A realidade da corrupção em Moçambique: - O apóstolo ...



A realidade da corrupção em Moçambique: - O apóstolo fogoso da negação (1)

Maputo, Quarta-Feira, 27 de Fevereiro de 2008:: Notícias

 

PLAGIEI esta expressão de Marie-Laure Susini, francesa, no seu livro com o título “Elogio à Corrupção”. Devia ser leitura obrigatória em muitos sítios. Não se debruça especificamente sobre o que nós em Moçambique ou o que a indústria do desenvolvimento trata como corrupção. Aborda o assunto numa perspectiva da psicanálise profundamente enraizada na história. Contém uma das melhores descrições da Revolução Francesa que jamais li; tem uma discussão interessantíssima de São Paulo, o apóstolo, que é uma delícia. Discute os processos da Inquisição católica contra as “bruxas”. Apoia-se em George Orwell, sobretudo no seu livro 1984, para nos lançar um apelo dramático para estarmos atentos ao perigo que os da anticorrupção representam para a nossa liberdade. É um livro-maravilha que tem o valor acrescentado de me ajudar a formular ainda melhor as minhas reservas em relação ao uso abusivo e descuidado da noção de corrupção na nossa esfera pública.

A expressão “apóstolo fogoso da negação” vem do livro de Susini. É a expressão que, segundo ela, Robespierre, o grande líder da Revolução Francesa, usa contra Joseph Fouché, outro líder (menor) da Revolução. Este último não tinha muita paciência com as inclinações religiosas de Robespierre e não achava que o sentido da Revolução estivesse realmente contido na ideia de Deus e tudo quanto de puro ela poderia representar. Robespierre chamou-lhe de “fogoso apóstolo da negação” para o descrever como alguém que não concorda consigo e, por essa via – como é costume quando pessoas usam linguagem forte – para evitar discutir com ele. Curiosamente, Fouché reconhecia-se nessa descrição. Em solidariedade com Fouché e em admiração pela sua desenvoltura assumo o rótulo de “apóstolo fogoso da negação” para me debruçar, uma vez mais, sobre o discurso da corrupção no nosso país. Interessa-me não só problematizar o entendimento que temos do fenómeno, pois isso já fiz inúmeras vezes, como também tentar identificar o mal que esse entendimento faz ao país e propor a urgência de mudarmos da forma de bater – isto é xangan e quer dizer “mudar de estratégia” – enquanto ainda há tempo. O nosso país não vai necessariamente bem, mas isso não vai melhorar se insistirmos em formas problemáticas de o descrever e de propor soluções. A luta contra a corrupção em Moçambique tornou-se num dos maiores obstáculos ao desenvolvimento do nosso país. É a todos os títulos contraproducente.

A tese que vou tentar formular nas postagens que se seguem é muito simples: se a corrupção não existisse ela teria de ser inventada pela indústria do desenvolvimento, pois a ameaça que ela representa é funcional à reprodução da própria indústria do desenvolvimento. Portanto, estou a propor, com alguma perversidade, uma economia política da corrupção. Como é que ela surge, quais as suas condições de reprodução e que propósitos ela serve? Na verdade, comecei a formular esta tese há vários anos – desde o primeiro texto no jornal Notícias com o título “porque a corrupção não é o problema que dizem ser e mesmo  assim devemos ficar preocupados”.

Nos últimos tempos tenho estado a pensar nesta questão e perguntado a mim próprio porque a corrupção começou a ser assunto com a abertura do sistema político e a liberalização económica. Seguindo o raciocínio da indústria do desenvolvimento, o surgimento da corrupção no nosso país – lembro-me dos tempos gloriosos da revolução quando nos ríamos dos outros países africanos onde dizíamos haver corrupção – estaria relacionado com uma quebra generalizada de valores morais. Mas só a partir dos anos oitenta? Porque não antes disso? Algo me diz agora que tenho estado a colocar mal a questão. Na verdade, a corrupção como tal não é fenómeno novo entre nós. Contrariamente ao que muitos dizem por aí, mesmo nos gloriosos anos da revolução no período imediatamente a seguir à independência, houve muita corrupção. E de que maneira!

Só que a corrupção de então não é como a corrupção de hoje. A de hoje incide no dinheiro; a de ontem incidia na decadência moral. O que une as duas formas de corrupção não é a sua existência intrínseca, mas sim o facto de ambas serem resultado de uma visão teleológica que se quer impor sobre a sociedade. Explico-me: a indústria do desenvolvimento quer desenvolver Moçambique, isto é conduzir o nosso país ao seu destino final que é a felicidade para todos. Depois do desenvolvimento não acontece mais nada; é o fim da história. A Frelimo do pós-independência imediato queria fazer a transformação socialista de Moçambique, isto é conduzir o nosso país ao seu destino final que era a felicidade comunista para todos. Ali também teríamos chegado ao fim da história. Esta ideia de que alguns de entre nós sabem o que é bom para o resto e têm a obrigação de nos conduzir até lá, mesmo contra a nossa vontade, é responsável pela produção da corrupção. A corrupção não existe como tal; ela é simplesmente uma invenção dessa visão escatalógica e teleológica das coisas da vida. É a tirania das boas intenções, contra a qual, segundo Marie-Laure Susini, é difícil resistir. A única esperança que temos contra essa tirania, é ainda Susini que o diz, é uma reflexão bem forte.

• ELISIO MACAMO

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