A libertação de Cam - SciELO Livros
A liberta??o de Cam
discriminar para igualar. Sobre a quest?o racial brasileira
Maria Bernardete Ramos Flores Sabrina Fernandes Melo
SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros FLORES, MBR., and MELO, SF. A liberta??o de Cam: discriminar para igualar. Sobre a quest?o racial brasileira. In: RODRIGUES, CC., LUCA, TR., and GUIMAR?ES, V., orgs. Identidades brasileiras: composi??es e recomposi??es [online]. S?o Paulo: Editora UNESP; S?o Paulo: Cultura Acad?mica, 2014, pp. 31-86. Desafios Contempor?neos collection. ISBN 978-85-7983-515-5. Available from SciELO Books .
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A liberta??o de Cam: discriminar para igualar. Sobre a quest?o racial brasileira1
Maria Bernardete Ramos Flores2 Sabrina Fernandes Melo3
A obra pict?rica Reden??o do Cam (1895) de Modesto Brocos y Gomes j? serviu a diversos cientistas sociais, antrop?logos, historiadores, para ilustrar a ideologia do branqueamento do Brasil. O quadro retrata uma av? negra, a filha mulata, o genro e o neto brancos. De fato, trata-se de uma representa??o acabada da pol?tica de miscigena??o apregoada para fazer desaparecer o negro brasileiro, sem destruir Cam, o filho amaldi?oado de No? (G?nesis 9: 18-19), e sem desaguar na viol?ncia que marcou o fim da escravid?o nos Estados Unidos. Quando o diretor do Museu Nacional, Jo?o Batista de Lacerda, foi participar do Congresso Universal das Ra?as (1911), em Londres, levou consigo o quadro de Brocos y Gomes para demonstrar sua tese Sur les
1 Este artigo contou com o apoio em pesquisa dos seguintes alunos de gradua??o: Daniel Dalla Zen e Victor Wolfgang Kegel Amal (Pibic/CNPq); Poliana Santana, Carolina Bayer e Fernanda Emanuella Maccari (Bolsa Perman?ncia).
2 Doutora em Hist?ria, professora titular em Hist?ria Cultural (UFSC), pesquisadora do CNPq (PQ-1B) e autora do livro Tecnologia e est?tica do racismo: ci?ncia e arte na pol?tica da beleza (2007). E-mail: mbernaramos@.
3 Doutoranda em Hist?ria pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com a tese: Imagens coloniais em tempos modernistas: a prop?sito de Robert C. Smith e sua metodologia como historiador da arte.
32 CRISTINA C. RODRIGUES ? TANIA R. DE LUCA ? VAL?RIA GUIMAR?ES (ORGS.)
m?tis au Br?sil [Sobre os mesti?os do Brasil]. Nesta, impressa, h? uma reprodu??o de Reden??o do Cam, acompanhada da seguinte legenda: "O negro passando ao branco, na terceira gera??o, por efeito do cruzamento de ra?as" (Seyfeth, 2011, p.62-67).
Embora nada conste na B?blia sobre a cor de Cam e de seus descendentes, segundo David Goldemberg (2003 apud Oliva, 2007, p.48), os efeitos interpretativos da "maldi??o lan?ada a Cam" tiveram desdobramentos na imagina??o ocidental, para justificar a escravid?o de negros africanos, os quais seriam descendentes de Cam. No s?culo XIX, em resposta ao movimento abolicionista nos Estados Unidos, os brancos racistas lan?aram m?o do relato b?blico. No Brasil, a maldi??o de Cam serviu de justificativa para a escraviza??o de ?ndios e negros. A escraviza??o e o exterm?nio seriam o pre?o a pagar pela reden??o do pecado cometido por Cam, ter visto seu pai nu, quando este dormia embriagado. A escravid?o seria a sina da popula??o negra africana e seus descendentes, visando a regenera??o e purifica??o deste pecado. "O Mito de Cam procurou explicar de certa forma a escravid?o dos africanos, mas na verdade, justificou o elo entre a escravid?o e `cor' da pele" (Carvalho Junior, 2011, p.4).
Evocaremos aqui a imagem de Cam n?o para redimi-lo da "inventada maldi??o", mas como alegoria do movimento (pol?tico, cultural e social) empreendido no Brasil nas ?ltimas d?cadas, especialmente depois dos anos de 1980, contra o preconceito e a desigualdade racial, em prol da popula??o negra brasileira.4 Com o fim da cren?a no determinismo biol?gico racial, veio o reconhecimento da exist?ncia das ra?as sociol?gicas; com o fim da cren?a na democracia racial, veio o reconhecimento da exist?ncia do preconceito racial; com o fim da
4 Houve igualmente diversas pol?ticas em prol da popula??o ind?gena. Mas como h? uma especificidade bastante grande, que singulariza tanto a hist?ria deste grupo quanto suas reivindica??es atuais, n?o temos espa?o, no contexto deste artigo, para abord?-las de forma consistente.
IDENTIDADES BRASILEIRAS 33
cren?a na superioridade da civiliza??o branca, europeia, crist?, veio o reconhecimento dos valores multiculturais; com o fim do padr?o ?nico de beleza, veio a valoriza??o da beleza negra e, em consequ?ncia, a melhoria da autoestima negra, e vimos uma s?rie de acontecimentos capazes de instituir esquemas de "discrimina??o positiva" em favor dos grupos raciais historicamente "discriminados" de forma negativa. Em contrapartida ao racismo, ao preconceito racial e ? marginaliza??o, as cotas universit?rias criaram uma universidade mais colorida, mais negra, menos branca; o Movimento Negro e a afirma??o da negritude fez surgir uma nova etnosem?ntica: em vez de "preto", falamos "negro", em vez de "etnia", falamos "ra?a".
Para conclamar a liberta??o de Cam, partimos da sugest?o de David Theo de Goldberg (apud Azevedo, 2004, p.27):
embora a ra?a tenha tendido historicamente a definir condi??es de opress?o, ela pode, sob uma interpreta??o culturalista [...] ser o lugar de um contra-ataque, um solo ou campo para deslanchar projetos de liberta??o ou a partir do qual se poderia expandir a(s) liberdade(s) e abrir espa?os emancipat?rios.
Usaremos aqui a designa??o ra?a, sem aspas e sem ressalvas, para tomar o significado corrente: seu uso pol?tico, hoje, designa um signo para reconhecer a desigualdade social e cultural, e que possibilita dar visualidade ao "outro", institu?do historicamente e aceito socialmente. Conforme Edward Telles (2003, p.38):
O uso do termo ra?a fortalece distin??es sociais que n?o possuem qualquer valor biol?gico, mas a ra?a continua a ser imensamente importante nas intera??es sociol?gicas e, portanto, deve ser levada em conta nas an?lises sociol?gicas.
Estamos conscientes de que o conceito de ra?a foi uma das cria??es mais perversas, entre os s?culos XVII e XIX, que serviu
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ao eurocentrismo e sua domina??o sobre a terra. O conceito de ra?a ? uma fic??o formulada nos jogos de poder. N?o se coloca em d?vida o fato de que o conceito de ra?a biol?gica foi o fulcro da mais poderosa forma??o ideol?gica da hist?ria. Foi a inven??o do conceito de ra?a que racializou os povos, colocando-os em vantagens ou em desvantagens, tanto nos contextos econ?micos internacionais, imperialistas, quanto nos nacionais em seus processos de homogeneiza??o ?tnica e em seus processos civilizacionais. Estamos cientes tamb?m de que as teorias raciais cient?ficas entraram em desuso, radicalmente, ap?s a Segunda Guerra Mundial, quando em nome da ra?a cometeu-se o assassinato em massa nos campos de concentra??o. Mas o descr?dito nas teorias raciais biol?gicas j? vinha desde o come?o do s?culo. Em 1910, Franz Boas publicou Changes in the Bodily Format of Descendants of Immigrants [Modifica??es nos formatos dos corpos dos descendentes de imigrantes], argumentando que o tamanho da cabe?a da primeira gera??o de italianos e judeus emigrantes nos Estados Unidos n?o conferia com o tamanho original. Embora Boas tenha recebido muitas cr?ticas em decorr?ncia da pouca consist?ncia de suas demonstra??es, feriu a no??o de estabilidade f?sica que sustentava a teoria racial, e introduziu a no??o de plasticidade do corpo e da cultura (Barkan, 1992, p.83). O Brasil mais do que qualquer outro pa?s, da Europa ou da Am?rica, abra?ara a tese do descr?dito no racismo cient?fico a partir da d?cada de 1930, especialmente com os trabalhos de Gilberto Freyre.
N?o obstante, se o conceito de ra?a foi uma fic??o biol?gica, n?o deixou de ter vida real muito influente em diversos contextos hist?ricos. No Brasil, n?o se pode desprezar o peso que teve na constru??o da sua hist?ria. A taxonomia racial, pautada na "f?bula das tr?s ra?as", foi estruturante de todo o edif?cio social. "O tri?ngulo das tr?s ra?as [o branco, o negro e o ?ndio] foi mantido como um dado fundamental na compreens?o do Brasil"
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