A edição de jornal – como conjunto de atividades ...



A dupla falta do editor de jornal, nos livros e cursos de jornalismo

Beatriz Marocco e Christa Berger, professoras da Unisinos

A edição de jornal – como um conjunto de operações relacionadas à publicação e distribuição de jornais e como a evidência do trabalho de um editor-chefe – está inscrita em um quadro complexo de produção jornalística que conjuga o gesto individual, as estratégias empresariais e as práticas jornalísticas a condições históricas de possibilidade. O que existe sobre o tema, entretanto, não dá conta nem dos processos e técnicas de produção nem dessa figura.

De forma extremamente fragmentada diferentes autores que se dedicam à redação jornalística reduzem a edição a uma espécie de efeito colateral. Existe porque existe a notícia e a necessidade de constranger o acontecimento ao espaço jornalístico. O que se evidencia com isso é uma atenção aos processos de produção da notícia e da reportagem (nos âmbitos do planejamento, coleta de dados e escritura) em detrimento da edição que ganhará certo vigor no tratamento dos títulos e outros efeitos gráficos, um dos aspectos das rotinas de edição.

Já o editor tem acumulado muito mais consistência em tempos difíceis sob a forma de um ato heróico no cotidiano ordinário, como pode comprovar a descrição de Dines (1986) sobre a edição da notícia da “morte” do presidente chileno Salvador Allende na primeira página do JB, nas telas do cinema, na literatura e, menos freqüentemente, na televisão. Na TV, o ator espanhol José Coronado está inesquecível no protagonismo da série Periodistas, em que vivia um simpático galã/editor muito bem sucedido na profissão e junto às belas e experientes repórteres do jornal. O filão cinematográfico localizou quase invariavelmente o poder do editor no bordão “parem as rotativas”. Na literatura a sua dimensão histórica é anterior à rotativa e ao paradigma da objetividade. Nas teorias exógenas do jornalismo (H. Hardt, 1979), o editor foi construído como uma conexão entre o jornal e o mundo ou um sujeito de inúmeras pressões enquanto o “gatekeeper” das teorias modernas do jornalismo parece desvinculado das pressões externas sobre o seu trabalho.

No texto que segue nossa proposta é revisar o que foi dito sobre práticas de edição nos estudos do jornalismo e em outros discursos, ensaiando uma descrição sobre o tema que aponta em direção a dois momentos: 1. A porosidade/impermeabilidade do editor frente às coisas que passam na realidade; 2. As rotinas produtivas da edição inscritas na dinâmica das relações profissionais em uma sala de redação e no interior de uma empresa jornalística.

As rotinas da edição

É difícil marcar os limites das rotinas de edição. As múltiplas posições que o editor ocupa na hierarquia de uma empresa jornalística percorrem a história dos jornais. Até meados do século XX, editor e dono do jornal eram quase sempre o mesmo sujeito. Com a cristalização das redações e a posterior fragmentação do jornal em editorias, o editor passou a responder por áreas especializadas, a tarefa simplificada cede lugar à tarefa complexa, aparece a figura proeminente do editor-chefe, dos secretários de redação e do diretor de redação, enquanto a propriedade dos veículos será atributo de uma diretoria, que se ocupa mais da gestão do negócio do que se envolve com o cotidiano miúdo da redação. É no Jornal da Tarde, segundo J. Bahia, que o editor passa a ser mais exigido, assumindo a um só tempo funções de pauteiro, chefe de reportagem, editor de texto, editor de fotografia, diagramador e redator. Além disso, às vezes, também é repórter (1990, p. 387). Dentro desse quadro, os teóricos do jornal têm olhado a edição com uma certa reserva. Da mesma forma os cursos de jornalismo.

O editor e a edição aparecem em diferentes disciplinas no âmbito dos estudos universitários de graduação. Os livros abordam o tema superficialmente. Essa dupla falta vem acompanhada por uma suspeita de que a formação de um editor se dá, de fato, no âmbito das práticas jornalísticas e das “tensões naturais e necessárias que existem na organização do jornal” ou seja, o melhor aprendizado de edição jornalística reside em uma bem sucedida carreira de repórter/redator, passando ele mesmo por todos os departamentos (Beltrão, 1980, p. 51). Poder-se-ia arriscar a hipótese de que nos momentos em que se dedicam à edição, as bibliografias que se situam no nível das técnicas e da redação jornalística enfatizam 1. a qualidade de filtro do editor no processo de produção da notícia, 2. a diferença entre produção e a edição de notícia, e 3. as rotinas da edição.

Em O que é jornalismo, Clóvis Rossi (1980) associa a edição jornalística a uma série de cinco “filtros” existentes entre o material produzido pelos repórteres e a página: é o editor que determina a angulação, se uma determinada reportagem merece 60 ou apenas 20 linhas, o número de caracteres de um título, o sentido do que esse diz e a sua importância na página. Nesse sentido, José Marques de Melo (1985) identifica um “evidente verticalismo” na seleção das informações que articula a propriedade da organização às instâncias da redação, desde o editor chefe até a chefia de reportagem ou as editorias especializadas. “As decisões fluem de cima para baixo... é uma relação de ordem e obediência, na qual as chefias decidem o que os seus subordinados vão fazer e cobram o cumprimento integral da execução” (p. 60). Segundo Marques de Melo, os proprietários naturalmente exercem vigilância sobre o andamento das atividades jornalísticas, controlando diariamente o produto final.

Manuel Carlos Chaparro dá voz ao editor Eduardo Lopes Martins Filho para evidenciar esse trabalho de cozinha sobre a reportagem intitulada “A Sabesp mente sobre o rodízio”, publicada em O Estado de São Paulo (9/11/1989). Como a repórter não fizera a abertura da mesma com “coisas relevantes” (a matéria abria com uma casa onde não tinha faltado água anteontem e faltara ontem), Martins Filho fez algumas alterações no original, que se afinavam mais com o teor da pauta do diretor de redação Augusto Nunes, morador das Perdizes, uma das zonas em que houvera corte de água no dia da reportagem. A argumentação da abertura foi sustentada por depoimentos, coerentes com o título, que foram desmentidos pelas respectivas fontes e pelo assessor de imprensa da Sabesp. “Editor existe para isso”, argumentou o editor, “caso contrário cada repórter decidiria sua matéria”.

... a interferência do editor começa na pauta e, em última instância sai o que o editor aprova. “Se o lead está no terceiro parágrafo, tenho que passá-lo para o primeiro (depoimento de Eduardo Lopes Martins Filho, citado em Chaparro, 1993, p. 29-33).

Duas décadas antes, Cremilda Medina havia identificado a edição como “segunda componente estrutural” no processo de produção da notícia e o editor como o jornalista que marca a crescente especialização do jornal, a descentralização do antigo pauteiro ou do chefe de reportagem, que determina os assuntos a serem cobertos e que coordena os repórteres que trabalham na sua área.

Por definição, é o sujeito “bem informado”, sensível à demanda, que antevê a oportunidade de determinadas coberturas, que sabe selecionar as informações “essenciais” que o repórter traz, que sugere perguntas e, acima de tudo, que angula a matéria. Neste momento, editoria e angulação mantêm uma relação estrutural indiscutível. O editor está em perfeita sintonia com a angulação da empresa, com a angulação-massa – ou seja, age como elemento regulador da oferta e da demanda (Medina, 1978, p. 92).

Em suas memórias, Cláudio Abramo sugere uma divisão entre “jornalistas e jornalistas”. Basicamente, diz ele, ser jornalista significa trabalhar em uma dessas duas grandes áreas:

Ou você produz, ou você edita. (...) Alguns jornalistas são excelentes para produzir, imaginar matérias, reportagens, artigos, bolar ligações entre um fato e outro (...). Outra coisa, diferente e até oposta, é a edição, o trabalho de editar o que o produtor oferece. O sujeito que edita precisa ter concepções claras sobre o tipo de jornal e revista que edita e sobre o que se pode fazer ao editar uma história, um conjunto de histórias, ou várias matérias correlatas. Ele deve ter um tipo de imaginação e de noção espacial e visual. Deve trabalhar com a realidade, com as narrativas, os comentários, as análises, as fotos e as charges, isto é, coisas materiais. Deve transformar tudo isso num conjunto inteligível para o leitor, tanto intelectualmente quanto fisicamente (1988, p. 177).

Um conjunto de respostas do livro Respondendo 1000 perguntas (2005) esquadrinham as rotinas de edição das diferentes editorias: política (p. 63), economia (p. 73), esporte (p. 83), cultura (p. 93), polícia (p. 102), ciência (p. 110), internacional (p. 120), cidade/geral (p. 166), entre elas, determinar o enfoque das matérias, se podem ser apuradas somente por telefone ou se a apuração exige o deslocamento do repórter, escolher as matérias que serão publicadas, reescrevê-las se necessário, organizar e hierarquizar as matérias na página. A tudo isso pesa sobre o editor a “responsabilidade” de cada editoria. A de um editor de caderno cultural, por exemplo, “em uma editoria onde se valoriza tão pouco a cultura, é redobrada. Talvez seja esse o motivo de tantas críticas à função” (p. 93).

Segundo Mário Erbolato, “o editor (responsável por um dos setores ou assuntos) faz a previsão das matérias que deverão ser publicadas no dia seguinte, calculando inclusive o espaço total de que necessitará. Diariamente há reunião dos editores com o editor geral onde é feito o loteamento do espaço que caberá a cada editoria (1978, p. 193).

A dupla face do editor

Canalha ou herói. A imagem do editor geralmente ocupa esses dois extremos. Sob a pele de Loberant, o editor esboçado por Lima Barreto é o todo-poderoso artífice de uma divisão infinitesimal de interesses de todo tipo de gente que forma filas da manhã à noite em frente à sua sala e que, em nome da proximidade com o público, traduzirá “uma forte diminuição de todos os laços morais” no jornal (1995, p. 52). Floc, um dos editores de O Globo, jactava-se de publicar o que queria no modelo de redação barretiano, mas o que podia publicar com a indiferente do diretor eram artigos literários.

Na redação era assim: escrevia-se mediante ordem do Diretor, hoje contra e amanhã a favor. Floc, entretanto, gabava-se de ter autonomia nos seus artigos. Eram puramente literários, ou tinham esse propósito, e, à luz da inteligência de Loberant, era-lhe perfeitamente indiferente que o naturalismo fosse elogiado e o nefelibatismo detratado; que a Academia de Letras tivesse referências elogiosas ou recebesse epigramas acirrados (Lima Barreto, 1995, p. 48).

O pequeno diário balzaquiano situado na rua Saint-Fiacre, segundo Blondet, era uma loja em que se vendiam palavras da cor que se pedisse; ao invés de ser um sacerdócio, o jornal de Finot era um meio de expressão para os partidos políticos, um comércio, e, como “comércio, como todos os comércios, não tinha nem fé nem lei” (Balzac, 2001, p. 387). Baudelaire escreve com desdém sobre a autonomia do editor de jornal: “São pessoas sem personalidade, seres sem originalidade” nascidos para a domesticidade pública. Havia um acordo entre literatos e teóricos em relação à venalidade do editor.

Um conjunto de teorias reunidas por H. Hardt nas “social theories of the press” deram mais precisão à figura do editor. Small e Vincent (1894) e K. Bücher (1915) esboçaram com agudeza a figura que ocuparia, mais tarde, o bojo do conceito de gatekeeper. Nela descreveram o editor de telégrafo, que recebia e selecionava o material produzido pelas agências de notícias nacionais e internacionais que, por sua vez, faziam chegar até os jornais os relatos dos correspondentes que mantinham em todo o mundo (citados em Hardt, 1979, p. 203). O editor, na visão de Small e Vincent, era uma conexão entre o jornal e o mundo:

The telegraph editor is the connecting link between the paper and the outside world. He reads the messages sent from the head office of the general press association, and selects such matter as he deems desirable. The general manager of this press service, sitting in his office in New York or Chicago, receives reports from his special correspondents in all parts or the country. These he sifts and then transmits to several central distributing points, whence they are telegraphed to the various papers in the association. Now and then, a cable message arrives from an international agency in London or Paris, where news from all over the world is being collected and distributed to meet the demands of different countries. Thus the report of an anarchist outrage in Seville finds a ready channel via Madrid, Paris, London, and New York or Chicago to any American city or large town (citado em Hardt, 1979, p. 200)[1].

Bücher acreditava que esse mesmo editor, no comando do telégrafo, estava exposto à propaganda de guerra, aos interesses nacionais, de grupos de pressão ou “de seu patrão”, e que, em sua posição de filtro do noticiário não levava nada disso em conta. Ao conduzir o processo de seleção, considerava as suas primeiras impressões que não iam além de uma avaliação da veracidade do noticiário. As condições de produção das notícias não eram avaliadas. E assim, no controle do telégrafo, o editor suprimia as notícias que considerava desagradáveis dando importância as agradáveis. Essa atitude, que dava espaço no noticiário à exploração continuada de materiais que exploravam visões parciais e/ou distorcidas do que acontecia na realidade (“one-sided materials”), principalmente em época de guerra, poderia causar mais estragos na opinião pública do que um ataque armado em campo de batalha.

Knies ainda não havia relacionado a máquina com o poder das agências de notícias; refletiu separadamente sobre o telégrafo e o jornalista. A imprensa, dizia, ao contrário do que ocorria entre duas pessoas, introduziu um mensageiro na transmissão das mensagens e foi esse terceiro elemento que acabou abrindo os “portões” para os mal-entendidos, até a introdução dos sistemas técnicos, como o telégrafo, que deram uma dimensão impessoal ao processo (citado em Hardt, p. 80-82). Por outro lado, Knies sugeriu que o processo de seleção das notícias em outras condições, ou seja, sem a interferência do telégrafo e do noticiário produzido pelas agências internacionais, podia fornecer as pistas para descobrir como os editores tentavam dirigir a atenção dos leitores privilegiando, dando tratamento diferenciado ou silenciando certos acontecimentos (citado em Hardt, p. 89).

Na esfera da produção jornalística, as figuras dos gates (portões) e dos gatekeepers (jornalistas) que David Manning White elaborou em 1950 em artigo publicado na revista Journalism Quarterly, dão conta do processo de seleção das notícias pelo editor. White observou, acompanhando as práticas de um jornalista, que as notícias passam por uma série de portões que são os momentos de decisão em relação aos quais o jornalista deve escolher o que será publicado. Mr. Gates, como chamou-o White, vivia e trabalhava há 25 anos em um jornal de uma de 100 mil habitantes do meio oeste americano. Sua função: selecionar entre o grande volume de despachos das agências de notícias que chegavam diariamente as notícias que o jornal publicaria no outro dia. A seleção, segundo White, seguia critérios subjetivos. Em seu livro de anotações, o jornalista classificava o material rejeitado como “demasiado vago” (26 notícias foram rejeitadas por esse motivo), ou como “composição aborrecida” (51), ou “sem interesse” (61).

O processo de seleção é subjetivo e arbitrário, com as decisões dependendo muito de juízos de valor baseados no conjunto de experiências, atitudes e expectativas do gatekeeper (White, 1993, p. 149).

Warren Breed (1993) alargou a perspectiva do gatekeeper. Ele estudou o controle social nas redações, analisando os mecanismos de manutenção da linha editorial e política dos jornais. O autor observou que “o jornalista conforma-se com as normas da política editorial da organização independente de qualquer idéia que ele tenha trazido consigo”. Breed (1993, p. 157-161) apresentou seis motivos que “fazem com que o jornalista se conforme com a política editorial da organização: a autoridade institucional e as sanções; os sentimentos de dever e estima para com os superiores; as aspirações à mobilidade profissional; a ausência de fidelidade de grupo contrapropostas; o caráter agradável do trabalho; o fato de a notícia ser transformada em valor”. Na sua atividade diária, explica o autor, “o jornalista redefine seus valores ao nível mais pragmático da redação” (Breed, 1993, p.157-161). Os estudos posteriores consideram a necessidade de integrar o papel do jornalista à análise das rotinas produtivas e da organização burocrática do jornal, ou seja, deslocam o processo de seleção da manipulação explícita da informação para a hipótese de uma distorção inconsciente, que pode ocorrer na cobertura jornalística (Wolf, 1994, p.166).

Molotch e Lester (1974, citados em Traquina, 2000) vão flexibilizar a noticiabilidade da esfera de decisão do jornalista para outras esferas da sociedade e, mais concretamente, para três tipos de pessoas (news assemblers, news promotors, e news consumers) que serão relacionadas posteriormente, no esquema apresentado por Rogers, Dearing e Bregman (1988, citados em Traquina, 2000), à agenda jornalística, à agenda da política governamental e à agenda pública. Na sua interface com a agenda jornalística, os news assemblers determinam quais são as notícias importantes, os news promotors estabelecem a agenda da política governamental e também são agentes especializados e membros do campo político, que ganham o direito de figurar na agenda jornalística, e os news consumers correspondem às pessoas sujeitas à influência das mídias e que vão ajudar a construir a agenda pública (Traquina, 2000, p. 20).

Mais recentemente, Alberto Dines mostrará a face heróica do editor. Em setembro de 1973, no dia em que Salvador Allende foi derrubado da presidência do Chile, suicidando-se em seguida, a censura proibiu os jornais brasileiros de dar em manchete, como seria natural, o trágico desenlace. A “recomendação” chegou quando já havia uma primeira página clássica armada. Que fazer? Para não cometer o erro primário de colocar o fato principal em segundo plano e para evitar complicações da empresa com o órgão, Dines inverteu a fórmula de uma primeira página sem manchete nem título, com apenas um texto sobre o acontecimento, composto em tipos grandes e fortes. “A edição mesmo sem títulos despertou a atenção pelo contraste e foi um sucesso” (Alberto Dines, 1986, p. 52).

Alberto Dines, no fragmento acima, retirado de O papel do jornal, relatando um dia difícil de sua experiência como editor-chefe do Jornal do Brasil, deixa a descoberto a possibilidade de um ponto de estabilidade que a edição deveria criar entre as pressões externas ao campo do jornalismo desencadeadas por uma rede de instituições da sociedade, as idiossincrasias do campo jornalístico em si (práticas de edição, a linha editorial da empresa e a normatização jornalística), e o gosto do leitor.

A estrutura da redação

A literatura tem se dedicando historicamente à figura do editor em seu meio de trabalho. Primeiro Balzac. Em Ilusões perdidas, o porteiro do pequeno diário na rua Saint-Fiacre, soldado aposentado de Napoleão, descreve a redação para Lucien como se essa fosse uma extensão da rua, da gráfica e da casa dos “autores" e os jornalistas como uns tipos extravagantes, “gentinha que não teria sido aproveitada nem como soldado de retaguarda e se acha com direito de olhar com desdém para um antigo capitão dos dragões da Guarda Imperial aposentado como chefe de batalhão”. Na redação havia uma mesa redonda coberta por uma toalha verde, seis cadeiras de cerejeira recobertas de palha ainda nova; sobre a mesa, jornais velhos, um tinteiro com tinta seca enfeitado por penas deformadas pelo calor. Isaías, protagonista de Lima Barreto, entra na redação de O Globo quando essa se cristaliza em um espaço com autonomia da gráfica, hierarquizado e controlado por um “diretor”:

Era uma sala pequena, mais comprida que larga, com duas filas paralelas de minúsculas mesas, em que se sentavam os redatores e repórteres, escrevendo em mangas de camisa. Pairava no ar um forte cheiro de tabaco; os bicos de gás queimavam baixo e eram muitos. O espaço era diminuto, acanhado, e bastava que um redator arrastasse um pouco a cadeira para esbarrar na mesa de trás, do vizinho. Um tabique separava o gabinete do diretor, onde trabalhavam o secretário e o redator-chefe; era também de superfície diminuta, mas duas janelas para a rua davam-lhe ar, desafogavam-no muito (idem, p. 37).

Na redação de O Globo transitavam, entre outros, o proprietário e “diretor”, o bacharel em direito Ricardo Loberant, “de inteligência duvidosa e saber inconsciente”, Aires d’Ávila “um monstro geológico com prematuros instintos de raposa”, Leporace, “um secretário mecânico, automático, ser sem alma, sem defeitos nem qualidades, que recebia os seus movimentos do exterior e os comunicava às outras peças da máquina”, Alberto Pranzini, o gerente, um calculador de níqueis, que trazia para as gavetas do jornal os tostões da população e Floc, que tinha o grande prestigio de ter estado em Paris e fazia a crônica literária, as crônicas teatrais dos espetáculos de todas as celebridades, as informações sobre literatura e pintura, além do plantão semanal em que “ajeitava frases lindamente literárias, dados da Psicologia chic, as noticias de assassinatos perpetrados por soldados ébrios na Rua de São Jorge, não esquecendo nunca de dizer que o ‘criminoso é o tipo acabado do criminoso nato, descrito pelo genial criminalista italiano Lombroso’”. Floc jactava-se de publicar o que queria em um modelo de redação em que se escrevia mediante ordem do diretor.

Na redação era assim: escrevia-se mediante ordem do Diretor, hoje contra e amanhã a favor. Floc, entretanto, gabava-se de ter autonomia nos seus artigos. Eram puramente literários, ou tinham esse propósito, e, à luz da inteligência de Loberant, era-lhe perfeitamente indiferente que o naturalismo fosse elogiado e o nefelibatismo detratado; que a Academia de Letras tivesse referências elogiosas ou recebesse epigramas acerrados (Lima Barreto, 1995, p. 48).

Robert Darnton examina a estrutura da sala de redação do New York Times e o sistema hierárquico em que funcionava no final do século passado para acolher a complexidade dos processos jornalísticos modernos: o editor-chefe, agora isolado em um escritório, os editores separados por editoria e uma divisória de pequena altura dos respectivos repórteres, que eram distribuídos em quatro setores: os grandes jornalistas, os revisores e preparadores de texto, os veteranos de meia idade, de confiança para qualquer reportagem, e um bando de jovens redatores em início de carreira. Com algumas variações, que ora reduzem ou ampliam as funções editoriais, ora aproximam geograficamente os editores de seus repórteres e os repórteres entre si, a sala de redação contemporânea[2] segue esse diagrama que se reproduz no jornal apresentado ao leitor em suas divisões por sessões e zonas de privilégio, historicamente ocupadas pelos repórteres e editores de maior prestígio.

No The Times, segundo Darnton, cada editor domina uma determinada parcela do jornal, de modo que, num número com n colunas, o editor de Cidades pode esperar um controle sobre x colunas, o editor de Exterior um controle sobre y colunas, e assim por diante. As proporções variam diariamente, conforme a importância dos acontecimentos, mas a longo prazo elas são determinadas pela capacidade de cada “potentado” em defender e ampliar o seu domínio. As mudanças na territorialidade ocorrem freqüentemente na “conferência dos quatro” no escritório do editor-chefe, onde o jornal do dia toma a sua forma. Aqui, cada editor resume o que fez sua equipe e, dia após dia, firma sua defesa da cobertura de sua área. Um editor de Cidades enérgico é capaz de conseguir mais espaço para os repórteres e inspirar-lhes uma sensação renovada da importância jornalística de seus temas.

Ainda com o auxílio de Darnton, poder-se-ia identificar no jornal um sistema de outro nível montado sobre um jogo de interesses entre editores e repórteres. Um sistema de controle da produção, que paira sobre o espaço da redação e inclui recompensas desde o “tapinhas nas costas” a almoços e ocasionais notas de congratulações dos editores aos repórteres. Para entrar nesse jogo, os repórteres acabam escrevendo para agradar os editores. “O poder do editor sobre o repórter, assim como o do diretor sobre o editor, realmente gera uma tendência na maneira de redigir as notícias”, observa Darnton (p. 77). Enquanto brigam pela aprovação dos editores, os repórteres desenvolvem um sentimento de solidariedade contra os editores. Para eles, um editor é uma pessoa que, mais do que qualquer outra coisa, tenta melhorar sua posição dentro de sua própria hierarquia à parte, subindo com idéias brilhantes e fazendo com que sua equipe escreva de acordo com elas (p. 76-77).

A descrição de Darnton remete a um cotidiano que vem fornecendo mais elementos e personagens para roteiros de ficção do que para livros didáticos. Com ela é possível apontar que essa impossibilidade teórica sobre a edição e a figura do editor decorrem da porosidade das ações jornalísticas, de sua estreita ligação com gestos heróicos e calhordas e com os símbolos que vem dando consistência ao jornalismo capitalista. Nesse quadro, o bordão heróico “parem as rotativas” e a insinuação que o editor é “alguém que nasce pronto” ou alguém que se forma escalando algumas funções de uma redação têm relevância. De algum modo esse texto pretende reconhecer essas muitas verdades que existem sobre a edição e o editor nos mais diferentes discursos para ocupar a dupla falta que lhe corresponde nos livros didáticos e nas salas de aula.

Referências bibliográficas

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BREED, W. 1993. “Controle social na redação. Uma análise funcional.” Em TRAQUINA, N. Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa, Veja.

CHAPARRO, M.C. 1994. Pragmática do jornalismo. São Paulo, Summus Editorial.

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ERBOLATO, M. 1978. Técnicas de codificação em jornalismo. Petrópolis, Vozes.

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MEDINA, C. 1978. Notícia, um produto à venda. São Paulo, Alfa-Ômega.

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TRAQUINA, N. O poder do jornalismo. Análise e textos da Teoria do Agendamento. Coimbra, Minerva, 2000.

WHITE, D. M. 1993. “O gatekeeper. Uma análise de caso na seleção de notícias.” Em TRAQUINA, N. (org). Jornalismo: questões, teorias e “estória”. Lisboa, Veja.

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[1] O editor de telégrafo é um elo entre o jornal e o mundo lá fora. Ele lê as mensagens enviadas do escritório central de uma agência de informação e seleciona o que acha mais importante. O chefe desse serviço de imprensa, no escritório de Nova Iorque ou Chicago, recebeu essas as reportagens de correspondentes em todas as partes do país. Após examiná-las transmitiu-as a pontos de distribuição de onde foram enviadas por telégrafo aos jornais associados. Neste momento, uma mensagem de cabo chega ao editor de uma agência internacional de Londres ou Paris, onde as notícias de todas as partes do país estão sendo coletadas e distribuídas para diferentes países. Uma reportagem sobre uma ação anarquista em Sevilha encontra um canal via Madri, Paris, Londres, Nova Iorque ou Chicago para uma pequena ou grande cidade americana (tradução livre das autoras).

[2] As editorias do jornal Granma, órgão oficial do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba (PCC), estão loteadas de outra forma. Segundo relato de Flávia Tavares, estudante do 3º ano de jornalismo da Casper Líbero ( acessado em 15/4/2006), editores e seus respectivos repórteres ocupam diferentes andares de um edifício situado na Plaza de la Revolución, bairro residencial de Vedado, em Havana. O subdiretor, que também é redator-chefe do diário, Lino Oramas, ocupa sala separada. A seção de esportes localiza-se em uma sala ampla. O cheiro de cigarro na redação torna o ar seco e quente da Havana, de 40 graus, ainda mais pesado. Mesmo sem ar condicionado, as vidraças permanecem fechadas. Os móveis, em tons de bege e marrom, e os computadores de antepenúltima geração dão um ar de anos 80 ao espaço, que combina perfeitamente com as feições dos jornalistas que ali trabalham: barbas por fazer, óculos quadrados, roupas puídas.

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