Literatura feminina brasileira hoje



Literatura feminina brasileira hoje

Há controvérsias. Tema inevitável para quem escolhe a expressão “literatura feminina”, a mera existência de uma literatura feminina sempre bate à porta nessas horas – e às vezes até deixa chamuscados aqueles que ousam aceitá-la. Assim foi na última Flip, onde o mediador – antes de dar início aos trabalhos – teve de pedir mil desculpas às convidadas e ao público por, em algum momento lá atrás, ter sugerido uma singela mesa de... literatura feminina. Nem é preciso afirmar que mais da metade do tempo para os debates foi consumido em demonstrações implacáveis, por parte das participantes, provando que essa tal de “literatura feminina” não existe. Então uma leu um trecho de um livro cuja abertura se passava numa cozinha; outra dedicava seu volume a uma irmã gêmea imaginária e inexistente; e a última fez a defesa feroz de uma poetisa cigana que retratara em biografia – ora, mas isso não é literatura feminina?

A reunião das 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, com organização de Luiz Ruffato, pela editora Record, mostra que existe uma literatura brasileira feminina, sim. É aquela que fala de gravidez e de mulheres grávidas; aquela que explora o sexo do ponto de vista feminino; o amor, do ponto de vista feminino; as relações homossexuais (entre homens e mulheres); as amizades, do ponto de vista feminino; os palavrões, a violência e a mesma literatura – do ponto de vista feminino. E o próprio Ruffato, que deve ter boa relação com todas ali, logo se encarregou de introduzir o volume com uma genealogia das escritoras brasileiras e, por conseguinte,... da literatura feminina daqui. (Muito além de Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector e Rachel de Queiroz – diga-se de passagem.)

Mas quem são as tais 25 e o que se pode distinguir entre suas vozes (para que as mesmas não se revoltem com esta discussão inútil sobre rótulos)? Bem, para começar, vale lembrar que, por mais femininas que elas sejam, compartilham todo um universo de referências, de maneirismos e de preocupações inerentes – vejam só – ao mundo da “literatura masculina” brasileira atual. Muitas, como Clarah Averbuck, se apóiam em inglesismos e em ícones da cultura pop. (Seu conto abre com uma letra de música do The Sonics.) Já Állex Leilla escolhe como epígrafe uma composição de Herbert Vianna. Tantas têm um pé na canção popular... talvez porque antes dessa geração de escritores (coisa rara) tivemos algumas gerações de músicos. Como a música contemporânea anda murcha, os escrevinhadores tomaram de assalto as luzes da ribalta. E, com o contingente de leitores herdados via internet (outras gerações que estão se formando), prometem tomar de assalto ainda mais...

Mas óbvio que não é apenas isso que as nossas autoras femininas (o pleonasmo aqui é proposital) tomam emprestado de seus pares do “sexo oposto”. Inescapável na época atual, também o experimentalismo com a linguagem. Uma come as vírgulas (não vou dizer qual), outra embarca num brainstorm. Muitas sofrem, como os homens de hoje, de incontinência verbal: embalam no stream of consciousness e, quando vão ver, preencheram páginas e páginas – que o leitor depois sobrevoa do mesmo modo, indiferente e desencantado. Numa “correnteza desordenada e hemorrágica de palavras” (pág. 106). Quase 100% são autobiográficas. Algumas tentam escrever “que nem homem”, é verdade. Sem nenhum machismo: criam personagens masculinos e se propõem a explorá-los.

A maioria é jovem. Tirando uma ou outra que domina plenamente o idioma: Ivana Arruda Leite (1951) e Cecília Costa (1952). A primeira aborda uma solteirona que adota seu menino-amante; e a segunda conta a história de ciúme, cumplicidade e desilusão entre duas moças... jovens. Índigo (pseudônimo de Ana Cristina de Oliveira, 1971) lembra dos tempos em que fazia prova. Ana Paula Maia (1977) se perde entre os canais de televisão e, em seguida, parte para os sopapos com “Suziclécia”, sua colega de quarto. Tantas, como ela, esboçam a independência da chamada mulher moderna – aos trancos e barrancos, em meio a baques financeiros (que atingem a todos); em meio a homens fracos (como o escritor de Claudia Tajes, 1965); e em meio a disputas acirradas com outras fêmeas (como a manipuladora de Simone Campos, 1983).

Todas provavelmente usam computador, a “bola de cristal de silício”, segundo Mara Coradello (1974). Uma inclusive já contempla os mal-entendidos por e-mail, e seus desdobramentos (para além do e-mail). Todas fazem uso, em algum momento, do humor. Umas poucas com maestria, porque a vida (fora da literatura) já é suficientemente trágica. Todas conhecem as drogas e possivelmente já tomaram, no mínimo, “um porre federal” (pág. 184). Uma explora muito bem as mazelas sociais. É Tércia Montenegro (1976), que dramatiza a ascensão e queda de “Francilene”, uma garotinha de 7 anos, filha de alcoólatra, a partir de uma notícia de jornal. Todas indiscutivelmente lêem – ou assim se espera. (“[Todas] meio maníacas por livros e estudos”, pág. 92.) Uma, em pleno pós-feminismo do século XXI, ainda arrisca a submissão. É Cíntia Moscovich (1958), cuja personagem está de olhos vendados, de quatro, sob as ordens de seu parceiro, à espera... E uma, para contrabalançar, aposta na subversão. É Rosa Amanda Strausz (1959), que cria uma desmemoriada louca, vagando nua por um posto de gasolina e amanhecendo esquecida, com roupas emprestadas, no cais do porto.

Muitas não sabem ainda escrever. Poucas sabem. Muitas trombam com os gêneros e embarcam numa literatura vetusta, nem de ontem nem de hoje, para nunca mais. Poucas fisgam o leitor desde a primeira frase, numa cadeia de atenção, para soltá-lo na última. (Uma habilidade para se sentir e não para se explicar. Tem a ver com o ritmo, com o equilíbrio entre as palavras, com o assunto bem conduzido, que vai se desdobrando num crescendo a cada parágrafo.) Muitas ruminam livros, quase a cada ano, mas não deveriam produzir como se tivessem, diante de si, uma máquina de costura ou um par de agulhas de tricô. Mecanicamente e sem emoção. (Porque serão recebidas da mesma forma.) Poucas valem realmente a publicação. Mas todas valem a intenção – de salvar essas poucas.

E, por mais que se peneire, são muitas escritoras. O mesmo Ruffato, ainda no prólogo, enumera 25 outras – que poderiam entrar e que não entraram. Eu mesmo enumeraria mais 25. E o blogueiro da esquina, as 25 dele. E assim por diante. É um boom. Se existe uma paixão e um vício de ler escritores novatos – para se inspirar, para assisti-los se debatendo pela sobrevivência (como as tartarugas do mar), para vê-los crescendo e pelos olhos alimentá-los – essas coletâneas cumprem sua função. Claro que juntar um bando de moçoilas é um tanto mais estimulante do que reunir uma tropa de barbados. Por trás daquela assinatura feminina, sempre se esconde o desejo oco, por parte do editor, de encontrar aquela mulher fisicamente irresistível e intelectualmente estimulante. Fascinante e fatal. Poucos acham. Muitos procuram e não encontram. A esses, a literatura feminina pode ajudar.

Julio Daio Borges é editor do

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