O intelectual e o carnaval carioca :a civilização da festa ...



O INTELECTUAL E O CARNAVAL CARIOCA:

A CIVILIZAÇÃO DA FESTA (1880/1920)

Fred Góes

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Antes de ser o carnaval que conhecemos hoje, no País, a folia de Momo já contava com participação ativa dos intelectuais em sua realização. Na passagem da forma primitiva, o entrudo, para o carnaval de sabor europeu, “civilizado”, como costumavam reivindicar em suas colunas da imprensa diária, a campanha empreendida pelos intelectuais é de extrema relevância para evolução histórica da festa entre nós.

Basta lembrar que no início do século XIX, Jean Baptiste Debret, talvez o mais popular membro da missão artística de 1816, já registrava em uma das pranchas que ilustram a sua famosa Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil[1], a de número 33, uma cena de entrudo de rua no Rio de Janeiro, em que destacava a importância da festa em nosso contexto cultural.

Mais significativo ainda é o surgimento das Grandes Sociedades ou préstitos em meados do mesmo século. Em 14 de janeiro de 1855 o jornal Correio Mercantil publicava uma crônica assinada pelo romancista José de Alencar, em que descrevia uma sociedade, que fora criada no ano anterior, e que contava já com cerca de oitenta sócios “de boa companhia” e pretendia desfilar no domingo de carnaval com uma banda de música, flores, máscaras e roupas luxuosas, sendo a grande atração do carnaval daquele ano: chamava-se Congresso das Sumidades Carnavalescas. Do grupo de fundadores faziam parte, além de Alencar, Manuel Antônio de Almeida.

Escragnolle Doria registra que o desfile ocorreu às 3 horas da tarde de domingo, 18 de fevereiro de 1855, saído do Largo de D. Manoel, percorrendo a cidade “em galhofa”, e recolhendo-se ao Teatro de São Pedro[2]. A partir dela, várias outras Grandes Sociedades apareceram: União Veneziana, Euterpe Comercial e Zuavos Carnavalescos, dissidências da Sumidades.

Na história das Grandes Sociedades, os desentendimentos sempre foram uma constante, o que provocava o surgimento de outras novas: Tenentes do Diabo, Infantes do Diabo, Fenianos, Congresso dos Fenianos, Democráticos Carnavalescos (que em 1888 passou a se chamar Clube dos Democráticos), Estudantes de Heidelberg, Acadêmicos de Joanisberg, Boêmia, Pierrots da Caverna e tantas mais.

Das muitas sociedades que existiram nos primórdios, três foram chamadas de “heróis do carnaval”, devido as suas atuações no âmbito da vida nacional: Fenianos, Clube dos Democráticos e Tenentes do Diabo. Sobreviveram até 1989, mas desde meados do século XX não apresentavam mais o vigor de outrora em seus desfiles da terça-feira gorda.

As Grandes Sociedades não se limitavam a atuar no universo da festa, sempre se envolveram em movimentos políticos e atividades de cunho filantrópico. Uma das causas em que mais se destacaram foi a abolicionista. Arrecadavam dinheiro para comprar escravos e, posteriormente, libertá-los, apresentando-os em seus desfiles, com o intuito de incentivar o movimento. Eram também responsáveis por uma série de publicações dedicadas a essa causa. O envolvimento das sociedades era tanto que, no ano de 1869, a verba arrecadada pelos Tenentes foi toda gasta na compra de doze escravos, não sobrando dinheiro nem mesmo para o desfile. O movimento republicano foi outra bandeira defendida pelas sociedades.

Outra modalidade de participação das sociedades era o panfleto poético denominado pufe, palavra originária do francês “pouf” que os dicionários definem como “anúncio pomposo”. Já devidamente abrasileirado ou carioquizado, os pufes descreviam a beleza dos seus carros nos préstitos, mas também eram utilizados para mensagens de fundo político e reivindicatório”.[3] Eram textos enormes, com muitas dezenas de versos em que se destacavam as virtudes do desfile da agremiação.

Conforme nos informa José Ramos Tinhorão[4]: “em 14 de fevereiro de 1888, por exemplo, o Clube dos Fenianos publicava na imprensa do Rio de Janeiro o pufe de abertura do seu desfile (ainda chamado passeata), saudando a capacidade de rebeldia do povo contra a opressão (estava-se às vésperas da abolição e da república), em cujos versos sob o título de “Ao Povo” proclamava:

De braço dado ao começar a festa,

Vamos, ó doce musa da pilhéria,

Rir da pessoa que se torna séria,

Trocar a gente que se finge honesta.”

Do mesmo ano é o pufe do Clube dos Democráticos que, enaltecendo a abolição e, conseqüentemente, tripudiando os conservadores, faz publicar os versos:

Metei a viola no saco

É dos negros a vitória

É deles a imensa glória

Metei a viola no saco.

Entre os inúmeros intelectuais e jornalistas autores de pufes, destacamos a figura de Olavo Bilac que, além de muitos pufes, escrevia trovas e sonetos que eram vendidos por um anônimo dominó azul nos bailes freqüentados pela burguesia, em cartões dourados, com o propósito de angariar fundos para o orfanato mantido pela famosa Irmã Paula, que ainda hoje, é sinônimo de solidariedade e bondade extrema. Assim como Bilac, Emílio de Menezes, Múcio Teixeira, Luiz Edmundo e Raul Pederneiras forneceram versos para o dominó vender.

Como se pode observar, no período que compreende as duas últimas décadas do século XIX e as duas primeiras do século XX (1880/1920), a presença dos homens de letras no âmbito carnavalesco se dá de forma bastante peculiar. Nestas quatro décadas, a atuação deles na imprensa diária é expressiva e constante, conforme observamos logo no início, sendo as crônicas veiculadas nos jornais o espaço primordial de discussão das festividades momescas. A recorrência do tema na produção literária se dá, sobretudo, em virtude do debate que se estabelece entre os intelectuais com relação ao jogo do entrudo[5], em que se apresentam opiniões antagônicas, caracterizando verdadeiras campanhas contra e a favor da prática. Vive-se, então, um momento de transitividade, em que o embate entre as práticas do entrudo e o carnaval à moda européia torna-se o foco de atenção, revelando posicionamentos ideológicos em que conceitos como nacionalidade, identidade cultural, tradição e modernidade marcam o ritmo carnavalizante da prática escritural.

O grupo de literatos, que dedica atenção, em crônicas, às manifestações carnavalescas, entre os anos oitenta do século XIX e os anos vinte do século XX, é variado e heterogêneo. Reúne nomes, além dos já citados, de escritores como Machado de Assis, Arthur Azevedo, Raul Pompéia, Coelho Neto, Carlos De Laet Guimarães Passos, Valentim Magalhães, Pardal Mallet, Urbano Duarte, Lima Barreto, Luiz Edmundo, João do Rio, Benjamin Costallat, entre outros.

O carnaval é também referente que pontua contos, romances e textos teatrais, como espaço de transgressões e de redimensionamentos, cenário privilegiado para as excepcionalidades, em que se observa uma prática textual em movimento pendular entre a marcação bélica do entrudo e o ritmo jovem do carnaval que prenuncia a modernidade. Raul Pompéia, no conto O Último Entrudo (1883) e Arthur Azevedo, na peça O Bilontra (1886), fazem uso do confronto entrudo/carnaval para metaforizar, de forma exemplar, o embate entre o império, identificado com o regime colonial e, conseqüentemente, com o passado e a república, identificada com o futuro, com o progresso e a civilização.

Apresentando um posicionamento diverso da tradição romântica da qual eram herdeiros, marcada pela afirmação de um sentimento de nacionalidade que diferenciasse a nação da antiga metrópole e lhe conferisse uma identidade própria, esses novos literatos se inserem na busca de um outro padrão de nacionalidade. Não lhes bastava definir o país enquanto nação: era preciso perguntar-se que nação seria esta.

Na busca de uma identidade nacional profunda, esses autores dirigem a atenção para as vísceras da sociedade brasileira. Mais do que estudar e entender a lógica dessa sociedade, eles pretendiam, com isso, transformá-la. Afinal, o desempenho intelectual, naquele momento, confundia-se com a atividade pedagógica.

Observa-se, portanto, que uma parcela significativa da produção literária do período está grafada pelo desejo de civilização e progresso que passa a ser uma característica do pensamento dos intelectuais de então. É esta marca que leva Nicolau Sevcenko[6] a identificar o caráter de “missão” assumido pelos intelectuais, cujos textos evidenciam o propósito de apagar o passado colonial, numa clara identificação com as novidades republicanas de sabor europeizante, tendo Paris como paradigma. Eram dois, portanto, os parâmetros básicos a serem seguidos: construir a nação e remodelar o Estado, ou seja, modernizar a estrutura social e política do país.

Chama atenção como a maioria dos intelectuais, pelo menos desde do início da década de 1880, demonstra uma enorme intolerância em relação ao entrudo e outras práticas culturais presentes nos festejos. Mesmo que o entrudo praticado nas casas senhorias da Corte seja lembrado até com certa nostalgia, há consenso de que o jogo das molhadelas é coisa do passado, fadado a desaparecer, predominando claramente a sua condenação enquanto prática grosseira, de “bárbaros”, herança da “brutalidade” dos antepassados portugueses, brincadeira que imperava entre as “classes perigosas” urbanas[7]. O jogo denunciava de forma ostensiva a insalubridade que tanto se combatia, tornando-se esse dado um dos maiores trunfos das autoridades contra a prática. A campanha ganhou tal proporção que se chegou a aventar a hipótese de se realizar o carnaval de 1892 no mês de julho que, por ser mais frio, desestimularia o jogo do entrudo. Tal postura revela o comportamento vigente com relação às culturas populares.

Julgava-se que o universo popular estava repleto de sobrevivências culturais que precisavam ser erradicadas para abrir caminho ao “progresso” e à “civilização”. Havia hábitos condenáveis nas formas de morar, de vestir, de trabalhar, de se divertir, de curar etc., muitos deles mais “abomináveis” ainda por serem manifestações de raízes culturais negras disseminadas nas classes populares.

Como bem informa N. Sevcencko[8], os quatro princípios fundamentais que regeram o transcurso da metamorfose a que Pereira Passos submeteu a cidade do Rio de Janeiro, ou “regeneração” (expressão esclarecedora do espírito que presidiu o movimento de destruição da velha cidade) revelam com clareza os ideais de redenção da situação colonial: a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória tradicional: a negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense.

O carnaval que se desejava era o que se assemelhasse ao de Nice e Veneza, com arlequins, dominós, pierrôts e colombinas, em que as emoções fossem comedidas, sem os excessos dos cordões fantasiados de índios, dos batuques e cucumbis de origem africana.

São freqüentes as interpretações do carnaval balizadas pela idéia de ritual de inversão, isto é, pela noção de que tal festa possibilitaria, supostamente, um baralhamento momentâneo das hierarquias constitutivas de determinado ordenamento social. Tal entendimento aparece na fala de alguns escritores do período, sendo dispositivo importante no sentido de despolitizar os significados do rito.

Outro elemento que merece destaque no discurso dos intelectuais das letras é a noção de que o carnaval teria um sentido unívoco e totalizante, ou seja, teria o mesmo significado para todos os foliões, ficando excluída assim a possibilidade de construção de diferentes sentidos culturais e políticos para aqueles que eram mais propriamente os sujeitos da festa.

Ainda que sob uma ótica diversa dos seus antecessores, Oswald de Andrade[9], tanto no Manifesto Pau-Brasil, de 18 de março de 1924, quanto no Manifesto Antropofágico, de 1º de maio de 1928, destaca a celebração carnavalesca como uma das mais vigorosas manifestações culturais de nossa gente. No primeiro manifesto, numa evidente crítica ao eurocentrismo cultural vigente, Oswald de Andrade, logo no segundo parágrafo exalta: “O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil”, derrubando as fronteiras entre o sagrado e o profano, para afirmar, na seqüência, “Wagner submerge ante os cordões de Botafogo”, valorizando, assim, a música urbana carioca, o samba, amalgama das sonoridades afro-brasileiras. No segundo manifesto, reitera esta idéia ao afirmar: “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval”, reforçando a idéia do ritual carnavalesco como zona livre entre o sagrado e o profano, celebração da raça.

É a partir da percepção de tais nuances, muitas vezes ambíguas, paradoxais, que vimos procurando entender, fazendo uso dos recursos da semiologia e do instrumental teórico da literatura, os mecanismos da folia da escritura presente nos textos literários escritos na passagem do entrudo para o carnaval.

É importante ressaltar que a produção literária desse período tem servido de fonte para pesquisas nas áreas da comunicação, da cultura popular e, especialmente, da história, da sociologia e da antropologia. Os textos são, portanto, utilizados como referência documental sem que haja um tratamento ou análise dos aspectos e recursos utilizados pelos escritores que conferem a essas obras o caráter literário.

É curioso observar que sendo a literatura um dos mais vigorosos veículos de tradução cultural e sendo o carnaval uma das manifestações que melhor nos distingue culturalmente, não tenha a folia de Momo merecido até agora a devida atenção de nossos estudiosos das letras, salvo honradíssimas exceções (José Guilherme Merquior[10], por exemplo), como ocorre em outros campos do saber. Essa constatação reafirma a idéia de que um dos aspectos mais interessantes de se estudar o Brasil é que ainda há gigantescos territórios culturais pouquíssimo explorados ou ainda virgens de investigação.

A loucura divina, a folia, que se origina de fole, sopro vital, renovação do ar, descende do escárnio ritual que, na sociedade primitiva, castigava deuses e soberanos, a fim de obrigá-los a renovar-se, promovendo a fecundação da terra e da raça. É esse impulso renovador inerente ao carnaval que nos seduz a investigar a folia da nossa escritura.

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[1] DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou sejour d’un artiste français au Brésil depuis 1816 jusqu’a 1831. Paris: Firmin Didot, 1834-39. 3t.

[2] DORIA, Escragnolle. O primeiro Carnaval. In: Revista da Semana, Rio de Janeiro 1º de março de 1924 nº 10. Ano XXV, p. 1.

[3] COSTA, Haroldo. 100 Anos de Carnaval no Rio de Janeiro. São Paulo: Irmãos Vitale, 2001. p. 25

[4] TINHORÃO, José Ramos. A imprensa carnavalesca no Brasil: um panorama da linguagem cômica. São Paulo: Hedra, 2000. p. 95

[5] O jogo do entrudo foi introduzido no Brasil, na década de 20 do século XVIII, por imigrantes das ilhas da Madeira, Açores e Cabo Verde. Consistia em uma verdadeira guerra entre os participantes, em que se atiravam limões de cera, contendo no interior ou água de cheiro ou urina. As pessoas jogavam também, umas nas outras, polvilho, cal, alvaiade e pó-de-mico. Realizava-se nas ruas e também domesticamente. Caracterizava-se como uma prática brutal e violenta, conforme assinalam os seus detratores.

[6] SEVCENKO,Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2a ed. São Paulo, Brasiliense, 1985.

[7] Usava-se, freqüentemente, com um misto de horror e vergonha, para provar os efeitos maléficos do entrudo o fato do arquiteto francês Grandjean de Montigny ter morrido, em 1850, vítima das molhadelas indesejadas que faziam a alegria da “ralé”.

[8] SEVCENKO, Nicolau. Op. cit. p. 30.

[9] TELES, Gilberto Mendonça (org). Vanguarda européia e Modernismo Brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 266-96.

[10] MERQUIOR, José Guilherme. Saudades do Carnaval: introdução à crise da cultura. Rio de Janeiro: Forense, 1972.

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