CORPO E TECNOLOGIAS DIGITAIS: IMPLICAÇÕES DE GÊNERO NO ...

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RESUMO

CORPO E TECNOLOGIAS

DIGITAIS: IMPLICA??ES

DE G?NERO NO FUTEBOL

FEMININO

Alcidesio Oliveira da Silva Junior [*]

Mayanne J迆lia Tomaz Freitas [**]

Jeane F谷lix [***]

____________

[*] Mestrando em Educa??o. Universidade Federal

da Para赤ba

ORCID:

E-mail: ateneu7@

[**] Mestre em Educa??o. Universidade Federal da

Para赤ba

ORCID:

E-mail: mayannetomaz51@

[***] Doutora em Educa??o pela Universidade

Federal do Rio Grande do Sul - Professora da

Universidade Federal da Para赤ba

ORCID:

E-mail: jeanefelix@

O futebol, assim como outras atividades f赤sicas, foi

culturalmente constru赤do por meio de um

binarismo que divide a sociedade em dois blocos:

de um lado os homens e do outro as mulheres. Entre

espa?os socioculturais distintos, existem sujeitos

que optam por borrar as fronteiras de uma l車gica

(vista como) coerente entre sexo-g那nero e decidem

[res]significar seus lugares de homens e mulheres

fora dos padr?es esquadrinhados pela cultura e pela

sociedade. Diante disso, nosso objetivo 谷

compreender como a inser??o das mulheres nos

jogos de futebol reverberam em discursos sexistas

nas redes sociais. Metodologicamente, esta

pesquisa inscreve-se como qualitativa, documental,

com interface entre os Estudos de G那nero e

Sexualidade[s] e o campo dos Estudos Culturais da

Educa??o. Para este texto, escolhemos como ponto

de partida para as an芍lises o Facebook,

entendendo-o como uma Pedagogia Cultural na

constitui??o de atravessamentos de g那nero e

sexualidade que localizam-se nas imagens

escolhidas e nos coment芍rios dos/das internautas,

fazendo das publica??es sobre a Copa do Mundo de

Futebol Feminino 2019 espa?os de sociabilidades e

de educa??o em torno das possibilidades da

viv那ncia de g那nero e/ou sexualidade[s] destes

corpos - lidos como femininos - e que entram em

campo fugindo das regras pr谷-definidas pela

cultura.

Palavras-chave: Corpo. Pedagogias

Culturais. Tecnologias digitais. Estudos

Culturais. G那nero.

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Freitas; Jeane F谷lix

Corpo e tecnologias digitais: implica??es de g那nero no

futebol feminino

AQUECIMENTO

Em uma sociedade marcada por binarismos que reproduzem uma matriz heterossexual

(homem x mulher) em diversas atividades que permeiam o cotidiano 每 o trabalho, o lazer, as

rela??es de g那nero e sexuais 每, cada vez mais mulheres resolvem desbravar espa?os

hegemonicamente tomados pelos homens, enfrentando questionamentos sobre sua capacidade

f赤sica, intelectual e emocional, evidenciando embara?os pela presen?a de um corpo

culturalmente deslocado, produzido apenas para movimentar-se silencioso em determinados

ambientes. Aos homens: os espa?os p迆blicos, as vozes de comando, as atividades f赤sicas

bruscas, viris, a liberdade sexual, a administra??o de uma sociedade, os postos de poder; 角s

mulheres: a casa, a cozinha, a sutileza da agulha e do tear, a maternidade e as profiss?es que

carregam em si os reflexos do vivenciado nestes espa?os: o cuidado, o afeto, o ensino.

Nesta pesquisa, resolvemos nos ater ao futebol, que assim como outras atividades

f赤sicas, foi culturalmente constru赤do e reconhecido por meio de um binarismo oposicionista

que divide a sociedade em dois grandes blocos: de um lado os homens e do outro as mulheres,

sendo o futebol considerado como espa?o (quase que) natural dos homens, de modo que n?o

se fala em futebol masculino, apenas futebol, quando destinado a eles, mas que 谷 sempre

associado ao adjetivo feminino quando destinado a elas. Estes espa?os opostos, arquitetados

para que tais indiv赤duos atendam 角s expectativas do g那nero marcadas desde o nascimento pelo

sexo biol車gico (e pelas pedagogias de g那nero que se desenvolvem a partir da ※descoberta§ na

ultrassonografia: 谷 menino ou menina, operando sempre nessa perspectiva bin芍ria), revelam os

entrela?amentos de poder que atuam sobre os corpos por meio de ※[...] &manobras*, &t谷cnicas*,

&disposi??es*, as quais s?o, por sua vez, resistidas e contestadas, respondidas, absorvidas,

aceitas ou transformadas§ (LOURO, 1997, p. 39). E s?o nessas pr芍ticas de n?o responsividade

e de resist那ncia que algumas mulheres resolvem adentrar em campo de futebol, subverter as

regras de um corpo culturalmente inapropriado e exercer novas formas de poder, de contesta??o

da ordem bin芍ria, de supera??o dos limites vendidos como naturais pela sociedade. Cabe

lembrar, contudo, que aquilo que nomeamos como natural, na medida em que 谷 assim

nomeado, j芍 passa a ser tamb谷m uma constru??o cultural.

Em tempos anteriores ao in赤cio da formata??o do futebol nos moldes contempor?neos,

jogos populares medievais eram realizados nas ruas ou em campos abertos, segundo Dunning

(2011), praticados n?o entre times, mas entre representantes de grupos diversos, como homens

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solteiros contra homens casados ou habitantes de uma cidade contra outra. Ainda de acordo

com o autor, ※[...] m?os, assim como p谷s e algumas vezes peda?os de pau podiam ser usados

para controlar e propelir a bola, e cada lado tinha que transportar a bola para o que era

estabelecido por h芍bito como o gol§ (p. 17). Nesta 谷poca, havia registros de jogos entre

mulheres casadas contra mulheres solteiras (DUNNING, 2011), antecipando pr芍ticas que

seriam ecoadas s谷culos depois.

Por谷m, a forma l迆dica e a organiza??o do futebol que conhecemos hoje foi

regulamentada apenas no dia 26 de outubro de 1863 na Inglaterra com a funda??o da Football

Association, reunindo dezenas de col谷gios que j芍 praticavam, cada um ao seu modo, o esporte.

Mas 谷 importante destacar que estas regras surgiram por uma demanda da burguesia, visto que

o formato origin芍rio do esporte, surgido em plena Revolu??o Industrial na primeira d谷cada do

s谷culo XIX, carregava a viol那ncia, a revolta e as insatisfa??es do operariado explorado,

segundo Magalh?es (2010). De acordo com a autora, ※foi exatamente para controlar as classes

mais baixas e a viol那ncia do jogo que se imp?s regras ao futebol, que se tornou uma importante

每 e interessante para as elites 每 v芍lvula de escape dos explorados§ (Idem., p. 14).

Esta breve retomada hist車rica pode revelar ind赤cios da composi??o generificada que

permeia as pr芍ticas esportivas, neste caso, o futebol. Viol那ncia, sangue, brutalidade, for?a,

revolta... seriam estes elementos, sentimentos, viv那ncias, caracter赤sticas, esperadas, em uma

cultura como a nossa, das mulheres? Estariam as mulheres permitidas a experimentar estas

viv那ncias? Pensamos juntamente com Adelman (2006, p. 11) que ※o campo das pr芍ticas

esportivas e corporais 谷, com certeza, um terreno extremamente f谷rtil para testar hip車teses

sobre as mudan?as nas rela??es e representa??es de g那nero na sociedade contempor?nea§.

Em pleno s谷culo XXI, essa regula??o em torno de uma norma que aponta para uma

sociedade heteronormativa 谷 propagada por diversos vetores, sendo a m赤dia e/ou as tecnologias

digitais, artefatos culturais que agem com muita pot那ncia na [re]produ??o de discursos que, de

certa forma, legitimam o lugar de poder do homem (assim, no singular, por representar tamb谷m

um 每 e n?o m迆ltiplos 每 modelo[s] de homem) em detrimento do lugar muitas vezes

pormenorizado das mulheres (aqui, no plural, porque quando se trata de futebol, caberia a todas

elas) na sociedade. Diante disso, o objetivo desse texto 谷 compreender como a apropria??o de

jogos marcadamente masculinos, como o futebol, pelas mulheres e o seu tr?nsito nestes espa?os

reverberam nos discursos sexistas que habitam as redes sociais. Nos movimentamos no corpo

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deste texto com base em duas perguntas: o que tem sido dito sobre as jogadoras nas redes

sociais? O que representa estes corpos na Copa do Mundo de Futebol Feminino 2019?

Para tanto, recorremos a uma an芍lise cultural dos coment芍rios de homens/mulheres em

p芍ginas no Facebook entre os dias 07 de junho a 07 de julho de 2019 (per赤odo dos jogos), que

faziam refer那ncia 角 Copa do Mundo de Futebol Feminino 2019, veiculadas em duas fanpages

de esportes: Globo Esporte e UOL 每 Esporte Interativo. Entendendo as redes sociais como

pedagogias culturais na constitui??o de subjetividades atravessadas pelo g那nero, a imers?o dos

nossos olhares se deu nos 200 primeiros coment芍rios de cada not赤cia 每 os mais curtidos, mais

respondidos 每 com base em uma pesquisa, destas not赤cias, impulsionadas pelas palavras-chave:

※sele??o§, ※sele??o feminina§ e ※copa feminina§. De modo breve, tomamos pedagogias

culturais como uma ※ferramenta te車rica acionada para discutir a rela??o entre artefatos da

cultura e processos educativos§ (ANDRADE e COSTA, 2015, p. 49). Para as autoras, ※o

conceito de pedagogias culturais tem sido 迆til tanto para expandir, multiplicar e matizar o

entendimento sobre pedagogia quanto para explorar as qualidades pedag車gicas da vida social§

(idem).

Para as an芍lises, utilizamos um repert車rio te車rico dos Estudos Culturais (COSTA e

ANDRADE, 2015; WOODWARD, 2014), Estudos de G那nero e Sexualidade (LAURETIS,

1994; LOURO, 1997; MEYER, 2004) e Corpo (GOELLNER, 2005; MOR?O e MOREL,

2005), compreendendo as tecnologias digitais como facilitadoras de sociabilidades e de

educa??o em sentido ampliado 每 aquela que ocorre nos mais variados espa?os sociais, escolares

ou n?o 每 em torno das possibilidades da viv那ncia de g那nero e/ou sexualidades[s] destes corpos

- lidos como femininos - e que entram em campo fugindo das regras pr谷-definidas pela cultura.

Dialogamos nesta pesquisa com autores como Mart赤n-Barbero (2014), compreendendo

que vivemos, hoje, n?o apenas em uma sociedade com sistema educativo, mas uma sociedade

educativa, cujos processos pedag車gicos atravessam tudo. Inseridos/as como estamos em um

aprofundamento das rela??es sociais mediadas pelas tecnologias, podemos tecer reflex?es

sobre as potencialidades pedag車gicas dos artefatos culturais, a exemplo da internet,

particularmente das redes sociais, na constitui??o das formas (aceitas e valorizadas) dos

sujeitos se relacionarem, pensarem, se moldarem e constru赤rem suas identidades, ※[...] um novo

modo de rela??o entre os processos simb車licos 每 que constituem o cultural 每 e as formas de

produ??o e distribui??o de bens e servi?os§ (MART?N-BARBERO, 2014, p. 79).

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A cultura, portanto, como um sistema partilhado de significados (WOODWARD,

2014), se evidencia como uma potente ferramenta multiplicadora de sentidos, produzindo, por

meio de suas representa??es, formas de os sujeitos serem interpelados, sacudidos e conhecerem

outras maneiras de estar e se posicionarem no mundo. ? na cultura tamb谷m, conforme Meyer

(2004, p. 15), ※[...] que se produzem sentidos m迆ltiplos e nem sempre convergentes de

masculinidade e feminilidade§. Ainda segundo a autora, a educa??o engloba um complexo de

for?as e de processos que compreende tamb谷m os meios de comunica??o de massa, os

brinquedos, a literatura, o cinema, etc., ※[...] no interior dos quais os indiv赤duos s?o

transformados em 每 e aprendem a se reconhecer como 每 homens e mulheres, no ?mbito das

sociedades e grupos a que pertencem§ (MEYER, 2004, p. 15).

Antes de darmos seguimento 角s nossas reflex?es e an芍lises, indicamos como tomamos

tr那s conceitos centrais em nossas an芍lises, quais sejam: cultura, g那nero e sexualidade. Na

perspectiva dos Estudos Culturais, esses tr那s conceitos s?o tomados como constru??es

culturais, que ocorrem em processos nunca prontos, fixos ou finalizados. Cultura 谷 um campo

de luta e de contesta??o em torno dos sentidos (HALL, 2019). G那nero seria a constru??o

cultural das masculinidades e das feminilidades, seguindo ou burlando as regras sociais bin芍rias

e dicot?micas que ligam, imediatamente, a homens e mulheres, respectivamente (LOURO,

1997). Por sua vez, a sexualidade seria a manifesta??o dos desejos afetivo-sexuais por pessoas

do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos, o que se manifesta, muitas vezes, por meio

de borramentos das fronteiras da heterossexualidade (LOURO, 2000).

1? TEMPO 每 FUTEBOL COMO UM ESPA?O MASCULINIZADO. E QUANDO A

MULHER ENTRA EM CAMPO?

Na hist車ria da sociedade ocidental, em espec赤fico, a divis?o sexual do trabalho

(HIRATA e KERGOAT, 2007) foi apontando espa?os diferentes para mulheres e homens, com

mudan?as progressivas que se manifestam at谷 os dias de hoje por meio dos movimentos

feministas e de mulheres, que passaram a ocupar (e exigir a ocupa??o de mulheres em) espa?os,

tanto nas esferas p迆blicas quanto privadas. Assim como a ci那ncia 谷 considerada androc那ntrica

(SILVA, 2008), o futebol tamb谷m se constitui nesta perspectiva, na medida em que foi

organizado por e para homens, apresentando, especialmente nas 迆ltimas d谷cadas, a presen?a

de mulheres que buscaram/buscam borrar as fronteiras, a partir da ocupa??o de espa?os que

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