Relatório de Estágio - HISTÓRIA



FABIANO LORENZON VALER

OS ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE GLBT E A

CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE HOMOSSEXUAL

CANOAS, 2007

FABIANO LORENZON VALER

OS ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE GLBT E A

CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE HOMOSSEXUAL

Trabalho de Conclusão de História/Licenciatura Centro Universitário La Salle – Unilasalle Curso de História Orientadora: Maria Cristina Caminha de Castilhos França

CANOAS, 2007

DEDICATÓRIA

À minha família, mãe, pai, irmão mais novo, por todo o incentivo dado. Em temáticas que envolvem estigmas, como é o do nosso caso, muitas vezes o silêncio e o respeito são as contribuições mais oportunas.

AGRADECIMENTOS

Agradeço à humanidade por me possibilitar ter acesso a minha problemática de pesquisa. Não esquecendo, é claro, das divindades, de minha orientadora, além dos proprietários do Blue Space e do Soft. A todos, muito obrigado!!!

“O que é bom em segredo

é melhor em público”

(Racine*)

RESUMO

Existe alguma relação entre a ou as identidades homossexuais e seus espaços de sociabilidade? Esta é a nossa meta de pesquisa. Mesmo nos dias atuais, com toda a liberdade aparente, o estigma ao grupo GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros) persiste e muitos homossexuais saem em busca de novos parceiros (sexuais e afetivos) além de amizades nos referidos espaços de sociabilidade. Mesmo que a intenção seja “apenas se divertir”, porque esta atitude não se dá em um local heterossexual? Para analisarmos este fenômeno, que ganhou destaque a partir do final da década de 1960, utilizaremos a ferramenta antropológica da observação participante, bem como de entrevistas semi-estruturadas. O local foco será o “Blue Space”, que está há mais de 20 anos no mercado GLBT gaúcho. Como contraponto de análise, será utilizado o “Soft”, um cabaret homossexual direcionado, entre outras coisas, à sexualidade. Pseudônimos para a preservação da imagem destes espaços e agentes sociais. Tudo isso, em uma perspectiva histórica, com destaque a história do tempo presente, isto é, do final dos anos 1990 até o ano atual, 2007. Por fim, refletiremos sobre as representações virtuais destes espaços e de seus freqüentadores, a partir da página da internet intitulada “Orkut”, mais especificadamente aos sub tópicos, designados “comunidades”, relacionados a tais espaços e a Luana de York, Top Drag do Blue Space.

Palavras-chave: Homossexualidade, Espaços de Sociabilidade GLBT, Estigma Homossexual, Representação Social e Identidade de Gênero;

ABSTRACT

Have some relation between or the identities homosexuals and its spaces of sociability? This is our goal of research. Exactly in the current days, with all the apparent freedom, the stigma to group GLBT (Gays, Lesbians, Bisexuals and Transgender) persists and many homosexuals leaves in search of new partners (sexual and affective) beyond friendships in the related spaces sociability. Exactly that the intention is "to only have fun itself", because this attitude is not given in a heterosexual place? To analyze this phenomenon, that gained prominence from the end of the decade of 1960, we will use of the anthropological tool of the participant comment, as well as of half-structuralized interviews. The local focus will be the "Blue Space", that it is more than has 20 years in market GLBT gaucho. As analysis counterpoint, it will be used "homosexual Soft", one cabaret directed, between other things, to the sexuality. Social pseudonyms for the preservation of the image of these spaces and agents. Everything this, in a historical perspective, with prominence history do present time, this is, do final dos years 1990 until the current year, 2007. Finally, we will reflect on the virtual representations of these spaces and its frequent, from the page of the entitled internet "Orkut", more specific to sub topical, assigned "communities", related to such spaces and the Luana of York, Top Drag of the Blue Space.

Key words: Homosexuality, Spaces of Sociability GLBT, Homosexual Stigma, Social Representation and Identity of Gender.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 9

2 A HOMOSSEXUALIDADE PELAS PÁGINAS DA HISTÓRIA: UMA ABORDAGEM ENSAÍSTICA............................................................................................. 11

1. A homossexualidade na antiguidade................................................................................. 11

2. Discurso religioso versus ciências: da sodomia ao homossexualismo.............................. 12

3. A saída do armário: O movimento GLBT e a crescente visibilidade da homossexualidade................................................................................................................... 16

1. Opressão e lutas: a batalha pela conquista do respeito: De Ulrichs a Stonewall Inn ................................................................................................................................................. 17

2.3.2 O movimento homossexual na Terra Brasilis: Entre a macro e a micro esfera política..................................................................................................................................... 21 2.3.3 Reflexos da visibilidade: Os espaços de sociabilidade GLBT .......................................25 3 A TEORIA COMO O MAPA DEPESQUISA.................................................................28 3.1 “Olhos de águia: A visão panorâmica”.............................................................................28 3.2 Homossexual: Um sujeito socialmente e historicamente construído................................30 3.3 O estigma homossexual.....................................................................................................32 3.4 Será o homossexual homogêneo?......................................................................................35 3.4.1 O ideal de masculinidade................................................................................................37 3.4.2 Parafraseando a feminilidade..........................................................................................40 3.5 Homossexualidade: Representações Múltiplas................................................................. 42 3.6 Os espaços de sociabilidade ou os “pedaços” GLBT....................................................... 44 4 ENTRE A PESQUISA DE CAMPO E A VIDA PESSOAL. MÚLTIPLAS FACETAS PARA UM MESMO FIM: O RESGATE DA HISTÓRIA DE UM DETERMINADO GRUPO SOCIAL.................................................................................................................. 48 4.1 O método acadêmico .........................................................................................................48

4.2 A inserção em campo: relatos de um jovem pesquisador...................................................52

5 BLUE SPACE E CABARET SOFT MODELOS DISTINTOS PARA UM MESMO FIM, A SOCIABILIDADE HOMOSSEXUAL.................................................................. 62 5.1 A cena gay porto alegrense e a ditadura militar: pelos olhos do documentário Flores de 70......................................................................................................................................... 63 5.2 Blue Space, um histórico peculiar.................................................................................. 67 5.3.Personagens e lugares ou lugares e personagens........................................................... 71 5.3.1 Os personagens............................................................................................................... 71 5.3.2 Os lugares........................................................................................................................ 77 5.4 Os ritmos da cena gay porto alegrense de meados da década de 1990 aos nossos dias........................................................................................................................................... 80 6 ENTRE PERGUNTAS E RESPOSTAS: UMA ANÁLISE DE DADOS....................... 82 6.1 Enigma e Fim de Século: Dois espaços que marcaram a sociabilidade GLBT na capital gaúcha......................................................................................................................... 84 6.2 Universo GLBT: um olhar histórico para a compreensão da contemporaneidade... 88 7 CONCLUSÃO..................................................................................................................... 96 REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 99

ANEXO A.............................................................................................................................. 103

ANEXO B.............................................................................................................................. 103 ANEXO C.............................................................................................................................. 103 ANEXO D.............................................................................................................................. 103 ANEXO E.............................................................................................................................. 103 ANEXO F.............................................................................................................................. 103 ANEXO G.............................................................................................................................. 103 ANEXO H.............................................................................................................................. 103 ANEXO I.............................................................................................................................. 103 ANEXO J............................................................................................................................... 103

1 INTRODUÇÃO

Esta monografia é um dos requisitos para a obtenção do diploma de licenciatura, do curso de História do Unilasalle. A idéia de pesquisar os espaços de sociabilidade GLBT surgiu de 2003, 2004 quando, embalados pela contagiante música de tais espaços, pensamos o porquê de não estudarmos este tema. Passada a “febre” inicial, no final de 2005 falamos com a nossa hipotética orientadora, no caso a Profª Maria Cristina França, sobre a idéia de este assunto ser por nós pesquisado em nosso TCC, ou melhor, Trabalho de Conclusão de Curso.

Podemos dividir esta pesquisa em quatro etapas. A primeira varreu todo o ano de 2006 e consistiu em uma revisão teórico-bibliográfica sobre o tema, bem como a busca pelo recorte de pesquisa. Em um segundo momento, no primeiro semestre de 2007, sob a égide da profª Rejane Penna, cursamos a disciplina Trabalho de Conclusão de Curso I, o que deu origem ao nosso projeto de pesquisa, que por motivos de adaptação, teve que sofrer algumas mudanças. A terceira etapa consiste na pesquisa propriamente dita, isto é, as observações participantes, bem com as entrevistas semi-estruturadas. Por fim, temos o ápice de qualquer pesquisa, que nada mais é que a transcrição e compilação das idéias pesquisadas que devem ser transpostas ao papel, transformando-se assim, em monografia.

Escolhemos este tema, por vezes ardiloso, por razões simples. A primeira delas é a escassez de pesquisas na área da história que versem sobre a homossexualidade, com a exceção do historiador norte-americano James Green, que sintetizou a história das sociabilidades homossexuais nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo ao longo do século XX, ou melhor, dos anos 1900 ao começo da década de 1980. Portanto, ele não discute a homossexualidade no pós-Aids ou atual momento histórico. A importância de tratar esse tempo se deve ao fato desta doença, o “câncer gay”, como era conhecida na época de seu surgimento, ter causado profundas transformações nas representações acerca das homossexualidades, bem como nas estratégias dos movimentos sociais para contornar o

estigma da homossexualidade. Por outro lado, existem as razões pessoais que guiaram o nosso olhar em direção a este tema. Portanto, como texto acadêmico não cabe discorrer o tema a partir de juízos de valor, tampouco submetê-lo às próprias impressões e vivências, isto é, a monografia é baseada em um corpo teórico, e não tem por principio ser favorável ou contrária ao “estilo de vida” homossexual. Entretanto, nos autodenominamos “militante acadêmico”, pois a inserção desta temática no rol de discussões acadêmica é sim uma forma de luta e de visibilidade à causa homossexual. Inclusive, porque para defendermos uma cidadania homossexual o mínimo que se espera é que o sujeito homossexual tenha o direito a ser integrante da história, a possuir uma memória de seu grupo social.

Para chegarmos a este texto escrito, utilizamos o método da “observação participante”, feito em dois espaços de sociabilidade GLBT. Nosso trabalho foi direcionado para os espaços privados de sociabilidade, mais especificadamente as casas noturnas homossexuais. As trocas homossexuais, afetivas, sexuais ou sociais, ocorrem nos locais mais variados. Desde praças, passando por banheiros públicos, saunas, chegando a bares e casas noturnas GLBT. Há ainda a internet, que é um grande pólo de encontro para homossexuais, especialmente os que “estão dentro do armário”, isto é, que não assumiram a sua sexualidade, e que conseguem encontros casuais graças a rede mundial de computadores. Pesquisamos o Blue Space, que é um local de tradição GLBT na capital gaúcha, especialmente na área de espetáculos de transformistas, e que está há 24 anos no mercado homossexual porto alegrense. Como contraponto de análise e para poder legitimar algumas de nossas hipóteses de pesquisa, observamos e entrevistamos o proprietário do Cabaret Soft, que também possui espetáculos de transformistas, mas abriga em seus aposentos itens emblemáticos da “marginalidade gay”, isto é, do “dark room”, quarto escuro onde há a possibilidade de prática do sexo casual, além dos habituais “transgêneros”, isto é, travestis, top drags, transformistas, etc. Por fim, esperamos contribuir com a discussão sobre a homossexualidade e que este tema deixe de causar desconforto e passe a ser tratado abertamente.

2 A HOMOSSEXUALIDADE PELAS PÁGINAS DA HISTÓRIA: UMA ABORDAGEM ENSAÍSTICA

Relações entre sujeitos do mesmo sexo sempre existiram. Mesmo entre os animais, o ato sexual entre dois machos ou duas fêmeas está presente. O que propomos neste capítulo é uma vigem pelos processos históricos que levaram a construção do atual sujeito homossexual. A partir dos subtítulos abaixo descobriremos que a idéia da homossexualidade não é a - histórica, como muitos grupos defendem, mas sim uma construção social, que reflete cada período da história da humanidade. Desde a valorização de um sujeito bem sucedido, cidadão, e mais velho que assume o papel ativo na relação sexual com um adolescente, na Grécia e Roma clássicas, passando pela inquisição e pelo discurso religioso do pecado da sodomia até chegarmos à aberta luta pelos direitos dos homossexuais, no mundo ocidental do pós-guerra.

1. A homossexualidade masculina na antiguidade clássica

Faz parte do senso comum a idéia de que a homossexualidade era aceita na antiguidade clássica, isto é, Grécia e Roma. Que estas duas civilizações inclusive incentivavam a homossexualidade, a relação afetivo-sexual entre atores sociais do mesmo sexo. Logicamente, se compararmos estes povos clássicos, com a pregação religiosa que ultrapassou as cercanias do medievo, somente sendo substituída pelo discurso científico do século XIX, Grécia e Roma foram cidades que relativamente respeitavam os direitos dos homossexuais. No entanto, a partir de um olhar crítico, perceberemos que o quadro histórico não possui tintas tão belas assim. O que era aceito e socialmente valorado, era o fato de um sujeito, mais velho, cidadão e bem sucedido “educar” um jovem adolescente, para ele ser um bom cidadão. Este “educar”,

nada mais era que exercer o papel sexualmente ativo perante o jovem pretendente a cidadão grego ou romano. Esta relação possuía uma dupla finalidade. Mostrar o prestígio sócio-econômico do sujeito mais velho e como método de aprendizagem, ou “rito de iniciação”, como diz o psicólogo Sérgio Gomes (2007), para o pré-adulto, no caso o adolescente. Sobre a homossexualidade na Grécia antiga:

[...] para um cidadão, a passividade sexual é que representa problema. [...] Ora, a função social da pederastia é a de ensinar ao rapaz a tornar-se um cidadão, consequentemente, um homem sexualmente ativo, por meio de uma situação paradoxal de passividade na relação amorosa. [...] A relação cessa quando o jovem rapaz deixa de sê-lo: o sinal da metamorfose é indicado pelo surgimento de pêlos, no queixo e nas pernas. Via de regra, se é rapaz entre os doze anos, a idade da flor, e os dezessete, a idade dos pêlos. (GOMES apud CATONNÉ, 2007).

Nesta mesma linha de raciocino, afirma Peter Fry e Mac Rae que na Roma antiga a passividade sexual de um cidadão era muito mal vista. Sendo que esta “hierarquia sexual” refletia uma “hierarquia social” (1983, p.53). Portanto, a partir das palavras do historiador Jean-Philippe Catonné e dos antropólogos Peter Fry e Mac Rae, percebe-se claramente que a passividade sexual não era aceita. Além disso, estas relações sexuais deixavam de existir quando o rapaz, ou o “eromenes” se tornasse adulto. Não havia o sujeito homossexual, havia sim a valorização deste aprendizado mais “próximo” entre um homem mais velho, o “erastes” - ou um urso ou uma Irene na gíria dos homossexuais de hoje – e um jovem adolescente. Além disso, a existência de casais declaradamente homossexuais, não era uma prática comum na antiguidade clássica. Uma relação estável entre dois homens na Atenas clássica, seria algo inimaginável. Obviamente, que “dentro do armário” muitos sujeitos deveriam vivenciar a sua homossexualidade como uma inversão de papéis, no qual o jovem adolescente adotaria uma postura sexualmente ativa perante seu mestre. Mas isso, geralmente a documentação omite, e não temos o recurso da história oral para percebermos estas nuances da sexualidade humana.

Logo, a relação homossexual na antiguidade clássica não era completa, uma vez que a passividade sexual não era socialmente aceita e a relação entre dois sujeitos homossexuais adultos era algo quase que inimaginável. Como defendemos uma noção ampla de homossexualidade, além dos muros do ato sexual, abrangendo afeto e companheirismo, consideramos a sociedade greco-romana como não tolerante à homossexualidade como um todo. Se não há uma cultura homossexual, com casais do mesmo sexo assumindo o seu companheirismo, então não há respeito e valorização do indivíduo homossexual. Inclusive porque, mesmo no Brasil atual, existem inúmeros sujeitos, “homens de bem”, “pais de família”, que procuram resolver seus anseios sexuais com outros homens em saunas. Isso é valorização da homossexualidade? Cremos que não. Na antiguidade clássica, o ato da pederastia – que era como os gregos denominavam esta forma de relação entre um homem mais velho e um adolescente, sem a conotação dos dias atuais de ato sexual com crianças – era um mecanismo de poder, ativo versus passivo, bem como uma pedagogia para a formação do cidadão greco-romano.

2.2 Discurso religioso versus ciência: da sodomia ao homossexualismo

Embora seja incorreto afirmar que a homossexualidade era aceita na antiguidade, ela foi muito mais tolerada na sociedade greco-romana que no posterior discurso religioso, presente na Europa e no mundo ocidental. A partir de uma leitura descontextualizada do Velho Testamento, religiosos passaram a pregar o pecado da sodomia, isto é, a relação sexual entre dois indivíduos do mesmo sexo, especialmente a penetração anal. Olhando sob esta ótica do pecado, na antiguidade clássica as relações homoeróticas não eram consideradas pecado, no máximo havendo um desprezo social perante o ser sexualmente passivo e a demonstrações públicas de afeto homossexual. No entanto, a falácia religiosa é implacável, a relação entre dois indivíduos do mesmo sexo é considerada pecado e ponto final. A hegemonia da religião perderá relativo espaço a partir do século XIX, quando a ciência médica entra em cena e classifica a homossexualidade como doença. Deixando ela de ser pecado, que inexoravelmente levaria às trevas do inferno, para ser tratada como doença, passível de cura.

Conforme o historiador Ronaldo Vainfas (1986, p. 64-70), em seu livro “Casamento, amor e desejo no ocidente cristão”, a palavra sodoma tem origem no Antigo Testamento da Bíblia, sendo a homossexualidade condenada em alguns trechos deste documento pré-cristão. Vainfas afirma ainda que foi o apóstolo Paulo quem “retomou e ampliou” a condenação aos atos homoeróticos, ampliando este conceito à homossexualidade feminina. Credita-se a ele a utilização do termo “sodomita”, em alusão direta ao texto de destruição de Sodoma, do Velho Testamento. Por ventura, nos primeiros séculos da era cristã o conceito de sodomia era muito difuso, englobando inclusive a cópula anal entre casais heterossexuais. Sobre a descontinuidade histórica da condenação da sodomia no medievo cristão, afirma Vainfas:

Na Idade Média, a condenação da sodomia conheceu várias nuanças: foi pouco rigorosa antes do século XII e violentíssima nos séculos XIII e XIV; mais indulgente com crianças e adolescentes do que com os adultos; menos severa com mulheres, mais hostil em relação a clérigos do que com respeitos a leigos. E, ao nível dos atos, foi particularmente severa em relação ao coito anal. (1986: 70)

Nota-se então, segundo Vainfas (1986), que nos primeiros séculos da era cristã, havia o ideal da virgindade, do não casamento, já que o mundo estava passando pela transição da queda do Império Romano e caindo em um campo desconhecido, com novas estruturas sociais, chamado Idade Média. Antes do século IX, inclusive o casamento heterossexual não era plenamente recomendável, uma vez que, envolvia os prazeres mundanos da carne. Após o século IX é que o foco de perseguição da Igreja passou a ser as atividades extraconjugais, sendo permitido, com as devidas considerações, que indivíduos casados tivessem prazer sexual em seu leito conjugal. Para Vainfas, o III e IV Concílios de Latrão, ocorridos em 1179 e em 1215, foram categóricos na condenação da sodomia. Inclusive penalizando padres que acobertassem tais práticas ditas pecaminosas. A partir destes dois eventos, o cerco contra as atividades sodomitas ou homoeróticas foi acentuado. Este autor conclui que este aumento da repressão sexual entre os séculos XII e XIII é uma “técnica de poder” da Igreja Católica medieval para incentivar a população a deixar de lado os prazeres terrenos, neste caso da carne, para um maior “amor a Deus” e “respeito ao clero”. Como maior ferramenta da Igreja nesta construção do poder está a confissão, que se tornou obrigatória no IV Concílio de Latrão, de 1215.

A renascença foi a aurora da beleza artística da humanidade. Roncierè, que assina um capítulo sobre a elite toscana no período renascentista, pertencente ao livro “História da Vida Privada 2”, organizado por Georges Duby (1990, p. 297), afirma existirem homossexuais “em toda parte”, a contar “Nápoles, Bolonha, Veneza, Gênova”. Como “prova” disso, este autor menciona as falas de condenação à homossexualidade, ditas por pregadores toscanos, como Giordano de Pisa, ainda na década de 10, do século XIV e por Bernardino de Siena, que utilizou a oratória anti-sodomia por volta de 1420, portanto um século após Giordano de Pisa. Inclusive menciona Roncierè, que os “bordeis” foram incentivados na região de Florença e Veneza, já que eram vistos como um mal menor, frente a homossexualidade. Por outro lado, o mais interessante, ainda segundo Roncierè (1990, p. 297) de que as “discussões alarmadas” e as “medidas muito severas”, por parte das autoridades toscanas, denota que cidades como Siena e principalmente Florença, foram centros de atração de homossexuais. Inclusive o autor menciona que florenzer tem o significado de homossexual na língua alemã, o que mostra a fama que esta cidade teve nos idos da Renascença.

Não obstante o raiar do sol da modernidade, o fim do período medieval, não significou tolerância para com os homossexuais. A fase conhecida como História Moderna foi de grande perseguição dos atos sodomitas, especialmente pelos Tribunais da Inquisição. Mas cabe lembrar que a nova oferta de religiões, surgida com a reforma de Martinho Lutero, a partir da segunda década do século XVI, não altera o quadro de repressão ao “pecado” da sodomia[1].

Com o aumento das relações capitalistas, bem como o crescimento das cidades e a crescente crença no poder da ciência, além da necessidade de controle da população por parte de um Estado centralizado, surge na metade final do século XIX a explicação científica para a homossexualidade. Aparece a palavra “homossexual” para categorizar indivíduos que se sentem sexualmente e afetivamente atraídas por indivíduos do mesmo sexo biológico. Com isso, as religiões perdem sua hegemonia sobre o discurso acerca da homossexualidade, entrando parcialmente em seu lugar a ciência e a “doença” do “homossexualismo”. Foi o médico húngaro Karoly Maria Benkert que cunhou o termo homossexualismo, em 1869, expressão esta que tem o claro significado de doença e não de uma cultura, de um estilo de vida. (FRY; RAE, 1983, p. 61).

Nos primórdios do século XX, Sigmund Freud introduz um novo discurso sobre a homossexualidade, na qual busca explica-la a partir de uma análise da mente, dos distúrbios psicológicos, não a percebendo sob uma ótica moralista, mas sim, reforçando o ideário cientifico. (Lacerda et al, 2002). Uma vez que, como se tratava de algo fora do padrão considerado normal, a homossexualidade podia ser tratada, utilizando-se para isso de psicanálise e métodos mais “científicos”, como os utilizados nos antigos manicômios. Entretanto, este novo ideário científico não altera automaticamente as antigas crenças sobre o pecado da sodomia, servindo inclusive para inflamar os ânimos de sujeitos e instituições mais moralistas. (LACERDA apud BULLOUGH, 2002). Sobre o discurso psicológico, que depois se transforma em senso comum, afirma Peter Fry e Mac Rae:

O famoso paradigma da fábrica de bichas constituída de uma mãe dominadora e de um pai ausente é seguramente apenas uma reiteração da ideologia de que apenas a família patriarcal é realmente saudável, ignorada a realidade da vida familiar em geral. (1983, p. 74)

Percebe-se claramente que tanto as idéias de Bullough como as de Fry e Rae chegam a uma mesma conclusão: que tanto o pecado da sodomia quanto o discurso médico são formas de poder de grupos dominantes, defensores da tradicional família patriarcal. Nos Estados Unidos esta simbiose entre ciência, religião e progresso dizimou e destruiu a identidade dos índios berdaches daquele país. (FRY; RAE, 1983). Os berdaches eram homossexuais que desde crianças eram tratados como mulheres, em certas comunidades indígenas norte-americanas, compondo uma “forma institucionalizada” de homossexualidade masculina (BENEDETTI, 2005). Segundo Fry e Rae, os berdaches foram liquidados da sociedade norte-americana, não existindo mais atualmente. Sobre as características deste fim dizem os autores: “seu fim foi brutal perante a ‘civilização’ que os conquistou em nome de Cristo e do progresso” (1983, p. 59). Fry e Rae (op. cit.) narram ainda as humilhações que estes indivíduos sofreram por parte dos colonizadores brancos e mesmo por órgãos oficiais do governo, como o “Bureau de Assuntos Indígenas”, o equivalente a nossa Funai. Esta instituição pública norte-americana obrigava os berdaches a se vestirem conforme seu sexo biológico. Além disso, os berdaches foram coagidos a adotarem práticas sociais masculinas, o que não era comum em suas sociedades de origem, com regras não ditadas pelo Estado norte-americano.

Por fim, percebemos a transformação histórica do conceito de homossexualidade. Entre a pederastia grega, a sodomia cristã ou a prática cientifica há muitas continuidades e descontinuidades. Além disso, mesmo em uma determinada época histórica, a idéia e o que é ou não aceito no que tange a homossexualidade pode variar conforme a população e os interesses centrais de determinados grupos dominantes. Observa-se, nesse sentido, o caso das cidades renascentistas, onde o número de homossexuais era expressivo, já que Florença, por sua vez, era um grande pólo de atração de jovens artistas e de potenciais homossexuais.

2.3 A saída do armário: O movimento GLBT e a crescente visibilidade da homossexualidade

Como vimos nas páginas acima, o homossexual foi historicamente marginalizado, tratado com escória da sociedade. Porém, a categorização médica serviu para abrir os olhos dos homossexuais. Se a idéia de pecado perturbava os próprios sujeitos praticantes da sodomia, bem como seus familiares e a sociedade na qual estavam inseridos, o discurso científico deu uma relativa guinada no tratamento dados a tais indivíduos. A ciência não busca a punição, mas sim a cura do “problema” do “homossexualismo”, como se trata um câncer ou uma hérnia de disco. O homossexual já não vai mais para a fogueira ou para o inferno, sendo redirecionado para os consultórios médicos, com destaque aos psiquiátricos e psicanalíticos. Neste contexto de perseguição por parte da ciência, do Estado e da religião, surge o gérmen do movimento homossexual. Iniciado pelo advogado alemão Karl Ulrichs, tido como o primeiro militante gay, cujas idéias remontam ao final do século XIX. A luta homossexual sofre uma pausa no período entre guerras, isto é, no interregno entre a primeira e segunda guerra mundial. Ressurgindo com mais força em meados dos anos 1960, nos EUA e Europa, com o movimento “gay power”. Um dos reflexos diretos desta crescente visibilidade, conquistada pelo crescente movimento pelos direitos dos homossexuais, foi o aumento do número de locais comerciais destinados ao público GLBT, no Brasil e no mundo.

2.3.1 Opressão e lutas: a batalha pela conquista do respeito De Ulrichs a Stonewall Inn

Em meio a tantas lutas pelo direito de se amar a um individuo do mesmo sexo e ao grande estigma social da homossexualidade (GOFFMAN, 1988), eis que surge no final do século XIX um ser iluminado, o advogado alemão Karl Heinrich Ulrichs (1825 – 1895) o primeiro militante gay da história. Ulrich conjugou teoria e prática, sendo ao mesmo tempo ativista e teórico da homossexualidade. Segundo a jornalista Thereza Pires, do portal da internet Mix Brasil[2], em matéria que adapta um texto em inglês de Paul J. Nash, dos EUA, Ulrich trabalhou na corte de Hildesheim, do Reino de Hannover, período este que a Alemanha ainda não era unificada. Competente ativista político e inspirado orador, foi afastado de seu trabalho em virtude da sua declarada homossexualidade. Mais tarde, ao escrever tratados de defesa da livre expressão sexual, teve seus livros retirados de circulação pela polícia de Berlim. Suas idéias iam além da defesa dos homossexuais, incentivando que gays e lésbicas assumissem publicamente sua orientação sexual. Ele próprio escolheu o dia 26 de maio de 1864, dia em que seus livros foram liberados pelo governo alemão, como data inaugural do movimento de defesa dos homossexuais.

Peter Fry e Mac Rae incluem o médico Benkert com um sujeito declaradamente homossexual, nas últimas décadas do século XIX. Segundo eles, Ulrich criou, na metade final do século XIX, o termo “Uranista”, em alusão a musa grega “Urânia”, que inspirava amor entre sujeitos do mesmo sexo. (1983, p. 62). O termo “uranista” propunha a existência de um “terceiro sexo” tão natural quanto os outros dois. (1983, p. 82). A Alemanha é o centro da efervescência homossexual na virada dos séculos XIX para o XX. Embora existisse o artigo 175, do código penal alemão, que previa punição para os praticantes de atos homossexuais, a consciência homossexual ganha um grande impulso entre os alemães. Segundo Fry e Rae, após 1897 surgem os primeiros grupos de luta pelo respeito aos direitos dos homossexuais, liderado pelo médico judeu e homossexual Magnus Hierschfeld. Suas idéias atingem grande repercussão, inclusive com a adesão pública do líder do Partido Social Democrata, August Bebel, para a causa em defesa da homossexualidade. Estes autores afirmam que Berlim era a “capital da homossexualidade” nos década de 1920. (1983).

Fry e Rae debateram sobre a guinada da esquerda mundial, no que tange a livre vivência das sexualidades. Os comunistas anteriores a Revolução de Outubro não eram contrários a homossexualidade. Em 1919, Berlim sedia o 1º Congresso Internacional para a Reforma Sexual. Em 1928, no 2º Congresso, em Copenhague, Dinamarca, é criada a liga mundial para a reforma sexual. Alexandra Kollontai, líder bolchevista, participa ativamente desta liga. (FRY; RAE, 1983).

A URSS, pré-Stalin, defendia que a homossexualidade não era um problema legal, mas sim científico, se não defendendo pelo menos aceitando a livre escolha sexual de cada sujeito. Porém, com a tomada de poder por parte de Stalin, uma rígida moral foi gradativamente se instalando na terra dos cossacos. Para atingir esta meta de moralização da URSS, inúmeros homossexuais foram expulsos do Partido Comunista Soviético. Inclusive, em meados da década de 1930, muito homossexuais foram brutalmente assassinados pelo Estado soviético que além do poder político-militar possuía os meios de comunicação nas mãos, cabendo à imprensa a tarefa de inflamar os ânimos com violentas campanhas contra a homossexualidade. Inclusive a arte, através do Realismo Socialista e de seu maior expoente Máximo Gorki, serviu para difundir idéias homofobicas no seio da sociedade soviética. (FRY; RAE, 1983). Até hoje estas idéias continuam presentes na Rússia, haja vista as dificuldades que os grupos de direitos homossexuais têm para organizar uma Parada Gay em Moscou. Porém, somado ao jugo estatal, atualmente na Rússia, a Igreja Católica Ortodoxa Russa adota posição veementemente contrária aos direitos dos homossexuais. Sobre a homossexualidade na União Soviética, sintetizam os autores[3]:

Os stalinistas começaram a desenvolver uma visão da homossexualidade como produto da decadência do setor burguês da sociedade. [...] Finalmente em março de 1934, com o apoio pessoal de Stalin, foi introduzida uma lei punindo homossexuais masculinos com até oito anos de prisão (FRY; RAE, 1983, p. 89).

Os homossexuais historicamente foram muito perseguidos, embora não haja quase que nenhuma menção a tais atrocidades nos grandes veículos de divulgação de idéias, isto é, os meios de comunicação. Como no caso do holocausto nazista, em que as atenções são quase que totalmente voltadas a retratar a perseguição aos judeus, sem menção aos demais grupos que foram vítimas do governo de Hitler. Obviamente que eles foram o grupo social que numericamente tiveram mais baixas, entretanto outras minorias também foram perseguidas e altamente estigmatizadas, entre eles os homossexuais, que eram obrigados a desfilar com um triângulo invertido na cor rosa, costurado em suas roupas, mostrando para todos a sua condição de sujeito homossexual. Havendo uma repressão dupla: a do Estado Nazista Alemão e os olhares de menosprezo dos demais presos dos campos de concentração. Partimos daí para a constatação, existe algum filme de grande repercussão que verse sobre esta perseguição aos homossexuais? Algum grande diretor de Hollywood assinou alguma película sobre este tema? Não. [4] (FRY; RAE, 1983).

Peter Fry e Mac Rae, intelectuais homossexuais e participantes do movimento gay brasileiro, desde os seus primórdios no final da década de 1970, dão um tom poético à história de lutas e conquistas dos homossexuais brasileiros e mundiais. Para eles, que intitulam o surgimento do movimento de defesa GLBT como o nascer de uma estrela, esta luta que se iniciou no final do século XIX teve uma breve parada no período entre guerras, ressurgindo com maior força nos EUA, com a Frente de Libertação Gay e a, por assim dizer, gota d’água, se deu quando a polícia de Nova York invade o bar GLBT Stonewall Inn, no dia 28 de julho de 1968. Nesta data, os homossexuais não aceitaram passivamente a repressão do Estado e resistiram as investidas policiais. Houve alguns feridos. Nos dias seguintes, houve manifestações próximas a este local, onde sujeitos homossexuais empunhavam cartazes com os dizeres: “poder gay”, “eu gosto de rapazes”, “assuma-se e vá para as ruas”. Além disso, o grupo Frente de Libertação Gay, dos EUA, em seu jornal “Come Ou[5]t” intitulava o 28 de junho como o “Dia do Orgulho Gay”. Data que até os dias atuais norteia boa parte das paradas livres pelo mundo afora. “[...] a Rebelião de Stonewall, que é para o movimento homossexual algo parecido com a tomada da Bastilha para a Revolução Francesa” (FRY; RAE, 1983, p. 96 grifo nosso). Embora eles utilizem o termo “Rebelião”, acreditamos ser um termo um tanto passional, para dar a idéia de grandeza deste evento. Manuel Castells, por outro lado, também considera Stonewall Inn como um marco da retomada da luta homossexual no mundo e o ponto de partida para esta luta nos EUA, já que, como vimos a resistência homossexual surge na Europa do pré-guerra (CASTELLS, 2002, p. 248). Chamando este evento de “incursão violenta” ao contrário da terminologia utilizada por Fry. Logo, defendemos que a expressão “incursão violenta” é a mais apropriada para explicar esse fenômeno que o termo “rebelião”. Embora, ambos os autores defendam a relevância histórica do dia 28 de junho e da resistência de Stonewall Inn.

Percebe-se então que ao longo destes dois mil anos de civilização cristã, apenas anteontem, no final do século XIX é que os homossexuais ousaram ter voz e expressar publicamente suas opiniões que, ao contrário do que muitos pensam, não exige privilégios, mas sim respeito com as próprias escolhas. Não queremos com isso, afirmar que todos os homossexuais são sujeitos políticos e que tenham uma consciência cidadã de seus atos. A maioria, mesmo os integrantes das elites econômicas da sociedade, percebe a homossexualidade como um mero ato individual, sem saber elas que é sim um ato coletivo e político, já que questiona a ótica restrita da família patriarcal. [6].

Como sempre, os militantes que pretendiam politizar explicitamente a questão homossexual eram uma minoria. Mas o seu posicionamento refletia uma mudança mais generalizada entre uma proporção considerável da população homossexual (FRY; RAE, 1983, p. 96-97).

2.3.2 Movimento homossexual na Terra Brasilis: Entre a macro e a micro esfera política

Segundo os escritos de Luiz Mott, baseados em documentos da Santa Inquisição, o Brasil possui homossexuais ou sodomitas oficiais desde a segunda metade do século XVI, isto é, nos primeiros anos da colonização de fato de nosso país. O movimento gay brasileiro surge apenas na época da abertura política, isto é, no final dos anos 1970. No entanto, segundo o historiador norte-americano James Green, a década de 1960 viu nascer vários “jornais caseiros”, de circulação restrita, produzido por homossexuais com temas de interesse para esta comunidade. O mais significativo foi o “Snob”, que circulou entre 1963 a 1969 na capital fluminense, mais especificadamente entre amigos e conhecidos de seus idealizadores, nos bairros de Copacabana e Cinelândia na cidade do Rio de Janeiro. Esta publicação não tinha uma clara conotação política, se auto-declarando centrista. As pautas, como já foram mencionadas, tratavam de temáticas do cotidiano destes homossexuais, como entrevistas com renomados travestis da época. Ainda no caminho da análise de Green, o título “Snob” designava gente de bem, pessoa de bom gosto, servindo como uma afirmação de hipotéticos valores gays. Logo, segundo o autor, trata-se de uma publicação de afirmação de uma identidade homossexual, mesma que restrita a um restrito número de pessoas. (GREEN, 2000, p. 296 a 304).

Segundo James Green (2000), Peter Fry e Mac Rae (1983), a relação homossexual no Brasil historicamente se dava na dicotomia bicha-bofe, ativo-passivo. Até a década de 1970 este modelo de vivência da sexualidade era o que predominava em nosso país, daí a imagem do homossexual como um ser frágil e com muitos trejeitos femininos. Green propõe que este modelo começou a ser questionado no final dos anos 1960 e cita o caso da supra citada revista “Snob”, que em 1966 publicou um artigo questionador deste modelo binário ativo X passivo. Porém, este texto não reflete a opinião desta publicação como um todo, consistindo na opinião pessoal do colunista “Gato Preto”. Paralelo a isso, e sob o clima do Concílio Vaticano II e a emergência da Teologia da Libertação em nosso país, o padre e teólogo Jaime Snoek, de origem holandesa, publica um artigo na Revista Vozes, em 1967, defendendo os direitos dos homossexuais. Com isso, ele põe em cheque a afirmação de que a homossexualidade era doença, além de incentivar “amizades homossexuais”, isto é, a união entre dois homens ou duas mulheres, baseadas na fidelidade ao invés da promiscuidade. Entretanto, ele foi uma voz que não obteve eco na Igreja Católica. Finalmente, na metade final dos anos 1970, após a fase mais repressiva do governo militar, intitulada “anos de chumbo”, o mercado editorial e a resistência homossexual começam a ganhar grande destaque no Brasil. Os editores do “Snob”, que haviam encerrado suas atividades em 1969, criam uma nova publicação voltada ao público GLBT em 1976, o “Gente Gay”, que segundo Green, foi “a primeira de uma onda de novas publicações que marcaram o início de um movimento politizado de gays e lésbicas no país”[7] (GREEN, 2000, p. 314).

Na metade final da década de 1970 há uma efervescência das manifestações GLBT, reflexos do movimento internacional. Por esta época surge o grupo “Dzi Croquettes”, indivíduos com características efeminadas, mas preservando a sua masculinidade, destacando a liberdade sexual em seus espetáculos. Green afirma que este grupo “suscitava a questão de sua identidade sexual” (GREEN, 2000, p. 411). O Jornalismo Gay ganha destaque com a publicação “Gente Gay”, o “Gay Press Magazine”, além de colunas fixas em jornais de grande circulação, como a “Coluna do Meio”, assinada pelo jornalista Celso Curi, para o Jornal Última Hora, de São Paulo. Cabe lembrar que a Coluna do Meio, bem como o jornal Última Hora fazem parte do passado, não existindo mais. Green (2000) e Fry e Rae (1983).

Diferente dos espetáculos de travestis da Praça Tiradentes[8], que evocavam a beleza, a graça e o estilo clássicos femininos em seus retratos de mulheres, os quatorze membros do Dzi Croquettes se vestiam numa mistura de roupas masculinas e femininas. (GREEN, 2000, p. 410).

James Green (2000) explica-nos que já em 1976, o escritor paulista João Silvério Trevisan, que havia morado e tido contato com o movimento gay norte-americano no começo daquela década, tentou implantar um “grupo de discussão” entre universitários gays[9] brasileiros. Todavia, este núcleo de debates gays não obteve o êxito esperado, pelo simples fato de que a militância homossexual estava dividida, já que segundo os ditames da esquerda, o feminismo, o movimento negro, a luta homossexual entre outras era algo menor, frente aos graves problemas do país. Ou seja, a esquerda defendia uma união de marginalizados e não um pipocar de pequenos movimentos hipoteticamente sem expressão política. No entanto, com o início do processo da abertura política brasileira é criada a grande publicação política homossexual em nosso país, trata-se do “Lampião da Esquina”, editado por um seleto grupo de intelectuais gays, na cidade do Rio de Janeiro. Este nome, segundo Green (2000), é uma brincadeira com o leitor, já que faz alusão as ruas, por meio de seus lampiões, bem como a histórica figura da Guerra de Canudos, o “rei do Cangaço”.

Peter Fry, que fazia parte do conselho editorial do Lampião da Esquina, ao lado de Mac Rae (1983), constata que este jornal surge em 1978 e que buscou apoio de outros grupos socialmente marginalizados, como os negros ou as mulheres. No entanto, estes demais grupos não quiseram relacionar suas lutas a questão homossexual. Preconceito dentro do preconceito. Nesta reportagem, os responsáveis por este jornal gay carioca deixam expressa sua abertura a outros grupos sociais, no caso para o movimento negro que, conforme Peter Fry e Mac Rae, não uniram forças ao movimento homossexual[10].

Novamente nos trilhos de Green, Fry e Rae, fica claro que o primeiro grupo homossexual organizado de nosso país foi o Somos da capital paulista. Ele surge em 1978 sob a denominação provisória “Núcleo de Ação dos Direitos dos Homossexuais”. Por este nome ter uma característica altamente política, em um contexto de regime militar, isso desencorajou muitos homossexuais de participar deste grupo. No ano seguinte, após a disputa entre os defensores do nome “Somos”, em homenagem a uma publicação da capital argentina que perdurou de 1971 a 1976, e os demais que defendiam que uma palavra de luta aparecesse no nome deste movimento, propondo a denominação “Grupo de Afirmação Homossexual”, criou-se um nome que unisse as duas vertentes, surge aí o “Somos: Grupo de Afirmação Homossexual”. (GREEN, 2000, p. 432)

Green entrelaça história de grupo com o contexto do país. Segundo ele, em abril de 1980, “um grupo de cinqüenta gays e lésbicas assumidas” se juntaram a outros milhares de manifestantes, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, para apoiar as manifestações dos sindicalistas. “Os corajosos ativistas gays e lésbicas marchavam sob uma faixa onde se lia: ‘Contra a discriminação ao (à) trabalhador (a) homossexual” (GREEN, 2000, p. 434). Por outro lado, uma peculiaridade nos chama a atenção, o fato dos militares não ter perseguido diretamente estas organizações homossexuais. Pois, conforme Green, o Estado militar brasileiro, em época de grande ebulição e abertura política, tinha maiores inimigos em potencial, especialmente os sujeitos de esquerda, considerando os homossexuais e suas reivindicações como um mal menor. “Seja qual for razão, o recém-formado movimento de gays e lésbicas parece ter sido amplamente desprezado pelo braço repressivo do Estado”. (GREEN, 2000, p. 435).

O ano de 1980 marcou a saída das lésbicas do Somos, ao criarem a Ação Lésbico Feminista. Portanto, conforme Peter Fry e Mac Rae, este grupo foi perdendo força, bem como o movimento gay como um todo, especialmente por causa do surgimento da Aids[11], tida inicialmente, inclusive com amplos discursos na imprensa, como um “câncer gay”. Na década de 1980, o grande grupo de luta homossexual, que reina quase que sozinho nestes tempos de luta contra a Aids, é o GGB, ou seja, Grupo Gay da Bahia, liderado por Luiz Mott. É a partir daí, que o termo “gay” se populariza e passa a ser sinônimo de homossexual em nosso país. (FRY; RAE, 1983). Logo, a Aids foi um golpe na luta homossexual, tida por muitos como um castigo divino. Por outro lado, também simbolizou a possibilidade da forte retomada dos debates acerca dos direitos homossexuais nos anos 1990, uma vez que os gays deixaram de ser o único grupo de risco para esta doença, que atinge cada vez mais os indivíduos mais vulneráveis socialmente, isto é, com poucos recursos financeiros e com um restrito capital cultural (BOURDIEU, 1998). Mesmo o Brasil, com todo o caos que há na administração pública, tem uma competente política de prevenção e de tratamento desta doença. Nas palavras de Manuel Castells percebemos claramente esta diferenciação entre a luta homossexual dos anos 1970 e a de nossos dias, embora atualmente o movimento GLBT esteja com muita força em praticamente todos os países do mundo, ou pelo menos nos ocidentais:

A comunidade gay dos anos 90, porém, não é a mesma da década de 70 em virtude da epidemia de Aids no início dos anos 80 [...] Creio ser correto afirmar que o movimento gay mais importante dos anos 80 e 90 é a ala gay do movimento anti-AIDS em suas diversas manifestações, das clínicas de saúde aos grupos militantes (CASTELLS, 2002, p. 253)

Esta constatação de Castells pode ser transposta a Porto Alegre, onde tanto a ONG GLBT Nuances quanto o grupo Somos[12], tem seu foco de atuação em campanhas de esclarecimento acerca da Aids, inclusive com a distribuição gratuita de preservativos, colaborando em campanhas promovidas pelo Ministério da Saúde, do Governo Federal. O Gapa (Grupo de apoio aos portadores de Aids) surge em meados dos anos 1980 na capital paulista, como uma tentativa de amenizar a dor dos sujeitos, predominantemente homossexuais, que foram afligidos por este mal. Pouco depois é criado o Gapa-RS, em Porto Alegre.

Em 1991, Porto Alegre ganha seu próprio grupo gay, trata-se do Nuances, que continua em atividade e contribui enormemente para a construção de uma cidadania homossexual na capital gaúcha. Na metade desta década, a visibilidade homossexual cresce ainda mais, especialmente após a novela da TV Globo, “A próxima vítima”, mostrar um casal gay comum, sem caricaturas, formado pelos personagens “Sandrinho” e “Jefferson”. Segundo material divulgatório do grupo Nuances, Porto Alegre ganhou sua Parada do Orgulho Gay, intitulada por eles como “Parada Livre”, para abarcar outros grupos sociais, em 1997, no quais 150 pessoas marcharam pela José Bonifácio, rua paralela ao Parque da Redenção na capital gaúcha. Contudo, apenas nesta comparação entre o número de indivíduos que se expõe em tal manifestação, haja vista que atualmente a parada livre de Porto Alegre reúne milhares de pessoas e a capital paulista reuniu três milhões de pessoas na Parada de 2007, percebemos a grande visibilidade que os homossexuais alcançaram nestes últimos dez anos[13].

2.3.3 Reflexos da visibilidade: Os espaços de sociabilidade GLBT

Os espaços de sociabilidade, destinados diretamente ao público GLBT é uma invenção dos anos 1960/1970 em nosso país. Em termos de Brasil, um dos primeiros locais foi o “Caneca de Prata”, surgido em 1967, no centro antigo de São Paulo. Local este que ainda está em funcionamento, com foco nos “ursos”, isto é, em homossexuais mais velhos e de aparência masculinizada. Entretanto, locais de trocas sexuais entre homossexuais, os “pontos de cassação” existem no Brasil, segundo o historiador James Green, desde pelo menos o final do século XIX. Não se exclui com isso, a existência de tais locais em períodos anteriores. Um exemplo destes pontos de “intercursos sexuais” são as praças como o Largo do Rossio, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Este local mesmo após as reformulações propostas pelo prefeito Pereira Passos para a modernização da antiga capital federal, continuou a ser ponto de troca afetivas e sexuais, entre sujeitos homossexuais desta cidade brasileira. O relato de Green abrange as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, ao longo do século XX, ou melhor, do final do século XIX a 1980. Em seu livro não há a repercussão da Aids, nem a sociabilidade GLBT em outros estados brasileiros (GREEN, 2000). A historiadora Alice Dublina Trusz que afirma, em uma das páginas do Jornal do Nuances, em uma pesquisa com jornais da época, que já nos anos 1910 e 1920 havia na capital gaúcha os “almofadinhas”, que eram jovem afeminados, vestidos com muita elegância e que freqüentavam os cafés da cidade, e que, segundo ela, não eram bem aceitos pela elite local[14].

Neste mesmo jornal, há uma entrevista com uma travesti que fez sucesso entre os anos 1950 ao início de 1990. Como ela foi uma protagonista social de seu tempo, ela narrou um pouco de sua trajetória de vida, bem como sua experiência na Cabana do Turquinho. Trata-se de um senhor, o Turquinho, que alugava galpões antigos na área central de Porto Alegre para a realização de seus bailes, que eram muito freqüentados por travestis e homossexuais da época, porém não se restringia ao público GLBT, abrigando prostitutas femininas, heterossexuais, especialmente os de mais baixo poder aquisitivo, entre outros. Este lugar nasceu nos anos 1950 e teve seu término no começo da década de 1960. Era uma espécie de circo, já que não havia local fixo e muitas vezes as festas se davam sob tendas instaladas em terrenos vazios, como funcionam as modernas raves[15] de nossos dias. Sobre o surgimento da sociabilidade GLBT em locais específicos para os homossexuais, menciona Mott:

A tendência dos homossexuais de se reunir em tavernas onde encontravam outros elementos socialmente marginais, parece ter se iniciado no começo do século XV na Europa, embora só a partir do século XIX tais lugares passam a se tornar mais numerosos e privativos. Os modernos bares gays são instituições originárias da Europa Ocidental e dos Estados Unidos e em muitas localidades, são os únicos espaços de sociabilidade homossexual. (MOTT apud DYNES, 2000, p. 75).

Fica claro, portanto, a partir das palavras de Mott, os espaços destinados aos homossexuais ganham destaque apenas no final do século XIX, paralelo a crescente tomada de consciência por parte de uma intelectualidade gay. Para Mott, as saunas existem desde a antiguidade, mas aparentemente não possuíam a clara característica de proporcionar incursões sexuais entre indivíduos do mesmo sexo. Logo, a sauna gay, ou Bathhouse (banho turco) surge na mesma época dos bares, na parte final do século XIX. (MOTT, 2000).

Em termos de Porto Alegre e dos grandes centros brasileiros, o grande crescimento do mercado voltado ao público GLBT tem grande expansão nos anos 1970, especialmente na metade final, quando a repressão do governo militar deixa de ser tão rigorosa. (GREEN, 2000) (FRY; RAE, 1983). Aqui no Rio Grande do Sul a primeira casa noturna voltada aos homossexuais foi o Flower’s, surgida no começo da década de 1970. No entanto, ao decorrer desta década outros locais foram abrindo suas portas, como o Number One, direcionada ao público homossexual masculino, onde se encontra o atual Blue Space[16], nosso principal objeto de estudo. Bem como outras casas no final dos anos 1970 e no decorrer dos 1980, a contar o Egosun, que depois trocou de proprietário e passou a se chamar Discretus, o Local Hero, o Latourage, o bar Romeu e Julieta, o W 605, mais conhecido como Wanda, entre outros. Dentre as peculiaridades da homossexualidade gaúcha, está a “Coligay”, torcida gay organizada do Grêmio. O nome é a junção dos termos “Coli”, em alusão a casa noturna GLBT Coliseu, com o “gay”, de caráter identitário. Para Volmar Santos, proprietário da Coliseu e idealizador desta torcida, houve muita resistência por parte dos torcedores gremistas, embora o presidente do clube tenha acolhido “em seu seio as flamejantes bibas”. Esta torcida que segundo o Jornal do Nuances está imortalizada em fotos no museu gremista, teve a efemeridade das borboletas, com duração de apenas 3 anos, isto é, de 1977 a 1980[17]. Todos estes locais que foram citados não existem mais no ano da escrita desta monografia, isto é, 2007. Portanto, parece-nos que o crescente número de espaços de sociabilidade GLBT é um reflexo direto do aumento de visibilidade social que este grupo vem alcançando desde os anos 1970 em nosso país. Cabe lembrar ainda, que este fenômeno ganha força na década de 1990 e ainda mais nestes anos 2000, cujos homossexuais estão deixando de serem vítimas de segregação social, e passam, cada vez mais, a ter o Estado a seu lado, com leis que beneficiem o pleno exercício de uma cidadania homossexual.

3 A TEORIA COMO MAPA DE PESQUISA

A partir deste capítulo, o leitor terá acesso a todo nosso aporte teórico necessário para a escrita deste Trabalho de Conclusão de Curso. Autores que tratam desde o contexto de nossos dias, como Anthony Giddens, passando pelos pensadores do travestismo até chegarmos a Goffman e sua idéia de estigma, no caso o estigma social da homossexualidade. Há terminologias que ainda não estão presentes no senso comum, a principal delas é a palavra “homossexualidade”, uma vez que, mesmo às portas dos anos 2010 existem muitos indivíduos que utilizam o termo “homossexualismo”, que teve sua origem como um conceito médico, denotando a “doença gay”. Logo, o movimento GLBT brasileiro e mundial é terminantemente contrário a utilização deste termo. “Homossexualidade” por outro lado, é uma resignificação do antigo termo, representando a cultura GLBT, de um homossexual livre e responsável pelos seus atos.

1. “Olhos de águia: A visão panorâmica”

O pensamento acadêmico se difere do senso comum. Para a Academia, o estudo acurado dos conceitos é de primordial importância na elaboração de uma monografia. Nosso trabalho versará sobre a homossexualidade, seus espaços de sociabilidade, construções identitárias e representações, tudo isso tendo a modernidade tardia (Giddens) e a história do tempo presente como pano de fundo. Jean Lacoutre, em “A História Nova”, livro organizado por Jacques Le Goff afirma que a história do tempo presente ou história imediata é aquela que une “proximidade temporal da redação da obra em relação ao tema tratado” com

“proximidade material do autor em relação a crise estudada” (Le Goff, 2003: 216). Em outras palavras, a história imediata é a análise histórica dos acontecimentos de nossos dias ou, porque não, dos nossos minutos. No entanto, o que deve ficar claro é que história imediata não é uma invenção do século XX, uma vez que ela surgiu com o nascimento da narrativa histórica. Lacoutre afirma inclusive que os textos de Tucidides, sobre as guerras na antiguidade, são exemplos de história imediata, pois foram escritas no “calor dos acontecimentos”. Trilhando estes caminhos, construiremos uma análise histórica da homossexualidade nos últimos anos, especialmente do final dos anos 1990 ao corrente ano de 2007.

O modo da escrita da história sofreu muitas alterações ao longo do século XX. Migrando de uma história fortemente voltada à política de Estado para as múltiplas temáticas da História Cultural. A nova história cultural tem seus primórdios na revista francesa dos Analles, surgida nos anos 1930. No entanto o enfoque cultural ganha destaque apenas em meados da década de 1970 (BURKE, 1997). Segundo Peter Burke, entre as novas temáticas observa-se a história das mulheres, escrita por Michelle Perrot e Georges Duby. Paralelo a isso, a pesquisa histórica buscou novos aportes teórico-metodológicos. Não se restringindo mais as “ciências auxiliares” como a Geografia e a Economia. Áreas como a psicologia, a lingüística e a antropologia passam a integrar o arcabouço teórico do historiador. Portanto, podemos concluir que nosso trabalho trilhará o amplo caminho da História Cultural, tendo como sustentáculo os métodos antropológicos.

Vivemos em uma época de grandes transformações, de mudanças muito rápidas, de metamorfoses de valores. O sociólogo inglês Antony Giddens afirma que estamos na “alta modernidade ou modernidade tardia”, pois a humanidade ainda não atravessou a barreira rumo à “pós-modernidade”. Para entendermos este conceito, basta lembrarmos da alta Idade Média, após o século XII que, mesmo com as nascentes universidades ou o fortalecimento das relações comerciais em algumas cidades européias, ainda mantinha a base social que marcou todo o medievo, tal como a hegemonia da Igreja Católica, o sistema feudal, a não consolidação da maioria dos Estados Nacionais europeus, entre outros fatores. A modernidade tardia é justamente isso, embora tenhamos a possibilidade de nos comunicarmos com o mundo através de um “click”, as estruturas de poder – tanto de Estado quanto na micro esfera continuam praticamente as mesmas do início da modernidade. Para Giddens, a modernidade tardia consiste no fortalecimento dos valores iniciados com a modernidade dos séculos XV/XVI.

Sobre as afirmações de que vivemos em uma era “pós-moderna”, totalmente desfragmentada, Giddens afirma que “as características unificadoras das instituições modernas são tão centrais para a modernidade – especialmente na fase da alta modernidade – quanto desagregadoras”. (GIDDENS, 2002, p. 32). Esta aparente contradição de nossos dias, que consegue unificar e desunificar pessoas e grupos sociais, também pode ser percebida no meio GLBT. Enquanto uma Parada do Orgulho Gay, assume em seu slogan ser contrária ao “Racismo, Machismo e Homofobia” [18], e consegue reunir aproximadamente três milhões de pessoas, ou melhor, duas vezes a população de Porto Alegre, inúmeros homossexuais são vítimas de grave marginalização e estigmatização, o que aumenta sua vulnerabilidade de contrair o vírus da Aids e, inclusive, cometer suicídio. Portanto, a sociedade pode inserir o homossexual dentro dela, ou simplesmente expurgá-lo para uma prostituição miserável em alguma praça da região central da cidade. Muitas vezes esta “venda” do corpo se dá por trocados ou por um hot dog[19].

2. Homossexual: Um sujeito socialmente e historicamente construído

Conforme palavras do capítulo anterior, a homossexualidade é socialmente e historicamente construída. A categoria “homossexual” surge apenas no final do século XIX, quando o médico húngaro Karoly Maria Benkert forjou o termo “homossexualismo” para caracterizar a doença que fazia dois sujeitos do mesmo sexo sentirem atração entre si. Passados os anos, caiu o sufixo “ismo” e entrou a “idade” que tem uma conotação mais ampla, envolvendo uma cultura de amor e sexo entre pessoas do mesmo sexo. (FRY; RAE, 1983). Antes do século XIX, o que existia eram os sodomitas e os pederastas, na antiguidade clássica, mas que basicamente percebiam apenas o ato sexual entre sujeitos do mesmo sexo, sem observarem relações de afeto ou mesmo de auto-identificação homossexual. Somente após 1945, com o término da segunda guerra mundial, é que se pode esboçar uma maior aceitação da comunidade GLBT. Com grande destaque ao “gay power”, movimento GLBT iniciado nos EUA e na Europa no final dos anos 1960; ao aparecimento do vírus da Aids, ou do “câncer gay”, segundo a grande mídia, no inicio dos anos 1980, até chegarmos ao “boom” das paradas gays em nosso país neste começo de novo milênio.

O gênero, conforme Héritier (1996: 20) é socialmente e historicamente constituído, não se restringindo ao binômio biológico macho – fêmea. Esta concepção de gênero está cada vez mais atingindo o grande público, o senso comum. Segundo Peter Burke “se a idéia de que a masculinidade e a feminilidade são ‘construídas’ socialmente está passando a ser considerada óbvia, a mudança é, em grande parte, conseqüência do movimento feminista.” (BURKE, 2002, p. 75). Para referendar esta postura de um gênero social e historicamente estabelecido, utilizamos os conceitos da antropóloga Françoise Héritier, a partir do livro ”Masculino Feminino: O pensamento da diferença”, onde a autora trabalha a “valência diferencial do sexo”. Héritier (1996) segue a linha da distinção social dos sexos, com o acréscimo analítico da visão social do corpo e dos papéis atribuídos a homens e mulheres por causa das singularidades de cada corpo biológico. Conforme ela, nossa sociedade tem uma base de pensamento binária, ou, em suas palavras, um “sistema ideológico” binário: quente e frio; bonito e feio; alto ou baixo; onde, logicamente a condição masculina e feminina está neste sistema.

Constatando que a condição de gênero é socialmente e historicamente construída, e que o modelo ocidental de sexualidade nem sempre representou o padrão terrestre, afirma Héritier.

Um rapaz, a par de sua alma-nome feminina, pode ser encaminhado e considerado uma rapariga até à puberdade, desempenhar o seu papel reprodutor na idade adulta e entregar-se desde logo a tarefas masculinas no seio do grupo familiar e social, conservando em toda a sua vida durante a sua alma-nome, isto é a sua identidade feminina[20] (HÉRITIER, 1996, p. 21).

Todavia, conforme Héritier (1996), que por sua vez se baseia em Bernard Saladin, aquele indivíduo passada a puberdade, deve assumir a identidade de seu sexo aparente, mesmo que o mesmo possua uma identidade de gênero homossexual masculina ou transexual. O mesmo ocorria na antiguidade greco-romana, segundo Peter Fry e Mac Rae (1983), cujos adolescentes que mantinham relações pederastas com homens mais velhos, sempre no papel sexualmente passivo, ao atingirem a idade adulta não poderiam assumir uma hipotética homossexualidade. Embora a pertinência de tais constatações, estes exemplos servem para ilustrar que as vivências de gênero não são padronizadas ao longo da Terra e da História, sendo o gênero algo flexível, que reproduz características de determinada região e tempo histórico. Fry e Rae (1983:10) mencionam que não existe “verdade absoluta” acerca da homossexualidade, uma vez que todas as verdades são “historicamente elaboradas”, bem como associam esta distinção social dos sexos, em concordância com Héritier (1996), com o advento do movimento feminista. Burke (2002), por sua vez, também acentua essa relação entre movimento feminista e a visão do gênero de uma forma sócio-histórica, e não simplesmente biológica, isto é, macho-fêmea.

Segundo Françoise Héritier, a transmissão dos valores culturais se dá através de “categorias cognitivas”, que são duráveis e transmitidas pela educação e pelo ambiente cultural da vida cotidiana. Logo, há valores que são difíceis de serem mudados em um curto espaço de tempo. Esta autora não acredita em uma “igualdade idílica” entre os sexos, já que esta “valência diferencial dos sexos” faz parte da matriz que formou a sociedade (1996, p. 28). Héritier nos propõe um interessante debate sobre o papel da paternidade na construção do gênero. Para entendermos os grupos homossexuais, a relação de paternidade é de suma importância. Muitas vezes um dos motivos para o não aceitamento da homossexualidade é justamente este, o de que o sujeito homossexual hipoteticamente não deixará descendência. “A filiação é a regra social que define a pertença de um indivíduo a um grupo” (HÉRITIER, 1996, p. 41). A partir das palavras desta antropóloga, podemos perceber a ligação direta entre procriação e sociedade, em alusão a um modelo heterossexual de mundo:

A reprodução dos homens é um instrumento de reprodução da ordem social. Ela entra na representação simbólica da ordem social a ponto de podermos dizer que um sistema de parentesco não existe senão na consciência dos homens e que não é mais que um sistema arbitrário de representação (HÉRITIER, 1996, p. 50).

3. O estigma homossexual

Um conceito central de nossa análise é o de “estigma”, descrito pelo sociólogo canadense Erving Goffman. O livro original é de 1963, logo, antes do movimento “gay power” norte-americano e europeu. Embora o estigma homossexual ainda esteja presente em nossa sociedade, inclusive influenciando os homossexuais a criarem estratégias para superarem ou se aliarem a este estigma. “Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem honroso nem desonroso” (GOFFMAN, 1988, p.13). A partir desta frase de Goffman, percebe-se que ao estigmatizar alguém me intitulo como “normal”, e que o estigma é uma constatação coletiva sobre determinado marginal social, mas que não deve ser considerada como um juízo de valores, mas sim uma ferramenta para o entendimento da sociedade. Instrumento este, que forja um quadro teórico a respeito dos medos e preconceitos vividos pela comunidade homossexual ao longo da história e também nos dias atuais.

A reflexão sobre este conceito é baseada no livro “Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”, de Erving Goffman. Para Goffman há três tipos de estigmas: O primeiro está relacionado às deformidades físicas, corporais; o segundo, por outro lado, são os chamados “defeitos morais”, que fogem da regra comum da sociedade, tais como o desemprego, a desonestidade, os distúrbios mentais, o “homossexualismo”, etc. Por fim, há o terceiro tipo que são os estigmas herdados, não se constituindo em uma característica estritamente pessoal do indivíduo; como o estigma de ser filho de um pai de uma religião diferente da oficial ou de uma etnia que não seja socialmente aceita em determinado local. (GOFFMAN, 1988, p. 14). Vale lembrar que o contexto de pesquisa de Goffman não é o Brasil, mas sim o Canadá. Por isso, ele cita o desemprego e a desonestidade como “defeitos morais”.

O estigma por nós estudado é o do segundo tipo, o dos “defeitos morais”. Como a própria palavra diz, estigma está relacionado a uma marca, uma cicatriz, embora em nosso caso ela seja uma marca social. Em uma relação de idéias, Goffman constata que o ideal de “ser humano normal” se concretizou com as abordagens médicas ou mesmo com a padronização em larga escala do indivíduo, nas políticas de consolidação dos modernos Estados-Nação, surgidas em meados do século XIX. (GOFFMAN, 1988, p. 16). Goffman acrescenta ainda que o estigma aflige, por vezes, também pessoas “normais”, sendo estes indivíduos “informados” sobre determinado estigma. Um exemplo disso, relatado pelo autor, são os garçons de bares e casas noturnas homossexuais que convivem com este público, sem necessariamente serem homossexuais. Em outras palavras é uma pessoa “normal” que adota uma postura de estigma, no caso o funcionário heterossexual que aceita trabalhar e ser relacionado com o meio homossexual. Para entendermos o comportamento de tais colaboradores heterossexuais e sua relação com os clientes destes espaços, a idéia de estigma é de suma importância.

Goffman vai além, na busca do entendimento de como o sujeito estigmatizado lida com sua peculiaridade. No livro há termos antiquados como “normal”, “homossexualismo”, entre outros, mas que, provavelmente, são reflexos da época da escrita de sua obra, redigida originalmente em 1963. Por seu turno, suas idéias dão uma grande contribuição para o entendimento dos estigmas em nossa atual sociedade. Por ventura estigmatizados, estes indivíduos têm as mesmas “crenças sobre identidade” que os normais, isto é, todos querem “um destino agradável e uma oportunidade legitima”. (GOFFMAN, 1988, p. 16). Logo, o sujeito estigmatizado não é um alienígena na Terra, sendo sim um sujeito com qualidades e defeitos como qualquer outro habitante do mundo.

Ao analisar o indivíduo, Goffman (1988) põe como ponto chave a angústia destas pessoas estigmatizadas que querem se sentir iguais às demais, muitas vezes, tentando passar a idéia de que estão tentando solucionar as suas dificuldades, como no caso de um homossexual que faz terapia ou, nos dias atuais, procura uma igreja neo-petencostal para tirar do “demônio” de seu corpo. Há ainda, indivíduos estigmatizados que, em uma tentativa de se aproximar dos “normais”, procuram ridicularizar as atitudes de seus colegas de estigma, em um “papel ridículo”, nas palavras do autor. (GOFFMAN, 1988, p. 120-121). Outros, ao contrário, adotam uma postura de isolamento social, devida a sua alta insegurança enquanto sujeito. “Faltando o feedback saudável do intercâmbio social cotidiano com os outros, a pessoa que se auto-isola possivelmente torna-se desconfiada, deprimida, hostil, ansiosa e confusa” (GOFFMAN, 1983, p. 22).

A relação de estigma, segundo Goffman (1988), não é uma mera representação dos outros perante o sujeito estigmatizado, é antes de tudo uma relação dialética entre indivíduo estigmatizado e a sociedade, na qual cada estigmatizado reagirá de uma determinada maneira. O estigma homossexual atinge um campo mais íntimo, o da família. Nada mais é que o estar “dentro do armário[21]”, onde o circulo de convivência e especialmente a família não sabem da real orientação sexual do sujeito homossexual. Existem ainda os sujeitos não plenamente assumidos, que mesclam táticas de “auto-revelação” e “encobrimento”, que este autor denomina “acobertamento”.

Por fim, há o sujeito que assume a sua condição e muitas vezes com grande estardalhaço ou com militância. “Um dos métodos de revelação é o uso voluntário, por um indivíduo, de um símbolo de estigma”, que mostrará para todos a sua verdadeira personalidade. (GOFFMAN, 1988, p. 111). Ao assumir seu estigma, o indivíduo “garante seu afastamento da sociedade dos normais” (1988, p. 112), isto é, uma pessoa bem resolvida psicologicamente será mais bem aceita na sociedade, inclusive porque ela própria se respeitará. Percebe-se então, que se o estigmatizado se aceitar, ele não precisará esconder o seu estigma. Chegando estigmatizado, no caso o homossexual, a este ponto de auto de auto-aceitação na “fase final”, “madura” e “bem ajustada” de sua vida, que não é conquistada necessariamente com idade ou poder econômico, mas sim através do auto-conhecimento. Logo, para entendermos o meio homossexual, o que leva indivíduos a manterem uma estética do inviável, a adotarem posturas arrogantes ou a se atirarem nas drogas é justamente o estigma, já que não é todo indivíduo homossexual que consegue chegar ao estágio do auto-conhecimento e, por conseqüência da auto-aceitação.

4. Será o homossexual homogêneo?

Será o homossexual homogêneo? Todos os homossexuais são iguais como se fossem resultados de uma fábrica de biscoitos amanteigados? Não, claro que não. A sigla atualmente usada “GLBT” – gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros - dá breves pinceladas destas diferenças que, por vezes, são enormes. Além de homossexuais, somam-se outros fatores, como os de ordem econômica, maior ou menor poder de consumo, idade, tipo físico, etnia, equilíbrio ou não de sua psique, entre outros itens passíveis de estigma. Embora muitos grupos de luta pelos direitos dos homossexuais, bem como entidades acadêmicas, estejam utilizando a sigla LGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), para dar maior visibilidade às lésbicas – historicamente marginalizadas do movimento homossexual – e para solucionar as disputas identitárias entre travestis e transexuais, já que uma não aceita a identidade de gênero da outra. Por outro lado, os transgêneros englobam todas as formas de travestismo, especialmente os homens que se vestem de mulher, como as Drags Queens ou Top Drags, mas que possuem uma identidade de gênero masculina homossexual. Mesmo com toda esta discussão, utilizaremos o termo GLBT atualmente mais utilizado no movimento gay nacional e internacional.

Ao tratar do conceito de identidade do sujeito, Giddens defende que há na modernidade tardia, ou alta modernidade, uma “auto-identidade”, isto é, cada sujeito constrói individualmente a sua postura identitária. Esta auto-identidade, segundo Giddens, é mesclada com a globalização, além de haver uma “dialética do local”, onde características locais e globais se entrecruzam. Ou seja, as “mudanças em aspectos íntimos da vida pessoal estão diretamente ligadas ao estabelecimento de conexões sociais de grande amplitude”. (GIDDENS, 2002, p. 36). Portanto, mesmo sendo a auto-identidade fortemente influenciada pelas instituições da modernidade, ela não é totalmente submissa e, inclusive, alimenta com novas características as instituições da alta modernidade.

Segundo o sociólogo inglês Anthony Giddens (2002), teórico do governo inglês de Tony Blair, na alta modernidade o eu, a auto-identidade é “construído reflexivamente” dentro de uma gama enorme de possibilidades e opções. Há ainda o conceito de estilo de vida, onde os indivíduos são praticamente forçados a escolherem o seu. Sobre a questão das camadas sociais, Giddens afirma que a modernidade produz “diferença, exclusão e marginalização”, e que os pobres estariam praticamente proibidos de escolherem um estilo de vida. Por seu turno, ainda nos trilhos deste autor, o estilo de vida não se limita exclusivamente à esfera material da vida, podendo inclusive ser uma forma de rejeição aos padrões de comportamento e consumo. (GIDDENS, 2002, p. 13). A partir das idéias deste autor, pretendermos melhor entender o funcionamento do mundo atual para explicar com maior competência nosso objeto de estudo. Buscamos com isso, compreender como se formou e como esta construção reflexiva do eu, explicitada por Giddens, poderá ser transplantada ao ambiente da construção da identidade social da comunidade GLBT porto alegrense, bem como a análise da construção da auto-identidade, a partir de seus estilos de vida, dos sujeitos que freqüentam tais espaços de sociabilidade GLBT da capital gaúcha. Tudo isso, obviamente, com relação aos acontecimentos nacionais e globais, tal como Giddens disserta na questão da “dialética do local”, onde características locais se entrecruzam com preceitos globais e vice-versa.

Para pensarmos na identidade neste período de modernidade tardia, utilizamos o livro “A identidade cultural na pós-modernidade”, do sociólogo inglês Stuart Hall. O próprio Hall é fruto desta identidade múltipla que caracteriza nosso atual tempo histórico, uma vez que, ele nasceu na Jamaica, tem pai inglês e escreve na Inglaterra, além disso, suas características étnicas não são as de um inglês típico. Logo, ele sentiu na pele a atual configuração das identidades sociais. Embora ele se utilize do conceito de pós-modernidade, em vários trechos de seu livro há menções diretas a modernidade tardia de Giddens. O autor afirma que nos nossos dias, as identidades estão “descentradas”, “fragmentadas”. Afirmando, em alusão a Mercer, que houve a erosão da “identidade mestra” ligada as classes sociais, para o surgimento das identidades múltiplas, tais como o feminismo, o movimento negro, as lutas homossexuais, a defesa do meio ambiente, entre outros. (HALL apud MERCER, 2001, p. 21). Paralelo a isso, ele defende que atualmente a identidade é uma “celebração móvel” em constante transformação. “A identidade plenamente unificada, segura e coerente é uma fantasia”. (HALL, 2001, p. 13). No entanto, mesmo a identidade homossexual engloba várias identidades de grupos (barbies[22]; ursos; afetados; clubbers; ciber-manos – clubbers de periferia; intelectuais gays; HSH – homens que fazem sexo com homens, mas não possuem uma identidade de gênero masculina homossexual; homossexuais mais velhos; travestis; transexuais; transformistas; etc). Portanto, como diz Hall, uma identidade unificada é uma fantasia.

No tangente à identidade homossexual, Peter Fry e Mac Rae, destacam que o movimento homossexual brasileiro defendia uma “nova identidade homossexual”, não baseada no binômio “dominador-dominado”, presente no meio hetero. Tais como “ativo-passivo”, “bofe-bixa”, “fanchona-lady”, onde as identidades sexuais deveriam ser “essencialmente igualitárias” (FRY; RAE, 1983, p. 23-24). Goffman (1988) que utiliza o termo “identidade deteriorada” dentro do título de seu livro divide a identidade em duas: a identidade virtual e a identidade real, na qual, na primeira, o estigma parece ao sujeito estigmatizado maior do que ele verdadeiramente é. Trata-se da auto-representação de seu “problema” por parte do indivíduo estigmatizado. De outro lado, há a identidade real, em que o sujeito, no caso o estigmatizado, percebe possibilidades reais de conviver com seu estigma. Goffman (1988) categoriza ainda, em um plano menos individual e mais social, a diferença entre a identidade social, que é ditada pela sociedade para determinado sujeito, e a identidade pessoal que são as características inerentes de cada mente humana. O autor reconhece essa diferença como não sendo uma relação de imposição pura e simples, uma vez que, cabe ao sujeito aceitar ou não determinada “identidade social” a ele imposta.

3.4.1 O ideal de masculinidade

Dentro do meio homossexual, especialmente no pós-aids, é muito comum a valorização do ideal de masculinidade por parte do sujeito gay. Não estamos mencionando as lésbicas, bissexuais ou os transgêneros, mas sim o homossexual masculino. A socióloga Tatiana Cavalcanti, em comentário para o site Mix Brasil, (2005) constata que as “barbies”, isto é, homossexuais com o corpo altamente trabalhado, possuem uma identidade própria que vai do “prazer sexual e do deleite estético”, havendo um sentimento de pertencimento a um sub grupo homossexual, daí o fato deles se relacionarem entre si e não havendo um maior intercâmbio entre os diversos segmentos da homossexualidade. Para Tatiana, este fenômeno está relacionado com o surgimento da Aids, no qual a imprensa mundial divulgou imagens de homossexuais cadavéricos e à beira da morte, inclusive de personalidades famosas, como Cazuza. O culto ao corpo, por parte deste segmento dos homossexuais, segundo Tatiana Cavalcanti, é uma resposta direta à sociedade que tinha a imagem de um homossexual frágil e doente. Estas suas idéias incitam o debate sobre o papel do corpo no meio gay, bem como a mudança das representações dos homossexuais ao longo dos últimos anos[23].

O corpo, as idéias e representações sobre ele, segundo José Carlos Rodrigues, são socialmente e historicamente construídos. Ocorrendo, segundo este autor, um “amálgama” que une corpo, mente e ambiente social. Mas o corpo é sim parte integrante deste processo. Como já foi dito acima, para Tatiana Cavalcanti, músculos também podem servir de resposta social. Não estamos com isso, defendendo este posicionamento, mas sim, inseri-lo na discussão acerca das vivências múltiplas da homossexualidade.

[...] como qualquer outra realidade do mundo, o corpo humano é socialmente concebido, e que a análise da representação social do corpo oferece uma das numerosas vias de acesso à estrutura de uma sociedade particular. (RODRIGUES, 2006, p. 48)

Rodrigues (2006) expõe que o corpo pode ser um “signo de status social”, que sempre esteve presente na história da humanidade. No caso especifico dos homossexuais, o corpo está relacionado a um ideal de masculinidade, de força física. Obviamente que isso não se aplica a todos os homossexuais e nem somente a este grupo social. As academias de ginástica estão repletas de jovens heterossexuais que também buscam consolidar sua masculinidade através da força bruta. No entanto a dicotomia se dá no meio homossexual, já que muitas vezes o estilo de vida barbie está ligado a indivíduos com maior poderio econômico e que possuem atitudes altamente preconceituosas em relação aos homossexuais menos favorecidos, existindo um preconceito duplo, o econômico e o de gênero. Os mais pobres muitas vezes são vistos como “pintosas”, “bichinhas”, “qua qua”, etc. Peter Fry e Mac Rae (1983) lembram que a homossexualidade “popular” brasileira não percebe dois sujeitos gays dividindo uma relação, mas sim uma relação de dominação entre um sujeito com identidade de gênero heterossexual fazendo papel “ativo” perante a “bichinha”. Por seu turno, a homossexualidade popular é diferente da remediada, isto é, dos sujeitos de classe média.

O espaço GLBT não é percebido de maneira semelhante por todos os seus usuários. Bourdieu (1996) divide o capital em duas esferas, o econômico, palpável, e o simbólico, composto basicamente pelas idéias e representações de determinado extrato social. Bourdieu (1994) defende a existência de uma “violência simbólica”, que nada mais é que a imposição ou prevalência dos valores simbólicos de determinado grupo social, geralmente mais favorecido financeiramente, sobre uma grande parcela da população desfavorecida social, cultural ou economicamente. Isso ocorre também no meio homossexual, na qual a idéia recorrente é a do homossexual masculino, bem sucedido, bonito, malhado e não possuidor de trejeitos afeminados, e que não concorda com o “estilo de vida” dos homossexuais afetados[24], especialmente os periféricos. Este paradigma de homossexual é o criado pelo “pink money”[25], isto é, o “dinheiro rosa” e se adecua perfeitamente aos ideais capitalistas. Portanto, seguindo nas trilhas intelectuais deste autor, acreditamos que existe a “violência simbólica” no meio homossexual, e ela é praticada por parte das camadas mais privilegiadas da homossexualidade sobre os extratos menos favorecidos da mesma. Um instrumento para isso é o corpo, que é utilizado como meio de distinção social (RODRIGUES, 2006).

Para Bourdieu (1994), esta violência simbólica, praticada geralmente pelas camadas economicamente mais favorecidas da população, está intimamente ligada ao seu estilo de vida. Que é proclamado como o ideal, o correto. O estilo de vida da “buchinha da periferia”, com muitos trejeitos afeminados, é visto como incorreto, como integrante do basfond gay, isto é, algo menor, que não está a altura dos melhores corpos e das grifes mais caras. Bourdieu (1994) se debruçou sobre as diferenças do “capital cultural” das elites e das camadas mais modestas da população francesa. Para ele quanto mais apelamos ao supérfluo, ao não essencial, mais o estilo de vida se transforma em uma “estilização da vida”. (1994, p. 87). Além disso, segundo este autor, a cultura popular, muitas vezes reflete o estilo de vida pregado pela elite cultural e econômica. A diferença se dá na qualidade e quantidade de bens consumidos pela camada menos favorecida economicamente da sociedade. Ele chama este processo de “desapossamento cultural”, em que os indivíduos não detentores do “capital simbólico” e “econômico” perdem a “capacidade de formular seus próprios fins”. (BOURDIEU, 1994, p. 100). No meio homossexual isso também ocorre, com sujeitos desprovidos dos tais “capital simbólico” e “cultural” imitando, a sua maneira, o “estilo de vida” da elite gay. Todavia, não se trata de regra única, devendo haver um conjunto de conceitos para explicarmos determinados fenômenos, como a travesti que é a antítese da “barbie”, que também investe maçiçamente na construção do corpo, mas com outro foco, o da construção de um ideal de feminino, de glamour. Neste ponto, sim, suas representações de luxo são reflexos do que é imposto pelas elites dominantes, através de inúmeros meios, como a mídia.

2. Parafraseando a feminilidade

“Mulheres escultórias se oferecem a nós em nossas ruas, sensuais e tentadoras - e não são mulheres” (Helio Silva, 1996, p.13)

A sexualidade homossexual terá como teórico base o antropólogo Hélio Silva, em seus livros: “Travesti: A invenção do feminino” e “Certas cariocas: Travestis e vida de rua no Rio de Janeiro”. Paralelo a este autor, utilizaremos o livro “Toda Feita: O corpo e o gênero das travestis”, do antropólogo Marcos Benedetti, escritor que traça uma ótima síntese do pensamento de Hélio Silva, aliado a uma competente etnografia realizada com as travestis da região da Avenida Farrapos, em Porto Alegre, trazendo conceitos e visões cariocas para o seio da capital gaúcha. Para Benedetti não existe um padrão comportamental entre as travestis. Prova disso é o trecho de seu livro onde afirma existir uma hierarquia da prostituição, na qual travestis mais velhas e que investem menos no corpo, ficam em zonas marginais da cidade, de acesso mais dificultoso, e têm clientes mais pobres, velhos ou feios; e, por sua vez, as travestis mais jovens, que têm um forte investimento financeiro no seu corpo, usam a área mais nobre e visível e têm clientes de maior poder econômico. (BENEDETTI, 2005, p. 117). Além disso, as travestis que se identificam como transexuais, que não necessariamente se prostituem, têm maior escolaridade e acesso a teorias “científicas”; o que auxilia no auto-entendimento de sua própria situação. No mês de setembro de 2007, tivemos uma mostra prática disso, quando participamos do seminário “Homofobia, Identidades e Cidadania LGBTTT”, na UFSC de Florianópolis, e a transexual Bárbara Graner apresentou uma incrível desenvoltura intelectual e política, que encantou a todos os ouvintes de sua fala. Percebe-se então, que tanto travestis, quanto transexuais são sujeitos com amores, sofrimentos, desejos como qualquer cidadão brasileiro. Prostituindo-se ou não, elas devem ser respeitadas por todos, já que as suas manifestações e ações no mundo fazem parte de suas escolhas individuais.

Helio Silva (1996) disserta que o travesti histórico, aquele sujeito que eventualmente se vestia de mulher, era solitário e não assumia publicamente sua “identidade feminilizante”; por outro lado, o travesti atual é socializável, assume publicamente a sua condição e busca o intercâmbio social com seus pares. Para ele, não devemos ver a travesti somente pela ótica do narcisismo. A extrema valorização da beleza física ocorre também entre as adolescentes de classe média, por exemplo. Concluindo ele que “[...] o travesti de hoje não requenta aquele ideal de mulher arcaica, não se constrói como caricatura”, isto é, a identidade travesti não é masculina, nem feminina, é simplesmente travesti. (SILVA, 1996, p. 72).

Neste ponto, Marcos Benedetti diz que a identidade travesti, baseia-se na “construção do corpo feminino no corpo travesti” (2005, p. 87). Diz ainda, que “o feminino travesti não é o feminino das mulheres” (2005, p. 96). Como nosso principal local de análise é o Blue Space, espaço este que valoriza o talento das transformistas, incluindo as travestis, utilizaremos estes dois autores para refletirmos sobre nossa problemática de pesquisa.

Um personagem que permeia a noite homossexual de Porto Alegre, ou de qualquer outro grande centro no mundo ocidental, é a drag queen. Trata-se de um homem travestido de mulher, geralmente de uma forma bem chamativa, ou até mesmo caricata, construindo uma nova forma de sexualidade, que se difere da dicotomia masculino-feminino, mas não se relaciona com os travestis, que permanecem “montadas”[26] 24 horas por dia. Ao contrário do que diz Benedetti (2005) e Helio Silva (1993) sobre a identidade travesti, de que elas vivenciam a sua fórmula própria de feminino durante todas as horas de sua vida, as drags queens compõem um personagem, que na maioria das vezes se restringe ao espaço de sociabilidade GLBT. Para entendermos o fenômeno das drags queens, nosso mote teórico será a teoria queer, que nas palavras de Leandro Castro Oitramari e Maria Teresa Vargas Chidiac, em alusão a Guacira Louro, significa “algo como estranho, raro ou mesmo excêntrico”, sendo este conceito um contraponto a idéia de um enquadramento da cultura homossexual dentro da normalidade heterossexual. Em outras palavras, a teoria queer defende uma maior liberdade da expressão homossexual, fugindo da idéia de heteronormatividade. Entenda-se por heteronormatividade o aceite social de apenas determinado segmento de homossexuais, bem comportados e de considerável poder aquisitivo. Por este olhar, a teoria queer é altamente política, já que combate os preconceitos de gênero e econômicos, incorporando os homossexuais com estigmas múltiplos à cidadania. (LOURO, apud CHIDIAC; OITRAMARI, 2004).

Isso não significa, no entanto, que ver um casal gay bem sucedido e não caricato na novela das oito seja ruim. Será utilizada esta teoria para explicar o porquê da manutenção destes personagens, no caso os transformistas não travestis (drags queens, top drags) mesmo com a relativa aceitação das homossexualidades nos dias atuais. Para Leandro Castro Oitramari e Maria Teresa Vargas Chidiac, do ponto de vista das drags, esta teoria significa a existência de uma identidade não-fixa e não-dicotomizada (entre masculino e feminino), não devendo esta identidade ser vista como estática ou fixa, mas sim como em uma fronteira flutuante. (CHIDIAC; OITRAMARI, 2004). Discute-se ainda, a relação da teoria queer com o fenômeno das “Top Drags[27]”, que é a roupagem atual das drags queens, ou em outras palavras, é uma drag queen mais “clean”, com menos adereços, mais comercial.

4. Homossexualidade: Representações Múltiplas

Ao analisarmos o amálgama de identidades homossexuais e seus espaços de sociabilidade, utilizamos da ferramenta teórica da representação social, especialmente no modo como tais espaços e personagens se representam para os seus freqüentadores, bem como a percepção que estes clientes têm de tais espaços, além das representações múltiplas presentes nos diversos subgrupos homossexuais. . Para uma reflexão mais profunda sobre este conceito, utilizamos o livro “Representações Sociais”, organizado pela “Denise Jodelet”. Conforme Jodelet, o conceito de representação social surge na psicologia social[28], sendo posteriormente aplicado em outras áreas do conhecimento. Então, como não estamos em um “vazio social” e vivemos em sociedade, as representações são sociais. (JODELET, 2001).

Nas frases de Jodelet, a representação social é “uma forma de conhecimento prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”. (JODELET, 2001, p. 22). Então, serve este conceito não apenas para explicar a representação, a imagem que alguém tem de algo, mas também para entendermos os mecanismos mentais que levam um individuo a se inserir em determinado grupo social. Isso é fundamental para a compreensão do que leva um sujeito homossexual a freqüentar a noite GLBT, bem como as representações que ele faz sobre estes locais. Por fim, Jodelet afirma que as representações não são estanques, sofrendo alterações, adaptações, reconstruções. (JODELET, 2001, p. 22-23).

Na pauta da simbiose representação-identidade, Jodelet afirma que:

Partilhar uma idéia ou uma linguagem é também afirmar um vínculo social e uma identidade. [...] A partilha serve à afirmação simbólica de uma unidade e de uma pertença. A adesão coletiva contribui para o estabelecimento e o reforço do vínculo social (JODELET, 2001, p. 34).

Contudo, para complementarmos o debate acerca das representações, foi utilizado o artigo “O mundo como representação”, do historiador Roger Chartier. Ele nos diz que as representações estão ligadas à subjetividade, além disso, as representações coletivas são “matrizes” para a construção e o entendimento do “mundo social”. (CHARTIER, 1991, p. 183).

Na citação abaixo, percebemos como o historiador Roger Chartier defende a abordagem de novas temáticas, que não as da História Social estritamente ligada ao campo econômico, relacionando o conceito de representação com identidade de classe ou de grupo social:

Ao trabalhar sobre as lutas de representação, cuja questão é o ordenamento, portanto a hierarquização da própria estrutura social, a história cultural separa-se sem dúvida de uma dependência demasiadamente estrita de uma história social dedicada exclusivamente ao estudo das lutas econômicas, porém opera um retorno hábil também sobre o social, pois centra a atenção sobre as estratégias simbólicas que determinam posições e relações que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um ser-percebido constitutivo de sua identidade. (CHARTIER, 1991, p. 183-184).

Chartier (1991), comentando sobre a “teatralização da vida social no Antigo Regime”, constata que a corte francesa criava uma imagem que não necessariamente seria um reflexo da realidade, tendo uma clara intenção de “manipular signos” para “produzir ilusão”. Em outras palavras, “a representação transforma-se em máquina de fabricar respeito e submissão” (CHARTIER, 1991, p. 185 a 186). Esta “teatralização” é muito comum em tais espaços de sociabilidade GLBT, logo compõe uma seta para a análise desta característica do meio GLBT. Para Jodelet, muitas vezes as representações “instauram versões da realidade”, através de “palavras” e “discursos”. (JODELET, 2001, p. 32).

5. Os espaços de sociabilidade ou os “pedaços” GLBT

Os locais de sociabilidade GLBT, como algo direcionado a um determinado grupo social, no caso os homossexuais, é pensado a partir dos escritos do antropólogo José Guilherme Magnani, que estudou as festas populares, com ênfase no circo, na periferia da cidade de São Paulo. Sua tese é resultado dos estudos desenvolvidos na USP e foi defendida em 1982, com orientação da profª Ruth Cardoso, posterior primeira dama de nosso país no governo de Fernando Henrique Cardoso. Para Magnani o circo faz parte de uma rede de lazer em bairros populares da capital paulista, que é somada à excursão a Aparecida do Norte ou ao futebol no final de semana. Sobre como determinado discurso é percebido pelo seu objeto de análise, ou melhor, se dá a relação entre o “circuito discursivo” e as “representações dos receptores”, afirma o autor:

[...] é necessário que o discurso produza alguma ressonância junto àqueles aos quais se dirige, caso contrário nada significará, ou melhor, poderá ter sentido, mas não ‘fará sentido’ – será inverossímil – para os receptores (MAGNANI, 1984, p. 54).

Nesta mesma linha de análise de público do circo, afirma este autor:

Trata-se de um público que juntamente com o ingresso compra o direito da fala e obriga o artista a incorporá-la no texto representado; público que expressa de maneira pouco sutil sua aprovação ou então seu desagrado, se o espetáculo não corresponde às expectativas. (MAGNANI, 1984, p. 59).

A tese defendida por Magnani servirá como sustentáculo para que possamos perceber como se dá o “circuito discursivo” ou a dialética do discurso entre os freqüentadores homossexuais e a relação deles com a casa noturna GLBT. Este manancial teórico servirá de base para analisarmos as representações e os discursos de determinada casa noturna GLBT, de seus artistas, do público em relação ao espaço e as trocas possíveis neste espaço de sociabilidade GLBT. A partir do conceito de “pedaço”, ou local de sociabilidade especifico de algum grupo social, buscamos entender os mecanismos sociais existentes no Blue Space e no Soft, além de percebermos a influência que locais extintos, como o Fim de Século Club e o Enigma, exercem na atual sociabilidade GLBT.

Conforme Magnani, o “pedaço” engloba duas características: a “ordem espacial” e as “redes de relações sociais”. Lembra ainda, que nestes espaços de lazer da periferia “[...] os trabalhadores podem falar e ouvir sua própria língua”. (MAGNANI, 1984, p. 22). Sobre o sentimento de pertencimento nas periferias paulistanas, que de alguma maneira também ocorre para os habitues do meio gay, destaca o autor: “Não basta, contudo, morar perto ou freqüentar com certa assiduidade esses lugares: para ser do “pedaço” é preciso estar situado numa particular rede de relações” (MAGNANI, 1984, p. 137).

Segundo o sociólogo Manuel Castells, Martin Levine, em seu livro “Gay ghetto”, de 1979, dissertou sobre a padronização sistemática dos espaços GLBT nas cidades dos EUA durante a década de 70. Portanto, enquanto Levine e outros empregavam o termo “gueto”, os militantes gays utilizavam “áreas liberadas”, uma vez que, essas últimas são construídas deliberadamente pelos homossexuais para criar seu próprio espaço dentro da estrutura social urbana geral. (CASTELLS, 2002, p. 209). Sobre a sociabilidade GLBT como forma de resistência ao estigma social, afirma Castells; “Para poderem se expressar, os gays sempre se juntaram – nos tempos modernos em bares e lugares social e culturalmente marcados”. (CASTELLS, 2002, p. 249).

Percebe-se então, que este autor é contrário a idéia do tratamento do espaço de sociabilidade GLBT como gueto homossexual, pois tais espaços são criados por homossexuais e não por forças repressoras como o Estado ou a Igreja, e tem a clara finalidade de ser uma “área liberada” ao amor e à vivência das homossexualidades. O ponto de análise de Castells é o bairro gay do Castro em São Francisco, nos EUA. A partir desta cidade ele constata que houve um movimento do micro para o macro, isto é, de pequenos espaços de sociabilidade GLBT rumo a um bairro e a vivência e respeito à homossexualidade em qualquer local da cidade. Isso já ocorre na capital paulista, onde a região da Consolação abriga um grande número de casais homossexuais, inclusive há construtoras que criam imóveis adaptados às necessidades de casais homossexuais sem filhos. Obviamente por questões mercadológicas, no entanto, mesmo que seja uma cidadania do consumo, isso demonstra um claro desenvolvimento na aceitabilidade da homossexualidade em nossa sociedade. Porém, no Brasil, isso está restrito aos homossexuais mais bem sucedidos financeiramente, ficando os homossexuais mais pobres geralmente a margem da sociedade de consumo e confinados aos espaços de estigmatização social e sexual. Na capital gaúcha, o bairro Cidade Baixa começa a tomar ares de área homossexual, inclusive com alguns espaços de sociabilidade GLBT e um grande número de homossexuais passeando em suas ruas e avenidas. Luiz Mott (2000) utiliza a terminologia “cena gay” para se referir aos locais de sociabilidade homossexual.

Como observaremos as representações virtuais da comunidade GLBT, a partir do site da internet “Orkut”[29], propomos uma discussão sobre o papel da internet. Adotamos o sociólogo francês Pierre Levy, que em 1997 lançou um livro sobre a cibercultura. A mola mestra deste autor é o seu grande otimismo em relação a internet, que segundo ele, serve para a expressão das idéias de milhares de indivíduos e não apenas de meia dúzia de corporações ou governos. Levy (1999) distingue “ciberespaço” de “cibercultura”, sendo a primeira o espaço virtual, isto é, as redes, os cabos, as memórias digitais, etc, e a “cibercultura” é a cultura, as idéias que estão sendo criadas ou postas sobre este novo espaço, o ciberespaço.

Levy explica que o ciberespaço surge da iniciativa de “[...] jovens ávidos para experimentar, coletivamente, formas de comunicação diferentes daquelas que as mídias clássicas nos propõem” (LEVY, 1999, p. 11). O autor percebe a internet como o segundo dilúvio, em uma clara alusão ao importante acontecimento bíblico. Segundo ele, este é um dilúvio de informações onde os seres humanos terão que se adaptar a elas, isto é, caberá ao indivíduo selecionar o que é ou não relevante ser visto. Levy acredita ainda, que a internet foge das grandes generalizações, tão comuns com a mídia tradicional ou a idéia de unificação em torno de um Estado-Nação. Sendo a internet uma nova forma de comunicação entre os homens, não ocorrendo a grande síntese como na TV, por exemplo, mas havendo inúmeras possibilidades de escolha e pontos de vista.

Sobre a cibercultura, Levy constata que “o universal sem totalidade” é a essência da cibercultura. “Quanto mais o ciberespaço se amplia, mais ele se torna ‘universal’, e menos o mundo informacional se torna totalizável” (LEVY, 1999, p. 111). Ou seja, quanto mais universal, mais informações e pontos de vista a internet disponibilizar, menos será a chance de ela se tornar homogênea ou totalizável. Concordamos com a visão otimista da internet proposta por Levy, pois o eventual mau uso dela é responsabilidade do indivíduo e não da ferramenta. No contexto geral, acreditamos ser a internet benéfica para a humanidade. Como síntese do pensamento de Levy, destacamos o trecho abaixo:

Aqueles que fizeram crescer o ciberespaço são em sua maioria anônimos, amadores dedicados a melhorar constantemente as ferramentas de software de comunicação, e não os grandes nomes, chefes de governo, dirigentes de grandes companhias cuja mídia nos satura [...] A internet é um dos mais fantásticos exemplos de construção cooperativa internacional, a expressão técnica de um movimento que começou por baixo, constantemente alimentado por uma multiplicidade de iniciativas locais. (LEVY, 1999, p. 126).

Para pensarmos o conceito de tradição, que está muito presente no Blue Space, especialmente por causa de seu destaque aos espetáculos de transformistas e por ser um local de “tradição gay” há mais de duas décadas em um mercado marcado pelo efêmero, foi utilizado o manancial teórico de Anthony Giddens (1995). Para ele, a modernidade “destrói a tradição”, isto é, liquida com as grandes explicações de mundo ou as grandes tradições de antigas civilizações. Contudo, conforme Giddens, a modernidade, ao mesmo tempo em que destrói a tradição se utiliza dela para legitimar seu poder, sua hegemonia. Por sua vez, na modernidade tardia, que nada mais é do que o acentuamento do processo de modernização ocidental, ocorre o abandono da tradição, ou melhor, dos grandes mecanismos tradicionais, mesmo os inventados nos primórdios do processo modernizatório. Todavia, mesmo na “mais moderna das sociedades atuais”, a tradição não desaparece totalmente e em alguns pontos ela inclusive se fortifica. Na análise da tradição na sociedade pós-tradicional, Giddens defende que alguns aspectos da tradição tornam-se “relíquias” ou “hábitos”. Afirma ainda, que estas relíquias compõem um “museu vivo”, “revestidas de significados”, ilustrando um “passado transcendente”, que parte do ontem atingindo o hoje. (GIDDENS, 1995, p. 125).

3.

4 ENTRE A PESQUISA DE CAMPO E A VIDA PESSOAL. MÚLTIPLAS FACETAS PARA UM MESMO FIM: O RESGATE DA HISTÓRIA DE UM DETERMINADO GRUPO SOCIAL

Toda pesquisa científica necessita de métodos prévios para se alcançar algum resultado prático. No nosso caso não foi diferente. Mesmo não pesquisando um objeto “ortodoxo”, algo amplamente pesquisado pela historiografia brasileira, tivemos que nos adaptar a esta pesquisa. Como veremos, para chegarmos as nossas conclusões, mesmo que parciais, tivemos que garimpar novas ferramentas analíticas. Nesta busca pelo entendimento da relação entre o espaço de sociabilidade GLBT e a identidade de seus freqüentadores homossexuais, sob uma ótica histórica, pegamos emprestado teóricos e métodos de outras áreas do conhecimento. Na segunda parte deste capítulo, narro os sucessos e percalços de campo, pesquisa esta que foi feita no alto inverno gaúcho o que certamente não nos deu o resultado previamente esperado.

1. O método acadêmico

Para refletirmos sobre a homossexualidade como um todo, e sobre a identidade homossexual em particular, tivemos que fazer uma ampla revisão bibliográfica em busca de conceitos e de ferramentas teóricas que facilitassem a nossa compreensão deste fenômeno social, pois uma informação leva a outra. Uma de minhas primeiras leituras acadêmicas sobre esta temática foi o livro “O que é homossexualidade”, escrito pelos antropólogos Peter Fry e Mac Rae. Com isso, passamos a ter um novo olhar sobre a homossexualidade, uma vez que estes autores destacam a historicidade da construção do sujeito homossexual, que não é algo

inato, biológico, mas sim, social e historicamente constituído. Após isso, tivemos contato com dois livros sobre identidade de gênero travesti, escritos pelo gaúcho Marcos Benedetti e pelo carioca Helio Silva. A partir da melhor compreensão da identidade travesti, abre-se um leque para a compreensão das múltiplas identidades homossexuais. Novos conceitos foram inseridos no bojo de pesquisa, a contar o de representação social, da Denise Jodelet e do Roger Chartier; o de identidades múltiplas, de Stuart Hall; a idéia de modernidade-tardia, como explicação do mundo atual, proposto por Anthony Giddens, o conceito de “áreas gays” ou “áreas liberadas”, do Manuel Castells; além da definição acadêmica de estigma, cunhada por Erving Goffman, que foi de fundamental importância para a compreensão destes episódios da vida GLBT porto-alegrense e brasileira.

Além destes autores mencionados, há outros que de uma forma ou de outra contribuíram para a fluidez de idéias desta monografia. Lembramos ainda, o papel da publicação do grupo GLBT porto alegrense, Nuances, através do seu “Jornal do Nuances”, que foi uma grande fonte de informação e de incentivo para a confecção deste trabalho. Antes da fase da disciplina “Trabalho de Conclusão de Curso I”, cursada em 2007/1, o intercambio de idéias de dava entre as primeiras leituras acadêmicas, as matérias do portal gay “Mix Brasil”, da capital paulista, além de conversas prévias com nossa orientadora e diálogos com conhecidos na rede virtual de computadores, isto é, a internet.

Nosso trabalho possui basicamente três recursos metodológicos. A contar, em primeiro lugar uma revisão bibliográfica e a utilização de um quadro conceitual a partir de autores conhecidos, o que dá maior legitimidade acadêmica ao nosso texto, uma vez que promove o olhar racionalmente direcionado ao objeto desta pesquisa. Em um segundo momento, fizemos uma série de “observações participantes”, em dois espaços GLBT da capital gaúcha, para percebermos o mecanismo social destes locais, além de servir como preparativo para a terceira etapa, isto é, as entrevistas, onde foi enfocada a questão identitária, em relação à construção histórica de uma identidade homossexual a partir de tais espaços de sociabilidade GLBT.

No que tange à observação participante, procuramos obter a imparcialidade a partir da orientação conceitual adotada. Nossa intenção não é desfraldar uma bandeira homossexual, muito menos crucificar os freqüentadores de tais espaços de sociabilidade GLBT, propomos-nos a entender este fenômeno, esta sociabilidade peculiar, que teve um crescimento histórico, segundo James Green (2000) e Peter Fry e Mac Rae (1983) dos anos 1970 até os nossos dias. Mesmo estas casas gays sendo estabelecimentos comerciais como qualquer outro, há um conjunto de características que a diferem dos locais heterossexuais. Ceres Víctoria (et al), em menção direta a Malinowski, constata que os valores que geram tais atitudes (a serem estudados, no nosso caso as identidades homossexuais a partir de seus espaços de sociabilidade) não estão escritas ou postas em um “código de leis”, estando sim “incorporadas no mais evasivo de todos os materiais: o ser humano”. (2000). Sobre as observações participantes, menciona esta autora, parafraseando Malinowski:

Já os imponderáveis da vida real são fenômenos que não se encontram registrados nem podem ser investigados através de perguntas ou documentos. São simplesmente procedimentos cotidianos como rotinas de trabalho, cuidados com o corpo, formas de comer e preparar os alimentos, ou mesmo características como o tom das conversas, os sentimentos, etc. Esses são, em geral, obtidos através de observação in loco. (VICTORIA et al apud MALINOWSKI, 2000, p. 54).

A partir da citação acima, percebemos que muitas peculiaridades de pesquisa somente poderão ser obtidas a partir da observação “in loco”, isto é, com uma observação participante, integrada ao meio social a ser estudado. Víctoria et al (2000) criou um triângulo de pesquisa, cujos depoimentos (entrevistas) se relacionam com a observação participante e com os documentos escritos. Portanto, peculiaridades como o “cuidado com o corpo” é melhor compreendido quando observado diretamente. Ou seja, a simples entrevista não daria o resultado esperado, pois os entrevistados nos dão uma representação da realidade e não a realidade propriamente dita. Esta inserção em campo como um “participante” de tal comunidade não se deu uma forma tão natural assim, já que nós não fazíamos parte do “pedaço” de pesquisa (MAGNANI, 1984). Isto é, estávamos afastados e não sintonizados com a cena gay (MOTT, 2000) de Porto Alegre. Sobre a “observação participante” como método científico, afirma Tim May:

O método (observação participante) encoraja os pesquisadores a mergulharem nas atividades do dia-a-dia das pessoas as quais eles tentam entender. Diferentemente da testagem de idéias (dedução), elas podem ser desenvolvidas a partir das observações (indução). Dito isso, há aqueles que combinam os métodos nas suas buscas de entendimento e explicação. (MAY, 2004, p. 174-175)

As observações se deram basicamente no “Blue Space”, um espaço de sociabilidade homossexual porto-alegrense, há mais de duas décadas no mercado. Nasce como um local lésbico nos anos 1980 e hoje é um ponto que engloba todas as letras da comunidade GLBT, bem como possui o diferencial de ser uma “fábrica de transformistas”, nas palavras de Paulo de Castro, sócio-proprietário deste local. A pesquisa acadêmica, embora possa ficar restrita a uma gaveta ou a um compartimento da memória virtual de um personal computer, pode vir a se tornar pública, com acesso a um número relativo de pessoas, indivíduos estes que geralmente são formadores de opinião. Então, decidimos não divulgar o nome verdadeiro dos agentes entrevistados, bem como dos dois espaços de sociabilidade estudados. Os nomes que aparecem no decorrer desta monografia são pseudônimos, cujo objetivo do uso desse dispositivo é preservar a intimidade dos reais sujeitos estudados. Como lidamos com algo repleto de estigma (GOFFMAN, 1988), que é a homossexualidade, acreditamos ser de bom tom manter a privacidade de nosso objeto de pesquisa.

Complementando nossa gama metodológica, fizemos cinco entrevistas semi-estruturadas com freqüentadores e indivíduos que constroem a noite gay porto alegrense. Para estas entrevistas, tínhamos um roteiro prévio de perguntas, mas que era flexível, conforme a receptividade do entrevistado em determinado momento. Este modelo não estanque, permite a descoberta de novas sutilezas de pesquisa, que uma simples entrevista não iria captar. Além disso, como as entrevistas foram feitas por nós mesmos, pudemos observar a feição de nossos entrevistados, seus medos, alegrias, nervosismos. De uma maneira geral, falar sobre homossexualidade não é algo fácil, tanto para os freqüentadores como para os empreendedores da cena gay gaúcha. A sexta entrevista se deu de uma forma inusitada, a mãe de uma das entrevistadas era lésbica e freqüentou os primeiros anos do Blue Space. Logo, ela também entrou no rol das entrevistadas, embora o foco principal tenha sido a sua filha, Michelle Vargas.

Paralelo a isso, cada entrevistado recebia perguntas direcionadas a sua função, ao seu personagem. Foi através destas conversas que moldei alguns conceitos da noite gay, como “Casa Noturna” ao invés de “Boate” ou mesmo “Top Drag”, ao invés de “Drag Queen”, sugestiva terminologia disponibilizada pela Drag oficial do Blue Space, Luana de York.

Drag Queen não existe mais, são pouquíssimas. Eu não vejo mais que exista alguma Drag, a maioria quer ser Top. Quer ficar de calcinha e bater cabelo (Luana de York, 32 anos, 14/08/2007)

Para entendermos com mais competência a relação identidade-espaço de sociabilidade GLBT, incluímos em nossa arca analítica quatro folders do Fim de Século Club, nome verdadeiro, uma vez que se trata de um local extinto. O entrevistado Juliano de Carvalho, 27 anos, negro e morador de Alvorada disse que este local, juntamente com o Enigma, que fechou suas portas por volta de 2005, influenciou muito o término de sua adolescência. Com isso temos uma nova ótica de análise, o quesito da idade. Em um primeiro instante, temos a impressão de que os jovens, no caso entre 16 a 25 anos, possuem uma maior identificação com os valores homossexuais impostos pelas indústrias do consumo do que os indivíduos com mais idade. Todavia, isso não pode ser observado como regra, uma vez que as academias estão repletas de jovens senhores, na faixa de seus 50 anos, que querem estar em forma para “caçar” gurizinhos, em uma releitura simples da pederastia da antiguidade clássica. Nestes folders, que datam dos três últimos anos do século XX, percebemos uma clara alusão ao futuro, à virada para o novo milênio, a idéia de que se deve viver intensamente.

Como ponto e vírgula, para não dizermos ponto final, utilizamos o portal de relacionamento da internet, “Orkut”, para perceber se esta sociabilidade homossexual se dá também nos itens intitulados “Comunidades” de nossos objetos de pesquisa. Por seu turno, o dado mais relevante que foi retirado desta página da internet, são dois questionários sobre a influência do espaço gay na vida dos homossexuais. Enquête esta que foi posta em dois locais, na comunidade “História e Homossexualidade” e na da casa noturna paulista “The Week”. Duas comunidades distintas e, obviamente, dois resultados quase que antagônicos. O que prova que a homossexualidade não é homogênea, embora grupos dominantes de uma elite gay imponha seus valores para as camadas menos favorecidas ou aos que não querem se adaptar a este ideal de homossexualidade. Bourdieu (1994) chama este mecanismo de poder de “violência simbólica”.

1. A inserção em campo: relatos de um jovem pesquisador

Esta pesquisa exigiu saídas a campo, trata-se da já mencionada “observação participante”. Basicamente estas idas a campo se derão nos meses de julho e agosto de 2007. O que marcou essa etapa foi o rigoroso inverno gaúcho, um dos mais rigorosos dos últimos anos. Além de toda dificuldade inerente a qualquer pesquisa, o vento gélido foi mais um entrave para a execução de nosso projeto. Houve noites, como a do dia 27 de julho de 2007, sexta-feira, em que apenas o dever de cumprir as metas de pesquisa fazia-nos sair de casa. O frio era horroroso, medonho mesmo. Com isso, aliando frio com uma sexta-feira, encontramos um Blue Space vazio, com escassos freqüentadores. Terminado o espetáculo de transformistas, por volta da 1hora e 30 minutos da madrugada, a casa começou a se esvaziar e um pavor começou a subir na mente deste jovem pesquisador. Pensamentos como “o que eu estou fazendo aqui”, ou “por que escolhi este tema de pesquisa” vieram a minha mente. De veras, não é nada fácil fazer uma pesquisa desta estirpe sem apoio institucional, familiar e mesmo dos espaços pesquisados. Como já foi dito acima, o estigma da homossexualidade está muito presente entre os sujeitos homossexuais e seus familiares. Para cumprir com as metas de pesquisa, foi preciso, antes de tudo, fortalecer a nós mesmos, vencendo nossos medos e receios. Podemos afirmar que a parte mais complicada de nossa pesquisa foi justamente esta fase das “observações participantes”, pois, mesmo como sujeito homossexual, havia muito tempo que não freqüentávamos tais espaços de sociabilidade GLBT e, além disso, a academia universitária nós dá um relativo distanciamento em relação aos demais integrantes da comunidade GLBT.

Afora as observações participantes, fizemos seis entrevistas que serviram de base para nossas análises. Grosso modo, as entrevistas foram feitas com relativa facilidade. Houve casos inclusive em que tais personagens apareciam mesmo como mágica para nós. Como no caso do dia em que nós estávamos próximos a nossa casa e encontramos a “esposa” da Michelle Vargas, conhecida, que para nossa surpresa, morava uma rua após a nossa. Deixamos previamente marcada a entrevista, que se deu um mês após este encontro casual. Chegado o dia da tal entrevista, ficamos pasmos, o tal casal havia se “divorciado” e a Michelle Vargas já possuía nova companheira. O mais inacreditável é que a mãe da Michelle, a Lurdes Vargas é lésbica relativamente assumida e, inclusive, freqüentou os primeiros anos do Blue Space e relaciona este local com um episódio trágico de sua vida. O dia em que ela se separou de seu marido, onde, ao ser expulsa de casa por ele, para não ficar ao relento e como forma de auto-protesto, ela resolveu ir ao Blue Space. Isso por volta de 1984, quando esta casa era direcionada quase que exclusivamente para o público lésbico e se localizava no bairro Cidade Baixa, na capital gaúcha.

Outro episódio de fluidez ou de sucesso de pesquisa se deu no dia em que ligamos para o proprietário do Cabaret Soft, Cristiano de Menezes, e agendamos uma entrevista. Para nossa sorte, ele foi super receptivo, uma vez que o portal GLBT “Angel Loiro”, de Porto Alegre, iria entrevistá-lo no dia seguinte. Fizemos a tal entrevista em sua residência, uma sauna desativada, e saímos antes da chegada da equipe do tal portal GLBT. Como constante, podemos dizer que todas as “observações participantes”, bem como as entrevistas e tentativas de entrevistas, foram documentadas através da ferramenta antropológica do “Diário de Campos”, onde anotamos as principais informações sobre determinado dia. A partir destes Diários de Campo, podemos analisar as representações e os pré-julgamentos do próprio pesquisador, como em constatações de que existe vida durante o dia, dentro de uma casa noturna. Percebemos isso, na tarde em que entrevistamos o Paulo de Castro, sócio-proprietário do Blue Space, em que este local tinha um grande movimento de funcionários e colaboradores, e me foi afirmado que há um zelador que cuida de tal local durante todos os dias da semana, em horário comercial. Por sua vez, percebe-se que a “cena gay”, termo utilizado por Luiz Mott (2000), não é exclusivamente noturna. Ela possui um sistema logístico diurno, que a prepara para o grande ato, isto é, as noites dançantes do final de semana.

Em nossas entrevistas, fora os proprietários de tais locais de sociabilidade GLBT, preferimos direcionar nossos estudos nos indivíduos que sofrem estigmas múltiplos, que além de serem homossexuais, não têm uma condição monetária muito favorável, bem como sofrem pelo estigma étnico. Por seu turno, não será analisada nesta monografia as relações étnico-raciais no meio GLBT. Estes sujeitos entraram na pesquisa por não pertencerem às camadas médias brasileiras e não pelo fato de serem afro-descendentes. Destes entrevistados, um mora em Alvorada, no bairro Jardim Sorriso, e as outras duas, mãe e filha, moram em casas separadas, embora no mesmo terreno, na periferia de Canoas, mais especificadamente no bairro Mathias Velho. Obviamente que não são sujeitos vítimas de miséria extrema, mas não pertencem a imagem recorrente de que “toda bicha tem dinheiro”. Pois, esta imagem de poder econômico homossexual, na imensa maioria dos casos é irreal. Conforme diz Cristiano de Menezes, proprietário do Cabaret Soft tem muito homossexual que quer aparentar ter dinheiro, mas na verdade não possui.

Após o início desta pesquisa, ou mesmo antes, desde meados do ano 2006, qualquer visita ao portal de relacionamentos “Orkut” se transformava em um breve insight de pesquisa. Mesmo conversas em “chats”[30] gays do portal Terra, com homossexuais de outras regiões do país tornavam-se potenciais pontos de análise. Somado a isso, conhecidos homossexuais nossos que não eram muito “fãs” de tais espaços de sociabilidade GLBT entraram no rol dos pontos de interrogação. Se eles são homossexuais, porque não freqüentam tais espaços de sociabilidade? As respostas não são tão simples assim. Nós mesmos, durante parte do ano de 2001, vivemos intensamente as saídas noturnas rumo a Enigma, que chamaremos logo abaixo de “síntese homossexual”, já que este local era capaz de abrigar as mais variadas nuances da homossexualidade porto alegrense. Houve assuntos e temáticas, que embora não relacionadas diretamente ao nosso objeto de pesquisa, aguçaram a nossa curiosidade acerca das homossexualidades e na tentativa de construção de uma cidadania homossexual, com sujeitos assumidos, para si mesmos e para a sociedade. Um destes “assuntos paralelos” foi a descoberta do escritor gay gaúcho, Caio Fernando Abreu, que faleceu na segunda metade dos anos 1990, vítima do “câncer gay”, isto é, a Aids. Um dia antes da escrita desta página, 03 de novembro de 2007, pudemos acompanhar uma entrevista sua, em uma reprise do programa “Perguntar não ofende”, exibido pela TV COM, do Rio Grande do Sul.

Todavia, este trabalho não possui apenas loros. As dificuldades de inserção em campo foram enormes. Além desta pesquisa de campo ter sido feita no alto inferno, digo inverno gaúcho, o que certamente modifica e reduz o público que procura tais espaços de sociabilidade GLBT, a recepção como um todo não foi das mais amistosas. Até porque, este objeto de pesquisa causa estranhamento, inclusive entre os habitués do meio GLBT local. Sem temer ser repetitivo, mas aceitando as idéias de Goffman sobre estigma, acreditamos que a homofobia está internalizada, isto é, os próprios sujeitos homossexuais não se assumem plenamente. Podem moldar seus corpos, serem promíscuos, mas não dão um passo além, o passo do reconhecimento social. Porém, dificuldades de inserção em campo são relatadas pelo Hélio Silva, que desenvolveu uma etnografia com travestis no bairro da Lapa no Rio de Janeiro-RJ, ou mesmo pelo José Magnani, que pesquisou sobre a diversão operária em uma periferia paulistana.

Helio Silva, no inicio de sua inserção no campo de pesquisa, ou de “batalha” das travestis, sofreu certo distanciamento. Como no caso narrado por ele, no qual a dona “Emilinha”, que vendia lanches e cervejas junto a uma borracharia 24 horas, recusou-se a atendê-lo. Além disso, sobre a busca de informações da vida das travestis, Helio Silva constata que “quem não pergunta muito, descobri depois, termina sendo agraciado com informações preciosas”, uma vez que não é tido como “fofoqueiro” e, portanto, é “merecedor de confiança” (1993, p. 84). Silva, em uma “aula” de metodologia de pesquisa em campo, orienta que o pesquisador não deve guiar uma conversa, deve sim ouvir o que seu entrevistado tem a oferecer. Pois muitas vezes o detalhe de pesquisa está justamente nos vícios de linguagem, nas falas “não importantes”. Por fim, Helio Silva, expondo seus percalços de pesquisa, disserta que as informações “mais picantes” vieram apenas em uma segunda etapa do seu trabalho de pesquisa, isto é, no mestrado, quando ele já era “amigo” das travestis. Obviamente, a rejeição a nossa pesquisa não foi tão forte, embora tenha existido. Como nosso objeto de estudo era outro, as formas de fuga dos pesquisados foi o silêncio, a demora para se marcar uma entrevista e a baixa receptividade a tal proposta. A resistência maior veio do Blue Space. Ao contrário da entrevista com Cristiano de Menezes, do Cabaret Soft, que fluiu muito bem, a com Luana de York, do Blue Space, foi muito complexa. Primeiro foram vários telefonemas até marcar o dia exato para esta entrevista. Depois, no dia da entrevista, ela simplesmente havia saído mais cedo e não estava mais lá para que pudéssemos cumprir com a nossa missão. Após um novo telefonema, a entrevista ficou agendada para a semana posterior, e desta vez ela foi feita com êxito, embora Luana de York tenha-nos deixado esperar por aproximadamente 40 minutos para falar conosco. No entanto, mesmo estes tropeços aguçaram a nossa intuição de pesquisador, já que mostra um pouco da representação que ela quer nos passar, criando uma idéia de diva muito ocupada e que não pode dar entrevista. Em uma ligação telefônica, de 08 de agosto de 2007, sábado à tarde, diz ela:

Esta semana está tumultuada, não pode!

Tem que chegar exatamente na hora, não vou esperar!

(Diário de Campo. Ligação telefônica. 08/08/2007)

Uma semana antes, mesmo sem termos podido entrevistá-la, pudemos observar o funcionamento do interior do Blue Space durante o dia, e conversarmos brevemente com o zelador deste local. Nesta troca de idéias, ele me disse que sua esposa também trabalha lá, na área da limpeza, mas nos horários de funcionamento da casa. Portanto, vemos aqui que um espaço de sociabilidade GLBT abriga heterossexuais, e inclusive famílias heterossexuais. Um dos grandes perigos ao tratarmos de um tema relativamente pouco estudado e que permeia o imaginário da sociedade das mais variadas formas, é o fato de cairmos na narrativa do exotismo, nos preocupando mais com os detalhes deste fenômeno do que com a análise da problemática de pesquisa. Nosso maior cuidado foi preservar o espírito crítico mantivemo-nos firmes na luta contra a exotização de nosso objeto de pesquisa. Helio Silva, que estuda o universo das travestis, versa sobre os riscos da “bizarria”:

Eis a questão mais crítica em torno de um tema que se oferece publicamente sob o signo da bizarria: o de ser seduzido pelo seu exotismo. O estudioso pode perder-se na infindável qualificação do objeto, deslumbrar-se com cada detalhe, anotá-los todos e, maravilhado, dotá-los de valor e significado. (SILVA, 1993, p. 144)

Nossa prática de observação participante se deu em poucas vezes, haja visto que essa técnica foi um complemento de nosso trabalho e não uma grande “etnografia” sobre o mundo GLBT. Para percebermos as transformações históricas ocorridas neste meio, acreditamos ser necessário esta inserção em campo, para fins de comparação entre o passado e o presente. Conforme Helio Silva, as representações ocorrem dos dois lados, ou seja, o objeto de estudo de uma forma ou de outra também “estuda” o pesquisador. Sobre a imagem que ele passou para seu foco de estudo, isto é, as travestis cariocas, afirma Helio Silva:

Uma leve aparência gay, não fazia michê, nunca transava com ninguém, uma idade superior à todos eles, o bastante para ser tido (ou tida) como coroa. [...] Recebia-os em minha casa. Suponho que dela o que mais impressionava, sobretudo porque havia um pesado silêncio sobre isso, era minha biblioteca, o meu escritório, insignificante em termos acadêmicos, mas absolutamente acachapante para os padrões do meu universo de pesquisa. Assim, fantasias devem ter sido tecidas sobre minha identidade e o que fiz foi nunca mentir, mas deixar em branco várias informações sobre mim mesmo. (1993, p. 151)

Nossa inserção em campo não foi tão densa quanto a de Helio Silva, mas pudemos perceber que as representações dos freqüentadores sobre a nossa imagem variavam conforme o local pesquisado. No Blue Space os clientes eram mais individualistas, o que dificultava o acesso a eles. Por seu turno, os freqüentadores do Cabaret Soft eram mais acessíveis, talvez até pelo excessivo número de garotos de programa que ofereciam seus serviços. Este é um ponto cabal de diferenciação entre o Blue Space e o Cabaret Soft, os garotos de programa. Pelo que pudemos observar o Blue Space não possui garotos de programa e nem um escancarado apelo ao sexo quanto no outro local visitado. Os nossos diários de campo, escritos no “calor do momento”, isto é, logo após o término de alguma saída a campo, revelam coisas que muitas vezes a memória apaga, como a razão da escolha e do acréscimo do Cabaret Soft, servindo de contrabalanço de análise.

Nesta sexta-feira, 13/07/2007, dia do início do Pan do Brasil, [...] peguei um ônibus rumo à capital gaúcha. Desci próximo ao Blue Space, por volta das 23h15minh da noite. Neste momento, me deu uma intuição para ir ao Cabaret Soft (na escrita original aparecem os verdadeiros nomes destes estabelecimentos), que fica a poucas quadras do Blue Space. Minha intenção inicial era conhecer o Cabaret Soft, ficar uma hora no máximo e terminar a noite no Blue Space. Todavia, o Cabaret Soft me encantou, desde a fila de entrada me senti mais acolhido e as pessoas pareciam mais dispostas a colaborar. (Diário de Campo, 13/07/2007)

Nestas observações, novos dados foram processados por nosso cérebro. Um exemplo disso foi a fala de um senhor do Cabaret Soft que associou “internet” e poder econômico. Mesmo não sendo temáticas que são diretamente tratadas nesta monografia, cabe o registro. São representações do pesquisador que muitas vezes caem por terra. No trecho transcrito de nosso diário de campo, foram mantidos os eventuais erros de português e de concordância, uma vez que, a intenção é demonstrar a sensação do momento, da intuição, e não do enquadramento científico da escrita final deste trabalho. A análise mais acurada, científica, será feita no capítulo 5. A partir das palavras abaixo se percebe uma clara distinção entre a representação do homossexual jovem, malhado e bem sucedido, dos demais integrantes do grupo GLBT. O Enigma, casa noturna GLBT que não mais existe, também tinha este papel de inserir as camadas populares, com o diferencial de atrair a elite gay porto alegrense, tornando-se com isso um espaço síntese.

(Fala do Senhor) _Tu qué um trabalho decente ou um trabalho internet?. Eu, muito ingênuo pensei que estivesse falando da falta de rigor acadêmico da rede mundial de computadores [depois é que fui perceber que ele estava se referindo a condição social, isto é, internet como sinônimo de riqueza e o Cabaret Soft como um “lugar de pobre, de negro”]. Quando ouvi isso, fiquei meio sem reação e disse que quero um trabalho decente. Pois bem, aquele senhor (com ar professoral) me admite que é zelador de um prédio de luxo em Porto Alegre, e pelo que deu a entender, ele mora neste prédio, já que ele me falou que era de Guaíba e que a há 10 anos mora em Porto Alegre. Ele me falou umas 15 vezes, “aqui é lugar de pobre, que tem bastante negro” e que “aqui a gente se sente bem, não tem ‘bundinha’ (pelo contexto significa uma bixa barbie) como em outras boates”. Ainda em suas palavras, ele comentou que ali havia pessoas de todos os tipos e que as pessoas não eram tão produzidas (em outras palavras) quanto nas outras boates. E que faltava um lugar assim em Porto Alegre, para os homossexuais de baixa renda. Que querem se divertir, tomar uma cerveja, conversar, etc. Por fim, ele comentou que poderia pagar a entrada da Refugiu’s (mega danceteria), mas que não se sentiria bem lá e, além disso, “o que os moradores de seu prédio diriam ao ver o zelador na mesma boate GLBT que eles?”.(Diário de Campo, 13/07/2007)

Nota-se ainda, que na citação acima aparece o termo “boate” ao invés de Casa Noturna, uma vez que este conceito foi modificado ao longo da escrita desta monografia, pois “Casa Noturna”, segundo um dos proprietários do Blue Space é a palavra apropriada. Pois “Boate” está associada a um local de prostituição, de sexo. A partir desta fala, pudemos perceber claramente a imagem que o Blue Space quer passar aos seus freqüentadores e a sociedade como um todo, a de ser um local limpo, saudável, seguro e que, embora sendo GLBT, possua todas estas características de qualquer lugar heterossexual. Destacamos ainda, que nossa pesquisa foi relacionada a algo mercadológico, ou melhor, que nós fôssemos espiões contratados por outra empresa.

Muito temeroso, me indagou diretamente se minha pesquisa não tinha um viés mercadológico ou, em outras palavras, se eu não era um “espião da concorrência”. Nesta momentânea conversa com um dos sócios proprietários do Blue Space, ele me afirmou que o termo “boate” não se utiliza desde os anos 1980, já que ficou muito associado a prostituição e que danceteria foi um termo surgido nesta mesma década mas que não vingou. Por fim, destacou – inclusive com alusão ao Google – que o termo “Casa Noturna” é o mais utilizado nos dias atuais, tanto em locais GLBT quanto heterossexuais. (Diário de Campo, 14/08/2007)

O trabalho de campo em um local de sociabilidade GLBT, ao contrário do que possa parecer, não é fácil e por vezes é altamente complexo. Primeiramente, todas as despesas necessárias a tal pesquisa saíram de nossos bolsos. Não tivemos apoio institucional e muito menos de órgãos de fomento à pesquisa. Aliado a isso, todos tinham a impressão de que tínhamos muitos recursos financeiros, ou pelo fato de um hipotético empresário estar bancando esta “pesquisa de mercado” ou sendo assediado por sujeitos que se prostituem e encontram seus clientes no Soft. Pois, ao contrário da imagem recorrente, muitos homens, por vezes heterossexuais, se prostituem por muito pouco, algo em torno de 10, 20 reais. São seres altamente marginalizados, sem emprego e que vêem na possibilidade de alugarem seus corpos a única chance de sobrevivência. Por fim, temos a questão familiar, onde ao contrário de nossos colegas de curso, não podíamos contar abertamente para nossos familiares o real quadro de pesquisa. Estigmas que se entrecruzam, mas que acreditamos serem importantes, já que geram um aguçado espírito crítico em nossa escrita. A solidão muitas vezes assombrou a nossa alma, conforme aparece na transcrição abaixo:

O gelo tomou conta deste dia de observação participante. A noite, sem sombra de dúvida, foi uma das mais frias do ano. Somado a isso, devemos levar em consideração que é final de mês e poucas pessoas têm dinheiro para sair. Por volta da meia-noite chego ao Blue Space, no centro de Porto Alegre. Este espaço estava, ou melhor, esteve vazio durante a noite toda. (Diário de Campo, 27/07/2007)

Houve também histórias engraçadas, como no momento em que conheci um senhor e seu namorado no Cabaret Soft. Como eu estava absorvido pela música eletrônica, bem como havia lido a pouco as etnografias de Helio Silva e de José Magnani, cometemos uma pequena “traição”, ao utilizarmos a profissão “antropólogo” ao invés de “historiador” para citarmos a nossa função naquela observação prática. Todavia, isso se explica, pois o lado historiador está presente nas entrevistas, bem como na análise sócio-histórica dos dados, mas na pesquisa de campo, a identidade de antropólogo falou mais alto. O pesquisador que mistura estas ciências corre justamente o risco de cair em uma “crise identitária”. Porém reiteramos nossa busca das transformações sócio-históricas desta sociabilidade GLBT. Neste causo que contamos logo abaixo, apareceu a “cerveja” como multa, isto é, como chave para novas informações. Neste exato momento, lembramo-nos do episódio descrito pelo Magnani, que vivenciou situação semelhante em sua pesquisa na periferia paulistana. Helio Silva e José Guilherme Magnani Cantor, foram mais que teóricos, foram alicerces, verdadeiros livros de auto-ajuda.

Em um determinado momento da noite, estava fazendo algumas anotações na penumbra, quando um senhor, o Sandro, acendeu o isqueiro para iluminar minhas anotações. Quando ele disse “escrevendo no escuro?” Aproveitei para dizer que era uma oportunidade de puxar assunto com eles. Estava ele, o seu namorado (um menino auto-proclamado Emo[31] “que chora por qualquer coisa” e duas lésbicas de Guaíba). Conversa vai, conversa vem, ele disse que para alguém estar ali (no Cabaret Soft) com uma caneta e papel na mão, só se fosse um louco (não me lembro se isso mesmo) ou um “jornalista fodido” (fazendo uma matéria sobre a noite gay). Complementei dizendo, já embriagado com a batida musical, ou um antropólogo fazendo uma pesquisa. Ele me olhou com perplexidade. E disse que para eu conquistar a confiança deles, deveria pagar uma multa, isto é, uma cerveja. (Diário de Campo, 13/07/2007)

Nesta sexta-feira, 13 de julho de 2007, dia que não estava tão frio assim, cometemos nossa primeira gafe, ao não reconhecermos um ícone da noite gay gaúcha: Charlene Voluntaire.

Eu estava na pista de dança observando as pessoas quando um drag queen me chamou a atenção. Fui conversar com ela, disse que ela estava muito bonita e bem vestida (ela possui um estilo de senhora elegante). Quando ela me falou que era a Charlene Voluntaire, que estava há 15 anos na noite gay de Porto Alegre e que dirigia uma casa noturna. Daí fui obrigado a me desculpar, dizendo que nunca tinha visto um show dela. No entanto, ela foi hiper simpática e se dispôs para qualquer coisa. (Diário de Campo, 13/07/2007)

Também ocorreram situações de “saia justa”, que exigiram muita criatividade para sair delas, como em uma pré-entrevista, que por fim não ocorreu, com um rapaz que pensou estar sendo “cantado” pelo pesquisador. Este é um ponto forte. Estávamos tão envoltos nesta pesquisa, que adotamos uma postura similar ao do Hélio Silva, isto é, o não envolvimento afetivo-sexual com nosso objeto de estudo.

Quando eu estava procurando indivíduos para futuras entrevistas, um cara me chamou a atenção. Ele tinha uma aparência com características gays, embora não tivesse um corpo “malhado”. Mas ele usava maquiagem e corte de cabelos bem marcantes. Ele possui 24 anos. Ao abordá-lo, eu disse: “Quero falar contigo um minuto ali fora (da pista)”. Ele pensou e disse “não”. Tive que explicar que não era uma cantada, levá-lo a um lugar com menos movimento, no outro ambiente, explicar meu projeto e solicitar o telefone dele para uma futura entrevista. (Diário de Campo, 17/06/2007)

Muitas idéias foram germinadas nos locais mais inóspitos, como no banheiro do Cabaret Soft. Pelo final da noite, o público deste espaço começa a sofrer uma leve mudança, já que homossexuais migram de outras casas noturnas para terminar sua noite ali, como pude constatar em uma rápida conversa com um grupo de quatro rapazes.

Lá pelas 05h00min, fui ao banheiro do fundo e encontrei um dos rapazes do grupinho. Cumprimentei-o e perguntei se eles sempre faziam sempre este rodízio de casas noturnas GLBT. Expliquei meu projeto de pesquisa e começamos a conversar sobre identidade gay ali mesmo, no banheiro. Até brinquei com ele dizendo que teria que por isso na introdução do meu TCC. Ele falou que é colaborador de um portal gay da capital gaúcha, o “Porto G”, que foi criado há um mês. [...] Neste momento minha cabeça fervilhava. Em conversa com o Vitor (nome deste rapaz) ele disse: “_pergunta para essas bichinhas se elas sabem o que foi do dia 28 de junho?”. Comentei de sua representação sobre os homossexuais e que esta data deveria ser lembrada como o dia 20 de novembro, dia da consciência negra. (Diário de Campo, 13/07/2007)

Finaliza-se assim, esta panorâmica de nossa prática de pesquisa. Na qual aliamos método acadêmico com vivência pessoal. Em nenhum momento, partimos para a militância acrítica ou a simples exaltação da cena gay porto alegrense. Procuramos mantermo-nos com o máximo de isenção possível e, inclusive, acentuamos nosso discurso crítico. Para compor o nosso discurso, a nossa análise, utilizamos três recursos básicos: a revisão bibliográfica e a construção de um quadro teórico; as observações participantes em tais locais GLBT da capital gaúcha; bem como as entrevistas semi-estruturadas que serviram de base para percebermos as representações dos entrevistados sobre a sociabilidade GLBT e sua relação com a identidade homossexual, em particular. Esperamos que a redação desta monografia seja frutífera, e que novas pesquisas sobre esta temática sejam incorporadas à área da História. Nosso mote de pesquisa é o tempo presente, isto é, estudamos a partir de representações que, com a devida licença poética, mal saíram do forno. Este estudo está imbricado com a vida deste pesquisador. Embora não sejamos um exemplar típico da representação homossexual, com um peitoral altamente trabalhado, defendemos uma militância a partir das idéias, ou melhor, uma militância acadêmica.

5 BLUE SPACE E CABARET SOFT: MODELOS DISTINTOS PARA UM MESMO FIM, A SOCIABILIDADE HOMOSSEXUAL

“Tu não precisa provar para ninguém que tu é gay ou que tu não é gay”

(Luana de York, 32 anos, 14/08/2007)

Neste momento, entramos em uma nova base analítica, “pousamos” em nosso foco de estudo propriamente dito. Como já foi dito, o espaço escolhido para a comprovação ou não da idéia de que a identidade homossexual está relacionada aos seus espaços de sociabilidade foi o Blue Space, que possui uma grande tradição no meio GLBT porto-alegrense e gaúcho. Tradição entendida aqui a partir das idéias de Giddens (1995, p. 125), que a percebe, nos dias atuais ou na “modernidade tardia”, como “relíquias” ou “hábitos”, que transformam determinado local ou característica cultural como um “museu vivo”, “revestido de significado”, servindo como um elo entre passado e o presente. Para termos um contrabalanço de análise, mais ligado a sexualidade propriamente dita, foi inserido o Cabaret Soft que assume claramente ser um espaço de maior liberdade sexual para seus clientes e freqüentadores, mas que não se resume a isso, investindo também na área de espetáculos de transformistas e de stripers masculinos. Trata-se, portanto, de um típico exemplar do basfond gay que influenciou e continua a influenciar muitas casas homossexuais mundo afora. Neste capítulo descreveremos as peculiaridades, as relações, as identidades homossexuais a partir destes dois espaços de sociabilidade GLBT. Para realçarmos o caráter histórico da pesquisa, destacaremos, sempre que possível, as diferenças e continuidades entre o ontem e o hoje. Com base nisso, a nossa bagagem histórica, inexoravelmente, guiará nossa escrita para uma analítica temporal, uma vez que, qualquer fenômeno social é reflexo direto de seu tempo histórico.

1. A cena gay porto alegrense e a ditadura militar: pelos olhos do documentário Flores de 70

“Vá ao Flower’s e desbunde”

(slogan desta casa GLBT. Documentários Flores de 70, 2007)

A capital gaúcha não foi a primeira cidade brasileira a receber um espaço direcionado aos homossexuais, embora tenha sido uma das pioneiras. No final dos anos 1960 já havia locais GLBT no Brasil, como o Caneca de Prata[32] no centro da cidade de São Paulo. Esta casa paulistana ainda se encontra em funcionamento. O ano de 1971 foi diferente para Porto Alegre. Esta cidade viu nascer seu primeiro espaço de sociabilidade homossexual, ou em outras palavras, o primogênito de uma série de casas noturnas GLBT da maior cidade do Rio Grande do Sul. Surge aí o Flower’s. Esta casa aparece na cena gay, termo utilizado por Luiz Mott (2000), em um contexto de “anos de chumbo” e do governo do General Emílio Garrastazu Médici, que governo a “República” do Brasil entre 1969 a 1974. Este foi o período mais violento do governo militar brasileiro. Não cabe aqui discutirmos o quadro conceitual da experiência militar brasileira, mas sim o fato deste local, o Flower’s, ter se instalado justamente no Rio Grande do Sul, terra de “gaúcho macho” e berço da boa parte da equipe de militares que administraram o país durante aquele período.

Para refletirmos sobre o Flower’s foram utilizados três mecanismos. O documentário “Flores de 70”, dirigido por Vinicius Cruxen e datado deste ano de 2007, e que foi realizado pelo grupo GLBT Somos de Porto Alegre; cartões postais alusivos a este espaço, confeccionados e distribuídos pelo grupo Nuances, também da capital gaúcha; além do capítulo “Abaixo a repressão: mais amor e mais tesão: 1969 – 1980”, do livro “Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX”, escrito pelo historiador norte-americano James Green. As próprias fontes são contraditórias e buscam moldar o passado a sua maneira, refletindo atuais disputas de poder, tanto nos campos das idéias – com distintas visões de mundo, como na busca por financiamentos do governo federal, a partir dos ministérios da cultura e da saúde[33].

Porto Alegre vivencia atualmente um fenômeno peculiar, interessante de ser analisado. Há o anseio pelo resgate da história da homossexualidade nesta cidade. Como temos contato a pelo menos sete anos com este meio, percebemos que o “pontapé inicial” para a escrita desta história se deu através do grupo Nuances. A publicação impressa por eles - de grande relevância para o debate sobre a vida homossexual nos pampas – o “Jornal do Nuances” há alguns anos abriu suas páginas para matérias desta estirpe, como matérias sobre a “Cabana do Turquinho”, ”Flower’s”, “Nega Lú”, “Coligay”, entre outras. Além disso, no ano de 2004 este grupo, em parceria com a Unesco e o programa “DST Aids”, do Ministério da Saúde, distribuiu gratuitamente uma série de cartões postais sobre este pioneiro espaço homossexual da capital dos gaúchos. Passado algum tempo, os responsáveis pelo Flower’s, Dirnei Messias e Elaine Ledur, abriram seus arquivos para que o grupo Somos, de uma linha ideológica contrária ao Nuances, fizessem um documentário sobre esta casa.

No documentário “Flores de 70”, encontramos opiniões antagônicas acerca de tal espaço de sociabilidade GLBT. Constatam-se duas explicações históricas evidenciadas nas breves entrevistas com personagens que percorreram os ambientes dessa casa. De um lado temos o Dirnei Messias e a Elaine Ledur, que associam sua iniciativa com as perseguições ocorridas durante a ditadura militar do Brasil, divulgando este espaço como um local de “luz” em meio a “escuridão”. Por outro lado, nomes de peso da cultura gaúcha, como o apresentador do programa “Gente da Noite”, da “TV Com”, Tatata Pimentel, que era assíduo freqüentador deste local GLBT nos anos 1970, afirma que os militares não se importavam com tal atividade, pois para a censura do governo federal, estes homossexuais não representavam perigo algum, já que em sua maioria não eram envolvidos com movimentos político-partidários e saiam à noite apenas para se divertirem. Somado a isso, para Tatata Pimentel, a política de repressão dos militares acreditava que era melhor os homossexuais estarem dentro de um local fechado, no qual seriam “melhor controlados”, do que estarem soltos nas ruas. O historiador James Green, a partir de uma pesquisa documental, propõe que o ideal de homossexual para o governo militar brasileiro era o discreto, o menos afeminado possível. Entretanto, o mesmo não se deu na vizinha Argentina, que exerceu uma severa perseguição aos homossexuais. (GREEN, 2000). Sobre a cronologia da repressão militar, que está fortemente vinculada ao Ato Institucional nº. 5, que dava amplos poderes ao presidente do Brasil, publicado na gestão de Costa Silva em 1968, constata Green que “As medidas repressivas tomadas pelos militares a fim de erradicar a ‘subversão’ tiveram um efeito desalentador sobre a sociabilidade homossexual entre 1969 e 1972” (2000, p. 396).

Por outro lado, segundo o mesmo historiador, após 1972 houve um abrandamento da repressão, o que permitiu que locais de diversão, homossexuais e heterossexuais, pudessem seguir com suas atividades. “Os locais de entretenimento no Brasil, fossem de homossexuais ou não, continuaram a funcionar com relativa liberdade de 1972 em diante” (GREEN, 2000, p. 398).

Neste documentário, segundo Tatata Pimentel, o Flower’s era um espaço de show de transformistas muito comentado na época. Além disso, a alta sociedade porto alegrense, incluindo aí as respeitáveis senhoras heterossexuais, saia da Avenida Independência, que era umas das mais sofisticadas nos anos 1970 e “subia rumo a Jaime Telles”, no bairro Petrópolis, onde se localizava o Flower’s. Por seu turno, conforme o relato de Tatata Pimentel, o Flower’s atraiu a alta sociedade local para seus aposentos. Green (2000) constata fenômeno similar nas casas noturnas homossexuais “Medieval”, em São Paulo e “Sótão”, na capital fluminense que “estavam entre os lugares mais efervescentes da vida noturna nestas cidades” (2000, p. 398). Sobre esta ambivalência do governo militar, menciona Green:

Essa contradição entre a atmosfera política geral e a ampliação do espaço gay parece contrariar a lógica. Seria de esperar que um governo militar de direita, que censurava peças consideradas “subversivas” ou que violam “a moral e os bons costumes” também fosse fechar os clubes gays. Mas isso não ocorreu. (2000, p. 398)

Percebe-se, então, que Green (2000) propõe que o período de alta repressão aos homossexuais se deu de 1969 a 1972, em um contexto de “anos de chumbo” e do pós AI-5. Nos postais distribuídos pelo grupo Nuances, o dia 08 de dezembro de 1971, é tido como a data de inauguração do Flower’s. Logo, seguindo a cronologia de Green, esta casa noturna GLBT surgiu nos pontos finais da repressão dos anos de chumbo, isto é, nasceu em um contexto de crescimento do mercado voltado à homossexualidade, como fica explicito na seguinte citação:

Após 1972, os empresários tiraram vantagem dessa abertura à sociabilidade homossexual e ofereceram número crescente de opções para os consumidores gays de classe média, cuja renda disponível havia crescido no período do “milagre econômico”. (GREEN, 2000, p. 400)

Complementando esta sentença, já em relação às saunas, e baseado em na matéria “Os acordes da liberação gay”, escrita por José Saffiotti Filho, na Revista Manchete, de 09/10/1977, na página 91, afirma Green:

Enquanto nos anos 60 os dois centros urbanos tinham apenas algumas saunas e casas de banho onde os homens poderiam caçar suas aventuras sexuais, na década seguinte ambas as cidades já contavam com estabelecimentos de nível internacional. (GREEN, 2000, p. 401)

Conforme foi discutido no capítulo 2, acreditamos que as representações são sociais e não estanques, isto é, passíveis de modificações. Neste tópico especifico há uma clara tentativa de se forjar uma história idealizada, cujos personagens foram perseguidos pela ditadura militar. É uma forma de dar maior respaldo social a esta sociabilidade GLBT. Para Chartier, “a representação transforma-se em máquina de fabricar respeito” (1991, p. 185 - 186), ou em outras palavras, legitimidade. Por outro lado, na mesma linha de raciocínio de Chartier, Jodelet (2001, p.32) acredita que por vezes as representações “instauram versões da realidade”, por meio de “palavras” e “discursos”. Como fica claro nesta frase, encontrada no reverso de um destes já citados postais:

Perseguida pela Ditadura, a Boate Flower’s era militante da alegria e do prazer. A fotografia inédita mostra carimbo da Censura Federal que autorizava a apresentação do show de Dirnei Messias e Edinho, em 1971. (Postal da Casa Noturna GLBT Flower’s, 2004)

Este material é datado de 2004 e era formado por um conjunto de seis postais e um maior, em formato de cartão que abre, para abrigar os demais postais. A capa deste cartão reproduz a foto, com o carimbo de inspeção da censura federal. Esta imagem encontra-se em anexo. Por seu turno, apenas esta foto possui o tal carimbo, e é datada do final de 1971, período este que, a alta repressão, segundo Green (2000), estava agindo. As demais fotografias expostas nos outros cinco postais não possuem o menor vestígio de intervenção estatal. Por fim, o cartão-capa repete a imagem com o tal carimbo e reafirma no verso que o Flower’s “enfrentou” a ditadura militar. Green (2000) vai mais longe e afirma que surge, após 1972, um verdadeiro leque de opções aos homossexuais das mais variadas matizes sociais, citando a inauguração da Nostro Mondo em São Paulo e Zig-Zag no Rio de Janeiro, como espaços mais populares, o que possibilitou que mais homossexuais pudessem freqüentar tais espaços de sociabilidade GLBT. Em Porto Alegre, a década de 1970, ao contrário do que possa parecer, não se resumia ao Flower’s. Houve no mínimo mais duas casas, pelo que sabemos até o presente momento, o Coliseu e a Number One, que era localizada onde hoje se encontra a Blue Space.

Por fim, destacamos que os responsáveis pelo Flower’s buscam criar uma história da homossexualidade gaúcha, e mais, uma história heróica de resistência à opressão do governo federal. Dirnei Messias e Elaine Ledur deram depoimentos no documentário Flores de 70, dando a entender que foram muito perseguidos pela Ditadura Militar. Acreditamos, segundo James Green (2000) e o depoimento de Tatata Pimentel, que esta casa era relativamente aceita, até porque não abrigava um claro movimento político partidário nas suas dependências. Além disso, o público do Flower’s era mais seleto, isto é, freqüentado basicamente por indivíduos das classes médias. Sobre o perfil desta casa, afirma Rubina, uma antiga travesti que foi ao Flower’s e deu uma entrevista ao Jornal do Nuances: “O porteiro só deixava entrar quem ele queria e não era qualquer travesti que podia freqüentar a casa, precisava ser considerada fina. Muitas eram barradas”. (Rubina, Jornal do Nuances, 2004)[34].

Nota-se, portanto, que há um ambiente propício para o resgate da história da homossexualidade gaúcha encabeçada pelo Grupo Nuances, mas que começa a atingir a Academia bem com outros grupos de defesa dos direitos dos homossexuais. Além disso, o episódio Flower’s busca criar uma clara representação de perseguição, o que, aparentemente, não foi bem assim, a ponto que a elite heterossexual porto alegrense freqüentava tal local. Este intercâmbio entre as “madames” e o Flower’s se dava, conforme Tatata Pimentel, da seguinte forma. A “alta sociedade” se deslocava a este local, assistia aos espetáculos de travestis e retornava aos seus lares. Cena parecida ocorre nos nossos dias, na qual muitos indivíduos vão aos teatros para prestigiarem peças protagonizadas por transformistas.

2. Blue Space, um histórico peculiar.

O Blue Space nasce no final de 1983. Inicialmente era um local destinado ao público lésbico, pois, segundo Paulo de Castro, não havia um lugar destinado aos homossexuais femininos na capital gaúcha. Ao longo destes 24 anos, esta casa esteve em dois endereços: primeiramente no bairro Cidade Baixa e poucos anos depois ela se transferiu para seu endereço atual, no centro de Porto Alegre. No prédio onde funciona atualmente, havia anteriormente uma casa noturna, que tinha como público preferencial os homossexuais masculinos. Trata-se da Number One, que surgiu na segunda metade dos anos 1970, período de abrandamento da repressão do governo militar, segundo Green (2000), e que fechou suas portas no início dos anos 1980. Neste momento, surge a proposta para os proprietários do Blue Space assumirem o “ponto” do Number One. Como estratégia de mercado, e para preservarem o seu público habitual, descartaram o nome Number One e mantiveram o a bandeira Blue Space. Entre os fatores que impulsionaram esta mudança de endereço, além da possibilidade de encampar o ponto mais central, há o fato de a antiga casa noturna estar rodeada por residências. Segundo Paulo de Castro, não houve uma “expulsão” ou preconceito por parte dos vizinhos, pois o que incomodava era o barulho.

Como era uma casa residencial, uma zona residencial, nós fomos obrigados a sair de lá por causa do barulho né. Nós fomos obrigados a sair por que era residência do lado, residência do outro. Como era muito barulhento e ia noite a dentro a Casa. [...] A vizinhança se incomodava, a polícia vinha lá, mandava baixar o som e tudo né, então a gente foi obrigado a sair de lá. (Paulo de Castro, 60 anos, 22/06/2007)

Nas comemorações dos 22 anos desta casa foi feita uma publicação especial, intitulada “Revista Blue Space”, datada de dezembro de 2005, em que se constata como foram os festejos, no qual fica clara a representação de casa noturna que o Blue Space quer passar para o seu público:

As comemorações foram intensas, os artistas trabalharam na confecção de suas roupas e deram tudo de si para apresentar roupas fantásticas, encenavam a dança com uma performance maravilhosa, cheias de requinte. Mas a estrela maior é o Blue Space, que sempre abre seus espaços e dá oportunidade para que todos cresçam dentro da casa e se tornem constelações. (Publicação desta casa, Dezembro de 2005)

Por seu turno, Porto Alegre não foi a primeira capital brasileira a ter um espaço abertamente destinado às homossexuais femininas. Green (2000, p. 402) afirma que em meados dos anos 1970, na cidade de São Paulo, as lésbicas “tomaram conta” do Ferro’s Bar, que, posteriormente, se transformou em um espaço de sociabilidade semelhante ao Blue Space do começo dos anos 1980, ou seja, direcionado ao público homossexual feminino.

O nascimento do Blue Space é marcado pela coragem e ousadia. Não foi inaugurada uma grande casa como ocorre atualmente. Nos dias atuais, onde tudo praticamente vira mercadoria, um espaço GLBT é inaugurado com todo o aparato necessário para “bombar”, atrair e fidelizar os clientes. O Blue Space “estréia” com parcos recursos, conforme trecho da fala do sócio-proprietário deste local:

Como a casa já estava fechada (a Number One) e o proprietário queria vender o ponto né, então o Lucas Santos (sócio do Blue Space) chegou e negociou com ele para fazer um arrendamento da casa durante um certo tempo né. Como na época a gente não tinha dinheiro para comprar o ponto, que era muito alto, e não havia dinheiro disponível na época né, ele fez um contrato de arrendamento por um certo período. (Paulo de Castro, 60 anos, 22/06/2007)

Ainda na primeira metade dos anos 1980 eles se transferem para o atual endereço. Hoje existem três grandes pavilhões, cada qual como uma grande peça, formando três ambientes distintos, dois direcionados a uma sociabilidade bar-restaurante e o último com duas pistas de dança, com dois estilos diferenciados de música. A Number One ocupava o espaço das atuais pistas de dança, portanto, ao se entrar na pista tecno-dance, volta-se ao passado, pois ali era a pista da Number One. Passando-se os anos e com um trabalho quase que de “formiguinha” este espaço foi se ampliando e está há quase 25 anos no mercado GLBT gaúcho.

Paulo de Castro, em sua entrevista, compara o ato de ser empresário nos anos 1980, período de inflação e de constante troca de moeda, com a era de relativa estabilidade econômica de nossos dias, que foi conquistada com a implantação do plano Real, em 1994. Afirma inclusive, que as dificuldades econômicas, inerentes a qualquer cidadão brasileiro, foram mais fortes que o preconceito propriamente dito. Questionado sobre o que gerou mais dificuldade, se foram às crises econômicas ou o preconceito estatal e da sociedade, Paulo de Castro afirmou que:

Não, não, não. Crise econômica mesmo [...] porque naquela época o dinheiro mudava a toda hora. Era muita mudança, e a inflação era muito alta, depois naquela época tu comprava a cerveja a 1 real e vendia a 2 e amanhã ia comprar e já tinha que pagar 2 por ela de novo. Quer dizer que tu não tinha margem de lucro. Tu não conseguia trabalhar com margem de lucro né. Então a gente passou muito aperto né. Agora hoje em dia, hoje tu pode programar daqui a 30 dias alguma coisa que tu sabe que tu vai poder fazer aquilo no final dos 30 dias. (Paulo de Castro, 60 anos, 22/06/2007)

Muitas das eventuais dificuldades de pesquisa se devem justamente por isso, pela peculiaridade da construção deste local. Seus proprietários querem “preservar” suas conquistas, transformando o Blue Space em um local de tradição GLBT e intimamente ligado à vida do Paulo de Castro e do Lucas Santos. Um exemplo desta forte identificação deles com este local, mesmo antes deles possuírem esta casa noturna aparece na seguinte fala, de um dos proprietários do Blue Space:

É um detalhe interessante, um dia, eu e o Lucas a gente veio aqui quando era Number One, aí cheguei para ele e disse: _ Ai Lucas, um dia isso aqui vai ter que ser nosso né. A gente gostava daqui, era um ambiente gostoso, era bom o ambiente né. Um dia isso aqui vai ter que ser nosso né. Vamos batalhar para ver se um dia teremos essa boate para nós né. Virou e mexeu e não deu outra. Deu certo e a gente conseguiu a casa né. (Paulo de Castro, 60 anos, 22/06/2007)

Para ilustrar as dificuldades iniciais do Blue Space, destacamos estas palavras:

Tem um detalhe que eu me esqueci, que agora estou começando a lembrar. Quando o meu sócio abriu aqui (endereço atual), na primeira noite para ele abrir a casa, ele não tinha um puto centavo no bolso para comprar a bebida para abrir a casa né, Então na época tinha uma entendida, uma lésbica, ela tinha um barzinho (nas proximidades) [...], então ele (Lucas Santos) foi lá, falar com a Maria, pediu toda a bebida emprestado para ela, trouxe a bebida, vendeu a bebida na noite, daí no dia seguinte ele foi ressarcir ela daquilo. (Paulo de Castro, 60 anos, 22/06/2007)

Passado estes anos iniciais em que esta casa foi freqüentada basicamente por lésbicas, segundo Paulo de Castro, houve uma época em existia uma política de diferença de preços. Isto é, homem pode entrar, mas tem que pagar bem mais caro. Relacionado a mudança de perfil de seus clientes, o Blue Space foi ampliando a sua área, e hoje é uma das maiores casas GLBT de Porto Alegre. Além disso, foi surgindo uma logística de apoio a esta casa, isto é, o estacionamento ao lado começou a abrir durante as madrugadas dos finais de semana para abrigar os carros dos clientes, bem como alguns taxistas que fazem ponto durante a noite naquela região. Portanto, um espaço de sociabilidade GLBT não envolve apenas homossexuais, mas sim uma rede de apoio que inclui funcionários, muitas vezes heterossexuais, taxistas, estacionamento, fornecedores dos equipamentos para a manutenção desta casa, entre outros.

Conforme Paulo de Castro, bem como Luana de York, foi no começo dos anos 2000 que o Blue Space começou a abrir aos domingos, atraindo um significativo número de homossexuais masculinos. Este foi um período de novas estratégias para este espaço, como o fato de se especializar como uma “casa de shows”, (Luana de York, 32 anos, 14/08/2007), e aberta apenas nas sextas, sábados e domingos. Com os espetáculos dos artistas homossexuais que são a “alma” do Blue Space:

Desde que eu me lembro, desde que abrimos o Blue Space [...] sempre fazíamos shows. Mesmo quando era só para lésbicas, a casa já tinha shows. Era de transformista também. Daí sim, daí tinha, daí na época tinha striper feminino. Na época tinha striper feminino e show de transformista. (Paulo de Castro, 60 anos, 22/06/2007)

3. Personagens e lugares ou lugares e personagens

Personagens e lugares se entrecruzam na sociabilidade GLBT. O personagem está ligado ao lugar e o lugar está ligado aos seus personagens. Propomos neste sub capítulo um retrato da sociabilidade GLBT, de final dos anos 1990 ao corrente ano de 2007, focados especialmente no Blue Space e no Cabaret Soft. Lembramos que estes lugares não constituem um “ponto final” nas relações sociais dos homossexuais. Há ainda, os locais marginalizados como o Parque da Redenção, em Porto Alegre, o Parque Getúlio Vargas, vugo Capão do Corvo, em Canoas, que também servem para práticas afetivo-sexuais entre indivíduos do mesmo sexo.

1. Os personagens

Os personagens dos espaços GLBT nem sempre fazem parte do cotidiano do restante da população, especialmente a heterossexual. Uma figura marcante são as transformistas. Embora haja uma gama enorme de nomes para tipificar o fenômeno do transformismo, ou seja, o ato de um homem se caracterizar como mulher, adotamos a terminologia ampla do transformismo, utilizada por Helio Silva (1993), bem como pelo sócio-proprietário do Blue Space Paulo de Castro. “É que naquela época (anos 1980) não existia a palavra drag ainda” (Paulo de Castro, 22/06/2007). Luana de York, em uma fala autobiográfica, narra esta metamorfose das drags do passado para as top drags do presente.

[...] antigamente Drag era de cara branca, cara bem branca, com a maquiagem bem forte, muito gliter, muita purpurina, e hoje já não, as maquiagens elas continuam, as drags (Top Drags) continuam bem maquiadas, mas já estão bem mais femininas. Não tem mais aquele exagero. Claro que se usa roupa que uma mulher comum não ia usar, assim numa boate né. (Luana de York, 32 anos, 14/08/2007)

Os espaços de sociabilidade GLBT refletem o mundo exterior. Uma das formas de se enfrentar o estigma, segundo Goffman (1988), é justamente escancarando o seu estigma, no caso a homossexualidade, ou mesmo assumindo uma relação de desprezo aos seus companheiros de infortúnio social. Este autor cita diretamente o exemplo de surdos que não se consideram necessariamente deficientes auditivos. Por seu lado, muitos homossexuais adotam uma postura de desprezo perante os seus pares, o que também está diretamente ligado a questão da “violência simbólica” (Bourdieu, 1994), cujo grupo dominante tenta impor seus valores para os demais membros de um determinado grupo social. Com base nisso, notamos que há nestes espaços de sociabilidade GLBT, indivíduos com uma grande necessidade de auto-afirmação. Corpos trabalhados - tanto os peitorais masculinos quanto o corpo moldado das travestis - são valores de uma restrita elite gay que são impostos, em uma verdadeira “violência simbólica”, aos demais segmentos da cena gay. Logicamente, estamos nos referindo à violência simbólica ocorrida dentro de um determinado espaço de sociabilidade GLBT, sendo que a nossa pesquisa não se direcionou ao estudo das homossexualidades como um todo, cabendo isso para posteriores trabalhos acadêmicos. Por fim, obviamente, a “violência simbólica” não tem eficácia total e nem todos os freqüentadores de tal espaço se adaptam a tais padrões pré-estabelecidos.

Um dos fatores de “violência simbólica” se dá justamente no preço da entrada para este local GLBT, que não é o mesmo todos os dias. Isto é, a taxa de entrada é mais elevada nas noites de sexta e sábado, e tem seu preço reduzido pela metade nas noites de domingo. O valor mais acessível do ingresso certamente é um dos fatores que contribuem para que esta casa tenha um grande movimento no “Domingão da Alegria”. Os clientes do Blue Space em uma sexta se diferem enormemente dos de um domingo à noite. Seguindo com as ilustrações, as características de público do Cabaret Soft e do Blue Space, em uma sexta-feira, são quase que antagônicas. Embora quem estivesse no Cabaret Soft naquela sexta-feira muito provavelmente freqüenta o Blue Space aos domingos, mesmo que eventualmente[35].

Ainda na fila (para entrar no Cabaret Soft) perguntei ao Murilo (freqüentador) sobre o Blue Space e ele e outras pessoas da frente (todos homossexuais masculinos) responderam que o Blue Space é bom apenas no domingo. (Diário de Campo, 13/07/2007)

Conforme Luana de York, nos dias de hoje, todos os transformistas que fazem show querem ser “Top”, criando em torno delas um ideal de glamour, ou melhor, de divas ultra ocupadas. “Esta semana está tumultuada, não pode [...] Tem que chegar exatamente na hora, não vou esperar” (Luana de York, ligação telefônica, 08/08/2007). Estas palavras foram ditas pela Top Drag do Blue Space e acreditamos que ela esteja querendo criar uma representação (Jodelet, 2001), Chartier (1991) de força, de diva. O que obviamente não é exclusivo dela, mas sim social, e que é acionada pelo agente social como expressão de distinção. Tanto no Blue Space, quanto no Cabaret Soft, há indivíduos travestidos, ou melhor, o grande grupo dos transgêneros[36] – que englobam todas estas peculiaridades da construção do gênero – se divertindo abertamente em tais locais. Ao contrário do que possa parecer, a aparição deles não se resume a hora do espetáculo, mas eles interagem com o público, dançam, abraçam, sorriem, conversam, enfim, dão literalmente um colorido para a sociabilidade noturna GLBT. Podemos notar este intercâmbio entre o transgênero e o espaço de sociabilidade homossexual, a partir da narrativa do “debut” de Luana de York no “mundo gay”[37].

Eu comecei já faz sete anos e eu comecei, a minha carreira começou seis anos atrás quando eu trabalhei um ano de dor na boate Menir Dourado [...] eu simplesmente ia nas boates que todo mundo me conhecia [...] eu ia como Drag Queen, daí eu ia montada e ia nas boates. A diferença é que eu ia toda de vermelho, sempre tinha pirulito na minha bolsa, sempre carregava quilos de pirulito, e eu trocava pirulito, se a pessoa quisesse um pirulito tinha que me dar um selinho. E eu fiquei famosíssima por isso. (Luana de York, 32 anos, 14/08/2007, grifo nosso)

Atualmente, o Blue Space não possui funcionários ligados ao sexo, isto é, garçons seminus, shows de stripers, ou mesmo garotos de programa. Pelo que pudemos constatar, não observamos nenhum “michê”, termo utilizado para designar a prostituição homossexual masculina, nas dependências desta casa noturna, ao contrário do Cabaret Soft que possui um considerável número destes profissionais, bem como o fato de os garçons andarem seminus.

Neste local (Cabaret Soft) havia um número significativo de garotos de programa, que pelo que soube, pela voz de um rapaz que havia ido à São Paulo (garoto de programa), eles não pagavam ingresso. Havia um acordo entre eles e o proprietário da casa. Esta tática de os garotos de programa não pagarem não é usual no Blue Space. (Diário de Campo, 13/07/2007)

Conforme foi dito, os públicos variam conforme o dia. No Blue Space observamos três dias, sexta, sábado e domingo. Já no Cabaret Soft, que abre de quarta a domingo, observamos a sexta-feira. A sexta-feira no Blue Space tem um público mais restrito, baseado em casais homossexuais, tanto masculinos quanto femininos, bem como sujeito que vão para assistir aos shows de transformistas da 01h00min da madrugada e, após isso, partem para finalizar a noite em outras casas noturnas GLBT da capital gaúcha. Juliano de Carvalho, 27 anos, diz exatamente isso, que freqüentou muitas casas noturnas, justamente com esta finalidade: acompanhar as apresentações dos “amigos boyzinhos” que se apresentavam travestidos de mulher nos mais variados palcos das casas noturnas gays de Porto Alegre.

Chamou minha atenção o relativo número de casais de namorados que estavam neste espaço, o que denota que não estavam necessariamente ali para “caçar”, uma vez que, já chegavam acompanhados de seus parceiros Voltando ao segundo ambiente, sentei em uma mesinha encostada ao palco. Após isso, um casal gay (que estavam acompanhados de mais seis amigos), sentou na mesma mesa que eu estava. Aproveitei para conversar com eles e perguntar se eles costumavam sair na sexta-feira e porque escolheram o Blue Space. Eles me responderam que tinham vindo apenas para assistir ao show da Nikita (uma das concorrentes do concurso e que se sagrou vencedora do dia) e que não costumavam sair de sexta-feira. E quando saiam iam para o Café Alaska (no bairro Cidade Baixa) e não para o Blue Space. (Diário de Campo, 27/07/2007).

As noites de sábado se assemelham com as de sexta-feira, com um público reduzido e uma maior presença de casais, tanto masculinos quanto femininos, bem como um ou outro casal heterossexual. Foi o único dia em que vimos também casais heterossexuais dentro desta casa. Além disso, foram observados alguns indivíduos heterossexuais solitários que muito provavelmente procuravam conhecer um travesti ou uma transformista. “Quando tu fica uma bixa bem montada, tu é assediada e daí mexe com a cabeça das pessoas” (Luana de York,32 anos, 14/08/2007). Por meio desta frase, dita pela Top Drag do Blue Space, em alusão ao ato de travestir-se de ficar “bem montada”, percebe-se o fascínio que esta figura gera nas mentes masculinas, mesmo de homens que não possuem uma identidade de gênero homossexual masculina. Para ilustrar o Blue Space no sábado de nossa observação participante, destacamos o seguinte relato:

O número de freqüentadores era bem menor do que nos agitados domingos. Fiquei no segundo ambiente, que estava apresentando um vídeo da Sher (cantora norte-americana, idolatrada por parcela significativa da comunidade GLBT). Pude observar algumas mulheres, aparentemente lésbicas, na casa dos 30 anos de idade. O que me chamou muito a atenção neste dia foi o relativo número de casais lésbicos, bem como casais de homossexuais masculinos que fugiam do padrão estético gay. Casais gays sem peitos malhados, olhares esnobes ou roupas de grifes. Casais comuns que queriam curtir uma noite agradável na companhia de seus namorados. Como havia mais lésbicas, pude constatar que a pista de pagode estava muito mais cheia que a pista dance. (Diário de Campo, 14/04/2007)

Domingo ou o “Domingão da Alegria”, comandado por Luana de York, é o dia de maior movimento do Blue Space e, sem sombra de dúvida, o dia que os homossexuais masculinos mais se identificam com este espaço de sociabilidade GLBT. Esta casa noturna abre normalmente às 23h00min, mas aos domingos, a abertura se dá às 20h00min, sendo que o movimento de público cresce a partir das 22h00min. Aos domingos, o público é composto por pessoas de todas as idades. Neste dia, observamos indivíduos que expõem a sua identidade de gênero homossexual masculina seja através da vestimenta, de seus corpos ou de ambas as atitudes, entretanto o ideal de perfeição gay[38], com corpos ultra definidos e roupas de grife, seja atingido por muito poucas pessoas.

Entre os personagens, lembramos o quadro logístico que é necessário para o funcionamento de uma casa noturna, GLBT ou não. Cristiano de Menezes, proprietário do Cabaret Soft, utiliza o termo “DJ[39] residente”, ao se referir ao DJ de sua casa, que é fixo a ela, sendo um funcionário desta casa. No Blue Space ocorre a mesma coisa, havendo dois DJ’s, um para a pista de música eletrônica e um para a pista mista, que abrange vários estilos, funk até um dance comercial. Além disso, há os demais funcionários, como seguranças, garçons, entre outros. No que tange a questão do profissional de segurança, Cristiano de Menezes, do Cabaret Soft, tem uma opinião pessoal sobre este tema, que destoa do discurso comum da exaltação da segurança. Ele afirma que muitas vezes eles mais atrapalham do que ajudam.

Na verdade o Soft é uma casa que quem faz a aproximação é o próprio garçom, sabe, é por isso que eu digo, eu prefiro, eu gosto de trabalhar com pessoas que entendam a linguagem do Soft. Entendeu. Então se tu chegar lá, chegar pro Daniel, chegar pro William, chegar pra Isabel, chegar para o Alex, eles sabem a filosofia da casa e sabem como é que funciona, tanto que tem 20 anos que eu não trabalho com segurança. (Cristiano de Menezes, 58 anos, 05/08/2007)

Sobre a razão da não contratação de seguranças, afirma Cristiano:

Por que ele (o segurança) quer aparecer, primeiro que ele quer mostrar que ele é macho, que ele não é gay entendeu, ele tem que provar que ele é macho. Pra ele provar que ele é macho, se ele chegar para um gay e falar “desce daí” e o gay “pó, porque eu vou descer daqui” ele já acha que o gay tá querendo ser mais homem que ele e aí já vai querer bater, entendeu. [...] Então, é mais fácil o garçom chegar “coleguinha não dá para descer daí não”, falar igual, “a tá, desculpa e tal”, do que o segurança querendo impor uma coisa que tem maneiras e maneiras de falar. (Cristiano de Menezes, 58 anos, 05/08/2007)

Os personagens da noite gay não ficam restritos às altas horas da noite, havendo também um apoio diurno. Como pudemos constatar em uma breve conversa com André Teixeira, uma espécie de zelador do Blue Space durante o horário comercial e nos “dias úteis”, isto é, de segunda a sexta-feira.

Ele afirmou que fica a semana inteira lá, no horário comercial, e que sua esposa trabalha com a limpeza (desta casa) nos fins de semana. Comentou ainda, que começou a trabalhar lá por intermédio de uma arquiteta, que disse se tratar de um “clube de viado”. Diz ainda, que não tem preconceito e destacou o fato de não ter patrões, mas sim amigos. (Diário de Campo, 31/07/2007)

Por fim, destacamos os personagens anônimos que não são homossexuais, não freqüentam nenhum espaço de sociabilidade GLBT, mas de uma forma ou de outra têm contato com a cena gay porto alegrense.

Antes de entrevistar a Luana de York, às 15h00min, indaguei alguns vizinhos do Blue Space para perceber as representações que eles tinham do referido local. Se havia alguma espécie de preconceito, se a relação deles era boa com os proprietários do Blue Space, etc. De uma maneira geral, ninguém se incomoda com o fato de ser vizinho a dois locais GLBT (Blue Space e uma locadora de filmes eróticos - cujos clientes podem assisti-los lá mesmo, localizada na outra quadra). Até porque as atividades do Blue Space são noturnas, horário em que os tais estabelecimentos comerciais estão fechados. (Diário de Campo, 14/08/2007)

Nota-se então, que a sociabilidade homossexual, especialmente a noite gay possui muitos personagens peculiares, tal qual a Top Drag, o cliente que vai travestido à casa noturna, a grande preocupação com a beleza física e em especial com o corpo. Logicamente, os lugares heterossexuais também possuem algumas destas características, inclusive há transformistas que se apresentam em locais não gays. Mesmo entre os homossexuais não há uma homogeneidade de representações, isto é, há uma mudança de público conforme a data da observação, bem como acentuadas diferenças entre gays e lésbicas. Cada um percebe o local de sociabilidade GLBT a sua maneira. Os personagens da sociabilidade homossexual são sujeitos históricos, que se modificam com o passar dos anos. Um homossexual masculino do pré-aids possuía uma representação social distinta da de nossos dias. Um transformista dos anos 1960 não punha seios artificiais pela simples razão de que não havia hormônio na época[40]. Portanto, todos, independentemente de sua orientação sexual, são frutos de seu período histórico.

2. Os lugares

De uma maneira geral, em uma “visão panorâmica”, as casas noturnas GLBT são similares as heterossexuais. Porém, em uma análise mais acurada percebem-se as diferenças que por vezes são bem significativas. Fora os espetáculos de transformistas, o Blue Space possui as mesmas características de um local heterossexual. Por outro lado, o Cabaret Soft reúne características específicas do “basfond” gay. Segundo o glossário gay, disponível no portal Mix Brasil, este termo de origem francesa tem o significado de “bagunça, confusão, baixaria”. Mas este termo não deve ser interpretado literalmente pois, adaptado à realidade GLBT representa um local pouco sofisticado, ou em outras palavras, é o equivalente a um “brega” gay, um lugar mais simples, mas que abriga a todos.[41] Como fonte ilustrativa, inserimos este trecho de nosso Diário de Campo referente à ida ao Cabaret Soft, em uma sexta-feira do mês de julho de 2007.

Não há casais abraçadinhos, no máximo um par de namorados dançando um na frente do outro. Este local é um exemplo típico de basfond, chamada pelos usuários de “bafão”, tal qual foi o período final do Enigma. Em locais basfond a hipocrisia é deixada de lado, a sexualidade aflora, a cerveja rola e as máscaras caem. Ali todos querem a mesma coisa, se divertir, encontrar conhecidos, ouvir um batida musical ultra forte, relaxar as tensões da semana e, quem sabe, encontrar o príncipe encantado, mesmo que ele seja um garoto de programa. (Diário de Campo, 13/07/2007)

O Blue Space possui três grandes peças, sendo que cada uma possui um ambiente distinto. O primeiro ambiente, da esquerda para a direita, ou melhor, da porta de entrada à pista de dança, abriga os caixas, um bar, um mezanino onde algumas pessoas saboreiam algum quitute, bem como uma máquina de futebol de mesa, ou o popular “Fla-Flu”, e uma mesa de jogos de bilhar. Ao fundo deste ambiente, que foi incorporado a esta casa por volta de 1998, segundo Paulo de Castro, encontra-se o banheiro feminino, bem como um pequeno mural que anuncia futuros espetáculos do Blue Space e de outras casas noturnas GLBT de Porto Alegre. O Cristiano de Menezes, do Cabaret Soft, afirma divulgar maiores atrações de sua casa também no Blue Space.

Quando eu quero colocar um cartaz no Blue Space eu chego pro Paulo (de Castro), pro Lucas (Santos), coloco, o Blue Space coloca lá [...] mas chego eu “olha vou ter uma festa assim, assim, to trazendo a Michele Summer (geralmente atrações vindas de fora do RS) ou, entendeu, posso colocar um cartaz?”, olha, tudo bem, pode colocar e tal. Quer dizer, uma coisa de comum acordo. (Cristiano de Menezes, 05/08/2007)

Este primeiro ambiente já foi uma fábrica de camisas[42]. No segundo ambiente há um palco para apresentações de artistas, geralmente homossexuais. Neste ambiente também há mesinhas e um bar ao fundo. Atrás do palco há um telão onde são exibidos vídeos das divas gays da atualidade, especialmente Sher e Madona. Entre o segundo e o terceiro ambientes, há o banheiro masculino e outro dedicado para as transformistas e travestis. Por fim, na terceira grande peça, que abrigou o “Number One” no final dos anos 1970, existem as duas pistas de dança do Blue Space: uma com música eclética (popular e estilos pop que fazem sucesso nas rádios FM) e a outra direcionada para um som eletrônico mais impactante, que obtém maior sucesso justamente aos domingos, dia em que o público homossexual masculino impera.

O Cabaret Soft é pequeno, localizado dentro de uma parte de um antigo Moinho e que, posteriormente, alojou uma casa heterossexual. Na sua fachada aparece o ano de sua construção, 1934. Esta casa consiste, basicamente, em uma sala única que reúne pista de dança, bancos colados na parede e algumas mesinhas de bar. Do outro lado desta grande peça há o bar propriamente dito e o caixa. O chão é de piso cerâmico. Na parte destinada à pista de dança, na entrada desta sala, há todo um aparato de luzes, cuja pista de som eletrônico do Blue Space também possui, e o estilo musical, conforme Cristiano de Menezes é bem variado, sendo que no dia de nossa observação, o som predominante foi o eletrônico.

Um espaço peculiar de alguns espaços de sociabilidade GLBT é o “dark room[43]”. Neste local, que como o próprio nome diz é uma peça escura, serve para práticas sexuais, anônimas ou não, entre indivíduos homossexuais. Mesmo nas grandes casas da capital gaúcha, destinadas inicialmente à diversão, há estes espaços para trocas sexuais. No entanto, a existência de tais peças não significa necessariamente que todos os freqüentadores de determinada casa noturna entrem ou usufruam de tal espaço. Acreditamos que ele é um item de fetiche, ou um “complemento da diversão[44]”, com disse Lucas Santos do Blue Space. O Dark Room, que já existia nos EUA e na Europa, bem como nos grandes centros do país, foi trazido a Porto Alegre na segunda metade dos anos 2000, por Cristiano de Menezes[45]. Patrício Barbosa, estudante de uma universidade pública baiana, que afirma conhecer pessoalmente intelectuais de peso como Peter Fry e Mac Rae e que estudou as áreas GLBT de Salvador, sob a perspectiva da arquitetura, ou melhor, da interação entre o indivíduo e o espaço urbano, respondeu-nos um questionário via e-mail.

A relação sexo-dark room para mim está posta e consolidada. O dark room é um dos espaços históricos, dentro da comunidade gay, onde o sexo anônimo ocorre. Para muitos, ainda é um espaço de libertação e afirmação da liberdade sexual ligada aos gays. (Patrício Barbosa, 25 anos, entrevista via e-mail, 15/08/2007)

O espaço de sociabilidade GLBT não é homogêneo. Abriga desde a tradição em espetáculos como o Blue Space, passando por pistas de dança com o som nas alturas até chegarmos ao sexo anônimo do dark room. Nossa proposta não é discutir as razões do sexo casual no meio GLBT, mas que este fenômeno existe isso é claro. Todavia, nenhuma casa quer ser relacionada diretamente com a sexualidade. Mesmo o Cristiano de Menezes, do Cabaret Soft, deu maior ênfase as características artísticas em detrimento aos quesitos sexuais. Percebemos pelas falas destes agentes sociais as representações causadas por estas casas noturnas, tanto o Blue Space que ainda hoje é associado a um local lésbico, quanto o Soft que é visto como um local de foco exclusivo nos atos sexuais. O Soft, embora propicie uma gama de atrações sexuais, também é um incentivador dos artistas homossexuais, uma vez que Cristiano de Menezes também é oriundo do teatro carioca.

[...] mas existe a coisa que o Soft é uma casa de putaria, entendeu. Quando na verdade não é. É uma casa hoje que tem espetáculos, bons espetáculos, a gente continua trazendo artistas de São Paulo, do Rio, [...] Tem um clima de integração de funcionário e cliente, muito legal. Entendeu.[...] Quer dizer, existe uma criação muito legal. (Cristiano de Menezes, 58 anos, 05/08/2007)

A sociabilidade GLBT se restringe ao espaço físico? Acreditamos que não, pois o site de relacionamentos intitulado “Orkut” possui inúmeras áreas denominadas “Comunidades” voltadas ao público homossexual. Levy (1999) afirma que o ciberespaço teve um grande crescimento nos últimos anos e que se deve em grande parte ao indivíduo, ao usuário particular. O Orkut é o exemplo perfeito disso. Em um capítulo intitulado “O Movimento Social da Cibercultura”, Pierre Levy (1999, p. 125) relaciona este fenômeno do crescimento da internet mais a atitudes individuais do que a uma estratégia de um grande grupo empresarial ou governamental. Na continuidade da sociabilidade homossexual analisamos como o Blue Space se representa no Orkut. Lá encontramos oito comunidades relacionadas a esta casa noturna, sendo que a maior possui mais de mil membros. Sobre Luana de York, apresentadora do Blue Space, existem cinco comunidades que fazem alusão a ela, sendo que a oficial apresenta 273 membros. Na comunidade que se declara a oficial da Luana de York também há a representação de uma Top Drag, de uma estrela do meio GLBT gaúcho, inclusive com frases como “faz shows de cair o queixo, bate muita peruca e é atinadérrima com o microfone”. Em ambas as comunidades, tanto a oficial do Blue Space quanto a da Luana de York, aparece como “comunidade relacionada” uma em homenagem à falecida apresentadora e Top Drag desta casa, Priscila Neon. A comunidade dedicada a homenagear a esta artista foi criada após a sua morte e conta com 172 membros. A partir desta constatação, percebe-se que um personagem da noite GLBT não é simplesmente esquecido com a sua morte, bem como a tradição em espetáculos homossexuais do Blue Space[46].

4. Os ritmos da cena gay porto alegrense de meados da década de 1990 aos nossos dias

Os espaços destinados a sociabilidade homossexual possuem o seu próprio ritmo que se difere, em alguns pontos, com os lugares heterossexuais. Podemos dizer que tais espaços possuem um tripé de sustentação composto pela dança/música, pelas relações sociais entre os seus freqüentadores e, por fim, pelos espetáculos de transformistas, drags, top drags, travestis, enfim o grande rol dos transgêneros. Estes ritmos, como qualquer outro campo da vida cotidiana, também é histórico e é influenciado pelo “extra muros” de determinada casa GLBT. Um caso ilustratório é a música. Em meados da década de 1970 era a “Disco Music” que embalava o Flower’s ou a Number One e, atualmente, o som preponderante é a música eletrônica como um todo, nas suas mais variadas nuances.

Não cabe discutirmos aqui as várias subdivisões da música eletrônica da atualidade. Isso por si só serve de sugestão para pesquisas futuras. Entretanto, o fato marcante é que a musica eletrônica embala a noite gay porto alegrense e os vários locais de sociabilidade GLBT mundo afora. Nas pistas que tocam este estilo de música o DJ é o mestre, o orientador destes momentos de êxtase que cessam ao término da música. Geralmente ocorre isso, pelo menos pessoalmente, sentimos esta sensação, de grande exaltação com esta batida eletrônica seguida de queda que mexe com a nossa emoção, isto é, com a perda deste instante de êxtase há um breve sentimento de fracasso, de fim de festa. Para se acompanhar este ritmo musical, dança-se individualmente ou de frente a seu parceiro afetivo, mas mantendo a individualidade. Um paradoxo em relação às danças se dá quando um grupo de amigos dança em roda, mas de forma individual, em uma alusão às brincadeiras de roda da infância. Obviamente que a razão para isso é o fato de ficarem próximos e cara a cara com seus amigos.

O que me chamou a atenção foi a forma de dança de alguns dos freqüentadores. A dança era individual, cada um dançando sozinho, porém, esta dança se dava em rodas com 5, 7 e até 8 integrantes. Nesta sexta-feira, havia muito poucas pessoas sozinhas, encostadas nas paredes como que a mirar a todos. No domingo, por exemplo, há um número significativo de indivíduos que vem sozinho em busca de companhia, um novo amor ou mesmo sexo casual. Nesta sexta não percebi este tipo de comportamento. Havia um número superior de gays em relação as lésbicas. Não vi nenhum casal hetero. (Diário de Campo, 27/07/2007)

As redes de sociabilidade não são semelhantes para todos os indivíduos homossexuais. O sujeito que vai sozinho ao Blue Space em um domingo à noite, e fica encostado nas paredes da pista de dança mista, como que cuidando a todos, não é o mesmo que vai em uma sexta-feira, que assiste ao espetáculo de transformistas e ruma para outra casa noturna. Geralmente o freqüentador de uma sexta-feira à noite vem acompanhando de um grupo de amigos. Em um mesmo dia, como o domingo, a sociabilidades são distintas conforme o ambiente do Blue Space a ser analisado. Há o fato de as lésbicas preferirem a pista de dança mista e os homossexuais masculinos migrarem maciçamente para a pista de música eletrônica, que possui um som mais alto, bem como um jogo de luzes mais elaborado que o outro ambiente dançante. No Blue Space, temos ainda mesmo aos domingos, alguns casais homossexuais, tanto masculinos quanto femininos, que buscam um local para namorar, trocar carícias homo-afetivas sem correrem o risco de serem vítimas de preconceito de garçons homofóbicos.

Um dos pontos marcantes dos espaços de sociabilidade GLBT é justamente as apresentações dos artistas transformistas, sendo o Blue Space um espaço de tradição (Giddens, 1995) no quesito espetáculos homossexuais. Por seu turno, Cristiano de Menezes, do Soft, que já foi ator, mantém a atividade de produção de shows de travestis, atividade esta que fazia ainda na época em que morava na capital fluminense. Segundo Cristiano, ele trabalhou com “Gonzaguinha, Nara Leão, Edu Lobo, Bibi Ferreira, Tônia Carreiro”, entre outros. O proprietário do Soft fez questão de frisar sua veia artística.

A primeira pessoa a pagar cachê a artista (transformista) em Porto Alegre fui eu. O artista, antes de mim, ele recebia cachê em drinque. Ele chegava na casa tinha dois ou três drinques para tomar e era o cachê dele [...] eu achava que a pessoa podia viver da arte, como vivem hoje. A Glória vive disso, a Charlene. Antigamente não se vivia. Você tinha que trabalhar em alguma coisa pra comprar roupa e se apresentar de graça na minha casa. (Cristiano de Menezes, 58 anos, 05/08/2007)

O Blue Space é um incentivador dos novos talentos do show business gay local. Inclusive a freqüentadora Lurdes Vargas afirma ter ido ao teatro por ter visto anteriormente uma esquete de determinada peça homossexual no Blue Space. Sobre o enfoque do Blue Space na questão dos espetáculos de transformistas, afirma Michelle Vargas.

Tinha uma época que fazia stripetease (final dos anos 1990), de homem de mulher, agora passou pro lado cultural, então tem dublagem, tem shows, tem peças de teatro, partes né, uma coisa bem mais culta eu acho. Acho bom, tanto que por eu ver uma parte de uma peça no Blue Space acabei indo assistir a peça no Teatro depois. (Michelle Vargas, 32 anos, 11/09/2007).

Um caso emblemático destes esquetes teatrais é retratado neste trecho de nosso diário de campo, feito no dia 17/06/2007, domingo. A partir dele, percebemos por meio do humor, as representações (JODELET, 2001) e (CHARTIER, 1991) que a comunidade homossexual faz de si mesma, bem como o destaque dado pelo Blue Space aos artistas homossexuais. Neste domingo houve dois horários de apresentações, um às 21h00min, com artistas menos conhecidos da comunidade GLBT gaúcha e outro à meia-noite com atores transformistas consagrados no meio homossexual e na cena teatral porto alegrense. Existem algumas peças compostas por atores transformistas que são representadas em grandes espaços da capital gaúcha, como o Teatro do Sesc, que abrigou no começo do ano de 2007 a peça “A casa das três Irenes”, composta por três transformistas gaúchos. Há ainda outras peças que ganharam destaque no cenário teatral gaúcho, como “O Bordel das Irmãs Metralha”, representada também no Teatro do Sesc e “Bonecas à beira de um ataque de risos”, representada no Teatro Carlos Carvalho, todos sediados em Porto Alegre. Cabe destacar ainda, que a Dandara Rangel, ganhou o Troféu Açorianos de melhor ator coadjuvante do ano de 2004[47].

Aproximadamente às 21h00min houve um espetáculo no palco, onde dois atores transformistas encenavam uma cena de assassinato, baseado em clássicos do cinema hollywoodiano. A meia-noite iniciou-se o grande espetáculo da noite. A drag oficial da casa, a Luana de York dublou uma música ao som de dance eletrônico. Após isso, a transformista gaúcha Laurita Leão (Lauro Ramalho) interpretou uma música de Maria Betânia. Além disso, Dandara Rangel interpretou uma música de sua inspiração maior, a cantora Alcione. Após alguns recados e publicidade da casa, foi feito um esquete teatral cuja Laurita Leão fazia o papel de uma menina violentada sexualmente pelo seu pai e que fugiu de casa ainda na infância. Elas estavam em um programa de televisão, como o “Casos de Família” do SBT (que é exibido todas as tardes de segunda a sexta feira). O detalhe é que a menina interpretada por Laurita havia fugido de Roca Sales e pegado carona com uma caminhoneira, que veio a se tornar o amor de sua vida. A caminhoneira era interpretada pela Dandara Rangel. Síntese da história: Laurita foi a este programa para tentar voltar para sua amada (Dandara), pois a mesma batia muito em Laurita, mas mesmo assim ela amava sua algoz. Esquete de muito humor, onde Dandara interpretava uma lésbica masculinizada e que jurava que sua mãe não sabia que ela era homossexual. (Diário de Campo, 17/06/2007)

6 ENTRE PERGUNTAS E RESPOSTAS: UMA ANÁLISE DE DADOS

Após quatro capítulos chegamos a este quinto, que trará discussões pertinentes a nossa temática de pesquisa. No primeiro sub capítulo, a partir das falas do entrevistado Juliano Carvalho, bem como a nossa experiência pessoal em tais espaços de sociabilidade GLBT, teceremos um quadro sócio-histórico de dois espaços homossexuais que marcaram a capital gaúcha nos anos 1990, o Fim de Século, que se localizava na Avenida Nilo Peçanha e o Enigma, que estava sediado no centro, sendo ambos integrantes do rol gay da capital gaúcha. No segundo sub capítulo terá destaque o debate acerca das sociabilidades GLBT, sua relação com o consumo, identidade homossexual entre outros temas.

1. Enigma e Fim de Século: Dois espaços que marcaram a sociabilidade GLBT na capital gaúcha

Dois espaços de sociabilidade GLBT que marcaram Porto Alegre foram justamente o Enigma e o Fim de Século. Ambos surgem no final dos anos 1980 como lugares de vanguarda da capital gaúcha. Nos primeiros anos o Enigma era um local muito sofisticado que, inclusive, atraiu atores globais. Por outro lado, o Fim de Século nasceu como um “templo” da música eletrônica. O Fim de Século fechou no começo dos anos 2000 e em seu local abriu a casa noturna “Neo”, que não é declaradamente homossexual. Por outro lado, o Enigma foi entrando em um processo de declínio, de “basfondização”, em um neologismo. Em outras palavras, seu público deixou de ser o das camadas mais abastadas da sociedade, no final dos anos 1980, para terminar como um lugar sem brilho e praticamente não mais freqüentado por

homossexuais por volta de 2004. Adriano Garcia, por meio de contatos prévios via internet, enviou-nos um depoimento sobre o Enigma via e-mail.

Sobre o Enigma o que posso dizer que é de 85, comecei a freqüentá-lo em 86, a casa era uma "pirâmide", pois só iam à egípcia - com seus narizes empinados. [...]. Funcionava de sexta a domingo, uma época até quinta abriu. [...] O convite era um charme, tinha o tamanho um pouco maior que um selo postal, em um lado o logo da casa o “E” estilizado com o rosto do felino acompanhado de uma frase – Você faz parte desse lugar – ou algo do gênero, e no verso a data para próxima festa [...] A casa era administrada por um casal de homens que administraram durante de seis a oito anos até um deles vir a falecer [...] Durante esse primeiro período foi à ascensão do império, a casa era badalada e referencia para quem vinha de fora, celebridades globais quando vinham ao sul para apresentações em teatro, era certo que encontraríamos “eles lá” (Adriano Garcia, 34 anos, 2007)

Como podemos perceber, O Enigma foi um local de grande sucesso, capaz inclusive de atrair celebridades globais. Era um local como não existe hoje em Porto Alegre. Todavia, este “império” começou a ruir com a morte de um dos donos e com as dificuldades oriundas do aumento da concorrência. Nos anos 1990 e começo dos 2000 a homossexualidade passa a ser melhor aceita e jovens homossexuais, sedentos de novas experiências, migram para tais espaços de sociabilidade GLBT. Presenciamos pessoalmente este primórdio de ruína, em meados do ano de 2001. Ouvia-se o burburinho da decadência, mas uma áurea de glamour e de identificação homossexual permeava tal espaço. Pelo que pudemos presenciar o Enigma englobava várias camadas sociais em um mesmo espaço de sociabilidade GLBT, daí o considerarmos como um “espaço síntese” da homossociabilidade. Obviamente que o nosso contexto de análise é diferenciado do Adriano Garcia, que freqüentou o Enigma desde seu nascimento nos anos 1980 e foi uma testemunha ocular do término deste local emblemático da sociabilidade GLBT porto alegrense[48].

A casa ampliou e ganhou nova entrada, por baixo. Então acho que as circunstancias financeiras da era Collor somadas a morte de um dos proprietários forçou a venda. Começava o declínio do império, a troca de mão tirou o glamour. Claro, os tempos eram outros, e uma leva de jovens se descobria com muito mais facilidade sua sexualidade, mas não sabiam o que fazer com isso. E assim surgiram novidades, onde se escutava apenas lançamentos musicais europeus que levam até dois anos para serem escutadas na rádio, na pista e bossa nova ou o que viria a ser o Lounge no bar, virou na parte de baixo um bar de pagode e na parte de cima o pop das rádios. O público que freqüentava antes se sentiu perdido pela descaracterização e claro que ocorreu um choque cultural e de idades. E os novos adolescentes vinham atraídos pela badalação que o nome atraia. (Adriano Garcia, 34 anos, 2007)

Este depoimento de Adriano Garcia está repleto de representações (JODELET, 2001), (CHARTIER, 1991) como no termo “choque cultural” em alusão ao embate entre os homossexuais mais velhos e hipoteticamente com maior “capital cultural” (BOURDIEU, 1994) e os jovens gays, geralmente periféricos, que estariam “invadindo” o Enigma. Além disso, percebemos que o “encanto”, o nome construído permanece por um bom tempo, mesmo com a mudança dos proprietários desta casa noturna. O entrevistado Juliano de Carvalho, que freqüentou o Enigma do final dos anos 1990 até aproximadamente 2003, afirma que no período de maior decadência deste local, “começou a ir muito travesti, saiam da Redenção, faziam prostituição na Redenção e iam, começaram a invadir o Enigma” (Juliano de Carvalho, 26/07/2007). Trata-se portanto, do discurso da exclusão. São os homossexuais mais jovens e periféricos que “quebraram” esta casa. A culpa é das travestis que se prostituem, já que elas trazem um público heterossexual, especialmente o de baixo poder aquisitivo, que buscam uma travesti para satisfazer suas fantasias sexuais[49]. No recorte de entrevista abaixo, percebemos a relação que Juliano de Carvalho possuía com o Enigma, que entre 1999 ao final de 2001 estava em processo de ruína, mas ainda mantinha um ar de ebulição, de efervescência, atraindo para o seu seio os mais variados segmentos da homossexualidade gaúcha.

Eu adorava o Enigma (risadas saudosas). Às vezes eu ia só com o dinheiro da passagem e da entrada e tomava porres lá dentro. Já entrava controlando quem [...] chegava, aquele ali tá bebendo, aquele não, aquele ali que eu vou ficar hoje. Ele tá tomando bastante cerveja. Ele que vai pagar a noite para mim. É isso ai, eu me divertia mesmo lá dentro. [...] fazia tudo que me dava na telha, não tava nem aí. [...] Até metade de 2001 eu fui direto no Enigma. (Juliano de Carvalho, 27 anos, 26/07/2007)

O Fim de Século Club, ou simplesmente FDSC, surgiu em 1987 e fechou suas portas nos primeiros anos deste novo milênio. Uma casa que se representava como algo moderno, futurista, teve seu fim justamente após a entrada do terceiro milênio. Atualmente encontra-se a casa “Neo” em suas antigas dependências. Juliano Carvalho nos cedeu alguns convites desta casa[50], no qual percebemos qual a representação que este espaço desejava passar para o seu público e à sociedade como um todo. Em um convite datado de 1997, em alusão ao lançamento da revista GLBT “Homens”, uma edição da revista “Sui Generis”, que existiu durante um trecho dos anos 1990, e que influenciou Patrício Barbosa[51] no ato de se assumir como sujeito homossexual em sua adolescência. Neste papel publicitário, há conceitos de “varguarda” para a época, como “Top Drag”, além do termo “DJ residente”. Por fim, está estampado os dois logotipos desta casa, o primeiro de 1987 e o da respectiva festa, datada de 1997. Os acontecimentos do país geram reflexos na sociabilidade GLBT, como pode ser constatado no convite sem data, sendo provavelmente também de 1997 ou 1998, em que se lê “Tudo a partir de 1,99”[52], em uma clara alusão as lojas de R$ 1,99, que foram muito comuns no Brasil da segunda metade dos anos 1990 em decorrência da entrada de mercadoria barata oriunda da China. Juliano de Carvalho traça um panorama da casa noturna Fim de Século, no final dos anos 1990, conforme trecho abaixo:

Eu ia quinta, sexta e sábado, era em 97 [...] eu gostava na época. Eu me dava com todo mundo lá dentro. Os fashions, os não fashions. Mas hoje em dia eu vejo que eu era diferente daquela gente que ia para o Fim de Século. Até no estilo de me vestir. Hoje em dia eu vejo. [...] ali era um pessoal que estava soltando a homossexualidade, a maioria brigado com pai, brigado com a mãe, usuários de droga, isso tudo, e eu era, como é que eu te digo, eu era aquele gurizinho que apesar de me soltar bastante lá dentro, fazer festa, ficar com um, ficar com outro, tinha uma vida estabilizada, eu estudava, eu chegava em casa tava o pai, a mãe, a família, não precisava me estressar em procurar trabalho como (a) grande maioria, (que) tava no início da procura por sua vida profissional né. (Juliano Carvalho, 27 anos, 26/07/2007)

Juliano de Carvalho foi um assíduo freqüentador da noite GLBT gaúcha, no final dos anos 1990 e início dos 2000. Nesta época, ele estava saindo da adolescência, isto é, o “auge” de sua vida noturna se deu por volta dos 20 anos de idade. Este é um fenômeno que pudemos notar no Blue Space, especialmente aos domingos, em que os jovens homossexuais, com menos de 25 anos, formavam a grande maioria neste espaço de sociabilidade GLBT. No relato abaixo, nosso entrevistado conta-nos como era a sociabilidade no “Doce Vício”, um bar que também deixou sua marca na história da sociabilidade GLBT porto alegrense, embora tenha tido o mesmo destino do Enigma e do Fim de Século, o encerramento de suas portas. Ele estava sediado na Rua Vieira de Castro, próximo ao Colégio Militar, e ao Parque da Redenção, na capital gaúcha.

O pessoal ficava lá, bebendo, conversando, até; todo mundo se encontrava por volta de umas 09h30min, 10h00min e lá pelas 11h30min, meia noite começava a ir para as boates. Aí o Doce Vício esvaziava [..] Era um barzinho legal assim, divertido, eu ia várias vezes lá. (Juliano Carvalho, 27 anos, 26/07/2007)

Ao término, um convite datado de outubro de 1999, em que há uma clara representação do Fim de Século como um local do futuro. O título desta festa era “Contagem regressiva para o ano 2000”, que estampa o rosto de uma mulher com assessórios futuristas e, do lado esquerdo, de forma vertical, lê-se “Future”[53]. Observamos que boa parte do glossário da noite GLBT é oriunda dos EUA e da Europa, como “Top Drag”, “Dance Music”, “DJ”, “Dark Room”, “Lounge Bar”, “Fashion”, “go-go boys”, “clubber”, entre outros. Em relação ao sentimento de identificação dos freqüentadores com o Fim de Século, há uma comunidade no site de relacionamentos “Orkut”[54] intitulada “Fim de Século 20 anos” que, inclusive, organizou uma festa em homenagem aos 20 anos desta extinta casa noturna, no dia 13 de setembro de 2007. Esta “comunidade” possui 748 membros. O Enigma não possui uma comunidade que agregue seus ex-freqüentadores, talvez porque o nível sócio-econômico dos “modernos” que iam ao Fim de Século fosse, grosso modo, superior aos do que se deslocavam ao Enigma. Aliás, ambos contribuíram, à sua forma, para a construção da história da sociabilidade GLBT na capital dos gaúchos.

1. Universo GLBT: um olhar histórico para a compreensão da contemporaneidade

O movimento homossexual no pós-guerra e especialmente no pós-Aids pode ser dividido em duas correntes distintas. De um lado os defensores da “teoria queer[55]” que se são contrários a uma assimilação heteronormativa, isto é, de homossexuais bem comportados que sejam aceitos pela sociedade patriarcal. Defendem eles uma nova postura de vida, cujos homossexuais possam ser quem for, sem as “amarras” de uma normatividade heterossexual (CARRARA; SIMÕES, 2007, p.77). Com o aparecimento da Aids, setores do movimento homossexual mundial adotam uma nova postura, mais voltada ao assimilacionismo dos homossexuais à sociedade. Sobre esta nova postura das lutas GLBT no pós-Aids, afirma Miskolci:

Nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil, a AIDS levou a uma reconfiguração dos grupos, que se pautou pela organização em torno da defesa de direitos civis, a aceitação de certa “essencialização” identitária para esta luta (o famoso “essencialismo estratégico” definido por Gayatri Spivak) e a desvalorização de aspectos “marginais” das vivências gays e lésbicas em benefício de objetivos assimilacionistas. (MISKOLCI, 2007, p.108).

Richard Miskolci (2007, p.118) percebe o “casamento gay”, tão defendido, inclusive com a aceitação legal por parte de alguns países, como uma “privatização” e “despolitização” do movimento GLBT, afirmando que o ideário do “casamento gay”, defendido por setores da homossexualidade, é uma resposta ao aparecimento do “câncer gay”, isto é, a Aids[56].

O casamento gay é um bom exemplo do processo citado. Foi diante do pânico sexual gerado pelo HIV que se estabeleceu esse direito com um objetivo político. Os primeiros países a concederem a parceria civil a pessoas do mesmo sexo o fizeram na década de 1980, sob a justificativa de que esse direito incentivaria a constituição de relações estáveis e coibiria o avanço da epidemia da AIDS. Além do enquadramento das relações a um modelo, algo por si só questionável, a parceria civil se tornou o novo alvo daqueles que se opõem à extensão da equidade de direitos a gays e lésbicas. (MISKOLCI, 2007, p. 121)

Para observarmos qual representação que os usuários do site de relacionamentos “Orkut” possuem dos espaços de sociabilidade GLBT, colocamos duas enquêtes. Uma na comunidade “História e Homossexualidade”, que possui um caráter de discussão mais acadêmico e outra na “The Week Internacional”, a oficial desta casa noturna GLBT paulistana. O internauta poderia marcar uma das seis opções disponíveis, sendo que o item “sou homossexual mas não freqüento a noite gay” foi o mais votado na comunidade “História e Homossexualidade”, com 36% dos votos, e o “vou na boate apenas para me divertir” foi o mais votado na “The Week Internacional”, com 49% dos votantes. Na comunidade paulistana, dois itens ganharam destaque “nas boates me sinto aceito com sou” e “gosto da noite GLS como auto-identidade gay”, totalizando 32 % dos votos. Portanto, somando-se aos 49% que dizem ir a The Week “apenas” para se divertirem, temos 81% dos votantes com algum tipo de identificação com este espaço GLBT. Pois acreditamos que a “diversão” também faz parte da sociabilidade e da identidade homossexual. Basta para isso, lembramos da Drag Music, que nada mais é que uma música eletrônica dublada por uma Top Drag que “bate peruca”, isto é, balança a cabeça em sincronia com a música. Na comunidade “História e Homossexualidade” constatamos que nem todos os homossexuais freqüentam a noite GLBT, já que o “sou homossexual mas não freqüento a noite gay” e “a boate GLBT representa pouco na minha vida” somam 44% dos votos. Somado a isso, 10% votaram no “gosto da noite GLS como auto-identidade gay”, ou seja, relacionam diretamente os espaços de sociabilidade GLBT com a identidade homossexual[57].

Muitas vezes o estigma da homossexualidade é abrandado pelo consumo, isto é, se você tem poder aquisitivo você é aceito, se você não tem este poder monetário a exclusão é quase certa. Um exemplo claro disso ocorre no Shopping Nova Olaria, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre. Quando ele era freqüentado por homossexuais das camadas médias, detentores de um “capital cultural” (BOURDIEU, 1994) não havia problemas. Inclusive eles eram bem aceitos, pois davam um ar de modernidade a tal espaço. Todavia, com a divulgação da notícia de que o Nova Olaria era um “shopping gay”, homossexuais mais jovens, em sua maioria periféricos, começaram a freqüentar tal local nos finais de tarde de domingo. O novo público não agradou aos comerciantes locais, muito menos a elite heterossexual que se sentia “chocada” com as atitudes indiscretas dos novos “clientes”. Nas palavras de André de Oliveira, que assinou uma reportagem-denúncia para o Jornal do Nuances:

Como a rapaziada (gay) não consumia muito nos bares por causa dos elevados preços e acabava comprando bebida fora do Centro, a diminuição da clientela foi diretamente relacionada à chegada do novo público, interpretação um tanto duvidosa, sem lastro real. Existia, e existe, sim, preconceito social[58].

Em outra edição do Jornal do Nuances, a discussão sobre o preconceito de classe e de gênero pelo Shopping Nova Olaria continua, só que desta vez a matéria é assinada pelo responsável por este grupo, Célio Golin:

As alegações sustentadas pela direção do Centro Comercial, de porte de bebida alcoólica, atos obscenos, mau comportamento, reforma do chafariz, não passam de desculpas esfarrapadas para esconder o preconceito de classe e homofobia. [...] Tanta contradição: nesse local a bichice explícita só é admitida nas telas do cine Guion (os cowboys das montanhas que o digam), ou quando se orienta em direção ao consumo. De outra forma, as portas do shopping estão fechadas[59]

Fica claro portanto, essa relação consumo-aceitação. Por seu turno, o fenômeno mais interessante são as mudanças geográficas feitas pela direção deste shopping, que retirou os bancos que circundavam o chafariz, como método de “expulsão” dos indesejáveis homossexuais sem poder de consumo. Porém, estes homossexuais não aceitaram pacificamente esta afronta e, em todos finais de tarde de domingo, se reúnem na Avenida Lima e Silva em frente a tal estabelecimento. Como a rua é pública, a direção do Nova Olaria nada pode fazer. Isso é um claro exemplo de demarcação de território e de resistência homossexual[60]. Juliano de Carvalho, em sua entrevista, nos mostra um pouco das representações que os homossexuais das camadas altas, que freqüentavam o Nova Olaria no passado queriam passar. “Fui e odiei. Aquela gente parecia que tava todo mundo igual, de uniforme, todo mundo com as mesmas caras, atitudes do mesmo jeito, tudo muito igual”. (Juliano de Carvalho, 26/07/2007).

Esta cidadania calcada no consumo gera uma “violência simbólica” perante os indivíduos homossexuais que não podem ou não querem seguir determinado “estilo de vida”. Para Bourdieu (2004) quanto mais nos guiamos pelo “supérfluo, ao não essencial”, mais o estilo de vida se transforma em uma “estilização da vida”. (1994: 87). Esta “estilização de vida” existente especialmente entre as elites econômicas, gera um processo de violência simbólica no restante da comunidade homossexual que, aliado estigma da homossexualidade, leva muitos sujeitos com parcos recursos criarem uma falsa representação de si mesmos. Como fica claro nesta constatação de Cristiano de Menezes, do Cabaret Soft.

[...] é aquele cara que não tem dinheiro, mas ele quer parecer que tem, e ele não quer descer do ônibus na frente (de uma casa noturna GLBT sofisticada). É capaz de ele morar em Canoas, vir de ônibus até o centro, e no centro ele pega um táxi para chegar na porta de táxi. Porque ele tem que manter um estilo, ele compra uma camisa para pagar em 20 vezes, mas ele quer chegar com uma camisa de marca, é uma tribo (quer se sentir integrado a uma “tribo urbana”) [...] Mas eu acho que é uma coisa mais da idade do que da opção sexual (ocorrendo mais com jovens do que com indivíduos de meia idade ou idosos) (Cristiano de Menezes, 58 anos, 05/08/2007)

O corpo desempenha grande papel nas representações acerca da homossexualidade. Atualmente, a representação do homossexual como um sujeito repleto de trejeitos afeminados está caindo por terra, presente em apenas alguns parcos programas de humor. Mesmo programas humorísticos como o “Casseta e Planeta Urgente” da TV Globo, fazem piadas a partir das novas representações do homossexual, isto é, de um sujeito com o peitoral ultra definido, mas mantendo a já comum promiscuidade. O quadro “Vanderlei, da sauna gay”, ilustra perfeitamente esta nova imagem do homossexual. José Carlos Rodrigues (2006) afirma que o corpo é uma forma de “distinção social”. No meio GLBT isso é muito claro. O ideal do corpo perfeito está por toda parte, seja nos go-go boys de algumas casas, como do Cabaret Soft, seja nas Barbies e seus corpos ultra-definidos, seja na travesti siliconada, o corpo é parte importante dos locais de sociabilidade GLBT. Esse elemento vem sendo, inclusive, fator excludente, de “violência simbólica” para quem não possui as curvas perfeitas. Reflete também, um paradoxal ideal de masculinidade, já que as partes do corpo mais “malhadas” são justamente o peito e os braços, como qualquer homem heterossexual[61]. Não se destacam muito outras partes do corpo como as nádegas, pois a passividade e a afetação não são muito bem vistas dentro do meio GLBT. Peter Fry e Mac Rae (1983) afirmam que o ideal de sexualidade das camadas gays médias da população é a flexibilidade, isto é, com o sujeito homossexual sendo ativo e passivo em uma relação sexual. A relação “bicha-bofe” dos extratos mais populares da sociedade não deixa de existir, mas perde força perante os homossexuais mais bem posicionados financeiramente.

Este ideal de masculinidade vem associado a um preconceito de classe, pois a passividade e afetação sexuais são diretamente associadas às camadas mais pobres da homossexualidade que, muitas vezes, tem que adotar uma postura de afetação como forma de marcar território em suas comunidades de origem, nas periferias. Neste binômio homossexualidade-periferia constata Michelle Vargas, nossa entrevistada que é negra e residente no bairro Mathias Velho, em Canoas, no qual se percebe a rede de solidariedade dos bairros menos favorecidos.

Eu trabalho em uma periferia (enfermeira, em um posto de saúde do Partenon, em Porto Alegre). Então eu noto que tem pessoas que moram em uma casa de 6 metros quadrados, uma peça, e mora todo mundo junto. Mora o pai, a mãe, os irmãos, o rapaz com o companheiro. Eu vejo assim, que pela questão de idade, por exemplo, ele é gay, o companheiro, a família não aceita, expulsa de casa, a outra família abraça e leva para casa. (Michelle Vargas, 32 anos, 11/09/2007, grifo nosso)

A cidade de Canoas não possui um local, uma casa noturna dedicada à comunidade GLBT e, pelo que sabemos, nunca teve. Michelle Vargas, juntamente com sua “esposa”, organizou uma festa GLBT “não-oficial”, isto é, elas não possuem um espaço formal, comercial, de sociabilidade homossexual. Esta festa foi feita em um ginásio no bairro Rio Branco, em Canoas, e reuniu um público bom, composto basicamente de amigos e conhecidos homossexuais. Ela diz ainda, que existem outras festas GLBT “paralelas” em nossa cidade, que ocorrem três vezes por mês, cada qual com um lugar e organizador distinto. Sua mãe, Lurdes Vargas, 58 anos, e que possui uma considerável rede de amigos homossexuais, diz que a Zona Sul abriga festas paralelas desta espécie. Talvez isso ocorra, porque a maioria das casas noturnas GLBT de Porto Alegre encontram-se no centro ou nos bairros centrais da capital gaúcha[62].

Luana de York, a partir da frase “o que o amor constrói, uma bicha destrói”[63] dita em um “domingão da alegria”, revela mais que bom humor, desvenda a representação que os homossexuais tem de si mesmos. Jodelet (2001) afirma que a representação social é um “conhecimento prático” e que tem relevância na formação da “realidade” de um determinado grupo social. Nesta frase, entende-se que há uma “inveja” aos casais afetivamente estáveis. Todavia, esta frase não deve ser ampliada a todo o segmento homossexual, pois por trás do estigma há indivíduos que amam, que choram, enfim, que são cidadãos como quaisquer outros. Ao explicar esta frase, diz a hostess[64] do Blue Space.

É porque na verdade assim, quando, porque o público gay tem esse problema, quando tu arruma um namorado ou uma namorada, eu sempre digo para as pessoas que até um relacionamento se firmar, não sair. Não sair no mundo gay. [...] Por que é verdade, as bixas enquanto não te vêem (amargurada pelo fim do namoro), mesmo que seja pelo gosto de ficar contigo só um dia, ela(s) vão lá, ficam contigo só para destruir um relacionamento. (Luana de York, 32 anos, 14/08/2007)

O Blue Space nasceu como um local lésbico, logo esta representação de um espaço voltado à lesbiandade ainda permeia o imaginário gay gaúcho. A partir de dois personagens, Michelle Vargas e Luana de York percebemos a representação que um segmento do público homossexual possui deste espaço. Perguntada sobre a razão da escolha do Blue Space, no final dos anos 1990, quando ela começou a freqüentar a noite GLBT gaúcha, afirma Michelle, embora ela não esteja comparando o Blue Space com outros locais gays, mas sim heterossexuais.

O Blue Space já era na época um local mais selecionado, mais discreto, e pessoas de nível mais selecionado. Então era um ambiente bom. Até assim, tem outras pessoas que são heteros, que gostam de lá porque é um ambiente que tu tem liberdade, é um local selecionado, ambiente é bom, as pessoas que vão são pessoas bem arrumadas, bem vestidas. Não é aquele local que tu chega, vem beber, vem te incomodar, vão brigar, lá não. Pelo menos eu vou lá faz uns 10 anos nunca presenciei problemas assim. Não é como em outros ambientes, ambientes hetero como a gente fala, sempre dá briga no final. (Michelle Vargas, 32 anos, 11/09/2007)

Por outro lado, a Top Drag do Blue Space comenta sobre suas antigas representações acerca deste espaço de sociabilidade GLBT:

[...] o Blue Space tinha, hoje nem tanto, uma imagem de casa só para machorra. E eu odiava show. Vou lá ver show de viado no palco vestido de mulher, e vou lá numa casa que só tem machorra, não. Eu ia em casa onde o público masculino imperava, era maior [...] Quando passou o tempo, o Blue Space começou a abrir aos domingos (e) eu comecei a vim. E comecei a freqüentar e comecei a gostar, porque eu vi que não era mais aquilo e eu comecei a me montar, eu já vinha montada. Eu freqüentei muito pouco o Blue Space desmontado. (Luana de York, 32 anos, 14/08/2007)

Giddens (2002) afirma que na “alta modernidade” ou “modernidade tardia” o “eu”, a “auto-identidade” não é algo latente ao indivíduo, sendo “construída reflexivamente”, uma vez que, o sujeito possui um conjunto enorme de possibilidades para criar seu “estilo de vida”. Isso ocorre, segundo Giddens, especialmente entre as camadas economicamente favorecidas da população, embora os sujeitos com menos recursos monetários tenham a liberdade de adotar uma “estilo de vida” contrário ao consumismo, por exemplo. Bourdieu (1994), por sua vez, destaca que os valores dos grupos detentores dos capitais “cultural” e “econômico” que são praticamente impostos às camadas menos favorecidas da sociedade e geram uma “violência simbólica”, isto é, não física, sobre as mesmas. Hall (2001), baseando-se nas idéias de Lacan, chega a uma conclusão semelhante a de Giddens, ao mencionar que “a identidade” é “formada” “ao longo do tempo”, isto é, desde o nascimento a identidade individual vai se modificando e se adaptando às circunstâncias da vida. No que tange à identidade de grupo, afirma Hall:

Cada movimento apela para a identidade social de seus sustentadores. Assim, o feminismo apelava às mulheres, a política sexual aos gays e lésbicas, as lutas raciais aos negros, o movimento antibelicista aos pacifistas, e assim por diante. Isso constitui o nascimento histórico do que veio a ser conhecido como a política de identidade – uma identidade para cada movimento. (2001, p. 45).

O historiador James Green mostra-nos que mesmo os espaços de sociabilidade GLBT mais “marginais”, tais como os parques e praças para “trocas homoeróticas”, tiveram sua função social, uma vez que, serviram para muitos homossexuais criassem uma “rede de amigos”, bem como desenvolvessem estratégias para ludibriar o estigma da homossexualidade.

Esses espaços sociais públicos foram essenciais para o desenvolvimento de múltiplas formas de sociabilidade erótica entre pessoas do mesmo sexo ao longo de todo o século XX. Muito embora a função mais óbvia desses locais tenha sido facilitar a interação de homens que buscavam parceiros sexuais, eles serviram também a uma variedade de outros propósitos. Durante o século XX, os bancos de praças no Vale do Anhangabaú e na Cinelândia, alguns trechos das praias de Copacabana e Ipanema, os concursos de Miss Brasil, as audições na Rádio Nacional, diversos cinemas cariocas e paulistas e as celebrações do carnaval ofereceram inúmeras oportunidades para que os homens encontrassem outros homens, não apenas para sexo, mas para construir redes de amigos e conhecidos. (GREEN, 2000, p. 453).

Magnani (1984) utiliza o conceito de “pedaço” ao se referir as sociabilidades de determinados grupos periféricos da capital paulista. Sendo que não basta apenas “morar perto” ou “freqüentar” tais espaços de lazer para se inserir ao “pedaço”, o sujeito deve participar de uma “particular rede de relações”. O “pedaço” pode ser aplicado aos espaços de sociabilidade GLBT gaúchos. Não é tão simples se integrar ao “pedaço” homossexual. Há códigos abertos e fechados para que tal sociabilidade ocorra, um deles, conforme foi dito anteriormente, é o corpo, percebido, segundo Rodrigues (2006), como forma de “distinção social”. Além disso, há sujeitos que deixam de freqüentar a noite gay e, portanto, deixam de pertencer ao “pedaço” GLBT. Juliano Carvalho, 27 anos, negro, e morador da periferia de Alvorada, relata o motivo de sua incursão a um “pedaço” homossexual.

Eu tive que conhecer por mim mesmo. Pai e mãe não vai levar para uma discoteca para ti conhecer, ou apresentar para o filho da vizinha, “ai que bonitinho o meu moço”, quer casar. Então eu tive que ir sozinho na cara dura para conhecer, então por isso que eu sempre fui individualista, sempre fui eu e não quis saber das modas ditadas pelos outros. (Juliano Carvalho, 27 anos, 26/07/2007)

7 CONCLUSÃO

Este trabalho versou sobre a relação entre identidade homossexual e espaços de sociabilidade GLBT. Nosso local primaz de análise foi o Blue Space, localizado no centro da capital gaúcha e que surgiu no final de 1983. Antes de abrigar esta casa noturna, lá existia o Number One, igualmente um lugar de sociabilidade homossexual masculino, que carimbou sua existência na segunda metade dos anos 1970. Para fins de análise, observamos também, em menor escala, logicamente, o Cabaret Soft localizado na área central de Porto Alegre. Somadas às observações participantes, entrevistamos seis indivíduos: três diretamente relacionados aos tais espaços de sociabilidade GLBT (proprietário e ou funcionário) e os demais são freqüentadores e oriundos das periferias da grande Porto Alegre. Nossa intenção não era mostrar um quadro de brilhantes tintas fúscia, mas sim retratar a sociabilidade por um viés analítico, onde procuramos a maior imparcialidade possível. Obviamente, que esta monografia tem uma clara característica de “militância acadêmica”, isto é, a diminuição do estigma e do preconceito acerca da homossexualidade a partir do poder das idéias e da visibilização que propõe a ruptura com as representações do senso comum.. A condição de sujeito que compartilha o tema abordado exigiu um esforço dobrado sobre o comprometimento com a base teórica que sustenta as análises propostas.

Para a realização desta monografia, utilizamo-nos dos mais variados recursos metodológicos, entre eles a observação participante, isto é, a ida a campo. Nossas visitas a tais espaços de sociabilidade GLBT foram feitas durante o mês de julho e agosto, auge do inverno gaúcho. O ano de 2007, de pesquisa e escrita deste trabalho, teve um dos invernos mais “cruéis”, em um ponto de vista pessoal, dos últimos anos. Por outro lado, o rigor do inverno certamente não nos deu a devida ilustração da cena gay gaúcha. Pois, nos períodos mais quentes do ano, o grande baluarte da sociabilidade GLBT, o corpo, entra no rol dos protagonistas da noite homossexual porto alegrense.

A partir das práticas sociais entre indivíduos homossexuais buscamos dar um sentido de construção histórica a este fenômeno que, inexoravelmente, é um fenômeno histórico, haja vista que a sociabilidade e as representações homossexuais não são algo estanque, que não sofrerão alterações ao longo dos anos. Portanto, as vivências e representações homossexuais são reflexos de seu tempo histórico e, além disso, são agentes de sua própria história, mesmo que ainda permeada pelo estigma social da homossexualidade.

A identidade na modernidade tardia não é unificada. Os indivíduos homossexuais não são unificados em torno de um mesmo ideal. Cada subgrupo homossexual procura contornar dar da melhor maneira possível o estigma da homossexualidade. Por ventura o movimento de defesa aos direitos homossexuais tenha sido de extrema relevância para a sociedade como um todo, ele é dividido, pois cada qual defende um mundo a sua maneira. Um belo exemplo disso são os dois principais grupos GLBT de Porto Alegre, em que o Nuances adota uma postura “queer” e o Somos uma postura mais branda, mais “essencialista”, ou seja, um defende uma homossexualidade mais “marginal”, mais “livre”, menos “normativa” e o outro procura inserir o homossexual na sociedade, a partir do casal de “comercial de margarina” gay. Além disso, há uma disputa velada entre um ideal “queer” mais popular, mais “basfond” e uma aceitação de “classe média” [65], conforme Miskolci (2007) e Carrara e Simões (2007).

Passado esta discussão sobre o duelo entre “Teoria Queer” versus “essencialismo”, acreditamos que o ideal seja o equilíbrio, isto é, se o indivíduo homossexual deseja se “casar”, ele deve sim ter todo o apoio necessário do Estado, como qualquer cidadão. Por outro lado, a “marginalização” homossexual, o “basfond” GLBT também possui o seu valor e faz parte da construção sócio-histórica da identidade homossexual. Um exemplo disso é o “dark room”, que é vítima de “pedras moralistas”, embora ele esteja presente nas casas noturnas mais sofisticadas de Porto Alegre, do país e quiçá, do mundo. Este espaço existe somente por que há quem o utilize. Ou como diz Michelle de Vargas em relação as travestis “Tem o produto porque tem quem o consuma”. (Michelle Vargas, 32 anos, 11/09/2007).

Como ponto e vírgula desta monografia, já que o ponto final é algo restritivo, não incentivador da criatividade, concluímos que a identidade homossexual, em termos de indivíduos ou de cidadãos homossexuais está, sim, relacionada aos seus espaços de sociabilidade. Por ventura haja um número significativo de homossexuais que não vão a tais espaços de sociabilidade GLBT e outros tantos que o freqüentam esporadicamente, de uma forma ou de outra, ele e seus personagens permeiam a identidade e a representação acerca das homossexualidades. Mesmo se um homossexual adotar uma postura crítica perante tal espaço, ele está se posicionando e, logo, este lugar tem algum significado em sua vida. Como ficou constatado na enquête da comunidade “The Week Internacional”, do “Orkut”, a maioria dos votantes afirmaram irem a uma casa noturna GLBT “apenas” para se divertirem. Se fosse “apenas” para isso, então porque não se divertir em um local heterossexual? Porque enfrentar o estigma da homossexualidade e se direcionar a tais espaços de sociabilidade? São perguntas que foram discutidas nesta monografia, entretanto esperamos que as discussões não cessem por aqui, pois a homossexualidade é uma área que possui um grande potencial de pesquisa, especialmente na área histórica, James Green que o diga, um norte-americano escrevendo a história da homossexualidade de nosso país. Lembramos ainda, a historicidade de tal fenômeno, os locais destinados à sociabilidade homossexual, que ganharam força no Brasil após 1972, Green (2000). Somado ao “pink money”, que também é reflexo de nosso período histórico e consegue gerar uma situação dicotômica, pois ao mesmo tempo que gera cidadania e inclusão da homossexualidade, detentora de capital “econômico” e “cultural” na sociedade, empurra uma gama enorme de homossexuais, sem os supra citados capitais, à marginalidade social, como ficou claro no Shopping Nova Olaria, cujos homossexuais jovens e periféricos foram simplesmente “expulsos” de um determinado local, pelo fato de não consumirem, de não serem detentores do “pink money”. Por fim, a as atuais representações do homossexual como um indivíduo bem sucedido financeiramente e com um corpo invejável, gera um processo de confronto interno dentro da comunidade homossexual, no qual a elite gay, por meio da “violência simbólica” (BOURDIEU, 1994), acentua o processo de estigmatização (GOFFMAN, 1988) de milhares de homossexuais que não se enquadram no “ideal gay” divulgado pela indústria do “pink money”.

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ANEXO A - ANEXO A – Questionário virtual realizado a partir do site de relacionamento “Orkut”, na “comunidade” “História e Homossexualidade”[66]

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ANEXO B – Questionário virtual realizado a partir do site de relacionamento “Orkut”, na “comunidade” da maior casa noturna GLBT da cidade de São Paulo, a “The Week”[67].

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ANEXO C: Convite do “Fim de Século”, em alusão ao aniversário de 10 anos desta extinta casa noturna GLBT – 1997[68]

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ANEXO D – Convite do “Fim de Século” relacionado com o contexto de época, isto é, a entrada de produtos importados e o “boom” das lojas de R$ 1,99, no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso – Sem dada[69].

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ANEXO E – Convite do “Fim de Século”, que criava uma representação futurista, de novo milênio – Outubro de 1999[70].

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ANEXO F – Postal da casa noturna GLBT “Flower’s”, iniciativa do grupo Nuances. Esta é a única, de um conjunto de seis postais em que há o carimbo da Censura Federal liberando tal espetáculo de transformista. Foto referente a dezembro de 1971[71].

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ANEXO G – Postal da casa noturna GLBT “Flower’s”, iniciativa do grupo Nuances. Foto do “Show Cabaret”, datado de 1973, já sem o carimbo de órgãos governamentais[72].

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ANEXO H – Folheto de divulgação da Parada Livre de Porto Alegre, promovida pelo grupo Nuances, de 1999[73].

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ANEXO I - Folheto de divulgação do seguro de vida “Freedom”, direcionado a casais homossexuais[74].

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ANEXO J – Folhetos de divulgação das paradas gays de Porto Alegre, do ano de 2006. De cima para baixo, a “Parada Livre” do grupo Nuances, e a “Parada do Orgulho GLBT”, do Fórum LGBT de Porto Alegre (cujo grupo principal é o Somos)[75].

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[1]Conforme Luiz Mott (2000), no Brasil colônia os homossexuais eram chamados de “somítigos” ou “fanchonos” e os órgãos responsáveis pela opressão dos homossexuais era a “Justiça Real”, o “Bispo” e o “Tribunal da Santa Inquisição”, que tinham a incumbência, entre outras, “da condenação à morte na fogueira dos infelizes sodomitas” (2000, p. 16). Além disso, o Brasil era receptáculo para sodomitas portugueses, enviados para cá, pela Inquisição portuguesa, como forma de punição pelos seus atos “pecaminosos”. Mott diz que o ano de 1547 foi o primeiro em que o nosso país presenciou a chegada de uma centena de sodomitas, vindos de além mar, isto é, de Portugal. (2000, p. 16).

[2] Portal Mix Brasil, Cultura GLS:Biografias. , acesso dia 29/10/2007.

[3] Mais informações sobre a relação entre a Igreja Católica Ortodoxa Russa e os homossexuais podem ser obtidas no portal GLBT Mix Brasil, bem como no site do grupo de defesa GLBT, Nuances de Porto Alegre.

, .

[4] Mais informações referentes a vida homossexual na Alemanha Nazista e atual podem ser obtidas no portal do grupo de comunicação alemão Deutsche Welle

[5] Algo como “Assuma-se”, segundo Fry e Rae, mas em um sentido mais amplo de demonstrar publicamente a condição de sujeito homossexual.

[6] Mais informações sobre o Bar Stonewall Inn e o 28 de junho, ver o Jornal do Nuances, nº. 40, de junho de 2007.

[7] Para maiores informações sobre a “Coluna do Meio” e o jornalista Celso Curi ver a matéria “Coluna do Meio: primeira coluna gay do país completou 30 anos em fevereiro”, no portal GLBT da internet Mix Brasil

[8] Na cidade do Rio de Janeiro.

[9] O termo “gay”, oriundo do movimento homossexual norte-americano, será inúmeras vezes utilizado ao longo desta monografia. Ele deve ser lido como algo identitário e que não exclui a comunidade LBT, isto é, lésbicas, bissexuais e transgêneros. Trata-se sim de uma palavra de efeito, por isso a sua utilização ao longo do texto.

[10] Lampião da Esquina, nº. 14, de julho de 1979, reproduzida pelo Jornal do Nuances, de novembro de 2005

[11] Sigla em inglês, que será adotada por nós ao longo desta monografia. Em português Sida (Síndrome da Imuno Deficiência Adquirida) (Dicionário Michaelis, Versão em CD).

[12] O Grupo Somos de Porto Alegre surge no começo dos anos 2000 e tem em seu nome uma homenagem ao célebre grupo paulistano, não tendo qualquer relação com o mesmo.

[13] Mais informações no material institucional do Nuances e no site desta ONG GLBT. .br

[14]Jornal do Nuances, 2004: contracapa.

[15] Festa exclusiva para a música eletrônica, muito comum nos grandes centros urbanos do país. Não é exclusiva para o público homossexual, atraindo uma grande quantidade de jovens heterossexuais.

[16] Trata-se de um pseudônimo para preservar o nome dos protagonistas sociais por nós entrevistados.

[17] Para maiores informações sobre a Coligay, ver o Jornal do Nuances, ano 10, nº. 41, de outubro de 2007.

[18] Tema da Parada Livre da capital paulista de 2007, que foi divulgado por praticamente todos os veículos da imprensa nacional.

[19] Informações obtidas ao longo de anos de convivência com a homossexualidade, bem como com conversas não registradas com integrantes dos grupos Nuances e Somos da capital gaúcha. Por fim, a entrevistada Michelle Vargas (nome fictício), que também é enfermeira, contribuiu enormemente para o melhor entendimento da marginalização de determinados segmentos da comunidade GLBT.

[20] Em relação a comunidade dos inuts, comunidade estudada por esta autora no Canadá.

[21] Expressão comum no meio homossexual, que simboliza o sujeito escondido dentro de si, não capaz de assumir sua real posição de homossexual. Inclusive o slogan da Parada Livre (GLBT) de Porto Alegre deste ano é o seguinte: “11 de novembro – Todo mundo vai sair do armário”. (Fonte: Material divulgatório do grupo Nuances).

[22] Barbie é uma gíria homossexual que tem o significado de um homem com o corpo bem “malhado”, definido, e que adota uma postura não-afeminada, buscando o ideal da masculinidade.

[23] A matéria “A política do corpo. Investigando a cultura barbie: músculos também servem como resposta social”, escrita pelos jornalistas Ferdinando Martins e Marcelo Cia, pode ser encontrada no portal do Mix Brasil .

[24] Afetados no sentido de afeminado, conforme gíria do meio homossexual.

[25] Maiores informações sobre o “pink money” e sua influência na comunidade homossexual podem ser obtidas no portal GLBT Mix Brasil.

[26] Termo utilizado no meio GLBT brasileiro. Significa estar montadas no personagem, isto é, vestidas de mulher.

[27] O conceito de “Top Drag” ao invés de “Drag Queen” foi obtido na entrevista com a “Top Drag”, do Blue Space, Luana de York.

[28] Durkheim foi o primeiro pesquisador a refletir sobre as representações - coletivas e individuais. Posteriormente, Serge Moscovici, que estudou prioritariamente a modernidade, adotou a expressão representação social, deslocando o objeto para a psicologia social, ao propor que as representações estão presentes tanto na “mente”, quanto no “mundo”, devendo ser investigadas em ambos os contextos.

[29] “O orkut é uma comunidade on-line criada para tornar a sua vida social e a de seus amigos mais ativa e estimulante. A rede social do orkut pode ajudá-lo a manter contato com seus amigos atuais por meio de fotos e mensagens, e a conhecer mais pessoas. (...) Nossa missão é ajudá-lo a criar uma rede de amigos mais íntimos e chegados. Esperamos que em breve você esteja curtindo mais a sua vida social”. Nota explicativa deste site, em que consta a finalidade do mesmo. Disponível em , acesso em 20/11/2007.

[30] Do inglês, bate-papo, conversa (Dicionário Michaelis, Versão em CD).

[31] Termo que caracteriza indivíduos, geralmente jovens, que se dizem heterossexuais, mas que por vezes se relacionam com pessoas do mesmo sexo, além de gostarem de se maquiar (tons escuros) e serem muito depressivos.

[32] Maiores informações no site oficial deste espaço de sociabilidade GLBT paulistano.

[33] Os nomes utilizados neste sub capítulo, referem-se a extinta casa noturna Flower’s e não são pseudônimos, logo, trata-se dos nome originais destes agentes históricos.

[34] Rubina: uma travesti de outra época. Páginas 6 e 7. Jornal do Nuances. Ano 5, nº. 30, outubro de 2004, Porto Alegre-RS.

[35] Informações baseadas no discurso comum, captadas na observação feita no Cabaret Soft, no dia 13/07/2007.

[36] Este termo surge no início dos anos 1990 e foi cunhado pelas próprias travestis e transexuais. (Cabral, Mauro. Vox, ano 6, nº. 30. Dezembro de 2005). Vox é um grupo de defesa dos direitos dos homossexuais da capital argentina.

[37] “Mundo gay” é um termo utilizado pelos freqüentadores dos espaços de sociabilidade GLBT para se referirem a vida social homossexual. Há ainda, “cena gay” (Mott, 2000) ou “universo gay”.

[38] Consideramos o “ideal de perfeição gay”, as imagens que a indústria dos produtos voltados à homossexualidade impõe para os homossexuais com um todo, consistindo em uma verdadeira “violência simbólica” (BOURDIEU, 1994) para com os integrantes deste grupo social.

[39] Do inglês “Disc Jokey”, em uma tradução literal “Disco Divertido” (Dicionário Michaelis, versão em CD)

[40] Fala de Rubina, no texto “Rubina: uma travesti de outra época”. Disponível no Jornal do Nuances, Páginas 6 e 7. Ano 5, nº. 30, outubro de 2004, Porto Alegre-RS.

[41] Portal Mix Brasil, Nossa Língua: Glossário Gay. . Acesso em 11/11/2007.

[42] Percebe-se daí as transformações que podem ocorrer com determinado espaço físico. O espaço do Enigma, antiga casa noturna GLBT, também localizado no centro de Porto Alegre, hoje abriga uma empresa de concertos de eletrodomésticos.

[43] Quarto escuro (Dicionário Michaelis, versão em CD).

[44] Informação obtida, em rápida conversa, no dia 14/08/2007.

[45] Entrevista concedida no dia 05/08/2007.

[46] Estas informações foram retiradas do portal de relacionamento “Orkut”, no dia 12 de novembro de 2007.

[47] Os nomes destas peças teatrais são verídicos, bem como o de seus atores-transformistas. Informações retiradas de papéis de propaganda destas peças, disponíveis em nosso acervo pessoal.

[48] A entrevistada Lurdes Vargas, 58 anos, também menciona que o Enigma recebia visitas ilustres, como de atores globais. (11/09/2007).

[49] Helio Silva destaca o discurso travesti de que muitos de seus clientes são senhores casados e pais de família, que as procuram muitas vezes para terem, inclusive, relações sexualmente passivas. (Silva, 1993).

[50] Estes convites eram colecionados por Juliano de Carvalho que gentilmente doou este material para nosso acervo pessoal.

[51] Pesquisador baiano, cujo trecho de sua entrevista foi citado no capítulo anterior.

[52] Estes convites encontram-se em anexo.

[53] Este convite encontra-se em anexo.

[54] Estas informações foram retiradas do site de relacionamentos Orkut. , acesso dia 04/11/2007.

[55] Segundo Sérgio Carrara e Júlio Simões, que se baseiam no dicionário Oxford, “queer” tem o significado de “esquisito, estranho”, porém, socialmente este termo equivaleria a um “misto de desonra, perversão e pecado”. (CARRARA; SIMÕES, 2007, p. 77).

[56] Miskolci utiliza-se do conceito de “Pânicos Morais” e “Controle Social”, cunhado por Stanley Cohen, nos anos 1960. Percebendo, a partir deste quadro conceitual, como a sociedade reagiu ao perigo eminente, no caso o surgimento da “epidemia” da Aids. (2007, p. 111).

[57] Estas enquêtes, cuja análise refere-se ao dia 04/11/2007, estão seguem em anexo. Entretanto, elas ainda não foram encerradas, o que certamente alterará a porcentagem dos votos.

[58] OLIVEIRA, André de. “Nos domingos vocês podem”. Contracapa. Jornal do Nuances, Porto Alegre,. v. 6, n. 33, maio .2005.

[59] GOLIN, Célio. Conflito no Nova Olaria: A limpeza dos indesejáveis. Página 10. Aconteceu. Jornal do Nuances, Porto Alegre, v. 6, n. 36, jul. 2006.

[60] Informações obtidas a partir de visitas ao local, em domingos variados, além das já citadas reportagens do Jornal do Nuances.

[61] Discussões pertinentes sobre o corpo e as representações acerca das homossexualidades podem ser obtidas através dos itens “Identidade” e “Cultura GLS” do portal Mix Brasil.

[62] Entrevistas de Michelle Vargas, 32 anos e Lurdes Vargas, 58 anos, feitas no dia 11/09/2007.

[63] Diário de Campo, 17/06/2007.

[64] Do inglês “anfitriã”, no caso a Luana de York é a anfitriã do Blue Space. (Dicionário Michaelis, versão em CD). Ela é a hostess oficial da casa, inclusive, segundo Paulo de Castro, ela possui carteira assinada, isto é, ela é uma empregada do Blue Space. (22/06/2007).

[65]Sobre esta disputa velada entre Nuances versus Somos, basta ver a linha editorial do Jornal do Nuances e do Grupo Somos, bem como ao fato de Porto Alegre ter tido duas paradas do orgulho gay em 2005, 2006 e em 2007. A do Nuances e seus aliados ocorreu no domingo, 11/11/2007; já a do Somos e outros grupos afinados a ele, que compõe o Fórum LGBT de Porto Alegre realizou-se no domingo posterior, 18/11/2007.Cabe destacar, que neste ano de 2007 as verbas do Governo Federal foram direcionadas ao Fórum LGBT e o Nuances teve que organizar sua tradicional parada com o patrocínio dos espaços GLBT de Porto Alegre, mas sem o apoio do Estado Brasileiro. , .

[66] Disponível em , acesso em 04/11/2007. Como esta enquête continua na internet, certamente os resultados não serão iguais aos do dia de análise destes dados

[67] Disponível em , acesso em 04/11/2007.

[68] Convite doado pelo entrevistado Juliano Carvalho, que os colecionava. Atualmente encontra-se no arquivo pessoal do pesquisador.

[69] Convite doado pelo entrevistado Juliano Carvalho, que os colecionava. Atualmente encontra-se no arquivo pessoal do pesquisador.

[70] Convite doado pelo entrevistado Juliano Carvalho, que os colecionava. Atualmente encontra-se no arquivo pessoal do pesquisador.

[71] Postais distribuídos pelo Grupo Nuances em 2004. Acervo pessoal do pesquisador.

No verso se lê: “Perseguida pela Ditadura, a Boate Flower’s era militante da alegria e do prazer. A fotografia inédita mostra carimbo da Censura Federal que autorizava a apresentação do show de Dirnei Messias e Edinho, em 1971”.

[72] Postais distribuídos pelo Grupo Nuances em 2004. Acervo pessoal do pesquisador.

[73] Acervo pessoal do pesquisador.

[74] Acervo pessoal do pesquisador.

[75] Acervo pessoal do pesquisador.

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FABIANO LORENZON VALER

OS ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE GLBT E A

CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE HOMOSSEXUAL

Trabalho de Conclusão do Curso de História, Licenciatura.

Orientadora: Profª Maria Cristina Caminha de Castilhos França

Novembro / 2007

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