Federal, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Conselhos nacionais do Ministério Público e da Justi?a” para a sua implementa??o (CARVALHO RAMOS, 2009, p. 283). No caso Gomes Lund n?o é mais possível usar este critério porque a divergência já existe. Deste modo, passamos ao segundo critério o qual o autor chamou de “Teoria do Duplo Controle ou duplo crivo”. De acordo com este critério um ato interno para ser considerado válido, teria que passar por um duplo controle, ou seja, é reconhecida a atua??o em separado do controle de constitucionalidade e do controle de convencionalidade. Assim, para que um ato possa ser considerado válido este precisaria passar pelo controle de constitucionalidade realizado de forma concentrada pelo STF e também pelo controle de convencionalidade da Corte Interamericana. Para o autor esta separa??o de atua??es possibilita dirimir o conflito aparente entre a decis?o do STF e da Corte Interamericana. Complementando essa ideia, Weichert (2011) afirma que para que os órg?os internos de persecu??o penal possam discernir qual das decis?es seguir, estes devem observar os limites da competência de cada um dos Tribunais. Assim, quando estivermos diante de viola??es de direitos humanos a decis?o a ser seguida deve ser o da Corte Internacional dada sua especial competência. Para os delitos que n?o se refiram aos direitos humanos, prevalece o efeito vinculante do julgamento da ADPF. Com rela??o à anistia, a própria Corte Interamericana n?o considerou inválida a Lei de Anistia para “qualquer viola??o de direitos humanos”, mas sim, para aquelas consideradas “graves viola??es de direitos humanos” (WEICHERT, 2011, p. 230). Assim, quando os fatos se tratarem, por exemplo, de atos de tortura, execu??o sumária ou desaparecimento for?ado, o entendimento da Corte Interamericana deve ser observado. Esta é a posi??o institucional que vem sendo adotada pelo Ministério Público Federal (MPF) para dar cumprimento à senten?a da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund. Conforme relatório elaborado em 2017 pela institui??o sobre as atividades de persecu??o penal desenvolvido pelo MPF em matéria de graves viola??es de direitos humanos cometidos por agentes do Estado durante o regime de exce??o a afirma??o é de que no caso da Lei de Anistia o STF efetuou o controle de constitucionalidade desta norma, n?o se pronunciando a respeito da compatibilidade da causa de exclus?o da punibilidade com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil (BRASIL. MINISTERIO PUBLICO FEDERAL, 2017). Isso porque, conforme entendimento de Carvalho Ramos (2011), o controle de convencionalidade n?o era objeto da a??o da análise, O STF, que e o guardi?o da Constitui??o [...] exerce o controle de constitucionalidade. Por exemplo, na ADPF 153, a maioria dos votos decidiu que a anistia aos agentes da ditadura militar e a interpreta??o adequada da Lei de Anistia e esse formato amplo de anistia e que foi recepcionado pela nova ordem constitucional. De outro lado, a Corte de San Jose e a guardi? da Conven??o Americana de Direitos Humanos e dos tratados de direitos humanos que possam ser conexos. Exerce, ent?o, o controle de convencionalidade. Para a Corte Interamericana, a Lei de Anistia n?o e passível de ser invocada pelos agentes da ditadura. Mais: sequer as alega??es de prescri??o, bis in idem e irretroatividade da lei penal gravior merecem acolhida. Com base nessa separa??o vê-se que e possível dirimir o conflito aparente entre uma decis?o do STF e da Corte de San Jose. [...] No caso da ADPF 153, houve o controle de constitucionalidade. No caso Gomes Lund, houve o controle de convencionalidade. A anistia aos agentes da ditadura, para subsistir, deveria ter sobrevivido intacta aos dois controles, mas só passou (com votos contrários, diga-se) por um, o controle de constitucionalidade. Foi destrocada no controle de convencionalidade. Por sua vez, as teses defensivas de prescri??o, legalidade penal estrita etc., também deveriam ter obtido a anuência dos dois controles. Como tais teses defensivas n?o convenceram o controle de convencionalidade e dada a aceita??o constitucional da internacionaliza??o dos direitos humanos, n?o podem ser aplicadas internamente (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 217-218). Assim, este autor destaca que n?o cabe alegar coisa julgada ou efeito vinculante para obstar as a??es penais que visam cumprir a senten?a da Corte Interamericana justificando a n?o rescis?o ou nulidade da decis?o da ADPF 153. Segundo o “Documento 1” de 21 de mar?o de 2011, homologado pelos membros da 2° C?mara de Coordena??o e Revis?o do MPF, para n?o cumprir as obriga??es de persecu??o penal seria necessário suscitar no STF a declara??o de inconstitucionalidade do reconhecimento da jurisdi??o da Corte ou pedir interpreta??o conforme à Constitui??o, objetivando de definir se as senten?as da Corte só devem ser cumpridas se estiverem alinhadas com a interpreta??o do STF (BRASIL. MINISTERIO PUBLICO FEDERAL, 2017). O que geraria o esvaziamento da proposta de ades?o à jurisdi??o da Corte Interamericana, pois suas senten?as tornar-se-iam meras confirma??es, caso estivesse em conson?ncia com o entendimento do tribunal nacional, ou seriam recha?adas caso fossem contrárias, restando enfraquecidas as propostas em torno da prote??o aos direitos humanos. A proposta de uma Corte Internacional surgiu justamente para evitar que os tribunais nacionais atuassem distorcendo a aplica??o dos tratados internacionais de direitos humanos criando uma “Conven??o Americana de Direitos Humanos paralela” (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 176). Deste modo é importante que as institui??es insistam no cumprimento da senten?a proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos limites de sua respectiva aplicabilidade, buscando dar cumprimento efetividade ao compromisso assumido pelo Brasil na busca da adequa??o do ordenamento jurídico nacional ao que consta na jurisprudência internacional sobre direitos humanos. 3 A CRIA??O DE COMISS?ES DA VERDADE PARA APURA??O DE GRAVES VIOLA??ES DE DIREITOS HUMANOS Apesar do primeiro exemplo da institui??o de uma Comiss?o da Verdade ter ocorrida na Uganda através da cria??o da “Comiss?o para Investiga??o de Desaparecimento de Pessoas” em 1974, o desenvolvimento do seu modelo ocorreu principalmente na América Latina na década de 1980 após as sucessivas restaura??es democráticas surgidas com a queda dos regimes militares. A busca pela verdade tornou-se essencial para “fomentar o desenvolvimento da democracia e refor?ar o principio republicano” (SAMPAIO; ALMEIDA, 2009, p.250). Neste sentido passou a ser entendido que verdade n?o deveria ficar restrita apenas às vítimas e aos seus familiares. Construiu-se o fomento do “direito à verdade” no qual a sociedade passa a ter acesso aos verdadeiros fatos ocorridos durante os períodos de exce??o visando evitar a repeti??o dessas praticas sistemáticas contra os direitos humanos pelas gera??es futuras. As Comiss?es da Verdade s?o organismos oficiais temporários criados pelo governo nacional para promover a apura??o e esclarecimento público das graves viola??es de direitos humanos praticados sistematicamente pelo Estado durante um período específico. Esses mecanismos oficiais de apura??o de graves viola??es de direitos humanos s?o normalmente aplicados em países emergentes de períodos de exce??o ou guerras civis (WEICHERT, 2011). Constituem um mecanismo importante para a constru??o da memória e da verdade trazendo fatos que até ent?o eram desconhecidos ou eram divulgados conforme vers?es oficiais que n?o condiziam com a verdade. Desde modo as Comiss?es da Verdade possibilitam oferecer uma perspectiva histórica ampla no qual elaboram relatórios a partir de documentos, testemunhos. Conforme exposto no relatório da Comiss?o Nacional da Verdade: Para o exercício de seu mandato, uma comiss?o da verdade deve realizar diligências nos lugares de interesse para suas investiga??es; promover, perante órg?os competentes, a prote??o de testemunhos; e assegurar a produ??o e conserva??o de provas, cabendo especial aten??o às provas de interesse da Justi?a. Devem ser adotadas medidas técnicas e san??es penais para impedir subtra??o, destrui??o, dissimula??o ou falsifica??o dos arquivos, de modo a evitar a impunidade dos autores das graves viola??es de direitos humanos. Deve ainda ser sublinhada a import?ncia de preserva??o dos arquivos das próprias comiss?es, evidenciando-se as condi??es que regem o acesso e, em caráter excepcional, a determina??o da confidencialidade. No que se refere ao poder de nomea??o dos responsáveis pelas graves viola??es, a comiss?o da verdade deve referir-se a todas as pessoas envolvidas, sejam aquelas que as ordenaram ou as que as cometeram, na condi??o de autores ou cúmplices. Nesse contexto, aos nomeados deve ser conferida a oportunidade de expor sua vers?o dos fatos (BRASIL. COMISS?O NACIONAL DA VERDADE, 2012, p. 33). Deste modo podemos extrair que dentre as atribui??es das Comiss?es da Verdade est?o: receber testemunhos, informa??es e dados; requisitar informa??es e documentos; convocar entrevistas de pessoas que possam saber sobre os fatos; determinar a realiza??o de perícias e diligencias para recuperar informa??es, documentos e dados; promover audiências públicas; e promover parceria com outros órg?os para o intercambio de informa??es, dados e documentos para auxiliar na investiga??o dos fatos. O trabalho de uma Comiss?o da Verdade permite identificar as estruturas da violência, suas ramifica??es nas diversas inst?ncias da sociedade – for?as armadas, polícia, poder judicial, igreja, etc –, entre outros fatores imensos nesta problemática (SALM?N, 2011, p.248). Para tanto os seus membros devem possuir garantias como a inamovibilidade e imunidade durante o mandato, e as vitimas possuem a assistência psicológica e social, sendo-lhes oferecida a op??o de confidencialidade. N?o há uma única maneira de lidar com o passado marcado por graves viola??es enquanto a verdade n?o for totalmente revelada, sendo diversas as formas de express?o do direito à memória e à verdade. Antes que abordarmos sobre a Comiss?o Nacional da Verdade no Brasil, iremos abordar primeiramente sobre a Comiss?o Nacional sobre Pessoas Desaparecidas (CONADEP), criada na Argentina, pois esta foi a primeira comiss?o da verdade da América Latina e seus mecanismos tornaram-se paradigma para outras comiss?es. 3.1 ARGENTINA: LA COMISI?N NACIONAL SOBRE LA DESAPARICI?N DE PERSONAS (CONADEP) A primeira Comiss?o da Verdade estabelecida no Cone Sul foi a La Comisión Nacional Sobre la Desaparición de Personas (CONADEP) com sede no Centro Cultural de San Martin na Cidade de Buenos Aires / Argentina. A CONADEP foi criada através do Decreto 187/83 pelo governo Raúl Alfonsín, em 1983, como parte da política do Estado instituída para esclarecer o passado violento que havia assolado a Argentina. A cria??o da CONADEP foi uma das medidas do presidente Alfonsín para concluir o processo de transi??o política da Argentina atendendo as demandas por verdade e justi?a das vítimas. Dentre as fun??es específicas dessa Comiss?o est?o: a) receber reclama??es/denúncias e provas sobre aqueles eventos e enviá-los imediatamente à justi?a se estiverem relacionadas com os alegados cometimentos de crimes; b) averiguar o destino e paradeiro das pessoas desaparecidas, bem também qualquer outra circunst?ncia relacionada com a sua localiza??o; c) determinar a localiza??o de crian?as raptadas da tutela de seus pais ou guardadores sob alega??o de repress?o ao terrorismo, e fornecer uma interven??o apropriada aos tribunais ou organismos de prote??o à crian?a; d) denunciar à justi?a qualquer tentativa de ocultamento, subtra??o ou destrui??o de provas relacionadas com os direitos que se pretende esclarecer; e) emitir um relatório final com uma explica??o detalhada dos feitos investigados, cento e oitenta (180) dias a partir de sua constitui??o (ARGENTINA. DECRETO LEI 187/83, p. 1). A Comiss?o tinha o poder para requerer ao Poder Executivo, aos seus organismos dependentes, entidades autárquicas e das for?as armadas e de seguran?a, o fornecimento de informa??es, dados e documentos, bem como o acesso a lugares importantes para a elucida??o dos fatos. Ainda ressaltou que os funcionários e os organismos est?o obrigados a atender ao requerimento da Comiss?o quando solicitado. Ernesto Sábato, escritor argentino, foi eleito o presidente da Comiss?o sendo encarregado de enfrentar a tarefa de promover suas atividades. Cinco secretarias foram criadas: 1. Secretaría de Recepcíon de Denuncias; 2. Secretaría de Documentación y Procesamiento; 3. Secretaría de Procedimientos; 4. Secretaria de Asuntos Legales; 5. Secretaria Administrativa. Além desta estrutura ainda as organiza??es de direitos humanos e os organismos internacionais como a Organiza??o das Na??es Unidas (ONU) e Organiza??o dos Estados Americanos (OEA) forneceram recursos humanos e técnicos. Durante o período de um ano a CONADEP realizou audiências públicas, entrevistas e mesas-redondas, contando com forte presen?a da mídia para que seus atos fossem divulgados. Mais de mil e trezentos ofícios foram expedidos, cem entrevistas foram concedidas pelo presidente da Comiss?o, trinta audiências públicas e sessenta coletivas de imprensa (CONADEP, 2013). Em 1984 foi publicado o relatório final Nunca Más, dividido em seis capítulos: I. A a??o repressiva; II. Vítimas; III. O Poder Judiciário durante o período que ocorreu o desaparecimento for?ado de pessoas; IV. Cria??o e Organiza??o da Comiss?o Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas; V. O respaldo legal da repress?o; VI. Recomenda??es e Conclus?es. Durante a investiga??o foi constatado uma metodologia repressiva projetada para produzir sequestros, desaparecimentos e torturas foram sistematicamente aplicados. O relatório afirmou que 62% dos sequestros ocorriam do domicílio da vítima, 24,6% em locais públicos, 7% eram sequestrados no trabalho, 6% sequestrados no local de estudo. Cerca de 600 pessoas foram sequestradas antes do golpe militar de 1976 e que 8960 pessoas encontravam-se desaparecidas desde ent?o. Os sequestros ocorriam em forma de deten??o nos períodos da noite ou ao amanhecer antes que os membros da família pudessem agir. Um grupo entre cinco a seis agentes eram enviados as casas para executar as opera??es, fortemente armados, intimidando tanto as vítimas quanto seus familiares. Crian?as também foram sequestradas e entregues a ado??o. A tortura foi sistematicamente aplicada nos 340 centros de deten??o clandestinos existentes no país, onde faltava comida e as condi??es sanitárias eram precárias (CONADEP, 2013). Apesar desta Comiss?o n?o possuir competência para julgamentos, a investiga??o da CONADEP resultou em provas comprobatórias sobre os crimes de lesa humanidade cometidos durante o regime culminando em diversas a??es judiciais. A Comiss?o foi dissolvida no momento da apresenta??o do relatório final.A partir da iniciativa da CONADEP outras comiss?es da verdade foram instaladas como a do Chile, ?frica do Sul e Peru. 3.2 OUTRAS COMISS?ES: Escolhemos abordar sobre algumas outras comiss?es além da Argentina, como a do Chile, da ?frica do Sul e do Peru, apenas para termos um panorama de como as outras Comiss?es ocorreram depois do caso argentino. Isso n?o quer dizer que só houve essas comiss?es. No mundo nós tivemos comiss?es da verdade na Alemanha, Bolivia, Canadá, Chade, Colombia, Congo, Coreia do Sul, El Salvador, Equador, Estados Unidos, Gana, Granada, Guatelama, Haiti, Ilhas Maurício, Ilhas Salom?o, Indonésia, Iugoslávia, Libéria, Marrocos, Nepal, Nigéria, Panamá, Honduras, Paraguai, Quenia, Ruanda, Serra Leao, Sri Lanka, Timor Leste, Togo, Uganda, Zimbábue. Porém como n?o s?o objeto de nossa pesquisa n?o iremos abordá-las neste trabalho. Chile: Comiss?o da Verdade e Reconcilia??o (Comisión Verdad y Reconciliación, Comisión Rettig e Comisíon Valech)A Comiss?o da Verdade e Reconcilia??o (Comisión Rettig) chilena foi instituída após as elei??es de 1989 apurando os fatos ocorridos durante o regime militar de Augusto Pinochet, através do Decreto Supremo n° 355 de 25 de abril de 1990. O principal objetivo foi esclarecer a verdade sobre as viola??es de direitos humanos cometidos entre 11 de setembro de 1973 e em 11 de mar?o de 1990. Após nove meses, em 8 de fevereiro de 1991, a Comiss?o entregou ao ex-presidente da República, Patricio Aylwin Azócar, o Relatório da Comiss?o Nacional de Verdade e Reconcilia??o. Foram recebidas 3550 reclama??es dos quais 2296 casos foram considerados aceitos. Em 2003, outra Comiss?o foi instituída no governo do Presidente Ricardo Lagos Escobar, a Comiss?o Nacional sobre Pris?o Política e Tortura (Comisíon Valech). A Comiss?o ouviu trinta e cinco mil testemunhos e anunciou em 2004 vinte e oito mil casos de vítimas oficiais. O relatório elaborado por esta Comiss?o restou em dez capítulos: 1. Apresenta??o; 2. Funcionamento da Comiss?o; 3. Contexto; 4. Pris?o política e Tortura; 5. Métodos de Tortura; 6. Locais de deten??o; 7. Perfil das vitimas; 8. Consequencias da pris?o e da tortura; 9. Propostas de Repara??o; 10. Palavras finais. Em 2011, durante o governo do Presidente Sebastián Pi?era a Comiss?o Nacional sobre Pris?o Política e Tortura (Comisíon Valech) entregou mais um relatório que atualizou o de 2004, acrescentando nove mil e oitocentas vítimas oficiais. Deste modo o número de vítimas oficiais do período da ditadura de Pinochet para quarenta mil, duzentos e oitenta pessoas. Africa do Sul: Comiss?o da Verdade e Reconcilia??o (Truth & Reconciliation Commission)O primeiro passo para a instaura??o do processo de justi?a de transi??o na ?frica do Sul ocorreu em 1992 com a realiza??o do plebiscito que contou apenas com a participa??o de pessoas brancas. Este aprovou a revoga??o das leis raciais. Em 1994 ocorreram as primeiras elei??es multirraciais elegendo Nelson Mandela. Duas conferências foram realizadas após as elei??es. A primeira discutia o dossiê Dealing with the past: truth and reconciliations in South Africa onde especialistas do leste europeu e da America Latina compartilharam suas experiências. Na segunda conferência aconteceu após a instaura??o de inquéritos de investiga??o sobre abusos de direitos humanos cometidos pelo Congresso Nacional nos campos de exílios (PEREIRA, 2016). Neste momento se estabeleceu que a verdade iria ser apurada através da Comiss?o da Verdade e Reconcilia??o (Truth & Reconciliation Commission) Com o fim do regime de apartheid Nelson Mandela, em 1995, instituiu a Comiss?o da Verdade e Reconcilia??o (Truth & Reconciliation Commission). A Comiss?o serviu como principal instrumento transicional africano adotando o modelo restaurativo, ao invés do modelo retributivo ou punitivo, como meio para buscar a verdade. Este modelo de Comiss?o apresentou características diversas daquelas do ?mbito latino-americano porque enfatizou a reestrutura??o social e deixou as puni??es em segundo plano. Em suas atividades foram ouvidas vinte e três mil vítimas e testemunhas sobre o período compreendido entre 1960 e 1994. No processo de busca pela verdade prestigiou-se a concess?o de anistia individual para aqueles que confessassem todos seus crimes políticos, rompendo com a forma clássica de anistia generalizada (PEREIRA, 2016). Essa comiss?o perdurou até 1998 resultando em um relatório de sete volumes de testemunhos, fatos e verdades.Peru: Comiss?o de Verdade e Reconcilia??o (La Comisión de La Verdad y Reconciliación) Em 1995 foram promulgadas leis de autoanistia no Peru. Com a queda do governo de Alberto Fujimori, em 2000, o governo de transi??o presidido por Valentín Paniagua foi instalado. A Comiss?o de Verdade e Reconcilia??o (La Comisión de La Verdad y Reconciliación) foi criada em 2001 por meio do Decreto Supremo 065/2001-PCM. Seu objetivo foi investigar e fazer publica verdade sobre vinte anos de violência política. Apesar da luta armada no Peru ter ocorrido desde 1980, a Comiss?o de Verdade e Reconcilia??o considerou como período de exce??o os anos de 1992 até 2000, tempo em que as institui??es foram dissolvidas e o governo comandado via decretos-lei. No mesmo ano a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou o caso Barrios Vs. Peru, afirmando que leis de autoanistia n?o possuem efeito. Essa senten?a gerou a condena??o de Fujimori em 2009. Os trabalhos da Comiss?o da Verdade e Reconcilia??o durou pouco mais de dois anos e foi acompanhado por organiza??es de direitos humanos, vítimas e demais setores da sociedade (MACHADO, 2007). Em 2003 foi lan?ado o Informe Final constando nove Tomos: Tomo I: Primeira parte: O processo, os direitos e as vítimas; Tomo II: Os atores do conflito; Tomo III: Os atores políticos e Institucionais. As organiza??es sociais; Tomo IV: Os cenários da violência; Tomo V: Historias que representam a violência; Tomo VI: Os crimes e as viola??es de Direitos Humanos; Tomo VII: Os investigados pela Comiss?o da Verdade e Reconcilia??o; Tomo VIII: Os fatores que tornaram a violência possível; Tomo IX: Recomenda??es da Comiss?o. Nesse informe foram constatadas mais de sessenta e nove mil vítimas oficiais. Foram investigados casos de assassinatos e massacres, desaparecimentos for?ados, execu??es arbitrárias, tortura e tratamentos crués, desumanos ou degradantes, violência sexual contra a mulher, viola??es do devido processo legal, sequestros, violências contra crian?as e, viola??es de direitos coletivos. O Informe Final trabalhou com o tema de gênero, o que era incomum em países Latino-americanos.3.3 A CRIA??O DA COMISS?O NACIONAL DA VERDADE NO BRASIL E SUA ATUA??O No ano de 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu no caso Gomes Lund que a cria??o de uma Comiss?o de Verdade no Brasil – no qual o processo de instaura??o já estava em andamento através Projeto de Lei 7.376/2010 – integra o conjunto das medidas de promo??o do acesso à informa??o e revela??o da verdade (essenciais no aprimoramento das institui??es de seguran?a pública e para a contribui??o do principio da n?o repeti??o) formando um importante instrumento na efetiva??o da Justi?a de Transi??o. Neste sentido a Corte Interamericana de Direitos Humanos se manifestou sobre a comiss?o da verdade: 297. Quanto à cria??o de uma Comiss?o da Verdade, a Corte considera que se trata de um mecanismo importante, entre outros aspectos, para cumprir a obriga??o do Estado de garantir o direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido. Com efeito, o estabelecimento de uma Comiss?o da Verdade, dependendo do objeto, do procedimento, da estrutura e da finalidade de seu mandato, pode contribuir para a constru??o e preserva??o da memória histórica, o esclarecimento de fatos e a determina??o de responsabilidades institucionais, sociais e políticas em determinados Por isso, o Tribunal valora a iniciativa de cria??o da Comiss?o Nacional da Verdade e exorta o Estado a implementá-la, em conformidade com critérios de independência, idoneidade e transparência na sele??o de seus membros, assim como a dotá-la de recursos e atribui??es que lhe possibilitem cumprir eficazmente com seu mandato (CORTEIDH, 2010, p. 107). A sua atua??o permite a exposi??o pública dos verdadeiros fatos ocorridos durante o regime de opress?o, constituindo a possibilidade da sociedade em compreender o que ocorreu e, desta maneira, trazer ganhos significativos para a democracia. Em 26 de outubro de 2011 o projeto de Lei instituindo a Comiss?o da Verdade foi aprovado, por unanimidade, pelo Plenário do Senado Federal, sendo sancionada pela Presidente Dilma Rousseff em novembro de 2011 dando origem a Lei 12.528/2011. Três fatores foram determinantes para a sua cria??o: 1. A elabora??o do PNDH-3 que determinou a cria??o de uma comiss?o da verdade para investigar os fatos ocorridos durante a ditadura; 2. A decis?o do Supremo Tribunal Federal na ADPF n°153; 3. A senten?a proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e Outro vs. Brasil (SANTOS, 2016). A Comiss?o Nacional da Verdade brasileira foi instituída com o propósito de examinar e esclarecer as graves viola??es de direitos humanos praticados no período estipulado pelo artigo 8° ADCT, ou seja, 18 de setembro de 1946 até a data da promulga??o da Constitui??o de 1988. A sua cria??o se deu dentre muitos impasses e discuss?es. A proposta original para a cria??o de uma Comiss?o da Verdade incluía, além da promo??o da verdade e esclarecimento dos fatos, a efetiva??o da justi?a para as vítimas. A proposta do Decreto 7.037/2009 possuía a seguinte reda??o: Diretriz 24: Preserva??o da memória histórica e constru??o pública da verdade.c) Identificar e sinalizar locais públicos que serviram à repress?o ditatorial, bem como locais onde foram ocultados corpos e restos mortais de perseguidos políticos.f) Desenvolver programas e a??es educativas, inclusive a produ??o de material didático-pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educa??o básica e superior sobre o regime de 1964-1985 e sobre a resistência popular à repress?o.Diretriz 25: Moderniza??o da legisla??o relacionada com promo??o do direito à memória e à verdade, fortalecendo a democracia.c) Propor legisla??o de abrangência nacional proibindo que logradouros, atos e próprios nacionais e prédios públicos recebam nomes de pessoas que praticaram crimes de lesa-humanidade, bem como determinar a altera??o de nomes que já tenham sido atribuídos.d) Acompanhar e monitorar a tramita??o judicial dos processos de responsabiliza??o civil ou criminal sobre casos que envolvam atos relativos ao regime de 1964-1985. (Grifo nosso) A proposta original buscava criar uma Comiss?o da Verdade que pudesse realizar a justi?a em rela??o aos crimes apurados. Isto gerou um grande “mal estar” entre o governo e os militares, pois os segundos estavam temerosos pelo que chamaram de política “revanchista”. Neste momento uma séria disputa entre o Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi e o Ministro da Defesa Nelson Jobim foi travada. De um lado a Comiss?o da Verdade seria uma resposta aos anseios das famílias vítimas da ditadura, e de outro, argumentava-se que a cria??o da Comiss?o da Verdade poderia criar atritos desnecessários com as For?as Armadas (SANTOS, 2016). Diante da resistência dos militares a proposta elaborada pela sociedade através do Decreto 7.037/2009 esta foi alterada pelo Decreto 7.177/2010 passando a ter a para a seguinte reda??o: Diretriz 24: Preserva??o da memória histórica e constru??o pública da verdade.c)?Identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as institui??es e as circunst?ncias relacionados à prática de viola??es de direitos humanos, suas eventuais ramifica??es nos diversos aparelhos estatais e na sociedade, bem como promover, com base no acesso às informa??es, os meios e recursos necessários para a localiza??o e identifica??o de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos.f) Desenvolver programas e a??es educativas, inclusive a produ??o de material didático-pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educa??o básica e superior sobre graves viola??es de direitos humanos ocorridas no período fixado no art. 8? do Ato das Disposi??es Constitucionais Transitórias da Constitui??o de 1988. Diretriz 25: Moderniza??o da legisla??o relacionada com promo??o do direito à memória e à verdade, fortalecendo a democracia.c)?Fomentar debates e divulgar informa??es no sentido de que logradouros, atos e próprios nacionais ou prédios públicos n?o recebam nomes de pessoas identificadas reconhecidamente como torturadores.d) Acompanhar e monitorar a tramita??o judicial dos processos de responsabiliza??o civil sobre casos que envolvam graves viola??es de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8? do Ato das Disposi??es Constitucionais Transitórias da Constitui??o de 1988.A cria??o da CNV marcada pela resistência dos militares retirou da proposta original as express?es: “repress?o ditatorial”, “regime de 1964-1985”, “resistência popular à repress?o”, “pessoas que praticaram crimes de lesa humanidade” e “responsabiliza??o criminal sobre os casos que envolvam atos relativos ao regime de 1964-1985” (SANTOS, 2016), limitando a atua??o da CNV para o esclarecimento dos fatos ocorridos entre 1946 e 1988. Percebe-se ent?o que a forte influência dos setores ligados ao regime autoritário estabeleceram par?metros para a cria??o de uma Comiss?o da Verdade que pudesse atender de maneira limitada e parcial aos interesses das vítimas e da sociedade na busca da verdade. Na opini?o de muitos familiares das vítimas e militantes de direitos humanos, a cria??o da Comiss?o da Verdade funcionou como uma “cortina de fuma?a” para desviar a aten??o do cumprimento da senten?a da Corte Interamericana que havia determinado também a necessidade de processar, julgar e punir os responsáveis pelas viola??es de direitos humanos ocorridos na ditadura (SANTOS, 2016, p. 222). Feitas as respectivas altera??es, a CNV foi finalmente criada através da Lei 12.528/2011 – 30 anos depois do fim da ditadura - com o objetivo de promover a apura??o e esclarecimento das graves viola??es de direitos humanos ocorridos no Brasil durante o período de 1946 a 1988. Ficou estabelecido o prazo de dois anos para que a Comiss?o apresentasse o relatório final com os resultados das investiga??es deste período. Registre-se que o fato da Comiss?o Nacional da Verdade ter sido criada por lei constituiu uma importante diferen?a em rela??o às outras Comiss?es da Verdade constituídas na América Latina – através do ato exclusivo do Poder Executivo – desfrutando de maior poder operativo para desempenhar suas atividades (CNV, 2014). No mesmo ano da aprova??o da Comiss?o Nacional da Verdade, a Lei 12.527/2011 (Lei de acesso à informa??o pública) também foi aprovada, sendo determinante para assegurar aos cidad?os o direito de obter informa??es que est?o sob a responsabilidade da Administra??o Pública sem a necessidade de justificar os motivos da respectiva solicita??o. A Lei 12.527/2011 regulamentou o artigo 5°, inc. XXXIII, o art. 37, §3°, inc. II, e o art. 216, § 2°, da Constitui??o Federal. Esta lei subordina todos os órg?os da Administra??o Pública a exercerem a transparência ativa, ou seja, promover a divulga??o de informa??es de interesse público independentemente de solicita??es, e também a transparência passiva divulgando as informa??es demandadas. Antes desta lei o acesso à informa??o era severamente restrita, sendo às informa??es classificadas em ultras-secreto, secreto, confidencial e reservado. Entre as informa??es ultras-secretas estavam os dados ou informa??es referentes à soberania e à integridade territoriais nacionais e os planos e opera??es militares (SANTOS, 2016). A Lei de acesso à informa??es públicas se tornou essencial aos trabalhos da Comiss?o Nacional da Verdade pois possibilitou o acesso as informa??es ou documentos que versem sobre condutas que impliquem viola??o aos direitos humanos praticados por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas. A Comiss?o foi composta por sete membros, integrados em Colegiado e nomeados pelo presidente da Republica, além de duzentos e dezessete colaboradores, incluindo assessores, servidores públicos, consultores, pesquisadores, auxiliares técnicos e administrativos, estagiários e voluntários. Os membros indicados para a composi??o da Comiss?o Nacional da Verdade foram: Claudio Lemos Fonteles, ex-procurador-geral da República; Gilson Langaro Dipp, ministro do Superior Tribunal de Justi?a; José Carlos Dias, advogado, defensor de presos políticos e ex-ministro da Justi?a; José Paulo Cavalcanti Filho, advogado e ex-ministro da Justi?a; Maria Rita Kehl, psicanalista e jornalista; Paulo Sérgio Pinheiro, professor titular de Ciência Polícia da Universidade de S?o Paulo (USP) e Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada criminal e defensora de presos políticos Com a renúncia de Claudio Lemos Fonteles, em setembro de 2013, sua vaga foi ocupada por Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari, advogado e professor titular de Direito Internacional do Instituto de Rela??es Internacionais da USP (CNV, 2014). Em dezembro de 2012 a atividade de pesquisa da Comiss?o Nacional da Verdade foi iniciada sendo organizada em treze grupos de trabalhos: 1) ditadura e gênero; 2) Araguaia; 3) contextualiza??o, fundamentos e raz?es do golpe civil-militar de 1964; 4) ditadura e sistema de Justi?a; 5) ditadura e repress?o aos trabalhadores e ao movimento sindical; 6) estrutura de repress?o; 7) mortos e desaparecidos políticos; 8) graves viola??es de direitos humanos no campo ou contra indígenas; 9) Opera??o Condor; 10) papel das igrejas durante a ditadura; 11) persegui??es a militares; 12) viola??es de direitos humanos de brasileiros no exterior e de estrangeiros no Brasil; e 13) o Estado ditatorial-militar. Na sua atua??o a Comiss?o da Verdade poderia est?o receber testemunhos, informa??es, dados e documentos que lhe forem encaminhados voluntariamente; fazer requisi??o de informa??es dados e documentos de órg?os e entidades do poder público; convocar para entrevistas pessoas que possam guardar qualquer rela??o com os fatos; realizar perícias e diligências para coleta ou recupera??o de informa??es, documentos e dados; promover audiências públicas; promover parcerias com órg?os e entidades, públicos ou privados, nacionais ou internacionais, para o interc?mbio de informa??es, dados e documentos; e?requisitar auxílio de entidades e órg?os públicos (Art. 4° da Lei 12.528/2011). Ao longo da sua atua??o, a Comiss?o Nacional da Verdade realizou inúmeras audiências públicas colhendo os depoimentos das vítimas das graves viola??es de direitos humanos emitindo diversos relatórios preliminares de pesquisa.O primeiro relatório preliminar foi apresentado em 18 de fevereiro de 2014 divulgando as instala??es militares utilizadas para cometer os crimes de tortura, nome das vítimas e formas de tortura. A metodologia empregada pela comiss?o para poder elaborar o relatório teve como ponto de partida a identifica??o dos casos de tortura de ex-presos políticos que receberam o pagamento de indeniza??o por parte do Estado pelos processos deferidos pela Comiss?o de Anistia e pela Comiss?o Especial de Indeniza??o às vítimas de tortura – instituída pela Lei Estadual 13.187/1999 – integrante do Conselho Estadual de Direitos Humanos de Minas Gerais da Secretaria de Direitos Humanos de Minas Gerais. Para pesquisar sobre os presos políticos mortos a CNV utilizou os processos deferidos pela Comiss?o Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos criada pela Lei 9.140/1995 e ainda, contou com os depoimentos prestados ao Ministério Público Federal. No segundo relatório apresentado em 27 de fevereiro de 2014 a CNV exp?s o caso Rubens Paiva. Rubens Paiva era deputado federal por S?o Paulo pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Foi cassado pelo Ato Institucional n°1, exilando-se na embaixada da Iugoslávia no Rio de Janeiro, depois na Fran?a e Inglaterra. Retornou ao Brasil em 1965, sendo detido pelo Centro de Informa??es de Seguran?a da Aeronáutica (CISA) em 20 de janeiro de 1971. Foi conduzido para o Destacamento de Opera??es de Informa??es (DOI) passando a ser interrogado sob tortura por agentes do DOI e do Centro de Informa??es do Exército (CIE) ocasionando à sua morte. O relatório concluiu que o Comandante do DOI general Belham estava ciente das torturas, e que somente este poderia esclarecer o destino do corpo de Rubens Paiva, assim como o nome dos agentes envolvidos na tortura, morte e oculta??o do cadáver. O terceiro relatório elaborado em 25 de mar?o de 2014 tratou da “Casa da Morte” de Petrópolis, Rio de Janeiro. Através do depoimento de Inês Etienne Romeu – única sobrevivente da casa da morte – serviu como ponto de partida para a elabora??o deste relatório. A Casa da Morte foi uma estrutura criada pelo Centro de Informa??es do Exército (CIE) em 1971 para intensificar o combate dos opositores executando práticas de extermínio e desaparecimento for?ado. O quarto relatório elaborado em 07 de abril de 2014 tratou dos centros clandestinos de viola??es de direitos humanos atuantes entre os anos 1970 e 1975 nos estados do Rio de Janeiro, S?o Paulo, Minas Gerais, Goiás, Pernambuco, Sergipe, Ceará, Pará e Distrito Federal sob responsabilidade da Marinha do Brasil e do Exército Brasileiro. O quinto relatório elaborado em 22 de abril de 2014 tratou do caso Juscelino Kubitschek investigando as circunstancias do acidente do ex-presidente Jucelino Kubitschek e seu motorista Geraldo Ribeiro ocorrido em agosto de 1976 no qual concluiu que estes morreram mesmo em virtude de um acidente de tr?nsito. O sexto relatório apresentado em 29 de abril de 2014 tratou do caso Riocentro, ocorrido em 1981. Este foi um caso de explos?o premeditada de duas bombas de fabrica??o artesanal durante um show de musica popular brasileira que reuniu cerca de vinte mil jovens. Porém a bomba que era para ser instalada provavelmente no palco estourou antes da hora dentro do veículo no colo do sargento Rosário que morreu instantaneamente. Sua conclus?o foi de que as explos?es no Riocentro estavam relacionados a a??o do DOI-Codi e ao SNI. O sétimo relatório apresentado em 09 de junho de 2014 tratou do caso Stuart Edgar Angel Jones. Stuart foi um militante político, sequestrado e preso arbitrariamente em 1971. Os relatórios apresentados afirmaram que este foi torturado até a morte para revelar o paradeiro de Carlos Lamarca. O desaparecimento de Stuart é um dos mais conhecidos da ditadura militar, tanto no Brasil, quanto no exterior. O oitavo relatório e ultimo relatório foi apresentado em 29 de agosto de 2014 tratando do caso Epaminondas Gomes de Oliveira foi militante, preso em agosto de 1971, sofrendo torturas no Pelot?o de Investiga??es Criminais (PIC) vindo a falecer no mesmo ano. Todos os relatórios elaborados pela Comiss?o da Verdade contestaram as informa??es oficiais elaboradas pelo regime militar. Conforme seu entendimento casos de tortura, desaparecimentos for?ados, homicídios, foi alterado nos relatórios oficiais para fuga, suicídio, ou outras causas de morte que n?o condiziam com a verdade. Ademais, muitos casos de desaparecimento for?ado n?o foram solucionados e, nem mesmo encontrados os restos mortais ocultados pelos agentes de Estado. O relatório final elaborado pela Comiss?o da Verdade foi entregue no dia 10 de dezembro de 2012 em uma cerim?nia oficial realizada no Palácio do Planalto à ex-presidente Dilma Rousseff. Este foi dividido em três volumes. O primeiro volume relatou as atividades desenvolvidas pela Comiss?o Nacional da Verdade descrevendo os fatos investigados e apresentando as devidas conclus?es e recomenda??es. Este volume foi dividido em cinco partes e 18 capítulos, apresentando a cria??o da Comiss?o Nacional da Verdade, sua atua??o, as estruturas repressivas do Estado e as graves viola??es de direitos humanos ocorridos no Brasil. No segundo volume foi reunido um conjunto de textos originados das atividades desenvolvidas pelos grupos de trabalhos constituídos no ?mbito da comiss?o integrando vítimas, familiares, pesquisadores e demais interessados. Neste é mostrado como diferentes grupos sociais foram afetados pela ditadura e a repress?o, e o papel destes na resistencia política. E no terceiro volume é realizada uma compila??o de todos os mortos e desaparecidos políticos atingidos pelo regime militar expondo os cenários de horror, até ent?o restritos à memória das vítimas e seus familiares, à sociedade brasileira. Os relatórios elaborados pela Comiss?o Nacional da Verdade constituem um importante material para esclarecer os acontecimentos durante o período da ditadura militar. As recomenda??es da Comiss?o Nacional da Verdade em seu relatório final foram essenciais para a ado??o de medidas gerais de caráter institucional pelo Ministério Público Federal. 3.3.1 Obstáculos à atua??o da Comiss?o Nacional da Verdade A Comiss?o Nacional da Verdade sofreu inúmeras limita??es institucionais e operacionais durante a sua atua??o.Dentre as limita??es institucionais enquadram-se o número reduzido de membros para executar a complexa tarefa de esclarecer as graves viola??es de direitos humanos praticados entre 1946 e 1988, o processo de sele??o e escolha dos membros da Comiss?o que n?o precedido de um amplo processo de consulta pública, a falta de autonomia e independência da Comiss?o e os entraves temporais ocasionados pela demora da instaura??o da comiss?o - mais de vinte anos após a promulga??o da Constitui??o de 1988, marco do reestabelecimento democrático – a amplitude do período de apura??o dos fatos e o mandato limitado da Comiss?o Nacional da Verdade para realizar todas as suas atividades. Conforme a Lei 12.528/2011 a Comiss?o Nacional da Verdade seria composta por sete membros brasileiros, com reconhecida idoneidade e conduta ética. Mesmo com o auxilio de assessores e colaboradores, é evidente que esse número pequeno de membros para executar a árdua tarefa de esclarecer as graves viola??es de diretos humanos ocorridos em um período de quarenta e dois anos de praticas sistematizadas conduzidas pelo Estado é demasiadamente complicado. Desta forma, em 2013, o pequeno quadro de integrantes da Comiss?o foi ampliado pelo Decreto 7919/2013 remanejando temporariamente cargos em comiss?o o exercício das suas atividades. Neste sentido, Santos (2016) critica a quantidade inicial de membros designados para a composi??o da Comiss?o e a demora – um ano após o inicio das atividades da Comiss?o – para a amplia??o deste quadro. Segundo a autora, a legisla??o deveria ter contemplado em sua origem um número maior de membros e assessores para que as atividades da Comiss?o n?o restassem prejudicadas. O Processo de sele??o e escolha de integrantes da Comiss?o também foi outro ponto fortemente criticado por esta autora. No caso brasileiro a escolha desses representantes n?o foi precedida de um processo de consulta pública. Neste sentido, é destacada a necessidade de um processo escolha que possibilite a participa??o de diferentes setores da sociedade, principalmente “das vítimas e outros grupos marginalizados” (SANTOS, 2016, p. 242). Outro ponto essencial a ser destacado foi à possibilidade de participa??o de integrantes das For?as Armadas na composi??o da Comiss?o Nacional da Verdade. Tal previs?o foi ao desencontro da neutralidade necessária para promover a investiga??o dos fatos cometidos justamente por esta categoria, e por seus apoiadores, durante o regime de exce??o. Acertadamente, nenhum membro da For?as Armadas foi indicado pela Presidente da República, atendendo aos anseios das entidades de direitos humanos e familiares das vítimas da repress?o. Isso porque, é de conhecimento a grande dificuldade já existente em extrair informa??es desses agentes que prezam pelo silêncio em detrimento da verdade. A Comiss?o, ainda, careceu de autonomia e independência, na medida em que, as suas atividades ficaram restritas pela própria legisla??o que a criou. Por exemplo, a comiss?o n?o possuiu poderes para requisi??o coercitiva das testemunhas, foi determinada a manuten??o do sigilo de alguns documentos e das informa??es em contradi??o com a finalidade desta comiss?o e, houve a necessidade de autoriza??o judicial para a realiza??o de determinadas diligencias e requisi??es pela comiss?o (SANTOS, 2016). Dentre as limita??es operacionais sofridas pela Comiss?o da Verdade est?o: a dificuldade de estrutura??o e organiza??o interna – a comiss?o demorou cerca de sete meses para se estruturar -; as divergências internas surgidas quanto ao objeto de estudo da respectiva comiss?o – se deveriam ser investigados apenas os atos dos agentes de Estado ou se deveriam abranger também os atos praticados pelos opositores -, e quanto à forma de condu??o dos trabalhos; a alta rotatividade dos coordenadores das atividades da comiss?o que ocorreu no primeiro ano da sua institui??o; e a falta de coopera??o das for?as armadas que mantendo o pacto de silêncio negavam constantemente a pratica de torturas e viola??es de direitos humanos por parte da sua institui??o. Apesar de todos esses percal?os, a institui??o de uma Comiss?o Nacional da Verdade constituiu um importante mecanismo para a elucida??o dos fatos e um grande passo na recupera??o da verdade e da memória histórica que até ent?o estava restrita na memória daqueles que viveram este período sombrio da história brasileira. O maior êxito da cria??o da Comiss?o Nacional da Verdade foi ter colocado na pauta social a discuss?o sobre a temática, fomentando o trabalho de outras comiss?es da verdade nos planos estaduais, municipais e setoriais, que perfazem uma rede ativa na produ??o de novas pesquisas sobre este período. 4 EM BUSCA DE UMA NOVA INTERPRETA??O: ADPF 320Em 2010, através do exercício do controle de convencionalidade a Corte Interamericana julgou o Brasil no Caso Gomes Lund e outros condenando a manuten??o de leis que promovem a autoanistia e afirmando o dever do Estado em processar, julgar e punir os crimes de lesa humanidade pelo seu caráter imprescritível. Desde ent?o o MPF tem movido esfor?os para dar efetividade à decis?o da Corte Interamericana, porém, esbarra com decis?es contrárias proferidas pelo judiciário brasileiro que atuam em conson?ncia com o entendimento do STF sobre a validade da Lei de Anistia. Em 2014, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) prop?s a ADPF 320 questionando os efeitos da Lei de Anistia confirmados pela decis?o proferida pelo STF. De acordo com o partido, desde a publica??o da senten?a pela Corte Interamericana, em 2010, esta ainda n?o teria sido cumprida, pois o Supremo em sua decis?o, n?o analisou o caráter permanente de alguns dos crimes cometidos pelos agentes públicos contra opositores políticos ao regime militar, notadamente a oculta??o de cadáver. Neste sentido, busca-se a adequa??o à interpreta??o internacional que afirma a obrigatoriedade dos Estados em processar, julgar e punir os crimes de lesa humanidade cometidos pelos agentes de Estado durante a ditadura. O Procurador-geral da República Rodrigo Janot enviou parecer ao STF favorável defendendo a revis?o da interpreta??o da Lei de Anistia no qual foi enviado para a análise do relator da a??o no STF Ministro Luiz Fux. O Procurador-geral da República utilizou-se da Teoria do Duplo Controle, criada por André de Carvalho Ramos, para explicar que no atual ordenamento jurídico brasileiro predomina a necessidade de ser realizada a compatibiliza??o vertical dos atos normativos, que devem obedecer tanto a Constitui??o, quanto os tratados internacionais de direitos humanos. Neste sentido afirmou o procurador, N?o é admissível que, tendo o Brasil se submetido à jurisdi??o da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por ato de vontade soberana regularmente incorporado a seu ordenamento jurídico, e se comprometido a cumprir as decis?es dela (por todos os seus órg?os, repita-se), despreze a validade e a eficácia da senten?a em quest?o. Isso significaria flagrante descumprimento dos compromissos internacionais do país e do mandado constitucional de aceita??o da jurisdi??o do tribunal internacional (BRASIL. PARECER PROCURADORIA-GERAL DA REPUBLICA, 2014, p. 52) A ADPF 320, até o fechamento desta pesquisa, ainda continua tramitando no STF, pesando grandes expectativas das vítimas e da sociedade ao desfecho que se dará. PARTE IV – JUSTI?A DE TRANSI??O E O PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATE Diante do que foi exposto até o momento, podemos constatar que a atua??o da justi?a de transi??o no Brasil tem encontrado uma agenda ativa. Após a transi??o para o regime democrático, simbolizado pela promulga??o da Constitui??o da República de 1988, diversos princípios de prote??o aos direitos humanos foram sendo incorporados vislumbrando a emergência de um novo paradigma jurídico. O reconhecimento da anistia aos perseguidos políticos através do art. 8° do ADCT, a cria??o da Comiss?o Especial de Mortos e Desaparecidos, a elabora??o do Programa Nacional de Direitos Humanos, a cria??o da Comiss?o da Anistia e a cria??o da Comiss?o Nacional da Verdade demonstram o esfor?o do Estado brasileiro na efetiva??o dos mecanismos transicionais visando principalmente à aten??o das vítimas e o enfrentamento com o passado autoritário. Esta movimenta??o, mesmo que esteja ocorrendo a passos lentos, afasta a permanência do esquecimento para dar lugar à constru??o da verdade e da memória. Deste modo, a justi?a de transi??o parte do pressuposto de que para que possamos construir uma sociedade livre, justa e solidária, conforme prevê a nossa Carta Constitucional, precisamos acertar as contas com o passado, n?o sendo possível fazer “desaparecer” pela imposi??o da anistia política o passado histórico marcado pela viola??o sistemática aos direitos humanos. Provavelmente, em virtude desta consciência de uma trágica realidade histórica ocorrida no país, o Brasil prontamente tenha aderido a todos os tratados internacionais relacionados à prote??o dos direitos humanos cristalizando a ideia de que o indivíduo merece prote??o e que este deve ser assegurado pelo Estado. Neste sentido a ades?o pelo Brasil da Conven??o Americana de Direitos Humanos, em 1992, e a aceita??o da jurisdi??o da Corte Interamericana de Direitos Humano, em 1998, estabeleceu garantias judiciais institucionalizando o processo como meio de assegurar os direitos humanos. (COELHO, 2014).Assim, os direitos humanos passam a contar com a prote??o em duas esferas: primeiramente no plano nacional onde os Estados devem observar a prevalência dos direitos humanos recha?ando toda e qualquer norma que vise a sua viola??o e, em segundo plano, a prote??o internacional, que no caso do Brasil é regido pela jurisdi??o da Corte Interamericana de Direitos Humanos atuando de forma complementar na falta ou omiss?o dessa prote??o pelos Estados. Todavia, os legados autoritários (STEPAN, 1988; ZAVERUCHA, 1998) deixaram resquícios do regime burocrático-autoritário que se projetam no tempo, mesmo após tantos anos término do regime de exce??o. Deste modo, constata-se que somente a transferência do poder político para atores democráticos n?o é suficiente para que possamos superar estes legados. Um dos grandes resquícios desta continuidade é a interpreta??o da anistia recíproca imposta pelos militares como condi??o para a abertura política do país. Esta interpreta??o presente na atualidade fortalece a cren?a de que os acontecimentos da ditadura devem ser esquecidos em nome da lógica da reconcilia??o nacional (MEZZAROBBA, 2009), transformando em revanchismo qualquer movimenta??o contrária a esta convic??o. Após a condena??o do Brasil no Caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia), uma nova perspectiva foi afirmada, exigindo do país a sua adequa??o a jurisprudência internacional que n?o aceita leis que buscam promover a impunidade e impedem a investiga??o de graves viola??es de direitos humanos. Porém, a ratifica??o do Brasil aos tratados internacionais de direitos humanos, a aceita??o formal à competência da jurisdi??o da Corte Interamericana, e ainda, a afirma??o do caráter supralegal das normas internacionais que tratam de direitos humanos conforme o art. 5° §2° da Constitui??o, n?o foram suficientes para que houvesse uma interpreta??o que buscasse compatibilizar a jurisprudência nacional e a internacional. A existência de duas decis?es plenamente válidas no ordenamento nacional – a decis?o o STF que valida à interpreta??o da Lei de anistia recíproca e a decis?o da Corte Interamericana invalidando a Lei de anistia – criou uma situa??o onde as iniciativas do Ministério Público Federal em dar cumprimento à decis?o da Corte Interamericana em rela??o à responsabiliza??o penal dos agentes de Estado envolvidos em graves viola??es de direitos humanos s?o constantemente negadas pelo judiciário brasileiro com decis?es que afirmam a ocorrência de prescri??o ou anistia dos fatos imputados, dando cumprimento ao entendimento do STF. Conforme Luiz Fernando Coelho (2012, p. 6) quando “as solu??es propostas para tais entraves est?o em oposi??o, sendo todas elas fundamentadas e com pressupostos igualmente válidos, geram-se situa??es de conflito designadas antinomias”. Essas antinomias podem ser principiológicas ou ideológicas. , As antinomias principiológicas ocorrem ao nível dos princípios gerais de direito declarados na Constitui??o ou a ela subjacentes. As ideológicas se verificam entre os comandos mais gerais do ordenamento e constituem antecedentes dos próprios princípios. Essa divis?o é meramente didática, pois na verdade todos os valores e cren?as refletidos na ordem jurídica s?o redutíveis a princípios. A ideologia do direito envolve preceitos de natureza religiosa, ética e política, e mesmo científica, como é o caso dos pressupostos do ordenamento considerados racionais (COELHO, 2012, p. 6). Na Justi?a de Transi??o estas antinomias ocorrem ao mesmo tempo contrapondo o acesso à justi?a das vitimas da opress?o, a devida assistência e um mínimo de satisfa??o, com a impunidade dos agentes opressores salvos pela anistia-amnésia. Apesar da justi?a de transi??o em seu conceito amplo propor a realiza??o da justi?a em momentos de afirma??o democrática abrangendo um conjunto de providencias que englobam o campo jurídico, político e social, é a análise mais restrita deste conceito que vem prevalecendo. Ou seja, a análise dogmática onde “prevalece à confronta??o entre as solu??es preconizadas pelo direito interno de cada país com a legisla??o internacional” (COELHO, 2014, p. 235) conforme demonstramos no capitulo II deste respectivo trabalho. Na sua análise sobre a Justi?a de Transi??o, Coelho (2014) prop?e o uso das ferramentas da teoria geral do direito para executar uma investiga??o zetética e crítica desse campo de estudos. Assim, inverte a ordem epistemológica passando a examinar o direito sob o ponto de vista da sociedade. O pensamento zetético ou investigativo é uma abordagem que tem por objetivo caracterizar o horizonte das quest?es no campo jurídico. Assim, busca a investiga??o e a dissolu??o, através de questionamentos, de uma opini?o já formada. Para tanto, esta envolve um conjunto interdisciplinar formado pela filosofia do direito, pela sociologia jurídica e a histórica do direito, fornecendo substratos para flexibilizar, adaptar e revisar os dogmas, tratando os enunciados jurídicos como elementos tentativos e questionáveis. Podemos ent?o afirmar que a investiga??o zetética exerce um papel crítico sobre os pressupostos dogmáticos explorando suas vulnerabilidades lógicas a fim de melhorar as fundamenta??es e a constru??o em que a dogmática se ampara (ROESLER, 2013). Assim, afirma o autor que, do ponto de vista zetético, a interpreta??o das leis da transi??o democrática deve ocorrer “dentro de um contexto transdisciplinar que requer sua adequa??o a alguns valores tidos como pressupostos metaéticos, como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a paz social, a justi?a material e outros”. (COELHO, 2014, p. 236). Desta maneira é possível ir além dos textos legais, inclusive afastando-os, para fazer prevalecer esses valores. 1 OLHANDO A JUSTI?A DE TRANSI??O DE “BAIXO PARA CIMA”Utilizando-se do conceito amplo de justi?a transicional podemos seguir da análise do tema sob a perspectiva da teoria geral do direito. Seguindo do ponto de vista zétetico e crítico podemos ent?o elaborar um panorama em que o aspecto da transi??o democrática é visto “de baixo para cima”, ou seja, da perspectiva da sociedade perante o direito. Como afirmamos anteriormente, esta vis?o adequa a transi??o democrática baseando-se em pressupostos metaéticos essenciais para a análise. Nestes s?o considerados princípios importantes como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a paz social, a justi?a material, como ponto de partida. A partir do conceito amplo de justi?a de transi??o podemos afirmar que esta “extravasa o referencial que liga a express?o ao Poder Judiciário, com alcance do entendimento de uma justi?a criminal” (COELHO, 2014. p. 237). Deste modo esta se refere a vários tipos de justi?a: justi?a penal, histórica, reparatória, administrativa, constitucional e restaurativa. Este movimento envolve o Estado como um todo na busca de efetivar plenamente as recomenda??es dos órg?os internacionais de prote??o aos direitos humanos segundo o qual o Estado possui o dever de investigar, processar e punir os agentes que violem esta prote??o. Deste modo falar sobre justi?a de transi??o envolve a referência ao menos a quatro pressupostos: a) a transi??o institucional de um Estado autoritário, geralmente dirigido por uma cúpula ditatorial, para o estado de direito, liderado por um governo democrático e constitucional;b) que o regime anterior tenha praticado, por meio dos seus agentes, atos contra os direitos humanos, como tais definidos pelo direito internacional, na nova constitui??o e outras fontes, inclusive contra o sentimento moral da na??o; c) que haja a vontade política do novo governo de tentar corrigir as distor??es do autoritarismo e impor medidas saneadoras que restabele?a a ética e o respeito ao conteúdo mínimo de um estado de direito;d) a participa??o do povo, a intersubjetividade das vontades no sentido da condena??o, ao menos moral, do despotismo anterior. ? necessário que as medidas as serem tomadas pelo novo governo respondam aos anseios, necessidades e expectativas n?o somente das vítimas e cidad?os diretamente interessados, como de toda a popula??o, ao menos das parcelas da sociedade que n?o tenham ficado alienadas ao terrorismo de estado praticado (COELHO, 2014, p. 238). Verifica-se através destes pressupostos que a justi?a transicional ent?o deve ocorrer na plenitude do estado de direito no qual a democracia e os direitos humanos s?o o panorama mínimo para a supera??o do regime opressivo.A justi?a de transi??o é um novo instituto que busca meios de resolu??o de divergências na sociedade, apresentando outras, específicas, a delimitá-lo como categoria jurídica e política (COELHO, 2014). Neste sentido, o Estado passa a ter os instrumentos essenciais para lidar com o regime anterior ao mesmo tempo em que dedica aten??o ás vítimas e a seus familiares. Uma das características dessa justi?a é o uso da informalidade. Conforme afirma Coelho (2014, p. 240), esta pode ser bem compreendida no contexto de uma tendência generalizada de atenua??o das dicotomias características da modernidade, especialmente a oposi??o do formal e informal. Assim afirma que “a dilui??o das dicotomias nas formas de controle social e das oposi??es no seio da sociedade civil é um fen?meno que a observa??o sociológica detecta na organiza??o social pós-moderna e na elabora??o dos meios de controle social” fazendo com que os dois polos da vida social se encontrem, ou seja, a comunidade civil e o Estado. A burocracia é atenuada, abrindo espa?o para outros meios de solu??o como a media??o, a concilia??o e a arbitragem, instituindo meios mais “simples e popular de solu??o de questiúnculas do dia a dia na convivência social” (COELHO, 2014, p. 241). Assim, a justi?a de transi??o consciente da limita??o do estado – preparado para solu??o de conflitos jurídicos e n?o para resolver conflitos sociais – faz o uso desses vários instrumentos informais para fazer justi?a. 2 ASPECTOS CR?TICOS SOBRE A JUSTI?A DE TRANSI??O NO BRASIL Apesar da lei de anistia ter sido elaborada e aprovada pelos militares, esta foi recepcionada pelos governos democráticos, e configurou uma resposta ás reinvindica??es de opositores da ditadura e seus familiares sanando os efeitos do controle extremo do Estado. Contudo, ao mesmo tempo esta lei descortinou sucessivas injusti?as ao inviabilizar a puni??o dos agentes repressores violadores de direitos humanos deixando as vítimas sem a efetiva prote??o que o Estado de Direito deveria promover. Já no seio do regime democrático, a Comiss?o de Anistia foi criada com a responsabilidade de apreciar e decidir sobre os requerimentos de anistia, afirmando o pedido de perd?o do Estado pelos atos de seus agentes. Apesar de admitir o erro do Estado, o núcleo da impunidade se manteve intocável. Em 2011, a cria??o da Comiss?o Nacional da Verdade retomou as tentativas de imposi??o de justi?a, porém foi novamente abafada pelos setores militares, que alegando revanchismo, limitou as atividades da Comiss?o da Verdade ao mero esclarecimento dos casos terrorismo, mortes, desaparecimentos for?ados, oculta??o de cadáver, dentre outros crimes cometidos no regime de exce??o. Apregoando que para se buscar a verdade era preciso uma Comiss?o que n?o instituísse a vingan?a.Ou seja, todo o aparato elaborado em busca da justi?a foi veemente afastado, e mais, no interior de um regime democrático. O comando internacional de direitos humanos foi completamente ignorado admitindo a impunidade calcada no principio da irretroatividade da lei penal em detrimento dos princípios básicos do direito humanitário: a imprescritibilidade dos crimes de lesa humanidade e o da “universalidade apriorística” (COELHO, 2014, p. 253). Do ponto de vista dogmático, a lei de anistia impera porque seus efeitos foram sanados quando da data da concess?o de anistia. Porém, na análise da sociedade para o direito, pode-se questionar se “após a Constitui??o de 1988, definida como cidad?, tudo deveria continuar como os militares havia planejado” (COELHO, 2014, p. 254). Afinal, seria aceitável que um regime opressor, após ter cometido inúmeros crimes contra os opositores políticos, pudesse perdoar a si mesmo? O Brasil n?o viveu o terrorismo. O “terrorismo estatal e o terrorismo revolucionário”, argumentos justificativos da opress?o militar, n?o se aplicam a realidade brasileira, pois s?o fen?menos da história contempor?nea restrita a territórios e povos bem definidos como, a Palestina. A luta revolucionária armada n?o fazia “parte da índole do povo brasileiro”. A “amea?a comunista” n?o passou de uma ideia fantasiosa, manipulada pelos Estados Unidos, para poder depor o presidente Jo?o Goulart, pois na época, o “partido comunista era inexpressivo”. A maior expressividade da esquerda na época seria a atua??o da “doutrina social da igreja” que pregava “uma igreja para os pobres, ambiência que convergiu para a teologia da liberta??o”. A amea?a comunista era, portanto, o fato da “igreja deixar de ser dos ricos para aproximar-se dos pobres”. A inspira??o advinda da Revolu??o Cubana de 1959 “n?o passava dos grêmios estudantis e de círculos intelectuais de esquerda”. Desde modo, onde estava a amea?a comunista? (COELHO, 2014, p. 256-260). Parece que o objetivo da anistia concedida desde o seu inicio é ilegítima. O seu objetivo oculto foi “etiquetar para sempre” as a??es da oposi??o como terroristas (COELHO, 2014, p. 260). A concess?o de autoanistia é condenável juridicamente e moralmente, pois ao mesmo tempo em que vai ao desencontro com os princípios norteadores da sociedade, ainda implantam a ideia de que o Estado pode tudo, o que n?o deve ser aceitável. Uma ditadura n?o pode perdoar a ela mesma. Seguindo esta ideia, a doutrina de direitos humanos determina que crimes considerados de lesa humanidade merecem tratamento diferenciado, pois s?o crimes cometidos sistematicamente pelo Estado contra a própria sociedade. Neste sentido, o Estado perde o seu objeto, pois ao invés de amparar e proteger, utiliza o aparato institucional para reprimir e eliminar a popula??o. Enquadram-se como de lesa humanidade os crimes de assassinato, escravid?o e pris?o violando as normas internacionais, viola??o, tortura, partheid, escravid?o sexual, prostitui??o for?ada e esteriliza??o compulsória, e ainda, como tipos penais de guerra, o homicídio internacional, a destrui??o de bens n?o justificada pela guerra, a deporta??o e o ato de abrigar um prisioneiro a servir em for?as inimigas. Igualmente o principio do “nunca mais” – express?o utilizada pelos países latino-americanos que passaram pela experiência de governos repressivos traduzida na ideia de n?o repeti??o das atrocidades cometidas pelos agentes de Estado – foi desconsiderado (COELHO, 2014). S?o crimes considerados imprescritíveis porque dentro da lógica de prote??o de direitos humanos, n?o existe a possibilidade de dispor desses direitos para dar espa?o a critérios que seriam aplicados em tempos normais, como a prescri??o. Assim, os crimes de lesa humanidade podem ser analisados a qualquer tempo visando à justi?a a aqueles que foram injusti?ados. Fazendo uma análise de viés filosófico o autor afirma que, o estrito cumprimento da lei, também foi o argumento utilizado pela defesa dos réus no julgamento de Nuremberg. Neste julgamento, a condena??o dos nazistas foi sustentada com fulcro na tese da universalidade dos direitos humanos e na no??o de crimes contra a humanidade, remetendo a doutrina do direito natural, Ou seja, tal qual a história literária e filosófica atribuiu a Antígona, exigia-se dos nazistas que tivessem resistido às ordens do tirano, pois havia uma lei superior que deveria ser obedecida. Do mesmo modo impunha-se aos títeres da modernidade que se abstivessem de atos contra os regramentos do direito natural (COELHO, 2014, p. 255). Esta análise mais ampla n?o é realizada, ficando restrita ao debate sobre um possível conflito de lei entre normas nacionais e internacionais. Para o autor, a justi?a de transi??o deve ser analisada no contexto dos princípios gerais dos direitos humanos, dos quais já existe um consenso internacional que integram o nosso ordenamento jurídico nacional. 3 PRINCIPIOLOGIA DOS DIREITOS HUMANOS A repercuss?o das viola??es de direitos humanos pelo mundo ganhou maior notoriedade após o processo de globaliza??o. Atualmente, recebemos notícias em tempo real, tendo acesso a informa??es ocorridas em praticamente qualquer lugar do mundo. Este fator contribuiu para que cada vez mais pessoas engajassem na ideia de prote??o aos direitos humanos na atualidade, sendo este conceito conhecido por muitos. Isso tornou a quest?o da universalidade desses direitos um discurso cada vez mais utilizado pelos movimentos de direitos humanos, e inclusive pelos Estados, que firmam tratados e conven??es internacionais sobre estes direitos afirmando o seu compromisso com este paradigma. Seguindo a ideia de universalidade, a titularidade dos direitos humanos passou a ser definido como absoluto, devendo ser observado t?o somente pela condi??o de ser humano. Essa compreens?o deriva da teoria do direito natural constantes nas declara??es de direito das revolu??es americana e francesa do final do século XVIII (COELHO, 2014). Neste sentido, o direito humanitário hoje existente parte dessa constru??o do direito natural incorporando na consciência da humanidade a sua import?ncia para a constru??o de uma sociedade justa. A constitucionaliza??o das garantias processuais para os direitos humanos foi essencial para que vários países latino-americanos aderissem a Conven??o Americana de Direitos Humanos e a jurisdi??o consultiva e contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos provendo, desta forma, uma amplia??o dos mecanismos processuais de prote??o aos direitos humanos. Deste modo, o direito internacional dos direitos humanos foi sendo enriquecido com declara??es formais que afirmavam o compromisso dos países perante a comunidade internacional de agir em boa-fé para a concretiza??o desses valores. Assim, emerge um novo campo do direito que se desenvolve nos planos normativo e doutrinário. No plano da normatividade emerge a tarefa de sistematiza??o de um international bill of human rights buscando suprir as deficiências da legisla??o interna. No plano teórico elabora-se uma teoria geral dos direitos humanos constituídos pelos seguintes princípios: a) Princípio da dignidade da pessoa humana; b) Principio da alteridade; c) Principio da universalidade; d) Principio da aprioricidade; e) Principio da fundamentalidade constitucional; f) Principio da irreversibilidade; g) Principio da imprescritibilidade dos delitos contra os direitos humanos; h) Principio da competência judiciária universal; i) Principio do in dubio pro humanitate (COELHO, 2014). A dignidade da pessoa humana constitui o “tronco ontológico” de todos os outros princípios, sendo o valor jurídico supremo da ordem jurídica nacional e internacional (COELHO, 2014, p. 163-164). No Brasil, a Constitui??o de 1988 o estabelece como um dos fundamentos do Estado Democrático do Direito (Art. 1°, III, CF). No plano internacional, a Declara??o Universal de Direitos Humanos estabelece, já no seu pre?mbulo, a necessidade de prote??o da dignidade humana por meio da proclama??o dos direitos elencados naquele diploma, estabelecendo, em seu art. 1?, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos” (CARVALHO RAMOS, 2017, p. 74). Assim, essa prote??o deriva de uma única condi??o: ser pessoa. Essa prote??o é direcionada para todos os seres humanos, independentemente do reconhecimento de cidadania. Este principio também é afirmado nos dois Pactos Internacionais (Sobre direitos civis e políticos e sobre os direitos sociais, econ?micos e culturais) e na Conven??o Americana de Direitos Humanos. Conforme afirma Carvalho Ramos, Tanto nos diplomas internacionais quanto nacionais, a dignidade humana é inscrita como princípio geral ou fundamental, mas n?o como um direito aut?nomo. De fato, a dignidade humana é uma categoria jurídica que, por estar na origem de todos os direitos humanos, confere-lhes conteúdo ético. Ainda, a dignidade humana dá unidade axiológica a um sistema jurídico, fornecendo um substrato material para que os direitos possam florescer. Diferentemente do que ocorre com direitos como liberdade, igualdade, entre outros, a dignidade humana n?o trata de um aspecto particular da existência, mas sim de uma qualidade inerente a todo ser humano, sendo um valor que identifica o ser humano como tal. Logo, o conceito de dignidade humana é polissêmico e aberto, em permanente processo de desenvolvimento e constru??o (CARVALHO RAMOS, 2017, p. 76). Deste modo a dignidade da pessoa humana é um principio que limita do poder do Estado ao mesmo tempo em que existe a sua atua??o para garanti-lo. O principio da alteridade é corolário do principio da dignidade consistindo no direito à diferen?a, ou seja, na aceita??o do outro. Este princípio busca combater simultaneamente a intoler?ncia e a busca da exclus?o legítima do outro sendo o la?o de intersubjetividade que une os participantes de um estrato social visando a unidade cultural. Assim, a alteridade é fonte do multiculturalismo, determinando que devemos respeitar a diversidade cultural, religiosa, de cren?a, etc. A universalidade apriorística declara que a universalidade dos direitos humanos n?o está restrita as fronteiras geopolíticas dos Estados, s?o normas válidas e vigentes em todos os lugares. A universalidade consiste no reconhecimento de que os direitos humanos s?o direitos de todos, n?o fazendo distin??o de ra?a, cor, credo, casta, afirmando a essencialidade dos direitos humanos como valores indispensáveis que devem ser observados e protegidos por todos. Coelho (2014, p. 172-269) adjetivou o termo “apriorista” para referir-se à ética kantiana “que atribuía validade a priori ao imperativo categórico”. Por apriorismo entende-se que os direitos humanos “n?o dependem de sua defini??o jurídico-positiva para configurarem como tais”. Deste modo as constitui??es, tratados e leis exercem a fun??o de declarar e dar certo grau de eficácia, pois os direitos humanos s?o naturais. Uma vez incorporada essa garantia na constitui??o e tratados internacionais sua validade “é e deve ser vista como apriorística, independentemente de sua elabora??o histórica”. Assim a dignidade humana e o respeito aos direitos humanos s?o conquistas irreversíveis do ser humano e os atos atentatórios a esses direitos constituem crimes contra a humanidade. A fundamentalidade constitucional remete a distin??o entre os direitos humanos e os direitos fundamentais. Os direitos humanos s?o aqueles inerentes a toda e qualquer pessoa independentemente da cidadania. Os direitos fundamentais s?o aqueles internacionalizados no ordenamento jurídico nacional através da Constitui??o. Neste sentido, o principio da fundamentalidade constitucional disp?e que os direitos humanos devem constar na constitui??o e nos documentos básicos do Estado como fundamentais (COELHO, 2014). Os direitos humanos fundamentais s?o vistos pelos aspectos formal e material. A fundamentalidade formal é a positiva??o dos direitos fundamentais na Constitui??o, implicando obriga??es de ordem positiva e negativa. A fundamentalidade material disp?e que os direitos humanos s?o materialmente constitucionais. No Brasil, as normas de direitos humanos materialmente constitucionais possuem o caráter supralegal, ou seja, est?o abaixo da Constitui??o de 1988 e acima da legisla??o ordinária. Essa separa??o serve como critério para o controle de legalidade e o controle de constitucionalidade da legisla??o. O principio da irreversibilidade ou principio “nunca mais” remete à condi??o de clausula pétrea das normas constitucionais que enunciam os direitos humanos. Coelho (2014) utilizou-se do conceito “nunca mais” para homenagear o movimento social ocorrido durante a ditadura militar na América Latina na luta contra a repress?o. Este principio tem alcance teórico e pratico. Na teoria “ele enuncia que o mero fato de haverem sido invocados, em algum momento da opopeia das institui??es jurídico-políticas, torna os seres humanos para sempre incorporados ao patrim?nio moral da humanidade”. No campo prático, afirma que uma vez incorporada à norma na legisla??o, esta n?o é mais passível de reforma. Assim busca-se o n?o retrocesso de direitos humanos adquiridos ao longo da evolu??o das sociedades, afirmando que estes uma vez conquistados n?o podem mais ser excluídos ou ignorados pelos Estados. O principio da imprescritibilidade criminal e a competência judiciário universal afirmam a imprescritibilidade dos delitos cometidos contra os direitos humanos, afirmando que estes podem ser julgados a qualquer tempo e por qualquer autoridade que possua competência para exercer o poder jurisdicional. Deste modo, qualquer juiz ou Tribunal pode processar e julgar os crimes de lesa humanidade. Também é consequência deste principio a limita??o dos Estados em conceder anistia aos crimes de lesa humanidade. O último principio que iremos abordar é o princípio do in dubio pro humanitate. Esta tese fundamental elaborada pelo professor Luiz Fernando Coelho trouxe um novo paradigma para reger a hermenêutica dos direitos humanos no que tange a imprescritibilidade e competência judiciária. Conforme o autor trata-se de um “aforisma que deve ser aplicado dentro de uma limita??o: só deve ser considerado quando se trata de praticas coletivas, por parte de um governo ou grupo no poder, atos cometidos sistematicamente” (COELHO, 2012, p. 18). Esta tese abrange todas as situa??es que se referem a eficácia dos direitos humanos, inclusive as definidas como justi?a de transi??o. 4 JUSTI?A DE TRANSI??O: PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATE Seguindo o estudo da justi?a de transi??o sob a perspectiva zétetica e crítica passamos a analisar o tema utilizando um conceito mais amplo, ou seja, “um conjunto de medidas que, ao abrigo da legisla??o pós-autoritária, passa atenuar os efeitos do autoritarismo e assim responder à quest?o da eficácia do direito em períodos de metamorfose política” (COELHO, 2014, p. 235), no qual a transi??o democrática passa a ser analisada “de baixo para cima”. Neste sentido, a quest?o sobre a compatibilidade ou n?o do ordenamento nacional com o internacional – que é uma abordagem mais restrita da justi?a de transi??o – deu espa?o para um analise voltada mais ao aspecto da justi?a do que ao processo de transi??o em si. Ou seja, saímos da análise dogmática para discutirmos sobre a prevalência dos princípios gerais dos direitos humanos. S?o pressupostos e ao mesmo tempo fundamentos para uma política de transi??o do autoritarismo para a democracia respeitando a ideia de que uma ditadura n?o pode, moralmente, julgar outra, pois a participa??o do povo, a intersubjetividade das vontades no sentido da condena??o, ao menos moral, do despotismo anterior, é outro pressuposto inarredável (COELHO, 2012). A tese fundamental in dubio pro humanitate elaborada pelo professor Luiz Fernando Coelho (2014) é essencial para que possamos solucionar a quest?o que hoje prevalecente no país sobre o conflito entre a interpreta??o da Lei de Anistia de 1979 realizada pelo STF e a decis?o da Corte Interamericana de Direitos Humanos e outros conflitos que possivelmente surgir?o ao longo do tempo. Do ponto de vista zetético a interpreta??o das leis da transi??o democrática deve ocorrer dentro de um contexto transdisciplinar que requer sua adequa??o a alguns valores tidos como pressupostos metaéticos como, a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a paz social e a justi?a material. E essa adequa??o pode insurgir no afastamento da dogmática jurídica, que ao ser contestada, n?o se adequou a esses pressupostos. Afinal, a perspectiva utilizada é da sociedade para o direito e n?o ao contrário. O principio in dubio pro humanitate enuncia que todos os direitos que dizem respeito à humanidade se sobressaem a quaisquer outros direitos. Neste sentido, o seu enunciado sugere a analogia com as máximas in dubio pro reo, in dubio pro operário e in dubio pro natura, ou seja, a intepreta??o da norma em quest?o deve ser compreendida de maneira a tornar mais proveitosa e melhor viabilizar a presta??o jurisdicional que protege os direitos humanos. Seguindo este raciocínio, nenhuma norma interna poderia afastar essa prote??o, devendo o ordenamento jurídico nacional afastar de imediato uma possível viola??o. Essa tese fundamental possui uma limita??o: somente deve ser aplicado aos casos em que forem constatadas práticas coletivas e sistemáticas de viola??es aos direitos humanos cometidos por parte de um governo ou um grupo no poder, e n?o para processar e julgar delitos individuais de direitos humanos. Fora deste contexto n?o deve ser utilizada para julgar outras espécies de crimes, por mais hediondos que sejam. Este critério hermenêutico favorece a análise das viola??es sistemáticas contra os direitos humanos estabelecendo que “o terrorismo de Estado e a crueldade contra o povo” devem motivar a rea??o dos governos democráticos. Além de projetar-se sobre todos os demais princípios, este ainda se “interliga com outro invocado no ?mbito do direito constitucional, em especial no que tange às antinomias constitucionais”. ? o principio da razoabilidade ou proporcionalidade (COELHO, 2014, p. 188). Aplicando o principio in dubio pro humanitate para solucionar o conflito de intepreta??o entre as decis?es do STF e as decis?es da Corte Interamericana de Direitos humanos, a decis?o da Corte Interamericana prevaleceria. N?o apenas porque ratificamos a Conven??o de Viena ou aceitamos a jurisprudência da Corte Interamericana, mas sim, porque na análise da antinomia existente entre esses dois entendimentos, a norma mais favorável aos direitos humanos consta da decis?o que afasta a validade da Lei de Anistia de 1979. Em síntese, o principio in dubio pro humanitate surge como um mecanismo que refor?a o campo hermenêutico e a tese da universalidade apriorística dos direitos humanos, servindo como um instrumento de tríplice fun??o: “? informadora para o legislador, normativa para a solu??o de antinomias e interpretadora como critério para a magistratura e os operadores do direito em geral” (COELHO, 2014, p. 188). A utiliza??o da hermenêutica jurídica para interpretar as quest?es de antinomia entre normas que dizem respeito à humanidade desprende-se dos aspectos dogmáticos possibilitando dar outra interpreta??o a norma utilizando-se do critério mais favorável à humanidade. Assim, a antinomia é solucionada com base nas regras gerais de interpreta??o jurídica e nas específicas da hermenêutica constitucional auxiliando na resolu??o de conflitos entre duas normas igualmente válidas. ]CONCLUS?O Os processos de transi??o ocorridos logo após o termino da ditadura militar impuseram Leis de Anistia que implantaram o perd?o recíproco para agentes do estado que cometeram crimes de graves viola??es de direitos humanos. Quando analisamos de uma perspectiva política a transi??o da forma como ocorreu era o único meio possível, já que havia grande receio em que o processo transicional ficasse prejudicado caso as for?as militares decidissem recuar na liberaliza??o política. Ao mesmo passo que a Lei de Anistia implantou o esquecimento quanto aos acontecimentos ocorridos na ditadura impossibilitando que a??es penais contra os agentes corressem, este foi um grande passo para que os presos políticos retornassem a vida em sociedade sem o risco de serem mortos ou perseguidos. A justi?a transicional se desenvolveu no Brasil a passos lentos buscando efetivar mecanismos que pudessem atenuar os efeitos gerados pelos regimes n?o democráticos afirmando que o processo transicional deve ocorrer observando também os par?metros da justi?a. Assim, a constru??o da memória e verdade, repara??o das vítimas, reforma das institui??es e justi?a passaram a ser exigidas como forma de concretiza??o do processo democrático. Neste percurso, antinomias surgiram. De um lado o Supremo Tribunal Federal afirmou a validade da interpreta??o da Lei de Anistia, e de outro, a Corte Interamericana proferiu decis?o diversa da nossa Corte Maior. Conforme verificamos neste trabalho, a discuss?o em torno desta problemática ocorre no plano dogmático, restringindo os caminhos e gerando embates entre o Ministério Publico que atua em cumprimento a senten?a da Corte Interamericana, enquanto o judiciário nega tais pedidos em conson?ncia com o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Neste embate o professor Luiz Fernando Coelho sugere outra perspectiva. Uma análise mais ampla que se utiliza da Teoria Geral do Direito. Deste modo, a justi?a de transi??o é analisada pela ótica da zétetica e da critica, sugerindo a utiliza??o da hermenêutica como possível solu??o. Assim, o principio in dubio pro humanitate é uma tese fundamental para reger a hermenêutica dos direitos humanos no que tange à imprescritibilidade e competência judiciária. Deste principio emerge com uma tríplice fun??o: Informadora para o legislador, normativa para a solu??o de antinomias e interpretadora como critério de orienta??o para aqueles incumbidos a interpretar e integrar os direitos humanos (COELHO, 2012). Deste modo, o in dubio pro humanitate refor?a o campo hermenêutico afirmando que no caso de crimes sistematizados cometidos pelo Estado que gerem graves viola??es aos direitos humanos, os direitos que dizem respeito à humanidade se sobrep?em a todos os outros devendo, portanto, ser observado. 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