MÍDIA E FUTEBOL - University of São Paulo

M?DIA E FUTEBOL:

CONTRIBUI??ES PARA A CONSTRU??O DE UMA

PEDAGOGIA CR?TICA

BRUNO GON?ALVES LIPPI

Licenciado em educa??o fsica (Universidade Estadual Paulista C Unesp)

Especialista em pedagogia do esporte escolar (Universidade Estadual de Campinas C Unicamp)

Professor da Rede Municipal de Ensino de S?o Paulo

E-mail: bruno.lippi@.br

DIRLEY ADRIANO DE SOUZA

Licenciado em educa??o fsica (Universidade Estadual Paulista C Unesp)

Especialista em pedagogia do esporte escolar (Universidade Estadual de Campinas C Unicamp)

Professor da Rede Estadual de Ensino de S?o Paulo

E-mail: dirleyunesp@.br

Dr. MARCOS GARCIA NEIRA

Doutor em educa??o, Universidade de S?o Paulo (USP)

Professor da Faculdade de Educa??o da USP

E-mail: mgneira@usp.br

RESUMO

A interface mdia e futebol transformou-se em objeto de estudo das cincias do esporte, dada

a compreens?o do fen?meno esportivo enquanto produto cultural explorado pelos meios de

comunica??o de massa. Nas escolas, os educadores revelam suas preocupa??es no tocante

reprodu??o pelos estudantes das concep??es veiculadas no discurso miditico. Em fun??o

disso, a partir da teoriza??o cultural e dos principais trabalhos sobre o tema, este estudo

analisa o contedo socializado sobre o futebol na mdia impressa e televisiva, questiona o

discurso da aliena??o/passividade presente no senso comum, reconhece o poder de persuas?o

da mdia e sugere encaminhamentos didticos que integrem a prtica corporal e a linguagem

audiovisual, visando a uma pedagogia comprometida com a forma??o crtica.

PALAVRAS-CHAVE: Mdia; futebol; cultura; educa??o fsica.

Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 30, n. 1, p. 91-106, set. 2008

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INTRODU??O

Em seus estudos sobre a forma??o cultural do povo brasileiro, Da Matta

(1986) e Bruhns (2000) atribuem ao futebol um papel relevante na constitui??o

da identidade nacional. Segundo os autores, esse esporte tornou-se um regulador

das rela??es sociais, confundindo-se com o estilo de ser e os modos de viver da

popula??o. Embora seja impossvel generalizar a in?uncia do futebol, de alguma

forma, a maioria das pessoas est exposta aos seus cdigos e signos culturais. Por

exemplo, observa-se na linguagem cotidiana a presen?a de jarg?es futebolsticos:

Ele terminou o trabalho aos 45 do segundo tempo, o sujeito pisou na bola com os

colegas, Quem n?o assumir os princpios da empresa ser jogado para o escanteio,

entre outras ?guras de linguagem.

Nos tempos atuais, a revolu??o tecnolgica, particularmente os meios de

comunica??o de massa, tem proporcionado um canal privilegiado para divulga??o

do futebol. Seus signos s?o difundidos via programas e noticirios esportivos, mesas?

redondas, jogos transmitidos ao vivo via TV, rdio, Internet, ?lmes, livros, documen?

trios etc. De fato, essa intersec??o com a mdia potencializa a emiss?o de cdigos

pertencentes cultura do futebol ao mesmo tempo em que age nas transforma??es

da modalidade e na compreens?o dos espectadores, leitores e ouvintes.

A educa??o fsica, enquanto componente curricular responsvel pela apro?

pria??o, ressigni?ca??o e amplia??o de conhecimentos da cultura corporal, n?o

pode ?car aqum dessa discuss?o, visto que, na contemporaneidade, os meios de

comunica??o de massa se con?guram entre as principais fontes de informa??o e

conhecimento acessadas pelas crian?as e jovens.

Se considerarmos que esse conhecimento, como qualquer outro, n?o

neutro, pois se encontra sob in?uncia das concep??es de mundo, sociedade e

cincia que o produziram, sinalizamos a necessidade de analisar criticamente o

discurso miditico do futebol no contexto educacional, para que se possa, pedago?

gicamente, oferecer condi??es para que os estudantes desvendem os interesses e

valores veiculados pela mdia acerca dessa prtica esportiva.

Visando colaborar para a constru??o de uma pedagogia crtica1 da educa??o

fsica, o estudo realizado procurou compreender como o discurso miditico interfere

nas formas de apropria??o do fen?meno esportivo futebol e apontar alguns aspectos

1.

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Adotamos a concep??o de pedagogia crtica manifestada por McLaren (1997), para quem a peda?

gogia crtica uma pedagogia engajada e responsvel diante dos dilemas sociais. Segundo o autor, a

pedagogia crtica examina o currculo escolar no contexto histrico-social e poltico que caracteriza

a sociedade dominante, desvela as rela??es de poder que atravessam a cultura no sentido amplo

e incorpora as experincias de vida dos oprimidos, suas histrias e seus valores.

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que merecem aten??o por ocasi?o da sua inser??o no currculo escolar. Para tanto,

enquanto metodologia, recorreu-se revis?o dos estudos que abordam o papel

persuasivo da mdia e seus impactos na socializa??o de contedos alusivos ao esporte.

O raciocnio construdo permitiu, recorrendo hermenutica crtica proposta por Kin?

cheloe (2007), interpretar fragmentos do discurso miditico sobre o futebol veiculado

por jornais e programas televisivos no binio 2006/2007 previamente selecionados.

O critrio para a escolha baseou-se prioritariamente na identi?ca??o de contedos

que manifestavam concep??es e interesses oriundos dos setores dominantes e, por

conseqncia, inibidores de outros olhares sobre a temtica em quest?o. A partir

da ado??o dos referenciais da pedagogia da cultura corporal, na seqncia, foram

apresentados possveis encaminhamentos para uma prtica pedaggica que inclui a

leitura crtica da linguagem e dos contedos veiculados pela mdia.

A ATUA??O PEDAG?GICA DA M?DIA

As anlises marxistas consideravam que a domina??o e a inculca??o dos va?

lores capitalistas se concretizavam por meio de institui??es como a escola, a Igreja

e os locais de trabalho, os quais compunham os aparelhos ideolgicos do Estado

(ALTHUSSER, 1980). A partir de Foucault (1992), no entanto, constata-se que o poder

de controle social se encontra nas rela??es e nos signi?cados atribudos culturalmente

e n?o mais restritos s institui??es sociais. Foucault alargou essa idia ao considerar

que os mecanismos de domina??o e opress?o n?o est?o nas institui??es, e sim se

apresentam de forma sutil e implcita na sociedade por meio de um emaranhado

constitudo pelas rela??es de poder.

Foucault concebe o poder n?o como algo ?xo tampouco centralizado, mas

como uma rela??o, como algo mvel e ?uido. Esse poder simblico comp?e o

alicerce do processo de constru??o dos sujeitos e das subjetividades, a identidade

cultural construda a partir dos aparatos discursivos, entre eles, a potente mdia.

Nesse ponto, o discurso miditico contribui, sensivelmente, para a socializa??o

de valores e idias dominantes, diminuindo a for?a simblica dos valores que se

contrap?em ou se apresentam de forma alternativa.

Corroborando essa idia, McLaren (2001) de?agra que, na atualidade, a

forma de controle social impregnada nas rela??es sociais tem desencadeado um

processo de homogeneiza??o das conscincias, um dispositivo de aboli??o das

diferen?as. Tal dispositivo se enquadra na lgica neoliberal, qual subordina grande

parte das rela??es sociais aos preceitos do mercado, dado que a homogeneidade

e a estereotipagem de comportamentos favorecem a produ??o e comercializa??o

de produtos culturais, alm de manter a ordem social estabelecida.

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Por esse entendimento, os meios de comunica??o de massa participam

do processo de constitui??o de sujeitos e subjetividades pela socializa??o de uma

enorme teia de signi?cados que termina por submeter todos os sujeitos de uma

sociedade. Considerando seu profundo envolvimento com a produ??o de imagens,

sons, signi?cados e saberes, acabam por exercer uma determinada pedagogia pela

socializa??o de certos modos de ser e estar na sociedade.

A fun??o pedaggica da mdia corroborada por Fischer (2002) quando

a?rma que a comunica??o social :

Um lugar extremamente poderoso no que tange produ??o e circula??o de uma srie

de valores, concep??es, representa??es C relacionadas a um aprendizado cotidiano sobre

quem ns somos, o que devemos fazer com o nosso corpo, como devemos educar nossos

?lhos, de que modo deve ser feita nossa alimenta??o diria, como devem ser vistos por

ns, os negros, as mulheres, pessoas das camadas populares, portadores de de?cincias,

grupos religiosos, partidos polticos e assim por diante (p. 153).

A investiga??o de Capinuss (2005) endossa essa posi??o constatando a in?u?

ncia dos meios de comunica??o na prtica de exerccios fsicos, na prtica esportiva

e nos hbitos alimentares. Segundo o autor, a observa??o dos parques, cal?ad?es,

pra?as pblicas, quadras esportivas permitir constatar o aumento crescente da

prtica de atividades fsicas. Da mesma forma, o autor sugere que observemos as

mudan?as na oferta de alimentos nos ltimos dez anos com aumento da demanda

de produtos da linha light e diet. Comportamentos refor?ados pela publicidade

maci?a de reportagens sobre a import?ncia dos cuidados com o corpo.

Fischer (2002) apresenta-nos os recursos da televis?o que contribuem para

o processo de apropria??o de signos e signi?ca??es, e destaca os recursos aos

quais a televis?o recorre para conquistar um status de detentora da verdade nica

e inquestionvel:

1) Auto-referncia C O modo como a TV fala de si atravs de diversos produtos; 2) A

repeti??o C imagens e estruturas que retornam, propiciando tranqilidade, prazer e identi??

ca??o; 3) O aval de especialistas C para legitima??o das verdades narradas; 4) A informa??o

didtica C colocando o espectador na posi??o de quem deve ser cotidianamente ensinado;

5) A op??o por um vocabulrio facilitado, traduzido especialmente quando relacionado a

termos tcnicos; 6) A reitera??o do papel social da TV C o veculo apresentando-se como

denunciador dos problemas sociais e, igualmente, como fonte de solu??es possveis C como

um lugar do bem; 7) A caracteriza??o da TV como locus da verdade ao vivo, da reali?

dade, especialmente, nas transmiss?es ao vivo e na busca de imagens que reproduzam o

real, mesmo em comerciais e telenovelas; 8) A transforma??o da vida em espetculo C seja

nas produ??es ?ccionais, seja nos materiais informativos; 9) A caracteriza??o da TV como

o paraso dos corpos C particularmente, dos corpos belos e jovens; 10) A reprodu??o

na TV de prticas e normas nitidamente escolarizadas (p. 156).

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? para a anlise dessa pedagogia que se tm voltado autores que, de certa forma,

inauguram a crtica pedagogia da mdia. As anlises de Giroux (1995) a respeito dos

?lmes produzidos pela Disney, por exemplo, problematizam a suposta inocncia e o

carter aparentemente inofensivo e at benigno das produ??es dessa indstria cultural

para o pblico infantil. Em ?lmes como A Pequena Sereia ou Aladim, por exemplo,

Giroux v uma pauta pedaggica carregada de pressupostos etnocntricos e sexistas

que, longe de serem inocentes, moldam identidades infantis e juvenis de forma bem

particular, por meio da constitui??o de subjetividades e identidades:

Mesmo que as mensagens possam ser lidas atravs de uma variedade de signi?cados,

moldados em diferentes contextos de recep??o, os pressupostos dominantes que es?

truturam estes ?lmes carregam um enorme peso, ao restringir o nmero de signi?cados

culturais que lhes podem ser atribudos, especialmente quando o pblico a que se dirigem

constitudo, em sua maioria, de crian?as (GIROUX, 1995, p. 63).

Faz-se, por exemplo, um programa para jovens tendo em mente um jovem?

modelo tal qual o per?l imaginado para torn-lo o cliente ideal do produto anun?

ciado. Eco (1970) citado por Betti (1998) completa: ao invs de dar ao pblico o

que ele quer, sugere-lhe o que deve querer ou deve acreditar que quer (p. 347).

Depreende-se da que o discurso miditico socializa signos de conforma??o social.

No contexto atual, a mdia exerce um persuasivo papel de ensinar sob uma em?

balagem de entretenimento com efeitos visuais e sonoros priorizando os prazeres

da imagem em contraposi??o a uma anlise crtica (GIROUX, 1995).

Por essa via, a mdia torna-se um instrumento e?caz para a conserva??o

da ordem estabelecida, dado que os meios de comunica??o de massa est?o sob

controle de grupos dominantes que disseminam, a partir seus referenciais, uma

determinada cultura. O fato de que alguns poucos conglomerados monopolizam a

fatia mais importante da mdia mundial (OLIVEIRA, 2004) torna possvel inferir que as

maneiras de pensar distintas da ideologia de mercado, bem como os valores per?

tencentes a outras culturas, encontram espa?o reduzido, previamente demarcado,

para manifestarem-se.

Na produ??o de um noticirio, por exemplo, um pequeno grupo responsa?

biliza-se pelos contedos e pelas interpreta??es dando pouca ou nenhuma vaz?o

s vrias vers?es possveis. Caberia questionar aqui, quais interesses est?o pautados

na sele??o das reportagens? Quais s?o os referenciais dos selecionadores? Ser

que a interpreta??o dada corresponde aos interesses dos diversos grupos que

comp?em a sociedade?

Se aceitarmos a de?ni??o de Hall (1997), para quem a cultura um campo

de lutas, diremos que apesar de os selecionadores do contedo miditico valo-

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