Do econômico ao ético: desafios para a curadoria de uma ...



Do econômico ao ético: desafios para a curadoria de uma sala de cinema não comercial

Marcelo Ikeda

Curiosamente irei começar este artigo sobre a curadoria em um circuito não comercial pelas questões econômicas, relativas à estruturação da indústria audiovisual mundial.

Especialmente a partir do início deste século, presenciamos um aprofundamento de um movimento de concentração da indústria audiovisual. Na verdade, a indústria cinematográfica sempre foi concentrada desde as suas origens, quando, nos anos vinte do século XX, houve a formação das majors - um oligopólio que domina as receitas do setor através da integração vertical entre produção e distribuição. Após a I Guerra, houve a expansão internacional, e o domínio das majors sobre os mercados de todo o mundo (GOMERY, 2005). No entanto, a partir dos anos noventa, a evolução das tecnologias de informação e comunicação, que culminou com a convergência digital, incentivou um contexto de formação de grandes conglomerados midiáticos, com um cenário de fusões e aquisições de grandes empresas, especialmente com o programa de desregulamentações impulsionado pelos Estados Unidos. A internet transformou a percepção dos mercados mundiais, e agora, os fluxos financeiros se tornavam tão voláteis que as empresas se tornavam maiores que os países. Um exemplo dessas transformações no campo do cinema é que o estúdio Universal foi comprado pela General Electric, que, por sua vez, integrava parte do grupo francês Vivendi, e que, alguns anos depois, foi adquirido pelo grupo Comcast! Ou seja, o cinema passou a fazer parte de um grande conglomerado que extrapola a própria ideia de um conglomerado midiático, para outro que inclusive fabrica bens industriais diversos. Outro exemplo é o estúdio Columbia Pictures, que se tornou parte do grupo Sony, que, além de filmes, fabrica, entre outros inúmeros produtos, aparelhos eletroeletrônicos, como DVDs players, Blu-Rays, DVDs virgens, entre outros (WASKO, 2011). As empresas de telecomunicações (as telcos), com enorme poder econômico, lideram o processo da convergência, já que a transformação da tecnologia digital passou a permitir que uma mesma empresa passe a explorar por meio de sua rede física diferentes tipos de negócios, como tráfego de voz (telefone), video (tv por assinatura) e dados (internet). Serviços como telefonia e vídeo agora também podem ser transmitidos por IP.

Esse contexto favoreceu a produção de blockbusters que dominam o mercado cinematográfico em escala mundial. Favorecidos por uma mídia global, um único filme pode ser explorado em quase 50% das telas de cinema de todo o mundo. Em geral, esses filmes são franquias de personagens previamente existentes, em livros ou quadrinhos, que são adaptados para as telas, tendo em vista não apenas o público jovem, mas todos os tipos de público. Filmes como Harry Potter, Homem Aranha, Piratas do Caribe, Crepúsculo, entre outros, com várias continuações, em geral são fantasias escapistas, com muitos efeitos especiais e com atores que se tornam estrelas globais. Esses filmes chegam a ser lançados em mais de 1.200 salas de cinema no Brasil, que possui cerca de 2.500 salas. Esse fenômeno não acontece apenas no Brasil, mas na grande maioria dos países de todo o mundo, inclusive em países como Alemanha, Itália, Espanha, etc. Esses filmes são exibidos em shopping centers, em grandes complexos cinematográficos (os multiplexes) que, apesar de ter um maior número de salas (o maior no Brasil possui 18 salas) muitas vezes exibe o filme de maior exposição da semana em um grande número de telas, em vez de optar pela diversidade nos títulos. O cinema brasileiro, portanto, é estrangeiro em seu próprio mercado. Ele ocupa, graças a um enorme esforço de ações da ANCINE, um percentual entre 10 a 15% das receitas de seu próprio mercado. Enquanto isso, 80 a 85% das receitas são de produtos das majors, e os demais 5% são de obras de todos os demais países! (IKEDA, 2015)

O impacto desse tipo de programação, visando à maximização do lucro dessas empresas que operam em escala mundial (um oligopólio global) é que um único filme passa a ser visto majoritariamente pelas pessoas de todo o mundo. É como se todo o mundo estivesse sintonizado em um mesmo filme. Pessoas de diferentes idades, gêneros, etnias, classes sociais, programam-se para ver o próximo Star wars. A homogeneização dos hábitos no cinema pode ser refletida para o padrão de consumo em diversos outros setores: é como se essas empresas, que operam em escala global, fizessem com que todo o mundo tenha os mesmos padrões de consumo, ou seja, que todos vejam os mesmos filmes, que ouçam as mesmas músicas, que vistam as mesmas roupas, que tenham os mesmos hábitos. Ou seja, estamos falando não apenas de modos de consumo mas também de padrões de comportamento, ou ainda, de modos de ser. Deste modo, a concentração econômica estimula uma homogeneização dos padrões de consumo que reflete a falta de acesso à diferença. Assim, vivemos numa sociedade que tende a ser cada vez mais refratária a quem resiste ao padrão hegemônico de comportamento, e ousa ter uma orientação sexual, um time de futebol, um corte de cabelo, diferente das práticas hegemônicas. Acredito que ter acesso à possibilidade da diferença é, assim, não apenas uma questão de mercado, mas, acima de tudo, uma questão de cidadania, para que possamos de fato ter uma opção de escolha. Cada um de nós somos diferentes - é o que nos faz humanos - e entender e aceitar que o outro pode ter opções diferentes que as nossas é uma questão de cidadania, pois nos faz entender melhor o nosso lugar no mundo, estimulando convivermos com a possibilidade da diferença. Acredito que este é o potencial político da arte no mundo de hoje - é a nossa utopia! O que a arte pode contribuir para o nosso mundo é nos fazer deslocar da esfera automatizada do consumo, em que somos apenas autômatos que robotizamos nossos modos de ser para "acordar, sair de casa para o trabalho, trabalhar, almoçar, voltar a trabalhar, voltar para a casa, jantar, ver um pouco de televisão, e dormir". Para isso, a arte não pode ser apenas uma "experiência relaxante", algo que nos faça simplesmente "recarregar as baterias para voltar a trabalhar" mas uma oportunidade de encontro com a nossa experiência sensível, onde podemos ser nós mesmos, especular sobre nossa existência, ter acesso a outros modos de ser, refletir sobre nosso lugar no mundo...

Partindo, portanto, do econômico, para chegar aos impactos nos modos de ser, acredito que fazer curadoria no mundo mercantilizado de hoje, é de alguma forma um processo político de resistência a um modelo que reduz o papel do indivíduo a simples consumidores. Acredito que o curador, numa instituição que não visa primordialmente o lucro, ou seja, que se pauta por um outro tipo de política de programação, não deve pautar seus esforços de programação por "aquilo que o público quer ver", pois isso o circuito comercial já lhe oferece, mas, ao contrário, deve se preocupar em despertar no público outros tipos de experiência que esse circuito não oferece, em ativar no público outras zonas de sentido que podem potencializar sua experiência sensível para outras áreas que ele ainda não foi ativado, pois ele nunca teve acesso a elas.

O desafio é como fazer com que as pessoas saiam de casa dispostas a ter acesso a algo que elas não conhecem, e, assim, têm muita incerteza se irá de fato lhes satisfazer. Com tantos problemas do mundo urbano, as pessoas, cansadas de seus trabalhos, preferem ficar em casa, e o consumo do audiovisual (televisão, internet, netflix) é cada vez mais individualizado. Acredito que as pessoas saem de casa querendo encontrar-se com outras, e as sessões de cinema presenciais ainda podem oferecer algo que elas não têm em sua casa: a possibilidade do encontro com o outro. Assim, debates com o público são uma boa maneira de fidelizar esse público, humanizando as sessões e prolongando com o público o debate sobre os filmes exibidos.

O desafio é que o curador possa formar uma programação coerente, é propor um modelo de programação que possua uma marca identitária própria, e assim fidelizar o público. Fidelizando o público, há uma frequência mínima, e uma pessoa convida a outra, e, com o tempo, o público vai aumentando. O desafio é fazer com que as pessoas saiam de casa para ir àquela sala de cinema específica, e não saiam de casa para ver o filme da moda. Isso é sinal de que o público confia tanto no perfil do curador que não se preocupa em analisar a obra em si que será exibida, pois sabe que a sala tem um perfil próprio, e que a experiência será recompensadora. E que haverá debates que irão frutificar a experiência da tela para fora dela, pois, depois do filme, o espectador encontra um outro mundo.

Isso só é possível com muita pesquisa, com generosidade, com tentativas-e-erros, mas, acima de tudo, que o curador seja um apaixonado pelos filmes que exibe. O curador deve acreditar que a cada sessão planta sementes para a sua revolução possível.

BIBLIOGRAFIA

GOMERY, Douglas. The Hollywood studio system: a history. London, Palgrave Macmillan, 2005.

IKEDA, Marcelo. Cinema brasileiro a partir da retomada: aspectos econômicos e políticos. São Paulo, Summus Editorial, 2015.

WASKO, Janet. How Hollywood works. London, SAGE publications, 2011.

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download