CORPO E TECNOLOGIAS DIGITAIS: IMPLICAÇÕES DE GÊNERO NO ...
嚜澳OI: 10.22478/ufpb.2359-7003.2019v28n3.47693
RESUMO
CORPO E TECNOLOGIAS
DIGITAIS: IMPLICA??ES
DE G?NERO NO FUTEBOL
FEMININO
Alcidesio Oliveira da Silva Junior [*]
Mayanne J迆lia Tomaz Freitas [**]
Jeane F谷lix [***]
____________
[*] Mestrando em Educa??o. Universidade Federal
da Para赤ba
ORCID:
E-mail: ateneu7@
[**] Mestre em Educa??o. Universidade Federal da
Para赤ba
ORCID:
E-mail: mayannetomaz51@
[***] Doutora em Educa??o pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul - Professora da
Universidade Federal da Para赤ba
ORCID:
E-mail: jeanefelix@
O futebol, assim como outras atividades f赤sicas, foi
culturalmente constru赤do por meio de um
binarismo que divide a sociedade em dois blocos:
de um lado os homens e do outro as mulheres. Entre
espa?os socioculturais distintos, existem sujeitos
que optam por borrar as fronteiras de uma l車gica
(vista como) coerente entre sexo-g那nero e decidem
[res]significar seus lugares de homens e mulheres
fora dos padr?es esquadrinhados pela cultura e pela
sociedade. Diante disso, nosso objetivo 谷
compreender como a inser??o das mulheres nos
jogos de futebol reverberam em discursos sexistas
nas redes sociais. Metodologicamente, esta
pesquisa inscreve-se como qualitativa, documental,
com interface entre os Estudos de G那nero e
Sexualidade[s] e o campo dos Estudos Culturais da
Educa??o. Para este texto, escolhemos como ponto
de partida para as an芍lises o Facebook,
entendendo-o como uma Pedagogia Cultural na
constitui??o de atravessamentos de g那nero e
sexualidade que localizam-se nas imagens
escolhidas e nos coment芍rios dos/das internautas,
fazendo das publica??es sobre a Copa do Mundo de
Futebol Feminino 2019 espa?os de sociabilidades e
de educa??o em torno das possibilidades da
viv那ncia de g那nero e/ou sexualidade[s] destes
corpos - lidos como femininos - e que entram em
campo fugindo das regras pr谷-definidas pela
cultura.
Palavras-chave: Corpo. Pedagogias
Culturais. Tecnologias digitais. Estudos
Culturais. G那nero.
Revista Temas em Educa??o, Jo?o Pessoa, Brasil, v. 28, n.3, p. 276-294, set./dez., 2019
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Alcidesio Oliveira da Silva Junior; Mayanne J迆lia Tomaz
Freitas; Jeane F谷lix
Corpo e tecnologias digitais: implica??es de g那nero no
futebol feminino
AQUECIMENTO
Em uma sociedade marcada por binarismos que reproduzem uma matriz heterossexual
(homem x mulher) em diversas atividades que permeiam o cotidiano 每 o trabalho, o lazer, as
rela??es de g那nero e sexuais 每, cada vez mais mulheres resolvem desbravar espa?os
hegemonicamente tomados pelos homens, enfrentando questionamentos sobre sua capacidade
f赤sica, intelectual e emocional, evidenciando embara?os pela presen?a de um corpo
culturalmente deslocado, produzido apenas para movimentar-se silencioso em determinados
ambientes. Aos homens: os espa?os p迆blicos, as vozes de comando, as atividades f赤sicas
bruscas, viris, a liberdade sexual, a administra??o de uma sociedade, os postos de poder; 角s
mulheres: a casa, a cozinha, a sutileza da agulha e do tear, a maternidade e as profiss?es que
carregam em si os reflexos do vivenciado nestes espa?os: o cuidado, o afeto, o ensino.
Nesta pesquisa, resolvemos nos ater ao futebol, que assim como outras atividades
f赤sicas, foi culturalmente constru赤do e reconhecido por meio de um binarismo oposicionista
que divide a sociedade em dois grandes blocos: de um lado os homens e do outro as mulheres,
sendo o futebol considerado como espa?o (quase que) natural dos homens, de modo que n?o
se fala em futebol masculino, apenas futebol, quando destinado a eles, mas que 谷 sempre
associado ao adjetivo feminino quando destinado a elas. Estes espa?os opostos, arquitetados
para que tais indiv赤duos atendam 角s expectativas do g那nero marcadas desde o nascimento pelo
sexo biol車gico (e pelas pedagogias de g那nero que se desenvolvem a partir da ※descoberta§ na
ultrassonografia: 谷 menino ou menina, operando sempre nessa perspectiva bin芍ria), revelam os
entrela?amentos de poder que atuam sobre os corpos por meio de ※[...] &manobras*, &t谷cnicas*,
&disposi??es*, as quais s?o, por sua vez, resistidas e contestadas, respondidas, absorvidas,
aceitas ou transformadas§ (LOURO, 1997, p. 39). E s?o nessas pr芍ticas de n?o responsividade
e de resist那ncia que algumas mulheres resolvem adentrar em campo de futebol, subverter as
regras de um corpo culturalmente inapropriado e exercer novas formas de poder, de contesta??o
da ordem bin芍ria, de supera??o dos limites vendidos como naturais pela sociedade. Cabe
lembrar, contudo, que aquilo que nomeamos como natural, na medida em que 谷 assim
nomeado, j芍 passa a ser tamb谷m uma constru??o cultural.
Em tempos anteriores ao in赤cio da formata??o do futebol nos moldes contempor?neos,
jogos populares medievais eram realizados nas ruas ou em campos abertos, segundo Dunning
(2011), praticados n?o entre times, mas entre representantes de grupos diversos, como homens
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futebol feminino
solteiros contra homens casados ou habitantes de uma cidade contra outra. Ainda de acordo
com o autor, ※[...] m?os, assim como p谷s e algumas vezes peda?os de pau podiam ser usados
para controlar e propelir a bola, e cada lado tinha que transportar a bola para o que era
estabelecido por h芍bito como o gol§ (p. 17). Nesta 谷poca, havia registros de jogos entre
mulheres casadas contra mulheres solteiras (DUNNING, 2011), antecipando pr芍ticas que
seriam ecoadas s谷culos depois.
Por谷m, a forma l迆dica e a organiza??o do futebol que conhecemos hoje foi
regulamentada apenas no dia 26 de outubro de 1863 na Inglaterra com a funda??o da Football
Association, reunindo dezenas de col谷gios que j芍 praticavam, cada um ao seu modo, o esporte.
Mas 谷 importante destacar que estas regras surgiram por uma demanda da burguesia, visto que
o formato origin芍rio do esporte, surgido em plena Revolu??o Industrial na primeira d谷cada do
s谷culo XIX, carregava a viol那ncia, a revolta e as insatisfa??es do operariado explorado,
segundo Magalh?es (2010). De acordo com a autora, ※foi exatamente para controlar as classes
mais baixas e a viol那ncia do jogo que se imp?s regras ao futebol, que se tornou uma importante
每 e interessante para as elites 每 v芍lvula de escape dos explorados§ (Idem., p. 14).
Esta breve retomada hist車rica pode revelar ind赤cios da composi??o generificada que
permeia as pr芍ticas esportivas, neste caso, o futebol. Viol那ncia, sangue, brutalidade, for?a,
revolta... seriam estes elementos, sentimentos, viv那ncias, caracter赤sticas, esperadas, em uma
cultura como a nossa, das mulheres? Estariam as mulheres permitidas a experimentar estas
viv那ncias? Pensamos juntamente com Adelman (2006, p. 11) que ※o campo das pr芍ticas
esportivas e corporais 谷, com certeza, um terreno extremamente f谷rtil para testar hip車teses
sobre as mudan?as nas rela??es e representa??es de g那nero na sociedade contempor?nea§.
Em pleno s谷culo XXI, essa regula??o em torno de uma norma que aponta para uma
sociedade heteronormativa 谷 propagada por diversos vetores, sendo a m赤dia e/ou as tecnologias
digitais, artefatos culturais que agem com muita pot那ncia na [re]produ??o de discursos que, de
certa forma, legitimam o lugar de poder do homem (assim, no singular, por representar tamb谷m
um 每 e n?o m迆ltiplos 每 modelo[s] de homem) em detrimento do lugar muitas vezes
pormenorizado das mulheres (aqui, no plural, porque quando se trata de futebol, caberia a todas
elas) na sociedade. Diante disso, o objetivo desse texto 谷 compreender como a apropria??o de
jogos marcadamente masculinos, como o futebol, pelas mulheres e o seu tr?nsito nestes espa?os
reverberam nos discursos sexistas que habitam as redes sociais. Nos movimentamos no corpo
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deste texto com base em duas perguntas: o que tem sido dito sobre as jogadoras nas redes
sociais? O que representa estes corpos na Copa do Mundo de Futebol Feminino 2019?
Para tanto, recorremos a uma an芍lise cultural dos coment芍rios de homens/mulheres em
p芍ginas no Facebook entre os dias 07 de junho a 07 de julho de 2019 (per赤odo dos jogos), que
faziam refer那ncia 角 Copa do Mundo de Futebol Feminino 2019, veiculadas em duas fanpages
de esportes: Globo Esporte e UOL 每 Esporte Interativo. Entendendo as redes sociais como
pedagogias culturais na constitui??o de subjetividades atravessadas pelo g那nero, a imers?o dos
nossos olhares se deu nos 200 primeiros coment芍rios de cada not赤cia 每 os mais curtidos, mais
respondidos 每 com base em uma pesquisa, destas not赤cias, impulsionadas pelas palavras-chave:
※sele??o§, ※sele??o feminina§ e ※copa feminina§. De modo breve, tomamos pedagogias
culturais como uma ※ferramenta te車rica acionada para discutir a rela??o entre artefatos da
cultura e processos educativos§ (ANDRADE e COSTA, 2015, p. 49). Para as autoras, ※o
conceito de pedagogias culturais tem sido 迆til tanto para expandir, multiplicar e matizar o
entendimento sobre pedagogia quanto para explorar as qualidades pedag車gicas da vida social§
(idem).
Para as an芍lises, utilizamos um repert車rio te車rico dos Estudos Culturais (COSTA e
ANDRADE, 2015; WOODWARD, 2014), Estudos de G那nero e Sexualidade (LAURETIS,
1994; LOURO, 1997; MEYER, 2004) e Corpo (GOELLNER, 2005; MOR?O e MOREL,
2005), compreendendo as tecnologias digitais como facilitadoras de sociabilidades e de
educa??o em sentido ampliado 每 aquela que ocorre nos mais variados espa?os sociais, escolares
ou n?o 每 em torno das possibilidades da viv那ncia de g那nero e/ou sexualidades[s] destes corpos
- lidos como femininos - e que entram em campo fugindo das regras pr谷-definidas pela cultura.
Dialogamos nesta pesquisa com autores como Mart赤n-Barbero (2014), compreendendo
que vivemos, hoje, n?o apenas em uma sociedade com sistema educativo, mas uma sociedade
educativa, cujos processos pedag車gicos atravessam tudo. Inseridos/as como estamos em um
aprofundamento das rela??es sociais mediadas pelas tecnologias, podemos tecer reflex?es
sobre as potencialidades pedag車gicas dos artefatos culturais, a exemplo da internet,
particularmente das redes sociais, na constitui??o das formas (aceitas e valorizadas) dos
sujeitos se relacionarem, pensarem, se moldarem e constru赤rem suas identidades, ※[...] um novo
modo de rela??o entre os processos simb車licos 每 que constituem o cultural 每 e as formas de
produ??o e distribui??o de bens e servi?os§ (MART?N-BARBERO, 2014, p. 79).
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Freitas; Jeane F谷lix
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A cultura, portanto, como um sistema partilhado de significados (WOODWARD,
2014), se evidencia como uma potente ferramenta multiplicadora de sentidos, produzindo, por
meio de suas representa??es, formas de os sujeitos serem interpelados, sacudidos e conhecerem
outras maneiras de estar e se posicionarem no mundo. ? na cultura tamb谷m, conforme Meyer
(2004, p. 15), ※[...] que se produzem sentidos m迆ltiplos e nem sempre convergentes de
masculinidade e feminilidade§. Ainda segundo a autora, a educa??o engloba um complexo de
for?as e de processos que compreende tamb谷m os meios de comunica??o de massa, os
brinquedos, a literatura, o cinema, etc., ※[...] no interior dos quais os indiv赤duos s?o
transformados em 每 e aprendem a se reconhecer como 每 homens e mulheres, no ?mbito das
sociedades e grupos a que pertencem§ (MEYER, 2004, p. 15).
Antes de darmos seguimento 角s nossas reflex?es e an芍lises, indicamos como tomamos
tr那s conceitos centrais em nossas an芍lises, quais sejam: cultura, g那nero e sexualidade. Na
perspectiva dos Estudos Culturais, esses tr那s conceitos s?o tomados como constru??es
culturais, que ocorrem em processos nunca prontos, fixos ou finalizados. Cultura 谷 um campo
de luta e de contesta??o em torno dos sentidos (HALL, 2019). G那nero seria a constru??o
cultural das masculinidades e das feminilidades, seguindo ou burlando as regras sociais bin芍rias
e dicot?micas que ligam, imediatamente, a homens e mulheres, respectivamente (LOURO,
1997). Por sua vez, a sexualidade seria a manifesta??o dos desejos afetivo-sexuais por pessoas
do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos, o que se manifesta, muitas vezes, por meio
de borramentos das fronteiras da heterossexualidade (LOURO, 2000).
1? TEMPO 每 FUTEBOL COMO UM ESPA?O MASCULINIZADO. E QUANDO A
MULHER ENTRA EM CAMPO?
Na hist車ria da sociedade ocidental, em espec赤fico, a divis?o sexual do trabalho
(HIRATA e KERGOAT, 2007) foi apontando espa?os diferentes para mulheres e homens, com
mudan?as progressivas que se manifestam at谷 os dias de hoje por meio dos movimentos
feministas e de mulheres, que passaram a ocupar (e exigir a ocupa??o de mulheres em) espa?os,
tanto nas esferas p迆blicas quanto privadas. Assim como a ci那ncia 谷 considerada androc那ntrica
(SILVA, 2008), o futebol tamb谷m se constitui nesta perspectiva, na medida em que foi
organizado por e para homens, apresentando, especialmente nas 迆ltimas d谷cadas, a presen?a
de mulheres que buscaram/buscam borrar as fronteiras, a partir da ocupa??o de espa?os que
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